Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
154/21.2T8OAZ.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
SEGURADO
OMISSÃO DE FACTO RELEVANTE
DOLO
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RP20240307154/21.2T8OAZ.P2
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Nos termos do artigo 26.º, n.º 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, em caso de omissão negligente no fornecimento de dados de saúde à seguradora pelo segurado, ocorrendo o sinistro antes do fim do contrato, pode a seguradora não cobrir o sinistro se:
- a verificação ou consequências do sinistro foram influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes;
- a seguradora demonstrar que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 154/21.2T8OAZ.P1

Sumário.

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1). Relatório.

AA, cabeça de casal da herança indivisa de BB e CC, residentes na Rua ..., ..., ...

propuseram contra

A..., S. A., com sede na Av. ..., Edifício ..., Porto,

Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo que a mesma seja condenada a:

a) a pagar ao beneficiário do contrato de seguro (instituição bancária Banco 1...), o montante em dívida de 14 775,64 EUR, pelo contrato de financiamento;

b) a proceder ao pagamento aos Autores o montante total de 1 841,50 EUR, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

O sustento de tais pedidos formulados pelos Autores radica, em síntese, no seguinte:

. são os únicos herdeiros na herança indivisa do falecido, de BB que, no dia 08/01/2020, celebrou um contrato de crédito automóvel, com reserva de propriedade, junto do Banco 1... S.A.;

. inerente à celebração do mencionado contrato de crédito, e a fim de garantir o seu cumprimento, no mesmo dia celebrou um contrato de seguro junto da Ré, que deu origem à apólice n.º ..., no qual, consta como beneficiário a mencionada instituição bancária;

. na altura da celebração do referido contrato o segurado pensava ser uma pessoa saudável;

. a partir de 14/01/2020, começou a apresentar dificuldades em caminhar, cefaleias com tonturas, o que surgiu subitamente, tendo-lhe sido posteriormente diagnosticado neoplasia pulmonar ou carcinoma pulmonar, o que o veio a vitimizar em 27/03/2020.

. após a morte do segurado, os Autores continuaram a pagar as prestações da responsabilidade da seguradora.


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A Ré contestou, alegando em resumo que:

. o tribunal é territorialmente incompetente;

. os Autores são partes ilegítimas;

. o contrato de seguro é anulável pois o segurado omitiu informação relevante sobre o seu estado de saúde;

. as patologias pré-existentes do segurado são excludentes das garantias do contrato de seguro;

. mesmo que possa vir a ser condenada, não pode ter de pagar à instituição de crédito o valor que os herdeiros vêm pagando.

Termina pedindo a procedência da alegada incompetência e da ilegitimidade bem como da alegada anulabilidade ou a exclusão das garantias do contrato das patologias do segurado, levando à improcedência da ação.


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Os Autores apresentaram articulado onde se pronunciaram sobre as exceções, negando a sua procedência, mencionando que não lhes foi explicado o conteúdo de quaisquer cláusulas do contrato de seguro, as doenças de que o segurado era portador não foram causa da sua morte sendo que desconhecia a doença que o acabou por vitimizar quando celebrou o contrato.

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Elaborou-se despacho saneador, onde se julgaram improcedentes as exceções de incompetência territorial e ilegitimidade e se fixou como:

. objeto de litígio - Aferir dos pressupostos da responsabilidade contratual da ré pelo pagamento das quantias peticionadas a coberto do contrato de seguro titulado pela apólice ..., mercê da morte da pessoa segura

e como

. temas de prova, apurar:

. causa da morte de BB;

. se o falecido desconhecia a sua situação médica e, em concreto, a doença que o vitimou à data da celebração do contrato de seguro e se o seu historial clínico não indiciava o seu desenvolvimento;

. data em que se manifestou tal doença, com que sintomatologia e qual o comportamento adotado pelo falecido, em consequência dela;

. se, após a morte da pessoa segura, os autores pagaram as prestações mensais ao banco mutuante, em que data se venceram e qual o seu valor;

. montante da dívida à instituição bancária Banco 1... à data do óbito da pessoa segura e atualmente;

. se as cláusulas insertas no contrato foram explicadas à pessoa segura, designadamente as referentes às declarações relacionadas com a sua situação clínica, atual e pré-existente;

. se o falecido omitiu voluntariamente à data da adesão ao contrato de seguro informações relevantes quanto à sua situação clínica à data e pré-existente, designadamente os antecedentes clínicos referidos em 29.º da contestação, que lhe exigiam seguimento médico e toma de medicação;

. a sintomatologia dominante das referidas patologias e a data do seu diagnóstico;

. se tais patologias concorreram para a morte de BB;

. se, caso a ré tivesse conhecimento de tais patologias, não teria aceite a adesão às garantias do contrato de seguro.


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Em 25/01/2022 a Ré apresentou articulado superveniente onde alega só ter conhecido as doenças de que o segurado padecia após a apresentação da contestação, enumerando as mesmas.

O articulado foi admitido em 22/03/2022.


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Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação provada e procedente, decidindo:

«1. Condenar a ré A..., S.A. no cumprimento das obrigações assumidas pelos Autores perante o Banco 1... S.A., em virtude da transferência de responsabilidade operada pelo contrato de seguro celebrado, titulado pela apólice n.º ..., com efeitos à data do óbito de BB, como seja, 27.03.2020, montante em dívida que na data de propositura da presente acção assumia o valor de €14.775,64, necessário à satisfação integral do capital ainda em dívida da quantia mutuada segura pelo contrato de seguro titulado por aquela apólice, a liquidar directamente àquela entidade financeira e beneficiária do aludido contrato de seguro;

2. Condenar a ré A..., S.A. a restituir aos autores as quantias por estes pagas desde 27.03.2020 a título de amortização do empréstimo celebrado com o Banco 1..., S.A. e que na data de propositura da presente acção perfazia o valor de €1.841,50;

3. Condenar a ré a restituir aos autores a quantia correspondente aos montantes entretanto pagos e que venham a ser pagos pelos autores a título de amortização do referido empréstimo, desde a data de propositura da presente acção (12.01.2021) e até à satisfação integral das quantias mutuadas;

4. Condenar a ré a pagar aos autores os juros de mora sobre as quantias descritas em 2. e 3., à(s) taxa(s) legal(is) civil(s), contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.».


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Foi interposto recurso pela Ré, tendo sido proferida, em 04/07/2023, decisão sumária em que se determinou, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, d), do C.P.C. que se fundamentasse a decisão quanto aos seguintes factos:

. alteração dos lípidos;

. ácido úrico (articulado superveniente junto em 25/01/2022, artigo 9.º), tendo de tomar medicação (artigo 11.º, do mesmo articulado);

. o segurado omitiu essas doenças (além das que já estavam provadas) de que padecia quando celebrou o contrato de seguro;

. se a Ré soubesse que o segurado padecia de tais doenças (incluindo as já provadas), não teria celebrado o contrato.


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O tribunal recorrido proferiu então despacho datado de 2/10/2023 onde se aditaram os factos provados 26 e 27 e se descriminou a alínea a), nos factos não provados.

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Recorre, de novo, a Ré, formulando agora as seguintes conclusões:

I). A sentença recorrida não pode manter-se, na medida em que não tem qualquer suporte da prova documental e testemunhal produzida nos presentes autos, impondo-se, por essa razão, a sua reanálise e alteração, nos termos constantes do presente recurso;

II. A sentença em apreço violou o disposto nos artigos 24.º e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e, bem assim, o disposto no artigo 227.º do Código Civil, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que faça a correcta aplicação do direito, conforme se demonstrará;

DA REPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA:

III. 5. Com interesse para o presente recurso, foi dada como provada, entre outra, a matéria constante dos pontos transcritos;

IV. É manifesto e notório o erro na apreciação da matéria de facto, impondo-se a sua reapreciação por V.Ex.ªs, mediante a alteração da resposta dos pontos 3, 11, 26 e 27, nos termos defendidos no presente articulado, tendo por referência a prova documental e testemunhal produzida;

V. A alteração da redacção dos pontos 3, 11, 26 e 27 encontra suporte no depoimento da testemunha DD, e, bem assim, no teor dos documentos juntos pelo Centro de Saúde, pelo Centro Hospitalar ..., e pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde;

VI. Igualmente se impõe a alteração da resposta, para positiva, da alínea a) dos factos dados como não provados;

VII. Tal matéria encontra suporte no depoimento das testemunhas EE e FF e, bem assim, no regime jurídico do contrato de seguro;

VIII. Igualmente, se impõe o aditamento à matéria de facto dada como provada dos pontos identificados no presente articulado sob os números 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 38;

IX. Tal matéria encontra suporte no teor dos documentos juntos pelo Centro de Saúde ..., pelo Centro Hospitalar ... e pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, devidamente contextualizados pelos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF;

X. Ou seja, da análise da diversa documentação clínica junta aos autos, interpretada e explicada pelas aludidas testemunhas, resulta que, em data anterior a Janeiro de 2020, BB apresentava diversas e graves patologias, tinha acompanhamento médico regular – inclusive de urgência, tomava medicação e que o conhecimento desses factos pela Ré, Recorrente, era essencial para a apreciação do risco e determinaria a não aceitação do risco;

XI. Basta a este propósito atentar no depoimento das testemunhas EE e FF, já transcritos, e que, de forma isenta e imparcial, depuseram sobre os procedimentos internos da “A...”, em tudo idênticos aos das demais companhias de seguros, ramo vida, designadamente quanto à análise do risco.

XII. A pretensão da Autora tem por base a existência de um contrato de seguro de grupo contributivo do ramo vida celebrado, em 15.01.2020, no qual a Ré, ora Recorrente, figura como seguradora, o Banco 1..., S.A. como tomador e beneficiário do seguro e o falecido marido da Autora, BB, como aderente-segurado, com as coberturas do risco morte de invalidez do segurado (cfr. artigos 76.º e 77.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril);

XIII. Na análise que efectuou, o Tribunal de 1.ª instância considerou que o evento em causa – morte de BB – está positivamente abrangido pelo contrato de seguro;

XIV. Contrariamente ao que a Meritíssima Juiz de 1.ª instância concluiu, não se trata verdadeiramente da interpretação do contrato de seguro, mas da apreciação da sua validade considerando o teor das declarações prestadas por BB na fase pré-contratual e a violação dos deveres que sobre este recaiam;

XV. Não podemos perder de vista as declarações, designadamente quanto ao seu estado de saúde, ainda que não expressamente solicitadas em questionário médico, que BB prestou na data da celebração do contrato de crédito e, consequentemente, da adesão ao contrato de seguro do ramo vida, titulado pela apólice n.º ...;

XVI. Ou seja, apor a sua assinatura no contrato de crédito e demais documentos anexos, BB, declarou expressamente não ter omitido qualquer circunstância do seu conhecimento relevante para a apreciação do risco pelo Segurador, tendo tomado conhecimento através do presente documento das consequências da prestação de informações inexactas ou da omissão de informações relevantes;

XVII. Contrariamente ao que entendeu o Tribunal de 1.ª instância, a Ré, ora Recorrente, não assentou a sua defesa e posição, numa primeira linha, no clausulado do contrato mas sim, e tão só, nos deveres pré-contratuais de informação que incumbem à pessoa segura, convocando o dever legal de declaração inicial de risco e as consequências da sua inobservância;

XVIII. Ao celebrar um contrato de seguro é obrigação do tomador do seguro (e da pessoa segura, claro está) não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato, muito especialmente, factos que se mostrem essenciais para apreciar o risco;

XIX. O tomador do seguro ou a pessoa segura tem a obrigação de declarar o que deve conhecer, em termos de normalidade da vida, ou seja, constitui um dever pré-contratual, por surgir na formação do contrato de seguro, isto é, antes da sua celebração e com vista à sua celebração;

XX. No regime que vigora entre nós não existe obrigatoriedade de apresentação de um questionário por parte da seguradora, optando-se por um questionário “aberto” (neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04.11.2021, Proc. n.º 4017/18.0T8GMR.G1, www.dgsi.pt e Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra: Almedina, 2013, pag. 579);

XXI. Não é pelo facto de tal questionário não lhe ter sido facultado, que o marido da Autora estava dispensado de cumprir tal dever de declaração inicial de risco, relativamente a todas as patologias que fossem do seu conhecimento, acompanhamento médico e toma de medicação;

XXII. A questão em causa nos autos não tem a ver com a – possível – interpretação do contrato de seguro, mas sim com a violação do dever de declaração inicial do risco, essencial para a seguradora formar a sua vontade de contratar e que é imposto por lei, cuja ignorância ou má interpretação, aliás, não justifica a falta de cumprimento nem isenta das sanções estabelecidas (cfr. artigo 6.º do Código Civil);

XXIII. Se no cumprimento da generalidade das obrigações e exercício dos direitos que resultem dos contratos, devem as partes agir segundo o princípio de boa-fé (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil), este princípio apresenta nos contratos de seguro uma concretização muito especial;

XXIV. No contrato de seguro a boa-fé é uma característica basilar ou determinante obrigando as partes a um especial dever de informação pois a seguradora decide aceitar ou rejeitar um dado contrato de seguro com um eventual tomador de seguros e determina o valor do prémio de seguro que este deverá pagar com base nas declarações por ele prestadas;

XXV. Naquela data – Janeiro de 2020 – BB optou por omitir as patologias apuradas e o acompanhamento médico e medicamentoso que vinha recebendo há anos, as idas às urgências, a realização de exames, etc., sendo que deveria tê-lo mencionado aquando da subscrição da proposta por se tratarem de circunstâncias actuais e dele conhecidas e que sabia, como não podia deixar de saber (à luz das regras da experiência comum) que, estando em causa um seguro de vida, as mesmas eram susceptíveis de influir sobre a formação do contrato, sendo essenciais para a Ré avaliar o risco a cobrir (cfr. artigo 24.º do RJCS);

XXVI. O marido da Autora foi responsável pela omissão voluntária, intencional e dolosa de informações sérias e relevantes sobre o seu estado de saúde;

XXVII. Caso a Ré, Recorrente tivesse tido conhecimento das doenças do marido da Autora não teria aceite celebrar o contrato de seguro, ou dito de outra forma, não teria sido aceite a adesão de BB às garantias do contrato de seguro identificado nos autos;

XXVIII. É irrelevante a existência ou não de nexo causal entre a doença (ou doenças) omitida nas declarações prestadas na proposta e a verificação do risco coberto evento, ou seja, a morte da pessoa segura, ou seja, imprescindível à anulabilidade é apenas a omissão ou a declaração inexacta que sejam susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão (cfr. Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 15.09.2022, Proc. n.º 3664/16.0T8LRA.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt);

XXIX. Ainda que se mostrasse necessária a prova dessa causalidade, o que apenas se admite por hipótese de raciocínio, sempre se dirá que a mesma decorreu da prova produzida, contrariamente ao que consta da sentença colocada em crise (cfr. depoimento da testemunha FF 23.03.2022 de 15:27:16 a 16:29:00);

XXX. Demonstrada que está a actuação dolosa da Pessoa Segura é manifesto que o contrato de seguro (a sua adesão) é anulável nos termos do disposto no artigo 25.º da LCS e do artigo 287.º do Código Civil;

XXXI. Deve a sentença proferida ser revogada e, em consequência, ser substituída por outra que reconheça judicialmente a anulabilidade da adesão ao contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ... e, dessa forma, absolva a Recorrente do pedido, com todas as consequências legais;

XXXII. Caso assim não se entenda, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, sempre se dirá que o Tribunal nunca poderia ter condenado a Recorrente no pagamento, em simultâneo, do capital em dívida ao Banco na data do óbito - € 14.775,64, acrescido do valor das prestações pagas pela Autora desde essa data e até trânsito em julgado da presente acção;

XXXIII. Tal condenação implicaria a condenação no pagamento, em duplicado, do capital em dívida na data do óbito, acrescido no capital de cada uma das prestações que, entretanto, após, essa data, foram pagas e serão pagas;

XXXIV. Não descontando ao Banco Beneficiário os valores – de capital – entretanto pagos pelos Autores, determinou o Tribunal uma situação de enriquecimento sem causa dos Autores à custa do património da Recorrente;

XXXV. A admitir-se a condenação da Ré, terá a mesma de ser limitada ao capital que se encontre em dívida ao Banco Beneficiário na data do trânsito em julgado da decisão, acrescido das prestações pagas pelos Autores.


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Os recorridos agora não apresentaram contra-alegações, sendo que anteriormente (antes da prolação da decisão sumária) contra-alegaram, pugnando pela manutenção do decidido.

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As questões a decidir são:

. apreciação da matéria de facto, incidente sobre a concretização de circunstâncias das doenças do segurado e que a Ré não celebraria o contrato se tivesse tido conhecimento dessas mesmas doenças;

. repercussão da omissão de informação à Ré de doenças sofridas pelo segurado na vigência do contrato de seguro de vida;

. alteração da condenação de modo a que os Autores não sejam beneficiados com o valor que recebem.


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2). Fundamentação.

2.1). De facto.

Resultaram agora provados os seguintes factos:

«1. Os Autores são os únicos herdeiros na herança indivisa do falecido BB.

2. BB nasceu a ../../1959.

3. BB era portador de hipertensão e doença pulmonar obstrutiva crónica, com sujeição a acompanhamento médico e medicamentoso.

4. Em Outubro de 2019 foi diagnosticado a BB fibrilação auricular, estando hipocoagulado desde essa data e, bem assim, valvulopatia.

5. Em Dezembro de 2019 foi diagnosticado a BB doença pulmonar obstrutiva crónica.

6. BB foi consumidor de tabaco durante cerca de 40 anos.

7. A 30.12.2019 BB teve uma consulta no Centro de Saúde ... – Extensão USF ..., tendo sido aposto no relatório clínico dessa consulta, para além do mais, o seguinte:

“Conclusão:

Insuficiência mitral ligeira.

Função sistólica de ambos os ventrículos conservada.

Espirometria, incluindo curva débito volume: anormal – FEV1/FVC 67%» pos-BD 77% FEV1 79%» pos-BD94%.

Relatório

Boa colaboração

Curva débito-volume com morfologia obstrutiva.

Capacidade vital forçada (CVF) dentro da normalidade.

Volume expiratório forçado no 1º segundo (VEFI) e índice de Tiffeneau diminuídos.

Diminuição dos débitos expiratórios forçados a 25%, 50% e 75% da capacidade vital forçada.

Após inalação de Salbutamol existe alteração significativa do volume expiratório forçado no 1º segundo.

Conclusão:

Espirometria a sugerir uma alteração ventilatória obstrutiva ligeira com prova de broncodilatação positiva.

Oximetria normal (Sat. 02=99%).”

8. Teve também consultas nesse Centro de Saúde a 05.11.2019, 10.10.2019, 31.07.2019, 11.04.2019, 11.02.2019, 21.01.2019.

9. A 20.11.2015 BB efectuou Raio-X do torax no Centro Hospitalar ..., com a indicação de “sem Hipo/Hipertransparências. Portanto, dor torácica de provável etiologia neuromuscular.”.

10. BB teve episódio de urgência, tendo dado entrada no serviço de urgência do Centro Hospitalar ... a 03.10.2019, com queixa de dor torácica e após observação clínica foi indicado o diagnóstico de fibrilação auricular, tendo sido dada alta com orientação para consulta de cardiologia.

11. A 14 de Janeiro de 2020, BB apresentava dificuldades em caminhar, cefaleias e tonturas, razão pela qual se deslocou ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., tendo tido alta nesse mesmo dia com diagnóstico de doenças do aparelho respiratório e orientado para médico assistente.

12. BB regressou ao Serviço de Urgência daquele Hospital a 16.01.2020, onde foi sujeito a exames médicos, designadamente, TC crânio-encefálico e TC pélvico.

13. Nessa data, BB foi orientado para o serviço de Medicina Interna com indicação de CA pulmonar associado a metástases, tendo efectuado exames médicos e análises laboratoriais, com internamento, no período compreendido entre 16.01.2020 e 24.01.2020.

14. Após a intervenção clínica e realização de análises laboratoriais, foi diagnosticado a BB, a 21.02.2020 e na sequência de realização de biópsia trans-torácica, neoplasia pulmonar, em particular, adenocarcinoma pulmonar estádio IV.

15. A 10.03.2020 teve consulta na especialidade de medicina interna, nessa data sendo feita referência a adenocarcinoma pulmonar estádio IV com metastização ganglionar, suprarrenais, cerebral e óssea, com indicação de diagnóstico em Janeiro de 2020.

16. BB faleceu a 27.03.2020, tendo como indicação de causa de morte neoplasia do pulmão.

17. No dia 08 de Janeiro de 2020, BB celebrou um contrato de crédito automóvel, com reserva de propriedade, junto do Banco 1... S.A., que deu origem ao contrato de mútuo n.º ..., a fim de adquirir a viatura da marca Renault, modelo ..., com a matrícula ..-XB-...

18. Nesse mesmo dia celebrou um contrato de seguro junto da ré, que deu origem à apólice n.º ..., no qual, consta como beneficiário a mencionada instituição bancária, assegurando capital de €14.893,50 em caso de morte, contrato esse junto aos presentes autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

19. Decorre da cláusula 19ª das condições contratuais do aludido contrato de seguro que, em caso de morte do segurado, a ré pagaria ao beneficiário o capital em dívida à data do sinistro por conta do financiamento.

20. Aquando da outorga do contrato de seguro, a ré não exigiu qualquer tipo de relatório médico que atestasse a situação médica do segurado.

21. Na data de celebração do contrato de seguro, BB tinha 60 anos.

22. Nos termos do ponto 20 das condições gerais do referido contrato de seguro de vida, ficam excluídas das garantias do Plano de Protecção Vida os casos em que o falecimento ou invalidez da Pessoa Segura seja provocado por:

(…)

20.2. Ficam ainda excluídas das garantias da protecção vida as situações de morte ou invalidez que resultem, directa ou indirectamente, de afeções, anomalias congénitas, incapacidades físicas ou mentais existentes e do conhecimento da pessoa segura à data de início das garantias de apólice.”»

23. Após a data de falecimento de BB a ré não procedeu ao pagamento do capital em dívida junto da entidade de crédito.

24. E os autores continuaram a pagar as mensalidades do crédito convencionado, durante o período compreendido entre Abril de 2020 e a data de propositura da presente acção, no valor de €1.814,30.

25. Após o vencimento da prestação de Janeiro de 2021, encontrava-se em dívida a quantia de €14.775,64 quanto ao crédito concedido.

26. Em data anterior a 08.01.2020 e pelo menos já em 30.12.2019, BB apresentava também os seguintes antecedentes clínicos:

26.1. alteração dos lípidos/dislipidemia, medicado e controlado;

26.2. ácido úrico.

27. Sendo certo que a ré não solicitou qualquer relatório médico a BB na celebração do contrato de seguro, este também não declarou as questões de saúde referidas em 4., 5, 6, 7, 26 à ré, naquela data ou posteriormente.


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E resultaram não provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa e que à demais matéria alegada não se responde por se tratar de considerações jurídicas, considerações de natureza conclusiva ou matéria alheia à questão a decidir, incluindo a seguinte alínea:

«a) Se a ré tivesse tido conhecimento que BB apresentava os antecedentes clínicos referidos em 4, 5, 6, 7, 26, não teria aceite a sua adesão às garantias do contrato de seguro.».


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2.2). Do mérito do recurso.

A). Impugnação da matéria de facto.

Facto provado 3:

BB era portador de hipertensão e doença pulmonar obstrutiva crónica, com sujeição a acompanhamento médico e medicamentoso.

A recorrente pretende que se acrescente:

BB era portador de hipertensão e doença pulmonar obstrutiva crónica com sujeição a acompanhamento médico junto do Centro de Saúde ... – Extensão USF ... e do Centro Hospitalar ... e medicamentoso, designadamente biopress, concor, visacor, alopurinol, candersatan, ventilan, symbicort, budesonida, apixabano, zarator, metformina, eliquis.

O pretendido acrescento, para nós, é irrelevante. Ao dar-se como provado que BB tinha determinadas patalogias clínicas e que era medicamente acompanhado, com toma de medicamentos (acompanhamento medicamentoso), já dispomos de toda a informação necessária para ponderar tal situação, não precisando de se saber onde era acompanhado e que medicamentos tomava já que não está em causa nos autos a qualidade do acompanhamento médico nem a repercussão, no organismo daquela pessoa, dos medicamentos que tomava.

Improcede assim esta argumentação.


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Facto 11.

A 14 de janeiro de 2020, BB apresentava dificuldades em caminhar, cefaleias e tonturas, razão pela qual se deslocou ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., tendo tido alta nesse mesmo dia com diagnóstico de doenças do aparelho respiratório e orientado para médico assistente.

O recorrente pretende que passe a ter a seguinte redação:

A 14 de janeiro de 2020, BB apresentava dificuldades em caminhar, cefaleias holocraneanas com tonturas, com 7 dias de evolução, razão pela qual se deslocou ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar ..., tendo tido alta nesse mesmo dia com diagnóstico de doenças do aparelho respiratório e orientado para médico assistente.

Não encontramos qualquer óbice a que se acrescente tal factualidade; na verdade, a mesma ressalta do teor da nota de alta de 14/01/2020 do Centro Hospitalar ..., junta aos autos em 23/08/2021, ficha A: Quadro de 7 dias de evolução de cefaleia holocraneana recorrente com tonturas…».

Assim, o facto passa a conter tal informação, ficando com o teor proposto pela recorrente.


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Facto 26.

26. Em data anterior a 08.01.2020 e pelo menos já em 30.12.2019, BB apresentava também os seguintes antecedentes clínicos:

26.1. alteração dos lípidos/dislipidemia, medicado e controlado;

26.2. ácido úrico.

O recorrente pretende que o facto passe a ter a seguinte redação:

26. Em data anterior a Janeiro de 2020, BB padecia de dislipedemia e de ácido úrico, razão pela qual se encontrava medicado, entre outros, com atorvastatina e alopurinol

Não vemos qualquer motivo para alterar a redação do facto que contempla o que agora se sugere, sendo, de novo, irrelevante acrescentar a medicação que tomava, pelos motivos acima referidos quanto ao ponto 11.

Improcede esta argumentação.


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Facto 27.

Sendo certo que a ré não solicitou qualquer relatório médico a BB na celebração do contrato de seguro, este também não declarou as questões de saúde referidas em 4, 5, 6, 7, 26 à ré, naquela data ou posteriormente.

A recorrente pretende que passe a ter a seguinte redação:

Sendo certo que a ré não solicitou qualquer relatório médico a BB na celebração do contrato de seguro, este também não declarou as questões de saúde referidas em 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9,10, 11 e 26 à ré, naquela data ou posteriormente.

As questões de saúde que o facto menciona são, na nossa visão, as doenças/patologias de que o segurado padecia, a saber:

. fibrilação auricular, hipocoagulado, valvulopatia, doença pulmonar obstrutiva.

O único acrescento pedido pela recorrente que pode ter relevo é a hipertensão (facto 3) já que, os outros ou já estão incluídos ou reportam-se a sintomas ou consultas que não são as questões de saúde que pensamos que são retratadas no facto 27.

O que resulta dos autos, nomeadamente dos articulados, como mencionado pelo tribunal recorrido, é que o segurado não comunicou quaisquer doenças ou situações clínicas, ao celebrar o contrato, à seguradora, ora recorrente.

Na presente ação, no articulado de resposta às exceções (artigos 45.º a 47.º), os Autores mencionam que não teria que ocorrer tal comunicação por o segurado se encontrar bem de saúde e as mencionadas patologias (excetuando a hipertensão que não está ainda refletida no facto), estarem completamente controladas, sem qualquer risco ou gravidade; por isso quando celebrou o contrato de seguro, não as indicou, não sendo, para si, doenças pois não tinham qualquer relevo no seu dia-a-dia, nem havia qualquer acompanhamento clínico específico para tal, pelo que, nunca foi sua intenção, omitir tal informação, de forma consciente e de má-fé, simplesmente respondeu ao que lhe foi perguntado.

Assim, pensamos que não há dúvidas que tais situações não foram comunicadas, ao que deve acrescer a menção à hipertensão.

Deste modo, o facto 27 passa a ter a seguinte redação:

Sendo certo que a ré não solicitou qualquer relatório médico a BB na celebração do contrato de seguro, este também não declarou as questões de saúde referidas em 3 a 7e 26 à Ré, naquela data ou posteriormente.


*

Aditamento de factos.

A recorrente pretende que se dê como provado o teor dos seguintes novos factos:

. No dia 1 de abril de 2020, a Autora participou à Contestante um sinistro e solicitou o acionamento das garantias do contrato, designadamente da cobertura morte;

. da análise dos documentos enviados aquando da participação do sinistro resultou expressamente que BB, em data anterior a 10 de Janeiro de 2020, apresentava uma situação clínica grave, decorrente das identificadas patologias, ou seja, fibrilação auricular, com hipocoagulação deste outubro de 2019, valvulopatia desde outubro de 2019, doença pulmonar obstrutiva crónica desde dezembro de 2019, HTA desde setembro de 2007, alteração dos lípidos desde Dezembro de 2019 e ácido úrico;

. razão pela qual tinha acompanhamento médico regular;

. em virtude da qual viria a falecer em 27/03/2020 em virtude de neoplasia do pulmão;

. as indicadas patologias e o acompanhamento clínico não foram por si declarados na data da adesão ao contrato de seguro identificado;

. “A...” apenas teve conhecimento de tais informações na sequência da participação do sinistro em abril de 2020;

. a boa-fé contratual exigia que BB, que à data da assinatura da adesão às garantias do contrato de seguro, na qualidade de Pessoa Segura tinha conhecimento das patologias, do tratamento e do acompanhamento médico os declarasse, não podendo ignorar que o conhecimento desses factos era manifestamente relevante para a análise do risco de vida e de invalidez que a Contestante se propôs suportar;

. o referido BB omitiu, voluntariamente, factos determinantes para a “A...” proceder à avaliação do grau de risco a cobrir;

não tendo tido conhecimento direto destes factos a “A...” não pôde avaliar com um grau razoável, ou até mínimo, de previsibilidade o risco que se pretendeu transferir;

. o referido BB ocultou à Ré as suas patologias, o que fez com total conhecimento da gravidade de tal omissão;

. caso a “A...” tivesse tido conhecimento das patologias da Pessoa Segura nunca teria aceite a sua adesão às garantias do contrato de seguro, até pela gravidade do seu estado clínico;

. o quadro clínico descrito era do inteiro conhecimento de BB em data anterior a 10 de janeiro de 2020, aliás como resulta da documentação clínica junta.».

Estes alegados novos factos:

. ou nada acrescentam ao que já consta dos autos - participação do sinistro, situações clínicas que afetavam o segurado, o conhecimento das mesmas por si (o Autor nem alega que desconhecia as patologias que estão provadas, apenas que desconhecia a que foi causa da sua morte), data de falecimento e causa da morte, falta de declaração dessas situações quando celebrou o contrato;

. ou se reportam ao facto não provado – saber se a recorrente celebrava o contrato se lhe tivesse sido transmitido que sofria de fibrilação auricular, com hipocoagulação deste outubro de 2019, valvulopatia desde outubro de 2019, doença pulmonar obstrutiva crónica desde dezembro de 2019, HTA desde setembro de 2007, alteração dos lípidos.

Assim, não vislumbramos motivo para aditar tais factos, improcedendo esse pedido, importando então analisar o teor do facto não provado:

«a) Se a ré tivesse tido conhecimento que BB apresentava os antecedentes clínicos referidos em 4, 5, 6, 7, 26, não teria aceite a sua adesão às garantias do contrato de seguro.».

A recorrente pretende que se dê como provado tal facto.

Sobre esta matéria, o tribunal recorrido sustenta a não prova do seguinte modo:

. como a seguradora/Ré não solicitou qualquer tipo de informação sobre o estado de saúde do potencial segurado, revela que não lhe interessou saber essa condição do mesmo;

. afastou a importância dos depoimentos das testemunhas da Ré que sustentaram que o contrato não seria celebrado.

Quanto ao transmitido pelas testemunhas EE (colaboradora da recorrente) e FF (médico, a prestar serviço para a recorrente), apesar de todo o quadro negro que traçaram das doenças do segurado, no sentido de que eram doenças muito graves e que nunca permitiriam que o contrato de seguro fosse celebrado, é preciso atender a que tipo de doenças estão em causa:

. hipertensão, doença pulmonar obstrutiva crónica, com sujeição a acompanhamento médico e medicamentoso, alteração dos lípidos/dislipidemia, medicado e controlado, ácido úrico, fibrilação auricular, valvulopatia.

Ora, do nosso ponto de vista, pensamos que nenhuma delas se pode classificar como um tipo de doença que impedirá uma seguradora de celebrar, tout court, um contrato de seguro de vida pois, do que sabemos, todas elas estavam controladas e permitiam uma vida que, caso não fosse o carcinoma pulmonar de que padecia, provavelmente ainda hoje estaria a pagar o crédito em causa.

Desde logo, não consta dos autos qualquer manual (como referido por FF) que indique aos colaboradores da companhia quando deve um contrato de seguro ser recusado; assim, a testemunha menciona que o manual impediria a celebração do contrato mas seria necessário analisá-lo para tornar fiável essa afirmação.

Por outro lado, a hipertensão (tensão arterial demasiado elevada), dislipedemia (eventualmente devido a colesterol elevado), ácido úrico (elevado), possivelmente com repercussão nos rins ou membro inferior (a conhecida gota), são situações que têm certamente relevo para a seguradora mas que são maleitas que são controláveis (seja com medicação, seja porventura com dieta) e só se estivessem num plano de elevado risco para a saúde da pessoa é que poderíamos pensar que seriam impeditivas da celebração de um contrato de seguro

Quanto aos problemas pulmonares e cardíacos, estes já mais graves, do que resulta dos autos, não há notícia que estivessem num grau que colocassem em risco efetivo próximo, e elevado, a manutenção da vida do segurado. Antes pelo contrário, o que está demonstrado é que, em 30/12/2019, o segurado tinha uma alteração ventilatória obstrutiva ligeira com prova de broncodilatação positiva e oximetria normal. E quanto ao problema cardíaco, dos factos não ressalta qualquer problema que impedisse o segurado de ter uma vida, ainda que medicamente controlada, que permitisse o cumprimento do contrato.

Ou seja, com esta avaliação médica, não temos a certeza que a seguradora, inelutavelmente, não aceitaria celebrar o contrato de seguro; pode pensar-se ainda que, se o segurado tivesse mencionado à ora recorrente que tinha aqueles problemas cardíacos e pulmonares, provavelmente a seguradora poderia estudar a saúde do potencial segurado mas nem disso podemos ter a certeza.

Apesar de não crermos que para uma seguradora seja indiferente que um potencial segurado a informe que tem problemas pulmonares e cardíacos, face ao tipo de contrato, valor do mesmo (infra, voltaremos a focar este aspeto), facilidade de celebração (não se demonstrando que apresentou qualquer tipo de questionário sobre a saúde do proponente), não podemos ter a certeza que, mesmo concluindo que tais doenças existiam, nunca celebraria o contrato (poderia agravar o prémio, por exemplo).

Não podemos esquecer, é certo, que o contrato de seguro foi celebrado no dia 08/01/2020 e que se apura que em 14/01/2020, o segurado apresentava dificuldades em caminhar, cefaleias holocraneanas com tonturas, com 7 dias de evolução, tendo ido ao Hospital, com alta nesse mesmo dia, com diagnóstico de doenças do aparelho respiratório, sendo orientado para médico assistente.

Temos então que, muito provavelmente, no dia em que celebrou o contrato de seguro, o segurado sofria ou já tinha sofrido (e iria sofrer depois) dores por toda a cabeça, sentindo tonturas (desde o dia anterior); sabendo-se, comummente, que uma dor de cabeça pode ser algo passageiro e sem revelar qualquer causa grave, o certo é que uma pessoa com aqueles problemas, que não se sente bem no dia da celebração do contrato, tem de ter a consciência que deve comunicar à contraparte que há algo que não está bem consigo a nível de saúde.

Daí que, na nossa opinião, temos como correta a visão de que a recorrente/seguradora teria direito a ser informada, devendo o proponente prestar tal informação.

A questão de não haver questionário está, a nossa ver, bem explicada pela recorrente nas suas alegações de recurso: não é necessário, legalmente, ser apresentado um questionário sobre a saúde do proponente (artigo 24.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04), pelo que a sua falta não pode cobrir a igualmente falta de informação que o proponente tem de transmitir. Ao celebrar-se um seguro de vida, inevitavelmente, o cidadão médio tem de saber que os pormenores da sua saúde são relevantes, nomeadamente em órgãos importantes como o coração, pulmões e até pelas dores generalizadas na cabeça.

Dito isto, o certo é que o facto em análise não se reporta à fase hipotética e intermédia de o proponente transmitir as doenças de que padece e a seguradora primeiro analisá-las e depois decidir se celebra ou não o contrato; o que está em causa no facto é uma fase final, ou seja, se a seguradora, sabendo das doenças, não celebraria o contrato. Ora, a resposta a esta questão é, na nossa opinião, negativa. Não podemos ter a segurança, ao contrário do referido pelas indicadas testemunhas, sem indicação de casos concretos, que o contrato não se celebraria. Na verdade, não temos nos autos qualquer situação semelhante que demonstre que a seguradora, neste tipo de casos, não aceita(ou) segurar o risco em questão. As doenças, como referimos, não eram impeditivas de o proponente, com sessenta anos de idade, continuar a sua vida de modo medicamente controlado.

Por outro lado, é preciso atender ao tipo de valor que seria seguro – 14 893,50 EUR -, não se podendo classificar como elevado (em comparação, por exemplo, com valores referentes a um empréstimo para habitação), desconhecendo-se as exigências que a seguradora costuma adotar neste tipo de valores.

E aqui também entra a postura da seguradora que, certamente por sua livre opção, decide deixar ao proponente a total liberdade de verbalizar algum problema de saúde ao invés de o auxiliar nessa tarefa, apresentando algum tipo de perguntas sobre o seu estado.

Não descurando que o proponente tem de (como em qualquer declaração com efeitos contratuais) atuar com boa-fé, também não nos devemos esquecer que o que para uma pessoa pode ser uma situação normal de saúde, para um profissional poderá não o ser. E assim, neste caso em análise, não sendo apresentado qualquer tipo de auxiliar de resposta, então pode entender-se que o rigor exigido para a aprovação do pedido não seria muito elevado, podendo, mesmo com aquelas doenças, aparentemente controladas, o seguro ser concedido.

E são aquelas as doenças as que determinariam a celebração ou não do contrato de seguro e não a neoplasia pulmonar; esta, do que sabemos, não se demonstra que seria conhecida do proponente (o que seria uma condição de exclusão da obrigação da Ré – cláusula 20.2 da competente apólice, junta com a petição inicial), pelo que naturalmente não podia informar à seguradora o que desconhecia.

Não temos assim então a convicção segura que, mesmo analisadas as doenças que não foram transmitidas pelo propoente e que o mesmo conhecia, o contrato de seguro não seria celebrado.

Deste modo, mantém-se a redação do facto em causa, improcedendo a argumentação.


*

B). Do mérito do recurso.

Nos autos, está em causa a celebração de um contrato de seguro de vida (acoplado a um contrato de mútuo) entre BB e a recorrente, companhia de seguros.

Não há dúvidas de que o mesmo foi efetivamente celebrado (facto provado 18); as dúvidas surgem antes com a circunstância de o segurado, na altura da proposta de contrato, não ter indicado que tinha os problemas de saúde que já acima se mencionaram (hipertensão, doença pulmonar obstrutiva crónica, com sujeição a acompanhamento médico e medicamentoso, alteração dos lípidos/dislipidemia, medicado e controlado, ácido úrico, fibrilação auricular, valvulopatia) e quais as consequências dessa omissão.

Nos termos do artigo 24.º, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04 (R. J. C. S.), o segurado tem que declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para apreciação do risco pelo segurador (n.º 1), sendo tal dever aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito (n.º 2).

O incumprimento deste dever, no caso concreto, permite à seguradora:

. em caso de incumprimento doloso, desobrigar-se a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso, seguindo-se o regime geral da anulabilidade (25.º, n.º 3, ambos do referido diploma legal);

. caso o incumprimento seja negligente, o artigo 26.º, do mesmo diploma, dispõe que:

«Omissões ou inexatidões negligentes.

1 - Em caso de incumprimento com negligência do dever referido no n.º 1 do artigo 24.º, o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento:

a) Propor uma alteração do contrato, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta;

b) Fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente.

2 - O contrato cessa os seus efeitos 30 dias após o envio da declaração de cessação ou 20 dias após a receção pelo tomador do seguro da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite.

3 - No caso referido no número anterior, o prémio é devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida.

4 - Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes:

a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente;

b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.».

Realçamos o n.º 4 deste artigo pois é o potencialmente aplicável à situação dos autos em que:

. ocorreu um sinistro – morte do segurado -, antes do fim do contrato, tendo de se aferir se a verificação desse mesmo sinistro, ou as suas consequências, foram influenciadas por um facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes.

Como se refere no Ac. da R. P. de 21/11/2019, processo n.º 765/17.0T8AMT.P1, www.dgsi.pt ou ainda Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores, Vanessa Louro, Revista Eletrónica de Direito, página 31[1], inovadoramente, neste tipo de omissão negligente exige-se que se demonstre que o sinistro está relacionado com factos omitidos à seguradora.

Ora, no caso concreto, dos factos não conseguimos retirar que a falta de prestação de informação pelo propoente/segurado tenha sido dolosa, no sentido de o segurado, conscientemente, ter usado de algum tipo de artifício ou tenha dissimulado essa sua situação, visando manter a seguradora em erro (artigo 253.º, n.º 1, do C. C.[2]). O que temos é que, pura e simplesmente, o proponente nada declarou sobre o seu estado de saúde, sendo que se desconhece se algo lhe foi perguntado (a ter sido, então poderia aferir-se da sua intenção ao responder a determinadas perguntas, por exemplo: sofre de coração e/ou pulmões e respondia negativamente).

Não há factos que permitam concluir que tenha ocorrido essa atuação dolosa, podendo ter estado em causa um quadro de maior facilidade na obtenção do empréstimo e do respetivo seguro de vida que fez com que a questão não tenha sido suscitada pelo proponente.

Pensamos assim que inexiste prova de que o proponente tenha atuado com dolo, como alegado pela ora recorrente.

E quanto à negligência, que até julgamos que não foi alegada pela mesma recorrente, mas que pode retirar-se dos contexto dos factos provados (pelo tipo de doenças de que padecia).

Admitimos que, como referimos, o proponente deveria ter perspetivado, durante qualquer momento da apresentação da proposta que, estando em causa um seguro em que a sua saúde era muito relevante, os problemas de que padecia poderiam ter interesse para a parte contrária. E assim pode entender-se que revelou uma falta de cuidado na apresentação do seu pedido e da sua situação e na aceitação sem suscitar reservas ao que lhe é proposto; mas, desde logo, não está provado que o sinistro (morte) esteve relacionado com alguma das circunstâncias omitidas.

Na verdade, o sinistro (falecimento do segurado) teve por causa uma neoplasia pulmonar, em particular, adenocarcinoma pulmonar estádio IV, com metastização ganglionar, suprarrenais, cerebral e óssea, com indicação de diagnóstico em janeiro de 2020 – factos provados 14 a 16 -.

Não está provado que esta neoplasia pulmonar (cancro do pulmão) tenha tido como causa qualquer das outras doenças que afetavam o segurado; dir-se-á: o ser fumador há muitos anos, ter uma obstrução pulmonar, são fatores que podem conduzir a uma maior propensão para se acabar por padecer de um cancro pulmonar. Será potencialmente correta essa hipotética afirmação[3] e no caso até se poderia assentar que, tendo surgido o cancro no pulmão, o consumo de tabaco e aquela doença pulmonar não eram de todo alheias àquela neoplasia. Mas, repete-se, além de tal não estar provado, teria ainda de se provar que, se o proponente tivesse mencionado as doenças de que padecia, a recorrente/seguradora não celebrava o contrato de seguro; porém, igualmente tal prova não ocorreu.

Deste modo, a vigência do contrato de seguro não é abalada pelas declarações omissivas do segurado. E, assim, tem a seguradora/recorrente de, conforme a cláusula 19 do contrato, de pagar o capital em dívida à data do sinistro.

E, na nossa opinião, ao contrário do que a recorrente defende, não existe na decisão recorrida a atribuição de um enriquecimento injustificado dos Autores. O tribunal decidiu que a Ré tinha de:

. pagar diretamente ao Banco 1... S. A. (beneficiária do seguro, entidade mutuante) a quantia em dívida;

. pagar aos Autores as quantias que foram liquidadas do empréstimo até à propositura da ação e aquelas que viessem ainda ser liquidadas posteriormente (este último valor não foi pedido mas não foi arguida a nulidade da decisão nesta parte – artigo 615.º, n.º 1, e), do C. P. C.) -.

O tribunal não condenou a Ré a pagar ao referido Banco a quantia de 14 775,64 EUR que a recorrente menciona que foi condenada a pagar; este valor é referido na decisão como sendo o exemplo do que estava em dívida quando a ação foi proposta mas o que a Ré terá de pagar é;

. o valor em dívida, no momento em que efetuar esse pagamento;

. a quantia que entretanto os Autores foram pagando (efetuando desse modo o reembolso), assim se atingindo o pagamento do valor do capital em dívida aquando da morte de BB.

Desse modo, a referência ao valor de 14 775,64 EUR não significa a condenação do valor a pagar mas uma apenas uma baliza do que já esteve em dívida; o que releva é o valor que está em dívida quando a recorrente cumprir a sua obrigação.

Esta é a única questão suscitada pela recorrente sobre esta decisão de pagamento, sendo que também se considera correta a mesma – os representantes do mutuário tinham de continuar cumprir o contrato e a consequente obrigação de restituição de quantia mutuada e a seguradora, quando efetua o pagamento à mutuante/beneficiária, tem de o fazer pelo montante então em dívida, reembolsando os herdeiros do mutuário dos valores que pagaram em vez da seguradora (veja-se Ac. da R. P. de 05/03/2015, desta mesma seção cível, processo n.º 834/13.6TVPRT.P1, www.dgsi.pt).

Confirma-se assim a decisão recorrida, improcedendo o recurso.


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3). Decisão.

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente.

Registe e notifique.

Porto, 2024/03/07.
João Venade
António Carneiro da Silva
Judite Pires
___________
[1] https://cij.up.pt/client/files/0000000001/3_651.pdf
[2] Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.
[3] Revista Portuguesa de Pneumologia, volume 20, janeiro-fevereiro 2014, in https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0873215913000317.