Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
569/09.4TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: GUERRA BANHA
Descritores: INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DIREITO COMUNITÁRIO
DOMICÍLIO
MATÉRIA CONTRATUAL
CONCESSÃO COMERCIAL
Nº do Documento: RP20100907569/09.4TVPRT.P1
Data do Acordão: 09/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Legislação Nacional: REGULAMENTO (CE) N.° 44/2001, DO CONSELHO, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2000, RELATIVO À COMPETÊNCIA JUDICIÁRIA, AO RECONHECIMENTO E À EXECUÇÃO DE DECISÕES EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL.
Sumário: I- A incompetência internacional, enquanto pressuposto processual, deve aferir- se pelo objecto do litígio, tal como é configurado na petição inicial.
II- De harmonia com o princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito interno de cada um dos Estados-Membros da União Europeia, plasmado no proémio do n.° 1 do art. 65.° do Código de Processo Civil a propósito das regras a observar na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, as normas concernentes à competência judiciária emanadas dos competentes órgãos da União Europeia prevalecem sobre as normas do direito interno.
III- Numa acção instaurada por uma sociedade comercial sediada em Portugal contra uma sociedade comercial sediada em Espanha, a determinação do tribunal competente em razão da nacionalidade rege-se pelo Regulamento (CE) n.° 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
IV- O referido Regulamento consagra, como regime-regra, o domicílio do demandado, no sentido de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado- Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado (art. 2.°, n.° 1).
V- Mas complementa esse regime-regra com a introdução de “foros alternativos”, criados uns “em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio” e outros “com vista a facilitar uma boa administração da justiça “.
VI- No primeiro grupo de foros alternativos incluem-se as acções que têm por objecto “matéria contratual”, para as quais consagra o critério do foro do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão [art. 50, n.° 1, aI. a)].
VII- Tendo em conta a caracterização alegada pela autora na petição inicial, o acordo estabelecido entre duas sociedades comerciais, uma sediada em Espanha e outra sediada em Portugal, em que a prestação desta compreendia a promoção, distribuição e comercialização (revenda) em Portugal dos produtos e equipamentos produzidos pela primeira em Espanha, deve ser qualificado como “contrato de concessão comercial”, e não apenas como meros contratos de compra e venda ou de distribuição.
VIII- De harmonia com o direito substantivo aplicável, deve ser cumprida em Portugal a obrigação de indemnizar em dinheiro a concessionária, sedeada em Portugal, com base em responsabilidade civil contratual decorrente da cessação ilegal do contrato pela concedente, sedeada em Espanha, sem observar o pré-aviso de denúncia.
IX- Em aplicação do critério previsto na al. a) do do n.º 1 do art. 5º do Regulamento (CE) n.° 44/2001, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da acção que tem por o objecto a condenação da ré na obrigação de indemnizar anteriormente referida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 569/09.4TVPRT.P1
Recurso de Apelação (em separado)
Distribuído em 21-06-2010
Relator: Guerra Banha
Adjuntos: Des. Anabela Dias da Silva
Des. Sílvia Maria Pires
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto.

I – RELATÓRIO
1. B…….., S.A., com sede na cidade do Porto, instaurou, nas Varas Cíveis da comarca do Porto, acção declarativa de condenação com processo comum ordinário, contra C…….., S.L., sociedade comercial de direito espanhol com sede em ….., cidade de Salamanca, em Espanha.
Alegou, em síntese, que a ré é uma empresa biotecnológica, que se dedica à investigação e desenvolvimento de novos reagentes, programas informáticos e técnicas para citometria de fluxo; em 1995, a ré celebrou um contrato de distribuição comercial dos seus produtos em Portugal com a sociedade D……., S.A., a qual veio a ser incorporada por fusão na ora autora, que, por esse motivo, assumiu todos os direitos e deveres inerentes àquele contrato; de acordo com o que ficou convencionado entre a ré e a antecessora da autora, esta obrigava-se a distribuir e comercializar em Portugal os produtos e equipamentos produzidos pela ré; por fax de 31 de Outubro de 2008, a ré rescindiu a relação de distribuição que mantinha com a autora, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2009.
Pretende, em consequência, que:
1) seja declarada a inobservância pela Ré do prazo de pré-aviso exigível para a denúncia do contrato de distribuição;
2) seja a Ré condenada a indemnizar a Autora pelos prejuízos causados pela falta de pré-aviso, no valor total de 50.175,46€;
3) seja a Ré condenada a ressarcir a Autora pelos investimentos que esta realizou na promoção da marca da Ré, no montante de 50.000,00€;
4) seja a Ré condenada a pagar à Autora, a título de indemnização de clientela, a quantia de 41.280,73€;
5) seja a Ré condenada a pagar juros de mora à taxa de juros comerciais sobre os valores acima peticionados, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
A ré contestou por excepção e por impugnação. Em matéria de excepções dilatórias, invocou a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer desta acção, por entender que essa competência se determina pelas regras previstas no Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, e de acordo com o disposto nos arts. 2.º e 60.º do citado Regulamento tal competência cabe aos tribunais do Estado-Membro onde a ré tem a sua sede, ou seja, aos tribunais espanhóis.
A autora, que na petição já se tinha pronunciado pela competência dos tribunais portugueses em aplicação das regras estabelecidas nas als. c) e d) do n.º 1 do art. 65.º do Código de Processo Civil, veio, em sede de réplica, acrescentar que, estando em causa nesta acção matéria de natureza contratual, mesmo no âmbito do Regulamento (CE) 44/2001 a competência em razão da nacionalidade cabe aos tribunais portugueses, por ser o lugar onde a obrigação contratual deveria ser cumprida.
Apreciada no despacho saneador, foi decidido julgar improcedente a referida excepção, declarando competentes em razão da nacionalidade os tribunais portugueses e, em concreto, as Varas Cíveis do Porto.

2. Não se conformando com essa decisão, a ré apelou e concluiu:
……….
……….
……….
Contra-alegou a autora, concluindo pelo não provimento do recurso.

II – FUNDAMENTOS
3. Tratando-se de recurso interposto em acção instaurada no ano de 2009, a sua tramitação e julgamento rege-se pelo regime processual introduzido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24/08 (cfr. art. 12.º deste decreto-lei).
De harmonia com as disposições contidas nos arts. 676.º, n.º 1, 684.º, n.ºs 2 e 3, e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na redacção aplicável, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai das suas alegações, desde que reportadas à decisão recorrida, sem prejuízo das questões de que, por lei, o tribunal deva conhecer oficiosamente (art. 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
De modo que, limitando-se as conclusões do recurso à decisão proferida sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer do objecto desta acção à luz do regime estatuído no Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, é pois esta a única questão que cabe apreciar.

4. É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência (que ambas as partes também aceitam, como consta do art. 56.º da p.i. e n.º 3 da réplica, quanto à autora, e art. 12 da contestação, quanto à ré) que a competência do tribunal, incluindo a competência internacional — ou seja, a competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresentam também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa (cfr. o ac. do STJ de 08-04-2010, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 4632/07.8TBBCL.G1.S1) — se determina em relação ao momento em que a acção é proposta e se afere "à luz do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor na petição inicial, isto é, independentemente do que o réu articulou ou referiu no instrumento de contestação a título de defesa" (cfr. entre muitos outros, os acs. do STJ de 12-10-2006, 21-05-2009 e 04-03-2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. n.º 06B3288, 4986/06.3TVLSB.S1 e 2425/07.1TBVCD.P1.S1).
Tendo em conta estes parâmetros, para além do que ficou a constar supra do n.º 1 do relatório, interessa à apreciação do objecto do recurso considerar os seguintes factos alegados pela autora na petição inicial atinentes à identificação das partes e à causa de pedir:
1) A autora é uma sociedade comercial anónima, com sede em Portugal, na cidade do Porto (art. 1.º da p.i.).
2) Tem como actividade principal o comércio, importação, exportação e armazenamento de produtos e equipamentos laboratoriais e médico-hospitalares nas áreas das ciências biológicas de diagnóstico e investigação (art. 2.º da p.i.).
3) A ré é uma sociedade comercial de direito espanhol, com sede na cidade de Salamanca, em Espanha (art. 3.º da p.i.).
4) A ré é uma empresa biotecnológica, que se dedica à investigação e desenvolvimento de novos reagentes, programas informáticos e técnicas para citometria de fluxo (art. 4.º da p.i.).
5) Em 1995, a antecessora da autora — a sociedade D…….., S.A., posteriormente incorporada por fusão na ora autora — e a ré celebraram um "contrato de distribuição comercial" (arts. 5.º, 6.º, 10.º e 11.º da p.i.).
6) De acordo com o que ficou convencionado nesse contrato, a antecessora da autora e depois esta (arts. 12.º a 15.º da p.i.) obrigava-se a distribuir e comercializar em Portugal os produtos e equipamentos produzidos pela ré (arts. 7.º da p.i).
7) Para o efeito, a autora adquiriria os produtos à ré, suportaria os custos com a rede de distribuição nacional e faria suas as margens de lucro que obtivesse na revenda ao cliente final (art. 8.º da p.i.).
8) Por fax de 31 de Outubro de 2008, a ré rescindiu a relação de distribuição que mantinha com a autora, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2009 (art. 19.º da p.i.).

5. Decorre desta alegação da autora, em primeiro lugar, que o presente litígio respeita a duas sociedades comerciais sediadas em países diferentes, uma (a autora) em Portugal e outra (a ré) em Espanha, mas ambos membros da União Europeia à data da propositura da acção.
De harmonia com o princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito interno de cada um dos Estados-Membros da União Europeia, plasmado, aliás, no proémio do n.º 1 do art. 65.º do Código de Processo Civil a propósito das regras a observar na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, as normas concernentes à competência judiciária emanadas dos competentes órgãos da União Europeia prevalecem sobre as normas do direito interno. O que remete para a aplicação ao presente caso do Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (cfr. art. 8.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e art. 3.º, n.º 2, do referido Regulamento).
Com efeito, o referido Regulamento entrou em vigor no 1 de Março de 2002, substituindo entre os Estados-Membros da União Europeia, com excepção da Dinamarca, a Convenção de Bruxelas de 1968 [cfr. arts. 1.º, n.º 2, 68.º e 76.º, e considerandos 5) e 21) do dito Regulamento].
Aplica-se às acções judiciais intentadas posteriormente à sua entrada em vigor, é obrigatório em todos os seus elementos e é directamente aplicável em todos os Estados-Membros, salvo a Dinamarca, em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia (artigos 1.º, 66.º, n.º 1, 68.º e 76.º).
Visou unificar, neste âmbito, as normas de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição [cfr. art. 1.º, n.º 1, e considerando 2)].
Donde se conclui que a determinação do tribunal competente, em razão da nacionalidade, para conhecer desta acção terá que ser apreciada em face das normas constantes do dito Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000. Tal como desde sempre (ou seja, tanto na contestação como nas alegações deste recurso) entendeu a recorrente e como também foi observado no despacho recorrido.

6. Como se esclarece nos considerandos 11) e 12) do Regulamento, "as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e devem articular-se em torno do princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido … completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça".
Dando execução a esse princípio, o n.º 1 do art. 2.º dispõe que "sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado". O que consagra a regra do domicílio do demandado como factor de conexão essencialmente relevante para a determinação da competência internacional do tribunal, no sentido de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado.
Assim, segundo esta regra, a competência para julgar a presente acção caberia aos tribunais do país onde a sociedade demandada tem a sua sede social. Situando-se a sua sede social em Espanha, seriam os tribunais desse país os competentes (arts. 2.º, n.º 1, e 60.º, n.º 1, al. a), do Regulamento).
Mas a regra do "domicílio do demandado" não tem carácter absoluto, já que foi complementada com a introdução de "foros alternativos", criados uns "em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio" e outros "com vista a facilitar uma boa administração da justiça" (cfr. art. 3.º, n.º 1).
Em relação ao primeiro grupo importa referir os casos especiais previstos no n.º 1 do art. 5.º, porque foi no âmbito destes casos especiais que no despacho recorrido foi enquadrado o presente litígio e decidida a competência dos tribunais portugueses no âmbito da respectiva al. a), e porque é neste ponto que radica a divergência da recorrente.
Prescreve este preceito:
1- Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro:
a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão;
b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será:
- no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues,
- no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados;
c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a).
Respeita este preceito às acções que tenham por objecto "matéria contratual". Como é o caso da presente acção.
A solução consagrada é a do foro do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão. Concretizando a al. b), na falta de convenção em contrário, qual é o lugar de cumprimento da obrigação relevante, para este efeito, em dois tipos de contratos (eventualmente por serem os mais frequentes): o caso da compra e venda de bens, em que o lugar que releva é o da entrega dos bens; e o caso da prestação de serviços, em que o lugar relevante é o da prestação dos serviços.
Tal solução obriga a duas tarefas preliminares: primeiro, que se proceda à caracterização do contrato a que respeita a acção, tendo por referência a configuração descrita na petição inicial; segundo, que se determine qual o lugar do cumprimento da obrigação em litígio ou da obrigação relevante.

7. Neste âmbito, o despacho recorrido considerou o seguinte:
«Relevante, para este efeito, será a matéria de facto (causa de pedir), tal como esta é apresentada e delimitada pela autora na sua petição inicial, isto é, face aos termos em que a autora configura o direito invocado e a posição que as partes, perante os pedidos formulados e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida (tal como esta é apresentada na petição inicial).
Ora, apreciando quer a petição inicial quer a contestação, vemos que a autora demanda a ré na qualidade de partes no que denomina de "contrato de distribuição comercial", mediante o qual a autora "obrigava-se a distribuir e comercializar os produtos produzidos pela ré em Portugal", sendo que, para o efeito, "a autora adquiriria os produtos à ré, suportaria os custos com a rede de distribuição nacional e faria suas as margens de lucro que obtivesse na revenda ao cliente final".
Ora, independentemente da nomenclatura ou caracterização do contrato (que, a final, se decidirá se foi ou não correctamente apelidada pela autora), seja por contrato de distribuição comercial (como defende a autora), seja por mero contrato de compra e venda (como pugnando pela ré), o certo é que estão verificados os requisitos contidos no art. 5.º do regulamento (CE) em causa para que a ré possa ser demandada em Portugal.
Com efeito, era em Portugal que os bens eram comercializados (por encomenda da autora e posterior distribuição/venda), sendo neste país que se verificava toda a actividade da autora na execução do contrato com a ré.
Está assim preenchida a excepção contida no art. 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, sendo este tribunal (varas cíveis do Porto) competente para a acção em razão da nacionalidade.»
A ré discorda desta fundamentação em relação a dois aspectos: i) que ao caso seja aplicável o n.º 1 do art. 5.º, o qual integra na regra geral do domicílio do demandado, prevista no art. 2.º, n.º 1; ii) e que, a caracterizar-se o contrato como sendo de compra e venda, o lugar da entrega dos bens a que se reporta a al. b) seja o do país onde a autora exerce a sua actividade comercial, contrapondo que esse lugar é o da venda da ré à autora, e não o local onde posteriormente a autora ia (re)vender os bens adquiridos à ré e onde exerce a sua actividade comercial.
Cremos que a recorrente tem razão quanto a este segundo ponto. Na verdade, se a relação comercial entre autora e ré se resumisse a repetidas vendas dos produtos da ré à autora para esta os revender em Portugal, o lugar que relevaria para efeitos da al. b) do n.º 1 do art. 5.º do Regulamento seria o do país onde esses produtos eram ou deviam ser entregues pela ré à autora. E não o lugar onde, posteriormente, a ré os iria revender. Trata-se, porém, de uma divergência meramente teórica, porquanto, na realidade, os dois lugares coincidem: era em Portugal que a autora recebia os produtos remetidos pela ré e é também em Portugal que a autora exerce a sua actividade comercial e revendia os mesmos produtos. E, portanto, sempre o lugar do foro competente seria o mesmo: Portugal.
Sucede que, em nosso entender, a posição da recorrente, que visa afastar a aplicação do n.º 1 do art. 5.º, enferma de duas insuficiências: uma quanto à caracterização do contrato que existia entre as partes e é objecto do presente litígio; e a outra quanto à falta de justificação para afastar a aplicação da al. a). Sendo certo que, segundo prescreve a al. c), estando em causa "matéria contratual", se não puder ser aplicada a alínea b), será sempre aplicável a alínea a). E como refere o recente acórdão do STJ de 29-04-2010 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 622/081TVPRT.P1.S1), o regime regra que adopta o Regulamento (CE) n.º 44/2001 "é o do foro do Réu mas com outras conexões, regendo em matéria contratual a regra de que o tribunal internacionalmente competente para acção é o do lugar onde a obrigação foi ou deva ser cumprida [art. 5.º, n.º 1, al. a)], a menos que se verifique qualquer dos específicos casos de contratos especificados na al. b)".

8. Qualquer das questões aqui suscitadas pela recorrente já foram objecto de apreciação e decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo menos em três acórdãos, alguns bem recentes. Referimo-nos aos acórdãos de 12-10-2006, de 09-10-2008 e de 29-04-2010, todos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.nsf/, procs. n.º 06B3288, 08B2633 e 622/081TVPRT.P1.S1, respectivamente. Os dois primeiros estão também publicados, em texto integral, na revista "O Direito", ano 141.º, 2009, vol. II, p. 461 e seguintes, e comentados pela DRA. MARIA JOÃO MATIAS FERNANDES em sentido concordante quer quanto à caracterização dos contratos, quer quanto às decisões proferidas nos dois referidos acórdãos, que consideraram competentes os tribunais portugueses com base na aplicação da al. a) do n.º 1 do art. 5.º do dito Regulamento.
Quanto à caracterização do contrato, não parece, em face da configuração alegada pela autora na petição inicial (e é esta configuração que releva para o efeito da determinação do tribunal competente, como já foi dito), que a relação comercial contratualmente estabelecida entre autora e ré se limitasse a meras compras e vendas dos produtos da ré à autora.
Com efeito, em face dos factos alegados pela autora, o acordo estabelecido entre a ré e a antecessora da autora compreendia a promoção, distribuição e comercialização em Portugal dos produtos e equipamentos produzidos pela ré (cfr. art. 7.º da p.i). E embora a autora o denomine de "contrato de distribuição comercial" (cfr. art. 6.º da p.i.), o seu objecto era mais amplo e identifica-se mais propriamente com o contrato de concessão comercial. Como refere o acórdão do STJ de 13-04-2010 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 673/2002.E1.S1), "o contrato de concessão comercial é um contrato atípico e inominado, modalidade dos contratos de cooperação comercial, mormente, na vertente de contratos de distribuição" (cfr. ainda, sobre o conceito de contrato de concessão comercial, entre outros, os acórdãos do STJ de 01/02/2001, na CJ-STJ/2001/T.I/p.90, e de 13-09-2007 e 15-03-2009, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. n.º 07B1958 e 09B0297, respectivamente, e HELENA BRITO, em Contrato de Concessão Comercial, p. 13/14 e 54 e ss.).
Foi também como "contrato de concessão comercial" que o Supremo Tribunal de Justiça qualificou as relações comerciais em causa nos processos a que respeitam os três acórdãos acima referidos e que se identificam com as aqui descritas pela autora na petição inicial. Porquanto "a prestação característica do contrato de concessão comercial, celebrado no exercício da actividade económica e profissional do concedente e o do concessionário, é a de o último celebrar, numa zona geográfica considerada, com clientes diversos, existentes ou a angariar, contratos de compra e venda cujo objecto mediato são os produtos por ele adquiridos ao primeiro". Tal como fazia parte do objecto da prestação da autora no âmbito do contrato aqui descrito.
Ora, é com fundamento na cessação unilateral (denúncia) do dito contrato que a autora pretende, através desta acção, obter indemnização da ré, que compreende os prejuízos resultantes do alegado incumprimento pela ré do prazo do pré-aviso de denúncia, os investimentos que diz ter realizado na promoção dos produtos da ré e a compensação pela angariação de clientela.
Donde se conclui que a pretensão de indemnização que a autora formula não assenta, pelo menos directamente, no incumprimento de qualquer obrigação específica do contrato, mas no acto de denúncia que fez cessar os efeitos do contrato.

9. Assim caracterizado o objecto do litígio no quadro da configuração que lhe é dada pela autora na petição inicial, impõe-se determinar qual o lugar do cumprimento da obrigação relevante para efeitos do disposto no art. 5.º, n.º 1, al. a), do Regulamento.
O primeiro dos três acórdãos do STJ acima referidos considerou a este respeito o seguinte (texto já integrado da sua adaptação ao presente caso):
«Considerando a origem da relação jurídica que terminou, segundo a afirmação da recorrente na petição inicial, estamos perante um conflito de leis aplicáveis a obrigações contratuais, outrora regido pelos artigos 41º e 42º do Código Civil, e actualmente pela Convenção de Roma de 19 de Junho de 1980.
………….
Portugal e a Itália (como também a Espanha, que é o país que está em causa nesta acção) são Estados-Membros da União Europeia que estão vinculados à referida Convenção, sendo o nosso País desde 1 de Setembro de 1994.
A regra é no sentido de que o contrato, incluindo as suas vicissitudes, se rege pela lei escolhida expressamente pelas partes ou em termos de resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa (artigo 3.º, n.º 1).
Com efeito, a lei aplicável ao contrato regula, por um lado, a sua interpretação, o cumprimento das obrigações dele decorrentes, as causas da extinção destas, incluindo a prescrição e a caducidade fundadas no decurso de um prazo, nos limites dos poderes atribuídos ao tribunal do foro pela respectiva lei do processo. E, por outro, as consequências do incumprimento total ou parcial dessas obrigações, incluindo a avaliação do dano, na medida em que esta seja regulada pela lei [artigo 10.º, alíneas a) a d)].
Não tendo as partes escolhido a lei aplicável ao contrato, este é regulado pela lei do país com o qual ele apresente uma conexão mais estreita (artigo 4.º, n.º 1).
Presume-se que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com o país onde a parte obrigada a fornecer a prestação mais característica tiver, ao tempo da sua outorga, a sua residência habitual ou, no caso de se tratar de sociedade, a respectiva administração central.
Todavia, se o contrato for celebrado no exercício da actividade económica ou profissional dessa parte, o país a considerar é aquele em que se situe o seu estabelecimento principal (artigo 4.º, n.º 2).
Por aplicação da lei de um país determinado pela presente Convenção é entendida a das normas de direito em vigor nesse país, com exclusão das de direito internacional privado, pelo que se exclui a aplicação de normas que se reportem ao reenvio (artigo 15.º).
Não resulta do processo que as partes tenham escolhido expressa ou tacitamente, a lei aplicável ao contrato em causa, nem se sabe onde é que ele foi celebrado, isto é, se o foi em Itália (neste caso, em Espanha), em Portugal, ou em qualquer noutro país.
A sua função económica é essencialmente o estabelecimento das regras da organização da venda em Portugal pela … concessionária (aqui autora) dos produtos por ela adquiridos à …. concedente (aqui ré), ou seja, a organização, com carácter duradouro, da distribuição daqueles produtos no nosso País.
Assim, a prestação característica que decorre do mencionado contrato, celebrado no exercício da(s) actividade(s) económica(s) e profissiona(is) da recorrente (ré) e recorrida (autora), decorre da obrigação desta, além do mais, de celebrar em Portugal, com clientes diversos, existentes ou a angariar, aqui sedeados, contratos de compra e venda com objecto mediato consubstanciado nos produtos adquiridos pela segunda à primeira.
Daí que a presunção de maior conexão do contrato celebrado entre a autora e a ré se estabeleça por via da localização do estabelecimento da titularidade da primeira. Dada a sua estrutura e características, a obrigação da autora tinha, naturalmente de ser cumprida na zona geográfica prevista no contrato, ou seja, em Portugal.
Em consequência, o regime substantivo aplicável ao mencionado contrato, no que concerne às suas várias vertentes (incluindo as consequências das sua cessação), é o que decorre do ordenamento jurídico português.
…………..
Como o contrato de concessão comercial, considerando a sua estrutura, não pode ser assimilado, para os efeitos em causa, a um contrato de compra e venda ou a um contrato de prestação de serviços, não se poderia aplicar, se fosse caso disso, o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º do Regulamento.
(Mas) conforme acima se referiu, … a prestação característica do mencionado contrato é a que incumbia à … autora, naturalmente a cumprir em Portugal.
Em consequência, face ao relevo da referida obrigação em relação às demais que emergem do mencionado contrato e à circunstância de dever ser cumprida em Portugal, tendo em conta o que se prescreve na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º do Regulamento (CE n.º 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, a competência internacional para o julgamento da causa inscrever-se-ia nos tribunais portugueses.
Importa, todavia, considerar, tendo em conta o conteúdo da petição inicial apresentada pela recorrente, que não está em causa o incumprimento de qualquer das obrigações específicas do contrato de concessão comercial.
Com efeito, a pretensão da recorrente, baseada na cessação da relação jurídica contratual contrato por exclusiva iniciativa das recorridas, assenta em prejuízos decorrentes dessa cessação, ou seja, numa causa de responsabilidade civil contratual.
Está, por isso, em causa a existência ou não de uma obrigação de indemnização envolvente, como é natural, de medidas destinada a reparar o prejuízo dito sofrido pela recorrente.
Uma das formas possíveis de reparação do dano, incluindo o derivado da dinâmica da execução ou do termo dos contratos, é por via da indemnização pecuniária equivalente àquele prejuízo (artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil.
Tendo em conta que as obrigações pecuniárias são as que têm por objecto determinada prestação em dinheiro, a conclusão é no sentido de que, em regra, a obrigação de indemnização em geral não pode ser juridicamente qualificada como tal.
Todavia, nas situações em que a obrigação de indemnização é convertida em prestação pecuniária, isto é, em termos de equivalência ao prejuízo, nada obsta à consideração de que para o efeito em causa se trata de obrigação pecuniária.
Ora, como o pedido de indemnização que a recorrente formula no confronto das recorridas se reconduz à exigência de pagamento de uma quantia dinheiro, o lugar do seu cumprimento é o da sede da primeira, isto é, em Portugal (artigo 774.º do Código Civil).
Ora, em matéria contratual, como ocorre no caso vertente, conforme acima se referiu, uma pessoa com domicílio ou sede no território de um Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão (artigo 5.º, n.º 1, alínea a), do referido Regulamento).
Assim, como a referida obrigação de indemnização por equivalente pecuniário deve ser cumprida em Portugal, são os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer da acção em causa, pelo que inexiste fundamento legal para a absolvição das recorridas da instância.»
Esta fundamentação veio a ser, no essencial, prosseguida nos dois restantes acórdãos, que também concluíram pela competência dos tribunais portugueses.
Sendo a interpretação jurisprudencial dominante, há que confirmar a decisão recorrida, ainda que baseada em fundamentos diferentes dos ali invocados.

10. Sumário:
i) A incompetência internacional, enquanto pressuposto processual, deve aferir-se pelo objecto do litígio, tal como é configurado na petição inicial.
ii) De harmonia com o princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito interno de cada um dos Estados-Membros da União Europeia, plasmado no proémio do n.º 1 do art. 65.º do Código de Processo Civil a propósito das regras a observar na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, as normas concernentes à competência judiciária emanadas dos competentes órgãos da União Europeia prevalecem sobre as normas do direito interno.
iii) Numa acção instaurada por uma sociedade comercial sediada em Portugal contra uma sociedade comercial sediada em Espanha, a determinação do tribunal competente em razão da nacionalidade rege-se pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
iv) O referido Regulamento consagra, como regime-regra, o domicílio do demandado, no sentido de que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado (art. 2.º, n.º 1). Mas complementa esse regime-regra com a introdução de "foros alternativos", criados uns "em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio" e outros "com vista a facilitar uma boa administração da justiça".
v) No primeiro grupo de foros alternativos incluem-se as acções que têm por objecto "matéria contratual", para as quais consagra o critério do foro do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão [art. 5.º, n.º 1, al. a)].
vi) Tendo em conta a caracterização alegada pela autora na petição inicial, o acordo estabelecido entre duas sociedades comerciais, uma sediada em Espanha e outra sediada em Portugal, em que a prestação desta compreendia a promoção, distribuição e comercialização (revenda) em Portugal dos produtos e equipamentos produzidos pela primeira em Espanha, deve ser qualificado como "contrato de concessão comercial", e não apenas como meros contratos de compara e venda ou de distribuição.
vii) De harmonia com o direito substantivo aplicável, deve ser cumprida em Portugal a obrigação de indemnizar em dinheiro a concessionária, sedeada em Portugal, com base em responsabilidade civil contratual decorrente da cessação ilegal do contrato pela concedente, sedeada em Espanha, sem observar o pré-aviso de denúncia.
viii) Em aplicação do critério previsto na al. a) do do n.º 1 do art. 5.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer da acção que tem por o objecto a condenação da ré na obrigação de indemnizar anteriormente referida.

III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pela apelante (art. 446.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Relação do Porto, 07-09-2010
António Guerra Banha
Anabela Dias da Silva
Sílvia Maria Pereira Pires