Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1303/16.8T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
LIVRE CONVICÇÃO DO JUIZ
Nº do Documento: RP202102221303/16.8T8PNF.P1
Data do Acordão: 02/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE, CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: Face ao disposto no art. 466º do CPC/201 as declarações de parte são um meio de prova válido, estando sujeitos, tal como a prova testemunhal, à livre convicção do julgador [na medida em que não consubstanciem confissão], tudo se reconduzindo à avaliação e ponderação que haja de ser feita, sem prejuízo porém dessa avaliação dever ser feita com a necessária cautela
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 1303/16.8TPNF.P1
Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1199)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, participado, aos 05.05.2016, acidente de trabalho de que terá sido vítima a A., B…, e frustrada a tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do mesmo, aquela apresentou petição inicial demandando as RR, C… - Sucursal Em Portugal, e COMPANHIA DE SEGUROS D…, S.A., pedindo que sejam as “Rés condenadas a pagar à Sinistrada a pensão laboral remível correspondente à Incapacidade Permanente Parcial resultante do Acidente de Trabalho.”.
Para tanto, alega em síntese que: exercia funções de empregada de limpeza sob as ordens, fiscalização e direcção da 1ª R., mediante o pagamento da retribuição mensal de € 505,00, sendo que a sua responsabilidade infortunística decorrente de acidentes de trabalho se encontrava transferida para a 2ª R.. No dia 29/09/2015 foi vítima de acidente de trabalho quando se dirigia para o local de trabalho e, ao descer do comboio, se desequilibrou e caiu ao solo, tendo sentido dores no pé esquerdo e traumatismo do tornozelo. Alega ainda que apresentava as seguintes lesões: dor muito intensa; inchaço e mudança da cor da pele do tornozelo; dor ao mexer o tornozelo; e dificuldade ou impossibilidade de se sustentar sobre a perna esquerda. Continua a sentir dores diárias. Alega que não lhe foram pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias devidas, no valor de € 184,50, sendo que terá direito a pensão laboral remível.

O Instituto da Segurança Social, IP deduziu pedido de reembolso contra as RR. de subsídio de doença e prestações compensatórias de subsídios de natal e férias de 2017, referentes ao período compreendido entre 14/10/2015 e 23/05/2018, no valor total de € 13.133,16, acrescido de juros de mora à taxa legal.

A Ré Seguradora contestou alegando que: a responsabilidade infortunística laboral havia sido transferida para si, por meio de contrato de seguro com a apólice nº .........., cujo prémio teria de ser pago com periodicidade mensal, sendo que a 1ª R. não cumpriu com esta obrigação, o que determinou que o contrato de seguro fosse automaticamente anulado, por falta de pagamento, antes do acidente aqui em causa. Remeteu à 1ª R. o aviso para pagamento do prémio de seguro relativo ao período de 01/09 a 01/10/2015, que o recebeu com mais de 30 dias de antecedência, que não foi pago, o que determinou a sua anulação automática. Assim, à data do acidente aqui em causa, não havia seguro válido e em vigor. Impugna, alegando desconhecimento, o invocado acidente. Alega ainda que em 13/10/2015 a A. apresentava alterações degenerativas já presentes em 12/03/2015, pelo que as lesões e sequelas da A. são anteriores ao acidente, sendo que, ainda que tivesse sofrido a entorse que alega em 29/09/2015, o máximo de período de incapacidade que daí lhe decorreria seria ITA até 13/10/2015, data em que teve alta sem desvalorização. Conclui que a acção deve ser julgada totalmente improcedente e a R. absolvida do pedido.

A 2ª R. contestou também o pedido de reembolso formulado pelo ISS, I.P., impugnando o alegado e mantendo o alegado em sede de contestação à p.i. Invoca ainda que a A. e a interveniente reclamam o pagamento de verbas relativas aos mesmos períodos de incapacidade temporária, o que constitui uma acumulação indevida de indemnizações, pelo que, a ser julgado procedente o pedido de reembolso do ISS e as pretensões da A., sempre terá de se descontar às prestações as pensões que venham a ser arbitradas à A.. Conclui reiterando a posição vertida na contestação.

Aos 28.12.2018 foi proferido despacho a determinar o desentranhamento da contestação apresentada pela 1ª R. em virtude do não pagamento da taxa de justiça e multas devidas pela mesma.
E, nessa mesma data, foi proferido despacho saneador tabelar e seleccionada a matéria de facto, consignando-se a assente e elaborando-se base instrutória.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
“(…) julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condena-se a R. Companhia de Seguros D…, S.A. no pagamento à A. B… da quantia de € 175,29 (cento e setenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos) referente a indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta, acrescido dos juros de mora até efectivo e integral pagamento, nos termos previstos no artigo 135º do CPT;
B) Absolve-se a R. C… – Sucursal em Portugal do pedido formulado pela A.;
C) Absolvem-se as RR. Companhia de Seguros D…, S.A. e C… – Sucursal em Portugal do pedido de reembolso formulado pelo Interveniente Instituto da Segurança Social, I.P..
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Custas a cargo da A., da 2ª R. e do Interveniente, na proporção do respectivo decaimento, nos termos do disposto no artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC, e sem prejuízo de eventual isenção.
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Valor da acção – € 175,29 (cfr. artigo 120º nº 2 do CPT).”.

Inconformada a Ré Seguradora veio recorrer, tendo formulado as seguintes conclusões:
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A A., patrocinada pelo Digno Magistrado do Ministério Público, contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
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Não foi, nesta Relação, emitido parecer dado a A./sinistrada ser presentada pelo Ministério Público.

Colheram-se os vistos legais.
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II. Decisão da matéria de facto provada proferida pela 1ª instância:

É a seguinte a decisão da matéria de facto provada proferida pela 1ª instância:
“Factos assentes por acordo:
A) B… nasceu no dia 27-04-1959, na freguesia …, concelho de Penafiel, conforme assento de nascimento junto a fls. 8 e 9 [ponto A) dos factos assentes];
B) B…, Autora nos presentes autos, é beneficiária da Segurança Social Portuguesa, inscrita com o n.º ……….. [ponto B) dos factos assentes];
C) A Sinistrada foi admitida ao serviço e por conta da C… – Sucursal Em Portugal para desempenhar as funções de Empregada de Limpeza [ponto C) dos factos assentes];
D) A Sinistrada desempenhava essas funções sob as ordens, direção e fiscalização da C.. [ponto D) dos factos assentes];
E) É certo que entre a R. Patronal e a Ré seguradora havia sido celebrado, entre vários outros, o contrato de seguro de acidentes de trabalho titulado pela apólice nº ………. [ponto E) dos factos assentes];
F) O Instituto da Segurança Social pagou à Autora a quantia de € 12.567,36 (doze mil, quinhentos e sessenta e sete euros e trinta e seis cêntimos), a título de Subsídio de Doença, no período decorrido de 14/10/2015 a 23/05/2018, e a quantia de € 565,80 (quinhentos e sessenta e cinco euros e oitenta cêntimos), a título de Prestação Compensatória de Subsídio de Natal e Férias de 2017, perfazendo a quantia total de € 13.133,16 (treze mil, cento e trinta e três euros e dezasseis cêntimos), conforme se demonstra na certidão junta a fls. 132 [ponto F) dos factos assentes];
Factos demonstrados por produção de prova:
G) A 1ª R. transferiu a responsabilidade infortunística, nomeadamente decorrente de acidente de trabalho para a Companhia de Seguros D…, S.A. através do contrato de seguro titulado pela apólice nº …….. [ponto 2) da base instrutória];
H) No dia 29/09/2015, pelas 08h10m, na estação ferroviária de …, quando a A. se dirigia para o seu local de trabalho, onde exercia as funções de empregada de limpeza, sob as ordens, direcção e fiscalização da 1ª R., foi vítima de um acidente [ponto 3) da base instrutória];
I) Com efeito, a A., naquele dia e hora, ao desembarcar do comboio, na estação ferroviária de …, sofreu uma queda [ponto 4) da base instrutória];
J) A A. encaminhava-se para o seu local de trabalho (estação ferroviária de …) vinda da sua habitação, na cidade de Penafiel, tal como todos os dias fazia [ponto 5) da base instrutória];
K) Ao descer do comboio, a A. desequilibrou-se e caiu ao solo [ponto 6) da base instrutória];
L) Ao cair, a A. embateu no solo e sentiu dores no pé esquerdo [ponto 7) da base instrutória];
M) Tendo sofrido um traumatismo do tornozelo do pé esquerdo, consistente em entorse [ponto 8) da base instrutória];
N) Como consequência direta e necessária do acidente em apreço, a A. apresentava, nomeadamente, as seguintes lesões: dor imediata e muito intensa; inchaço do tornozelo; dor ao mexer o tornozelo; dificuldade ou impossibilidade de se sustentar sobre a perna esquerda [ponto 9) da base instrutória];
O) A data da alta da A. é fixável em 13 de Outubro de 2015 [ponto 13) da base instrutória];
P) Do acidente resultou ainda para a A. incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a sinistrada esteve totalmente impedida de realizar a sua actividade profissional) desde 29/09/2015 até 13/10/2015, fixável num período total de 15 dias, data em que teve alta, curada sem desvalorização, como decorre da avaliação do INML [pontos 14) e 40) da base instrutória];
Q) Não lhe foram pagas as indemnizações que lhe eram devidas à data [ponto 15) da base instrutória];
R) Como resulta da proposta que deu origem ao contrato de seguro referido em E), ficou acordado que o prémio do mesmo seria variável e teria que ser pago com uma periocidade mensal [ponto 20) da base instrutória];
S) Por atravessar sérias dificuldades financeiras, a 1ª R. não conseguia, com frequência, cumprir as suas obrigações perante a 2ª R. [ponto 21) da base instrutória];
T) O que levou a que vários contratos de seguro entre as partes celebrados fossem automaticamente anulados, por falta de pagamento [ponto 22) da base instrutória];
U) O que sucedeu, precisamente, com o contrato de seguro de acidentes de trabalho que antes do acidente dos autos vigorou entre as partes [ponto 23) da base instrutória];
V) Como sempre fazia, a 2ª R. remeteu à 1ª R. o aviso para pagamento do prémio de seguro relativo ao período de 01/09/2015 a 01/10/2015 [ponto 24) da base instrutória];
W) A 1ª R. não pagou o aviso recibo respeitante ao período de tempo de 01/09/2015 a 01/10/2015 [ponto 25) da base instrutória];
X) Tal aviso recibo, vencido em 01/09/2015 não foi pago, nem até tal data nem posteriormente [ponto 26) da base instrutória];
Y) O seguro em causa era um seguro anual de prémio variável, em que a segurada, a 1ª R., se obrigou a pagar o prémio em prestações mensais [ponto 28) da base instrutória];
Z) Tendo-se vencido no dia 01/09/2015 a prestação que se vem de referir, relativa ao período de 01/09/2015 a 01/10/2015 sem que, nem até tal data nem posteriormente tal recibo haja sido pago [ponto 29) da base instrutória];
AA) Não foi pago o aviso recibo vencido em 01/09/2015 [ponto 30) da base instrutória];
BB) Por falta de pagamento do prémio parcial devido em 01/09/2015 foi a apólice considerada pela 2ª R. como automaticamente resolvida nessa data [ponto 31) da base instrutória];
CC) A 1ª R. não procedeu posteriormente ao pagamento devido [ponto 32) da base instrutória];
DD) Como resulta do relatório do exame singular efectuado no IML, a A. efectuou em 13/10/2015 RM do tornozelo – região alegadamente afectada no acidente dos autos – e apresentava então subluxação subastragalina posterior com marcadas alterações degenerativas, provavelmente por instabilidade ou trauma antigo; edema da medula óssea por doença degenerativa subtalar posterior, alterações degenerativas estas já presentes na RM de 12/03/2015; tinha ainda alterações degenerativas da parte anterior da articulação tibiotalar, com ligeiro edema no recesso anterior da articulação, sem fracturas articulares ou derrame articular, sendo estas alterações também já presentes no exame anterior [ponto 33) da base instrutória];
EE) A A. apresentava já do evento do dia 29/09/2015, as lesões e sequelas indicadas em DD), assim como aquelas que são referidas na TAC do pé esquerdo de 07/12/2012 referidas no relatório do INML [ponto 34) da base instrutória];
FF) Sequelas e lesões estas que são as únicas que apresenta actualmente [ponto 35) da base instrutória];
GG) E que são de etiologia degenerativa, com muitos meses ou anos de evolução antes de 01/09/2015 [ponto 36) da base instrutória];
HH) Em nada tendo sido causadas ou agravadas pelo evento de tal data 29/09/2015 [ponto 37) da base instrutória];
II) Estas lesões e doenças degenerativas da A. já lhe haviam causado, várias vezes antes de 01/09/2015, dores mais ou menos incapacitantes e a toma de medicação analgésica e anti-inflamatória [ponto 38) da base instrutória];
JJ) À data do acidente destes autos, a A. auferia a retribuição anual de € 409,83 x 14 + € 32,34 x 11 (total anual € 6.093,36).
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III. Fundamentação

1. Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões em apreço:
- Impugnação da decisão da matéria de facto;
- Da (in)existência do alegado acidente de trabalho.

2. Da impugnação da decisão da matéria de facto

A Recorrente impugna a decisão contida nas als. H), I), J) e K) dos factos provados, pretendendo que sejam dados como não provados.
A sustentar a impugnação, alega, em síntese, que: a decisão da matéria de facto assentou apenas nas declarações de parte da A., o que consubstancia meio de prova insuficiente, acrescendo que a A. nem tão pouco soube localizar no tempo o invocado acidente; dos depoimentos da testemunha E…, supervisora geral da empresa F…, e de G…, legal representante da Ré empregadora, resulta que os mesmos nada sabiam quanto às circunstâncias do acidente, até porque, quanto a este, depôs sobre a matéria relativa ao contrato de seguro. Entende, assim, que a A. não fez prova, como lhe competia, da existência do alegado acidente de trabalho.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 640º do CPC/2013, nada impedindo conhecer da impugnação.

2.1. Na fundamentação da decisão da matéria de facto a Mmª Juiz referiu o seguinte:
“(…)
Deram-se como provados os pontos H) a L) com base, essencialmente, no depoimento e declarações de parte da A., sendo que, quanto ao modo como ocorreu o acidente, a mesma revelou um depoimento claro, circunstanciado, pormenorizado e coerente, tendo explicitado o local onde se encontrava, hora, destino e modo como caiu, bem como dor imediata que a impediu logo de andar e estado do pé após o acidente. Não obstante não se recordasse da data concreta do acidente, declarou que se deslocou ao Hospital dos Lusíadas no próprio dia, o que resulta do teor de fls. 44 a 46 dos autos, não impugnado, elemento documental este que se encontra datado de 29/09/2015 como primeira consulta do sinistro, pelo que, da conjugação destes elementos de prova foi possível concluir pela data do acidente.
Os pontos M) a P) e DD) a II) resultaram demonstrados com base na conjugação do exame de junta médica de fls. 34 e ss. dos autos apensos com o teor do boletim de informação clínica e anotações médicas de fls. 44 a 46 dos autos, sendo que este último, a fls. 46, em anotações médicas de dois médicos distintos, Dr. H… da unidade de atendimento permanente, e Dr. I…, de ortopedia e traumatologia, descrevem do exame objectivo, além do mais, entorse do pé esquerdo. (…)”

2.2. A Recorrente, para além da alegação de que a A. não se recordaria da data do acidente, no mais sustenta essencialmente a impugnação na indevida valorização das declarações prestadas pela Autora em audiência de discussão e julgamento que não seriam corroboradas por outros meios de prova.
No Acórdão desta Relação de 13.03.2017, Proc. nº 407/15.9T8AVR.P1[1], referiu-se o seguinte:
“Desde já se afirma que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não tem propriamente a ver com o teor das declarações/depoimentos das testemunhas mas antes com a indevida valorização das declarações prestadas pelo Autor em audiência de discussão e julgamento e que se mostram espelhadas na fundamentação da decisão quanto à matéria de facto.
Consideramos oportuno aqui transcrever as considerações feitas pelo Juiz de Direito Luís Filipe Pires de Sousa [em as «Malquistas declarações de parte»] defendendo este Magistrado: (…) “(i) as declarações de parte integram um testemunho de parte; (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”.
Igualmente o Conselheiro António Abrantes Geraldes refere, acerca da declarações de parte, “admite-se a prestação de declarações de parte, por sua própria iniciativa, opção que encontra especial justificação nos casos em que, por não ser admissível a confissão de factos (designadamente quanto estejam em causa direitos indisponíveis), está vedada prestação de depoimento com tal objectivo especifico” (…) “admite-se, assim, que a parte enfrente o juiz que aprecia a causa, possibilitando que na formação da convicção este pondere o teor das declarações emitidas, ainda que sem natureza confessória, passo essencial para que se reduza o recurso, frequentemente abusivo ou desviante a depoimentos de testemunhas que não tiveram conhecimento directo, e atenuando o relevo excessivo que pelas partes ou pelos tribunais vem sendo atribuído aos depoimentos testemunhais” (…) – Revista Julgar, nº16, Temas da nova Reforma do Processo Civil, páginas 75/76.
Nos termos do artigo 466º, nº1 do CPC “As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”, sendo que “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão” [nº3 do mesmo artigo].
Perante as declarações de parte o Juiz valoriza, ou não, as mesmas, em conjugação com os demais elementos de prova, nomeadamente recorrendo às regras da experiência e às presunções judiciais, assim formando a sua livre convicção, nada impedindo que essa mesma convicção seja favorável ao próprio declarante/parte.
Posto isto, passemos ao caso concreto.
Relativamente aos quesitos 1 e 3 o Mmº. Juiz a quo alicerçou a sua convicção nas declarações do Autor conjugadas com os depoimentos das testemunhas J… e K…, vizinhas do Autor. Ou seja, a convicção do Tribunal não se alicerçou única e exclusivamente nas declarações do Autor.
Argumenta a apelante que os depoimentos das referidas testemunhas não poderiam ser tomados em conta pois elas não presenciaram o acidente. Tudo leva a crer que assim seja, que elas não presenciaram o acidente. Mas o Mmº. Juiz a quo considerou relevante o facto das vizinhas do Autor sempre o terem visto a usar óculos e após o acidente deixaram de o ver com óculos. Tal significa que, com recurso às regras da experiência, e tendo em conta as declarações do Autor e das testemunhas, suas vizinhas, o Tribunal a quo formou livre convicção de que o Autor usava óculos no dia do acidente e que estes se destruíram pois as suas vizinhas deixaram de o ver, a partir daí, com óculos.
Salvo o devido respeito, não vemos como «anular» a convicção do Mmº. Juiz a quo neste particular inexistindo fundamento legal para afirmar que os referidos elementos de prova – as declarações do sinistrado e das suas vizinhas – não podem ser valorados só pelo facto de as vizinhas do Autor não terem presenciado o acidente.
Na verdade, os argumentos da apelante vão contra o preceituado no artigo 607º, nº4 do CPC que dispõe: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção” (…).
Como refere Marta João Dias – em “A fundamentação do juízo probatório – Breves considerações, Revista Julgar, nº13, página 188 – “Considerando ter a prova uma função cognoscitiva da verdade intersubjectivamente partilhada, a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova só pode ser concebida com uma discricionariedade vinculada a critérios racionais e orientada para a descoberta daquela verdade prática. Assim sendo, compreende-se o imperativo de a decisão ser acompanhada por um discurso justificante a certificar que ela é fruto de critérios racionais e não de quaisquer palpites, intuições ou arbítrios”.
Não encontrámos na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto qualquer sinal no sentido de que a convicção formada constituiu, em face dos elementos de prova indicados, erro notório na apreciação da prova.
Afigura-se-nos antes que a apelante não está de acordo com a convicção formada pelo Mmº. Juiz a quo, o que não constitui fundamento para alteração da decisão quanto à matéria de facto.”
E, no mesmo sentido, se pronunciou o referido colectivo no Acórdão de 06.04.2017, proferido no Proc. nº 2367/15.7T8MTS.P1[2], pronunciando-se ainda o Acórdão desta Relação de 07.11.2016[3], www.dgsi.pt., em cujo sumário de refere que: “I - Em face do disposto no art.º 466.º do NCPC, actualmente é inequívoco que as declarações de parte sobre factos que lhe sejam favoráveis devem ser apreciadas pelo tribunal, sendo valoradas segundo o princípio da livre apreciação da prova, nomeadamente, a prova testemunhal, consagrado nos artigos 396.º do Código Civil e 607.º n.º 5, do CPC. II - Não merece qualquer censura a decisão recorrida ao ter entendido valorar as declarações feitas pelo autor ao prestar o depoimento de parte requerido pela Ré, relativamente a factos que lhe são favoráveis, conjugando-as com outros meios de prova. (…)”.

2.3. Revertendo ao caso em apreço procedeu-se à audição integral às declarações prestadas pela A. e, bem assim, à tentativa de audição das declarações de G…, legal representante da entidade empregadora e do depoimento da testemunha E…, supervisora geral, testemunha comum à A. e à Ré Empregadora, através do sistema citius media studio. E dizemos que se “tentou” tal audição uma vez que, ouvindo-se embora e correctamente, as perguntas feitas, as respostas daqueles (G… e E…) são, praticamente na sua totalidade, inaudíveis, apenas se podendo depreender o sentido de algumas das respostas face ao teor das perguntas, designada e mormente no caso de E…, da “síntese” que o ilustre mandatário faz nas perguntas que dirige.
Mas mesmo “dando de barato” que o legal representante da Ré empregadora e que a testemunha E… não hajam presenciado o acidente desconhecendo como o mesmo ocorreu, não vemos razão para alterar as respostas aos quesitos.
Com efeito e como decorre dos acórdãos acima citados, é actualmente adquirido que o depoimento/declarações de parte são um meio de prova válido, estando sujeitos, tal como a prova testemunhal, à livre convicção do julgador, tudo se reconduzindo à avaliação e ponderação que haja de ser feita, sem prejuízo porém dessa avaliação dever ser feita com as necessárias cautela, exigência e rigor e conjugada com a existência, ou não, de outros eventuais meios de prova.
No caso, a A. depôs de forma simples, clara, sem hesitações e que se nos afigurou de forma sincera e convincente, depoimento esse é acompanhado por outro meio de prova que o corrobora, qual sejam os elementos clínicos do Hospital … que constam dos documentos indicados na fundamentação da decisão da matéria de facto e que foram juntos pela Ré Seguradora.
Com efeito, no seu depoimento a A. referiu que, embora não se recordando da data (“foi há tanto tempo” como disse), o acidente ocorreu pelas 8h10 da manhã, quando saia do comboio na estação ferroviária … (…), tendo caído desamparada e magoado o pé esquerdo, ficou com muitas dores, os “colegas” ajudaram-na a levantar-se e levado para a esquadra (onde trabalhava) dessa estação. Aí foi-lhe dito que não estava em condições de trabalhar, ligaram para a empresa e levaram-na nesse mesmo dia para o Hospital …, reafirmando que foi a esse Hospital logo no próprio dia do acidente. Disse também que vinha de sua casa para iniciar o trabalho.
Por sua vez, o documento de fls. 44 a 46, foi junto pela Ré Seguradora na fase conciliatória do processo e constitui o “Boletim de informação clínica” elaborado pelo Hospital …, de onde constam diversas informações, designadamente: como “Data do Acidente” e “Início do Tratamento”, o dia 29.05.2015; como “lesões resultantes do acidente”, “Entorse pé esq”; “Anotações médicas”, “2015/09/29”, “H…, Dr”, “1ª CONSULTA SINISTRO: Descrição do acidente: No trajecto casa/trabalho, ao sair do comboio, torceu o pé esquerdo ficando com dores no mesmo. Lesões apresentadas/queixas: Entorse pé esq. Lesões resultantes do acidente: entorse pé esq. Observações do 1º atendimento: Entorse pé esq. (…). Exame objectivo: Entorse pé esq.”.
Ou seja, os elementos constantes dessa documentação clínica aludem ao acidente e à data da sua ocorrência, mais constando as lesões dele resultantes que estão em consonância com a queda referida pela A. e com as dores que sentiu no local. E se é certo que a A. não se lembrava da data em que o mesmo ocorreu, o que é justificável tendo em conta que passaram cerca de cinco anos [tendo como referência a data do julgamento], sabia contudo, e referiu-o no julgamento, que logo nesse dia foi ao Hospital ….
Salienta-se também que a referida documentação clínica foi junta pela Ré Seguradora aos 21.09.2016, na fase conciliatória do processo e, curiosamente e conquanto haja impugnado, na contestação, a ocorrência do acidente por alegado desconhecimento da sua existência, sem obrigação de o conhecer, na tentativa de conciliação que, nessa fase, teve lugar (aos 22.05.2018), a Ré Seguradora declinou a sua responsabilidade referindo o seguinte: “Declina toda e qualquer responsabilidade emergente do acidente dos autos uma vez que o contrato de seguro foi anulado por falta de pagamento em 01.09.2015 e, não havia qualquer seguro válido em nome da entidade empregadora da sinistrada à data do evento.”. Se é certo que a matéria relativa à ocorrência do acidente foi levada à base instrutória, por controvertida face à posição da Ré Seguradora na contestação, a verdade é que, pelo menos na tentativa de conciliação, a Ré Seguradora não teve ou sentiu necessidade de declinar a sua responsabilidade com base na inexistência, ou dúvida sobre a sua existência, do acidente.
De todo o modo, e mesmo tendo em conta que o ónus de alegação e prova da ocorrência do acidente impende, nos termos do art. 342º, nº 1, do Cód. Civil, sobre a A., face às declarações desta, corroboradas pelos elementos clínicos do Hospital …, não se nos afigura que ocorra uma incorrecta avaliação da prova e convicção formada pela 1ª instância que, também, subscrevemos.
Assim sendo, improcede a pretendida alteração da decisão da matéria de facto.

3. Da (in)existência do alegado acidente de trabalho

A procedência desta questão passava pela procedência da impugnação da decisão da matéria de facto pretendida pela Recorrente, pelo que, improcedendo esta, impõe-se concluir no sentido da improcedência da pretendida inexistência de um acidente de trabalho.

Assim, e nenhuma outra questão sendo levantada, improcede também nesta parte o recurso.
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IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 22.02.2021
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
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[1] Relatado pela Exmª Desembargadora Fernanda Soares, e em que a ora relatora interveio como segunda adjunta, acórdão não publicado, ao que se supõe.
[2] Não publicado, ao que se supõe.
[3] Relatado pelo Exmº Sr. Desembargador Jerónimo Freitas.