Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
478/11.7GAVGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
APROPRIAÇÃO
CRIME DE INFIDELIDADE
Nº do Documento: RP20160113478/11.7GAVGS.P1
Data do Acordão: 01/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 980, FLS. 94-117)
Área Temática: .
Sumário: I - Se a arguida faz transferências de dinheiro de terceira pessoa, à qual tem acesso por virtude das suas funções, para a conta da sua filha sem que nada o justifique, e à qual o ofendido não tem acesso, a arguida passa a agir como dona das quantias transferidas e assim procede de modo inequívoco à inversão do titulo de posse, independentemente da existência ou não de uma interpelação para a devolução das quantias, uma vez que estas já se encontravam na disponibilidade de terceira pessoa que não a arguida.
II - O crime de infidelidade pressupõe a inexistência de apropriação, pelo que existindo aquela verifica-se um concurso aparente com o crime de abuso de confiança.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª secção criminal
Proc. nº 478/11.7GAVGS.P1
________________________

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal singular) n.º 478/11.7GAVGS.P1 do j1, Instância Local de Vagos, Secção Competência Genérica, Aveiro a arguida B… foi submetida a julgamento e a final foi proferida sentença de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a acusação procedente e, em consequência:
a) condenar B…, como autora material de um crime de abuso de confiança, na forma consumada, p. e p pelo artigo 205º, n.º1 do Código Penal, na pena de 170 dias de multa;
b) condenar B…, como autora material de um crime de infidelidade, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 224º do Código Penal, na pena de 190 dias de multa;
c) operar o cúmulo jurídico das penas referidas em a) e b) e fixar a pena única em 300 dias de multa, à taxa diária de €9,00, o que perfaz o quantitativo global de €2.700,00;
d) fixar em 200 (duzentos) dias a prisão subsidiária que a arguida terá de cumprir caso não cumpra, voluntária ou coercivamente, a pena de multa em que foi condenada;
e) condenar a arguida no pagamento das custas e demais encargos com o processo fixando-se a taxa de justiça em 3,5UC’s.
f) Após trânsito, ordenar a remessa de boletim ao registo criminal (artigo 5º, n.º1, alínea a) da Lei n.º57/98, de 18 de Agosto).
(…)
*
Inconformada, a arguida interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
A - Vem o Recurso interposto da decisão que condenou a arguida B…, pela prática de um crime de abuso de confiança, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 170 dias de multa e ainda condenar como autora material de um crime de infidelidade, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 22.º do Código Penal, na pena de 190 dias de multa, fixando-se, em cúmulo jurídico, em 300 dias de multa, á taxa diária de 9,00 €, o que perfaz o quantitativo global de 2.700,00 €.

B - Pretende a recorrente, por esta via, impugnar o julgamento feito sobre a matéria de facto, que o Tribunal a quo deu como provada e não provada, e consequentemente sobre a matéria de direito aplicada.

C - O Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, nos termos do art. 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP, socorrendo-se a documentos que não podem, sem mais, ter o peso e importância que o Tribunal lhes deu, para sustentar a decisão tomada pelo Tribunal sobre os mesmos, sendo evidente também a própria insuficiência da matéria de facto produzida em sede de audiência de discussão e julgamento um dos vícios constantes na própria Sentença, nos melhores termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), porquanto a matéria de facto dada como provada é efectivamente insuficiente para dar como provados os factos constantes da acusação.

D - Não se compreende a razão pela qual o Tribunal a quo dá como provado os pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 dos factos dados como provados na douta sentença ora em crise, porquanto tais factos não fora confirmados por qualquer testemunha, nem a prova documental constante dos autos permite retirar sem margem para dúvidas as conclusões plasmadas na fundamentação da douta Sentença para se dar como provado aqueles factos, vejam-se os depoimentos das testemunhas: C… (11/02/2015 início de gravação 10:16:15 e fim de gravação 11:34:32) e D… (11-02-2015 início de gravação 11:36:19 e fim de gravação 12:02:51):

E - Salvo melhor e douta opinião em contrário, não foi feita qualquer prova no sentido de confirmar que era a arguida quem administrava, guardava e conservava a documentação respeitante á administração do condomínio da L…, nem tão-pouco que era a mesma que recebia as quotas directamente dos condóminos.

F - Acresce que atenta a insuficiência da matéria produzida, o Tribunal a quo não deveria ter dado como provado que a recorrente recebeu, em 2010, a quantia constante do ponto 7, nem tão-pouco os factos constantes dos pontos 8, 9, 10 e 12 por ausência e insuficiência de produção de prova.

G - Pelo que, em consequência da prova produzida e que impunha decisão diversa, deverá ser alterada a matéria de facto provada, sendo os factos constantes dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 11 e 12 eliminados da matéria dada como provada e acrescentada aos factos não provados.

H - Como pode o Tribunal a quo ter dado como provado que a arguida/recorrente não devolveu a “escrituração comercial, financeira e legal ao condomínio, nem apresentou contas da sua administração, nem nada justificou”, se o Tribunal não tomou certeza de que seria a arguida, não obstante ter sido administradora daquele condomínio, quem se encontrava na posse de tais documentos?

I - Simplesmente não se compreende.

J - E deu – assim – como provado os pontos 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 da douta Sentença recorrida, condenando assim a arguida.

L - Ora, não compreende a recorrente em que provas se sustentou o Tribunal a quo para dar como provado tais factos supra citados, porquanto não existe sequer prova testemunhal e documental bastante que permitisse condenar a arguida e afirmar sem margem para qualquer dúvida que a mesma praticou os factos que vinham descritos na acusação.

M - Não se compreende a razão pela qual o Tribunal a quo dá como provado os pontos 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 dos factos dados como provados na douta sentença ora em crise, porquanto tais factos não fora confirmados por qualquer testemunha, nem a prova documental constante dos autos permite retirar sem margem para dúvidas as conclusões plasmadas na fundamentação da douta sentença para se dar como provado aqueles factos.

N - Não foi feita qualquer prova no sentido de confirmar que era a arguida quem administrava, guardava e conservava a documentação respeitante à administração do condomínio E…, nem tão-pouco que era a mesma que recebia as quotas directamente dos condóminos, veja-se os depoimentos das testemunhas: F… (11/02/2015 início de gravação 14:44:30 e fim de gravação 15:46:15), G… (11/02/2015 início de gravação 15:50:33 e fim de gravação 16:02:51), H… (11/02/2015 início de gravação 16:02:59 e fim de gravação 16:16:32), I… (03/03/2015 início de gravação 14:48:31 e fim de gravação 15:24:11) e J… (03/03/2015 início de gravação 15:24:12 e fim de gravação 16:04:51), C… (11/02/2015 início de gravação 10:16:15 e fim de gravação 11:34:32), D… (11-02-2015 início de gravação 11:36:19 e fim de gravação 12:02:51), K… (11-02-2015 início de gravação 12:03:30 e fim de gravação 12:52:54).

O - Acresce que não existe qualquer prova sustentável que permitisse concluir ao Tribunal a quo que foi a arguida efectivamente quem recebeu as alegadas quantias descritas na acusação, e que alegadamente “se apoderou das mesmas”.

P - Acresce que atenta a insuficiência da matéria produzida, o Tribunal a quo não deveria ter dado como provado que a recorrente recebeu, em 2010, a quantia constante do ponto 17, nem tão-pouco os factos constantes dos pontos 18, 19, 20, 21 e 22 por ausência e insuficiência de produção de prova.

Q - Pelo que, em consequência da prova produzida e que impunha decisão diversa, deverá ser alterada a matéria de facto provada, sendo os factos constantes dos pontos 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 eliminados da matéria dada como provada e acrescentada aos factos não provados, por não ter sido feita qualquer prova que permitisse ao Tribunal a quo concluir pela prova de tais factos.

R - Sempre se diga que, não se mostrando provados os factos supra impugnados, não deveriam ter sido – necessariamente – dados como provados os pontos 23, 24, 26 e 27 da douta sentença proferida, porquanto não resulta da prova produzida que a arguida/recorrente tenha cometido qualquer tipo de ilícito.

S - O Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, no sentido de, com base nos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, porquanto, é evidente o erro do Tribunal a quo que chega a uma conclusão logicamente inaceitável, ao dar como provados todos os factos constantes da acusação, o que notoriamente está errado, tendo utilizado o Tribunal a quo um processo racional ilógico, arbitrário e contraditório à luz das regras da experiência comum.

T - Acresce que da prova produzida não constam elementos suficientes que permitiam ao Tribunal a quo formular um juízo seguro de condenação à ora arguida, nomeadamente, sustentando-se na prova testemunhal cujos depoimentos não permitem seguramente afirmar com convicção a existências dos factos dados como provados mesmo que de forma indirecta tais depoimentos corroborem a prova documental.

U - Necessariamente e no seguimento da alteração da matéria de facto correspondente aos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22 ante requerida, sempre se diga, que os pontos 23, 24, 26 e 27 da matéria de facto dada como provada e constante da sentença recorrida deverá ser alterada e consequentemente, deverão ser tais pontos dados como não provados.

V - PRIMEIRO FALECIMENTO: Absoluta incompreensão da sentença, face à clarividente contradição insanável: Estamos, desde logo, perante uma contradição absolutamente e radicalmente insanável: Ora como é possível – se não foi provado que B… tenha sido, pelos condóminos do edifício L… sucessiva, repetidamente e devidamente instada a devolver as quantias em dinheiro de que se apropriou (FACTO D – não provado) assim como, que B… tenho sido sucessiva, repetida e devidamente instada a devolver as quantias em dinheiro de que se apropriou, quer pelos condóminos do edifício L…, quer pelos condóminos do edifício E… (FACTO F – não provado) – que a arguida seja condenada?

X - É uma nítida violação do próprio preceito tipificador do crime nos termos do art. 205º nº1 e 4 a) do Código Penal, porquanto será pressuposto que se realize uma interpelação, para que se possa considerar que se apropriou.

Z - SEGUNDO FALECIMENTO: Não se pode dar como provado (ponto 5 dos factos provados) que foi entregue a escrituração comercial, financeira e legal do condomínio: a este propósito, simplesmente não pode ser dado como provado, porque nenhuma testemunha disse que entregou os documentos e estamos assim, perante uma omissão (absoluta) dos pressupostos, do art. 205º nº1 e 4 a) do Código Penal, enquanto prova de que para alguém se apropriar, tem de ter!!

AA - Mais vejamos que a gestão não foi sempre, desde o início realizada pela arguida, estando inicialmente entregue à sociedade M…, LDA e que apesar da arguida ser UMA DAS pessoas gerentes, não sabemos se em particular a B… tinha, ela própria, tal (que não se sabe bem qual!) documentação, e – portanto – nenhuma testemunha afirma que entregou “o quê” e “quando”.

BB - TERCEIRO FALECIMENTO: Nulidade absoluta dos valores que se consideram que o condomínio se encontra em dívida: o Tribunal a quo parte de um raciocínio absolutamente errado, porquanto, parte do princípio que se encontram devedores de determinadas quantias, simplesmente porque os credores terão afirmado que devem um determinado valor.

CC - Não é por os credores afirmarem que se encontra por pagar x,y, ou z, que se pode dar como provado, que tais valores se encontram em dívida.

DD - Por outro lado, não existe, nos presentes autos, nenhum documento a informar o que se encontrava por pagar, o que foi pago, quando e quais serviços, ou a natureza da dívida, e ainda, não foi inquirida – uma única! – pessoa credora do condomínio.

EE - Estamos em sede de uma crassa violação do art. 224º nº1 do Código Penal, porquanto não é feita prova do nexo de causalidade, nem do prejuízo, como elementos essenciais e integradores do ilícito criminal.

FF - QUARTO FALECIMENTO: A errada forma de deduções subjectivas o Tribunal a quo: O Tribunal parte do pressuposto que os condomínios pagaram todos determinadas quantias por um escrito particular (e documento que foi impugnado pela arguida), sem qualquer assinatura ou documento de suporte, pelo que não pode dar como provada a relação de base, ou seja, que efectivamente todos os condóminos pagaram efectivamente aquele preciso valor, pelo que, estamos em sede da violação da prova documental, porquanto se extrai uma conclusão, a qual não se pode extrair, nos termos do art. 164.º e 169.º do CPP.

GG - O Tribunal não pode afirmar que existia qualquer tipo de interpelação para a devolução de documentação, desde logo porque não sabemos quando foi realizada, como, em que termos, nomeadamente, se foi dado algum prazo para devolver e qual prazo, pelo que, estamos em sede de violação nos termos do artigo 205º nº1 e n.º 4, alínea a) do Código Penal.

HH - QUINTO FALECIMENTO: Esta questão só per si conduziria inevitavelmente à absolvição da arguida; mas foi a arguida que realizou a transferência? Não existe nenhuma nos autos que a) o condomínio apenas tivesse apenas uma conta bancária, b) que apenas a arguida a pudesse movimentar, c) que foi efectivamente a arguida que a movimentou. A arguida tem de ser absolvida.

II - Vejamos o raciocínio recambulesco do Tribunal a quo, o qual respeitosamente, merece a nossa profunda censura: Assim, se não tinha qualquer ligação ao negócio gerido pela arguida, como se justificaria que tivesse tido acesso às contas bancárias dos edifícios administrados pela arguida e que tivesse sido ela a proceder às transferências bancárias? Nada nos autos o justifica, pelo que recorrendo a juízos de experiência comum (pois que não se dispõe da ficha de assinaturas da conta de onde proveio o dinheiro) se conclui que apenas a arguida era portadora e sabedora dos cartões e(ou códigos necessários para que se fizessem aquelas transferências? Como? Porquê? Tantas hipóteses: Alguém pode ter dito, pode ter várias pessoas autorizadas, pode ter efectivamente prestados serviços et cetera et cetera et cetera.

JJ - E estamos perante uma groseira violação do Princípio in dubio pro reo plasmado no art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição da República Portuguesa, então o Tribunal afirma que não tem prova (não tem nada nos autos que lhe diga) e condena?

LL - Já não compreendemos - e perdoe-se a ignorância, se ela for nossa – mas na dúvida ou não existindo prova, absolvem-se os arguidos!

MM - SEXTO FALECIMENTO: A arguida não se apropriou de nenhum dinheiro: não existe nenhuma – nenhuma – prova nos presentes autos que a arguida tenha se apropriado de 1 (um) cêntimo, pelo que, estamos em sede da violação do Princípio in dúbio pro reo, assim como, em sede de violação das regras probatórias, porquanto se retira uma conclusão sem qualquer elemento de prova e por isso, o Tribunal a quo violou flagrantemente o Princípio de Legalidade, previsto nos termos do art. 1.º do C.P.

NN - SÉTIMO FALECIMENTO: Conclusão que não se pode extrair: não se pode extrair conclusão que N… não exerceu funções profissionais, nem prestou serviços, simplesmente porque os condóminos não sabem quem prestou serviços (lembremo-nos que nem sabem o nome da pessoa da limpeza ou quem reparava o prédio ou prestava assistência!) e esta não foi ouvida!

OO - Ou seja: o Tribunal a quo extrai conclusões por construções imaginárias ou deduções intuitivas ou esquemas imaginários e não por provas, estamos assim perante uma nulidade de sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código Processo Penal.

PP - Estamos perante um fundamento do recurso nos termos e para os efeitos do art. 410.º, n.º 2, alínea a) do C.P.P. do nosso Código de Processo Penal e estamos perante uma nulidade de sentença, que se deixa expressamente arguida para todos os necessários e advindos efeitos legais, nos termos e para os efeitos do art. 379.º, n.º 1, alínea c) do CPP. por ausência de fundamentação capaz de justificar tal conclusão imaginada.

QQ - OITAVO FALECIMENTO: Não existe prova de que foi a arguida que transferiu, não foi a arguida que recebeu qualquer valor e não existe prova do elemento subjectivo do dolo, em sede do crime de infidelidade, nos termos do art. 224.º do CP: a) a arguida não causou qualquer prejuízo patrimonial porque não temos qualquer prova que tenha sido a arguida a proceder às sub judice movimentações de dinheiro; b) não sabemos se era ou não devido! Estamos numa crassa violação do disposto do Principio da Legalidade, plasmado no art. 1.º e do próprio tipo previsto no art. 224º nº1, ambos do Código Penal.

RR - Por outro lado, a arguida não pode ter causado prejuízo porque não existe qualquer prova que tenha sido a arguida a realizar as transferências e pagamentos, e não olvidamos, que estamos em face de um crime doloso, não existe nenhuma prova nos presentes autos, nem da conduta e muito menos do elemento subjectivo do dolo, pelo que, estamos assim em violação, crassa – para nós, do art. 224.º do C.P.

SS - NONO FALECIMENTO: Violação dos elementos do tipo de abuso de confiança, nos termos do art. 205.º, n.º 1 e n.º 4, alínea a) do C.P.: não se sabem quais os documentos (ESPECIFICADAMENTE!), não se sabe se as arguida os tinha, não se sabe se eram documentos públicos, que todos podem ter acesso e a arguida não foi interpelada para os devolver.

TT - Quanto à interpelação, o Tribunal não pode concluir que houve interpelação apenas porque uma testemunha diz que “eu pedi”, a verdade é que não houve nenhuma interpelação cominatória ou admonitória e - até apenas por isso – simplesmente, não existe crime!

UU - E também – sempre salientamos – que não foi feita nenhuma prova (nem a douta sentença o afirma) que era a arguida que naquele momento tinha concretamente esses (que não sabemos bem quais) documentos.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso proceder – por provado, devendo, como bem se requer, a arguida ser absolvida, com as necessárias e advindas consequências legais.
JUSTIÇA!

(…)

O Magistrado do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
*
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
1. Desde data não concretamente apurada e pelo menos até Setembro de 2011, B… dedicou-se ao exercício de diversas actividades do ramo imobiliário, entre as quais o exercício da actividade de administração de condomínios, quer a título individual, quer como gerente de várias sociedades comerciais.
2. B… foi sócia e gerente, pelo menos, das seguintes sociedades comerciais, as quais tinham em comum o exercício da actividade de mediação imobiliária:
a) “O…, Lda.”, sendo B… a única sócia gerente;
b) “M…, Lda.”, sendo B… uma das sócias e gerentes, cuja matrícula foi cancelada em 29-05-2007;
c) “P…, Lda.”, sendo B… uma das sócias e gerentes, cuja matrícula foi cancelada em 27-10-2010.
3. Todas estas as sociedades tinham a sua sede social no Edifício L… r/c, …, área deste município de Vagos, sendo igualmente nessa morada, na Rua …, que B… exercia de facto a sua actividade de administração de condomínios.
4. B… exerceu as funções de administradora do condomínio do Edifício L…, sito na Rua …, Edifício L…, r/c, …, área deste município de Vagos, desde pelo menos o mês de Julho de 2004, inicialmente como gerente da firma “M…, Lda.” e posteriormente desde pelo menos o ano de 2009, em nome individual, até Agosto de 2011.
5. Para o efeito, para administração, guarda e conservação foi entregue a B… a escrituração comercial, financeira e legal do condomínio.
6. No exercício das suas funções B… recebeu as quotas dos condóminos, que por referência aos anos de 2009 e 2010 eram em valor, calculado com base na permilagem, não concretamente apurado, mas não inferior a €200,00.
7. Sendo que no ano de 2010, recebeu, pelo menos a quantia de €1.275,00 a título de pagamento de quotas.
8. O condomínio do edifício L… apresentava em Julho de 2011 uma dívida à Q… referente à manutenção dos elevadores em montante não concretamente apurado.
9. No final do ano de 2010 o condomínio do edifício L… apresentava uma dívida à empresa “S…, Lda.”, referente a obras de conservação do edifício, no valor de pelo menos €1.196,40.
10. Em 30-09-2011 a conta bancária da T… com o n.º…………… do condomínio do Edifício L… apresentava saldo €0,00 (zero euros), tendo estado, desde 20-05-2011 até 10-07-2011 com saldo negativo de -€3,75.
11. No dia 06-08-2011, a assembleia de condóminos do Edifício L… acima referido deliberou destituir B… como administradora do condomínio.
12. Apesar de sucessiva, repetida e devidamente instada a devolver a escrituração comercial, financeira e legal do condomínio e, bem assim, a apresentar contas da sua administração, B… nada fez ou justificou.
13. B… exerceu igualmente as funções de administradora do condomínio do Edifício E…, sito na Rua …, n.º .., …, …, Ílhavo, desde pelo menos o ano de 2001, inicialmente como gerente da firma “M…, Lda.” e posteriormente em nome individual, até Setembro de 2011.
14. Para o efeito, para administração, guarda e conservação foi entregue a B… a escrituração comercial, financeira e legal do condomínio.
15. O condomínio do edifício E… é titular da conta de depósitos à ordem no U… com o n.º…….-…-….
16. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 16-03-2010 foi deliberado em assembleia geral de condóminos realizar obras de reabilitação da fachada do prédio, que foram orçamentadas em €176.273,00 e a empreitada adjudicada à empresa “V…, Lda.”.
17. Para esse efeito, os condóminos entregaram a B… o valor de €121.577,49.
18. Contudo, B… apenas pagou à V…, Lda. a quantia de €102.881,90, sem que nada o justificasse.
19. No dia 30-11-2009, o condómino F… pagou a quota do 2º semestre de 2009 por cheque com o n.º………. sacado sobre a W… no valor de €181,55 o qual foi entregue a B… que por sua vez não o depositou na conta do condomínio e não o descontou, vindo o mesmo a ser depositado na conta bancária de X… e de J…, com o NIB …………………, da T… de Vagos, sem que nada o justificasse.
20. Acresce que B… sem que nada o justificasse realizou várias transferências bancárias da conta do condomínio do edifício E… para a conta da sua filha N…, com o n.º.-………......, do U…, nomeadamente, em 23-12-2010, a quantia de €5.000,00; em 19-01-2011 a quantia de €455,00; em 04-04-2011 a quantia de €4.200,00; em 03-06-2011, a quantia de €750,00; em 28-06-2011 a quantia de €1.000,00; em 20-07-2011 a quantia de €1.000,00.
21. N… não exerceu funções profissionais, nem prestou serviços para nenhuma das sociedades referidas em 2.
22. Apesar de sucessiva, repetida e devidamente instada a devolver a escrituração comercial, financeira e legal do condomínio e, bem assim, a apresentar contas da sua administração, B… nada fez ou justificou.
23. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito consumado de fazer seus os objectos e dinheiro acima mencionados que lhe foram entregues para o exercício da sua função de administradora dos condomínios dos edifícios L… e E….
24. Sabia que tais objectos e dinheiro não lhe pertenciam, que estava obrigada a devolvê-los e a utilizá-los apenas em proveito dos referidos condomínios e que ao apoderar-se dos mesmos agia contra a vontade do respectivo proprietário, causando-lhe um prejuízo de valor não inferior aos aludidos objectos e dinheiro.
25. Sabia também que havia sido eleita administradora dos condomínios dos edifícios L… e E…, tendo aceitado o exercício do cargo e que no âmbito desse exercício estava obrigada a administrar os interesses patrimoniais desses condomínios.
26. Actuou igualmente com grave violação dos deveres que lhe incumbiam, nomeadamente de apenas utilizar o dinheiro que lhe foi entregue pelos condóminos para a administração desses condomínios e não em proveito próprio e de, findo o exercício da sua função, prestar contas e entregar a escrituração comercial, financeira e legal dos condomínios, não o tendo feito.
27. Sabia igualmente ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.
28. A arguida é divorciada, vive com companheiro que é militar da Guarda Nacional Republicana e que aufere mensalmente €1.200,00.
29. A arguida é mediadora de seguros, trabalha por conta própria na sociedade designada “Y…” e aufere mensalmente €680,00.
30. A arguida tem duas filhas, sendo uma delas maior de idade.
31. O agregado familiar reside em casa própria, onerada com empréstimo bancário com prestação mensal equivalente a €400,00.
32. O agregado familiar suporta mensalmente o pagamento de €50,00 relativo a frequência de creche.
33. A arguida, como habilitações literárias tem o 12º ano de escolaridade, embora ainda tenha frequentado, até ao segundo ano, o curso de solicitadoria e administração no Z….
34. Dos autos não constam antecedentes criminais registados.
*
Factos não provados
Não existem outros factos dados como provados que tenham interesse para a decisão da causa ou que se mostrem em contradição com os dados como provados.
Nomeadamente, não se provou que:
A. Relativamente ao edifício L… o valor anual de quotas, por condómino, no ano de 2009 era de €267,39 e no ano de 2010 era de €242,72.
B. Sucede, porém, que não obstante ter recebido grande parte das quotas dos condóminos nos anos de 2009 e 2010, B… não utilizou as quantias recebidas a esse título em benefício e para administração do condomínio, fazendo suas quantias em dinheiro não concretamente apuradas.
C. A dívida à Q… referente à manutenção dos elevadores fosse no montante de €2.851,68.
D. B… tenha sido, pelos condóminos do edifício L… sucessiva, repetida e devidamente instada a devolver as quantias em dinheiro de que se apropriou.
E. O condomínio do edifício E… apresentava em Julho de 2011 uma dívida à Q… referente à manutenção dos elevadores no montante de €1.332,99.
F. B… tenha sido sucessiva, repetida e devidamente instada a devolver as quantias em dinheiro de que se apropriou, quer pelos condóminos do edifico L…, quer pelos condóminos do edifício E….
G. Por outro lado, B… realizou despesas cujos comprovativos não se encontram na escrituração financeira do condomínio, no valor de cerca de €2.750,00, resultante da subtracção entre o valor de quotas recebidas dos condóminos entre 01-05-2011 e 29-07-2011; €7.350,96, somado da quantia que constava da conta bancária de €1.295,51 em finais de Abril de 2011 e o valor do saldo da referida conta em 29-07-2011, que era de €4.448,55.
H. No dia 28-07-2010 B… transferiu da conta do condomínio do edifício E… para uma conta cujo titular é o edifício AB… a quantia de €550,00, sem que nada o justificasse.
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Motivação
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios legais que regem a matéria, dos seguintes meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento.
A arguida não prestou declarações quanto aos factos, remetendo-se ao silêncio, apenas tendo esclarecido as respectivas condições pessoais, sociais e económicas, em moldes que permitiram ao Tribunal dar tais factos como provados.
Antes de se prosseguir para a apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, haverá que deixar expresso que nenhum documento foi descredibilizado ou desconsiderado pelo Tribunal. Não se descura que a arguida por requerimento junto aos autos a fls. 650 e melhor fundamentado na acta da última sessão de julgamento, impugnou o teor de todos os documentos juntos aos autos, invocando quanto ao de fls. 630 a sua falsidade e, quanto aos demais, a falsidade da assinatura e do respectivo teor.
Tal como dispõe o artigo 4º do Código de Processo Penal, nos casos omissos aplicam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, os princípios gerais do processo penal.
A prova documental encontra regulamentação nos artigos 164º e seguintes do Código de Processo Penal, sendo de realçar a necessidade de possibilitar o contraditório (artigo 165º, n.º2) e qual o valor das reproduções mecânicas (artigos 167º e 168º).
Contudo, não existe norma no Código de Processo Penal que disponha sobre a forma de actuação quando é alegada falsidade dos documentos, do seu teor ou das assinaturas neles constantes, pelo que terá de se recorrer ao estatuído pelos artigos 444º e seguintes do novo Código de Processo Civil. A aplicação subsidiária desta norma ao processo penal em nada inibe os direitos de defesa dos arguidos, pelo contrário, inclusivamente permite que o Tribunal consiga balizar os actos de produção de prova com maior cautela e que, sendo caso disso, determine a realização de meios de prova suplementares com vista à aferição da necessidade de declaração de falsidade do documento, conforme prescrito pelo artigo 170º do Código de Processo Penal.
Assim, destaca-se do artigo 444º do novo Código de Processo Civil o prazo estipulado para a impugnação: dez dias a contar da apresentação do documento ou da respectiva notificação.
No caso dos autos, a arguida foi notificada do despacho de acusação em 09-08-2014, juntou procuração aos autos em 09-09-2014, foi notificada do despacho de recebimento da acusação em 05-01-2015, sendo que apresentou contestação a fls. 586, em que ofereceu o merecimento dos autos. Em nenhum momento se pronunciou quanto aos documentos, nem requereu a produção de prova quanto à falsidade e, confrontadas as testemunhas com os documentos a defesa da arguida apenas manifestou “estranheza” quanto à proveniência de alguns documentos e à ausência de qualquer assinatura noutros. É de sublinhar que testemunhas esclareceram de forma espontânea e credível como os documentos lhes haviam chegado.
Por outro lado, refere-se que não se esquece o princípio da presunção da inocência (artigo 32º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa), nem a natureza do processo penal, porém, também não se esquece que a arguida não se dispôs a prestar colaboração para a descoberta da verdade material e que em todos os momentos processuais esteve representada por defensor (que tem necessário conhecimento da lei vigente em Portugal). Assim, não podia ser desconhecedora de que, no momento em que apresenta o requerimento de fls. 650, o prazo para impugnação dos documentos há muito decorrera, para além de que há documentos que foram impugnados que correspondem a certidões e, como tal, documentos autênticos.
Acrescenta-se que o documento junto aos autos, por determinação do Tribunal, a fls. 630 corresponde/coincide com aquela reprodução mecânica (vulgo fotocópia) que consta a fls. 167 (até mesmo nas partes rasuradas relativas à fracção AB). A fundamentação para a junção aos autos do documento colocado em crise foi a maior facilidade na sua leitura, interpretação e apreciação, pois que é mais legível, e esteve subjacente à determinação do Tribunal a comparação, em audiência de discussão e julgamento, e a conclusão de que se tratava do mesmo documento.
Ainda é de sublinhar que, aquando da inquirição das testemunhas, estas, antes mesmo de serem confrontadas com o teor dos documentos, espontaneamente se referiram ao seu teor, daí se retirando reforço da convicção do Tribunal quanto à respectiva veracidade.
Nesta senda, deixa-se expresso que os depoimentos prestados por C… (proprietária de fracção no edifício L…); D… (actual administrador de condomínio do edifício L…), K… (proprietária de fracção no edifício E…), AC… (proprietária de fracção no edifício E…), F… (proprietário de fracção no edifício E…), G… (proprietário de fracção no edifício E…), H… (proprietária de fracção no edifício E…), I… (proprietário de fracção no edifício E…), se revelaram objectivos, isentos, sérios e credíveis, pese embora possam estar revoltados com a actuação da arguida não o demonstraram (pelo contrário).
Não obstante o conhecimento que manifestaram sobre os factos em apreço, relativamente a determinados pormenores, dado o período temporal entretanto decorrido, algumas das supra referidas testemunhas não evidenciaram total domínio, contudo, pela conjugação com o teor dos documentos juntos aos autos, colmataram-se essas pequenas falhas.
É de evidenciar que mesmo considerando o período temporal decorrido, os depoimentos foram coerentes e coesos entre si, para além de que não existiram contradições com o teor dos documentos juntos aos autos.
Assim, no que tange aos depoimentos prestados por J… e X…, revelaram posturas contrariadas e pouco colaborantes pese embora o revelado pela primeira, nos termos infra especificados.
Assim, quanto ao depoimento prestado por J…, de certa forma teatral, artificial e fictício, veio manifestar que trabalhou como empregada de limpeza das partes comuns de vários edifícios sitos na … e na … (não sabendo identificar todos eles apesar de referir que prestou várias vezes serviços, de forma interpolada, mas por período superior a um ano) a solicitação da arguida. Não foi minimamente coerente na falta de memória que verbalizou, pois que até ao momento de ser confrontada com o recebimento do montante constante do cheque de fls. 145, nem sequer sabia circunscrever quanto lhe era pago por mês por fazer limpezas no edifício E…. Aliás, nem sequer soube circunscrever o período temporal em que prestou serviço em qualquer dos edifícios.
O único momento credível do seu depoimento ateve-se ao recebimento do cheque acima referido, que aliás não podia negar em face do teor de fls. 146 e 511.
No que respeita ao depoimento prestado por X…, contrariado lá foi esclarecendo que a esposa, J…, é que “toma conta” da conta que ambos detêm na T…, apesar de ser o primeiro titular da mesma, e que a esposa ia a uma ou duas casas na … e na … porque a ia lá levar. Ora, este depoimento é contrário ao de J… e à prova produzida pois que não se trata de casas e sim de prédios em propriedade horizontal (que não são confundíveis para quem diz que vai até à porta dos mesmos), para além de que não está em discussão qualquer casa na … (e sim … e …, que também não são confundíveis).
É de realçar que nenhum dos moradores do edifício E… revelou memória dos nomes de J… e X…, sequer quando indagados sobre a possibilidade de se tratar de pessoal de limpeza.
Especificadamente:
Quanto aos factos relacionados com o condomínio do edifiício L…
- para a prova dos factos ínsitos em 1, 2 e 3, valorou-se o teor das certidões da Conservatória do Registo Comercial constantes de fls. 112 (relativa à sociedade referida em 2, alínea a), de fls. 156 (relativa à sociedade referida em 2, alínea b), de fls. 311 (relativa à sociedade referida em 2, alínea b), de fls. 435 (relativa à sociedade referida em 2, alínea c).
Conjugou-se ainda com o teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em audiência de discussão e julgamento (com excepção de J… e X…), que referiram ter conhecimento de que era naquele local que a arguida tinha o seu escritório (até ao encerramento), por tal lhe ter sido transmitido pela própria arguida e/ou por aí se terem dirigido para tratar assuntos com a mesma.
- para prova dos factos dados como provados em 4, o Tribunal valorou o teor das actas n.º10-A, n.º16, n.º17 e n.º18, constantes dos autos, respectivamente a fls. 52, 53, 54 e 5, conjugadamente com o teor dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento (com excepção de J… e X…), já que as testemunhas revelaram conhecimento genérico sobre tais documentos.
- no que respeita ao facto constante de 5, decorre das regras de experiência comum que para o correcto exercício da administração do condomínio, em principio tais documentos de escrituração comercial, financeira e legal do condomínio (onde se incluem identificação de contas bancárias, livros de actas, facturas ou recibos, etc.) sejam entregues à pessoa ou sociedade que a exerce. Só não é assim quando o anterior administrador não tenha facultado tais documentos ou quando se trata de um condomínio novo.
Para além disso, embora de forma indirecta tal resultou do depoimento prestado por C… e D….
- no que respeita ao valor das quotas (facto provado sob 6), na verdade, existe a regra de cálculo pela permilagem donde não sejam fixas e iguais para todos os condóminos.
C… referiu que pagava, por ano, entre €300,00 e €400,00, mas que tal incluía já valores para serem utilizados em obras ou em despesas extraordinárias.
Da acta n.º16 (fls. 53) resulta que ocorreu falta de pagamento de quotas da fracção “M” nos anos de 2007 e 2008 no montante global de €551,38 (então, €275,69 por ano).
Por outro lado, da acta n.º17 (fls. 54) resulta que vários condóminos tinham quotas em atraso relativas aos anos de 2007, 2008 e 2009, fazendo-se menção dos seguintes valores: €60,24, €118,93, €267,99 e €97,66.
Há ainda a fls. 74-80 recibos de pagamentos de quotas relativas ao ano de 2010, em valores variáveis.
Assim, apesar de não se conseguir fixar um valor para cada uma das fracções, da conjugação dos elementos supra, o Tribunal conseguiu fixar um valor médio aproximado (por exemplo, se para a fracção “A” existiram pagamentos trimestrais de €60,24, tal corresponde a um valor anual de €240,96, pelo que sendo esta a fracção com permilagem mais baixa, as restantes fracções não poderia pagar menos).
- relativamente ao valor global de quotas recebidas pela arguida na administração do condomínio L… (facto sob 7), a verdade é que não se sabendo qual o montante a pagar por cada condómino, nem quais os que deixaram de pagar, apenas se conseguiu dar como provado que a arguida recebeu os montantes plasmados a fls. 74, 75, 76, 78, 79, 80 e 83 (este último complementado com o teor de fls. 525).
- no que concerne aos factos descritos em 8, a verdade é que de fls. 401 e seguintes constam diversos pagamentos efectuados à Q… entre os meses de Janeiro e Maio de 2011 no montante de €1.832,62; por outro lado, da acta de fls. 5 consta referência a dívida àquela empresa mas não é mencionado o respectivo valor.
Poder-se-ia concluir que o valor em dívida era o referido a fls. 57 (€2.851,68), mas este não especifica datas concretas de facturas nem quaisquer pagamentos efectuados por conta de dívida vencida em 14-04-2008. Por essa razão, complementa-se a sua análise com o documento de fls. 84. Mesmo assim, os valores não são coincidentes, sequer considerando os pagamentos supra referidos (fls. 400 e 401).
Em suma, é líquido que existia uma dívida á Q…, mas já não o seu montante.
- para prova dos factos contidos no ponto 9, verifica-se da análise da acta n.º17 (fls. 54) que foram aprovadas obras de reparação dos alçados, adjudicadas a “AD…”, mas não existe nos autos qualquer contrato de empreitada, nem referência a sub-empreitadas. Sucede que C… explicitou que foi por si verificado que veículos da “S…, Lda.”, enquanto decorriam as obras, aí se deslocavam para deixar material. Cotejadas as facturas constantes de fls. 58-60, no valor global de €1.196,40, constata-se que têm referência a produtos de impermeabilização de imóveis, o que é compatível com a realização de obras nos alçados.
- a prova dos factos contidos em 10 resultou da análise do documento constante de fls. 400-402.
- no que tange aos factos descritos em 11, a sua prova resultou da análise da acta constante de fls. 5 e do teor do depoimento prestado espontaneamente por C….
- factos vertidos em 12, foi com base de sustentação no teor do depoimento prestado por C… (pelo menos quanto à interpelação verbal efectuada telefonicamente) e da ponderação do teor dos documentos constantes de fls. 49 e 50 que se concluiu que existiu interpelação. Refere-se, ainda que tal interpelação pode ser feita por qualquer meio, não sendo exigido uma carta registada com aviso de recepção (embora a mesma fosse mais sagaz e cautelosa).
É de referir que a testemunha supra referida, afirmou que lhe foi transmitido que a arguida verbalizou, num primeiro telefonema ocorrido com sucesso, que iria diligenciar pela resolução da questão e que, num segundo telefonema afirmou que não podia devolver o que quer que fosse em virtude de ter ocorrido furto do seu computador pessoal e da documentação que dizia respeito ao condomínio. Ora, se efectivamente tivesse ocorrido um furto ao seu escritório, dadas as responsabilidades inerentes ao cargo que desempenhava, não teria a arguida tido a diligência de apresentar queixa, mesmo que contra desconhecidos, para assim ficar salvaguardada (ainda para mais vive em união de facto com um militar da GNR)? Decorre de regras de experiência comum que assim seria. Contudo, de acordo com a pesquisa efectuada em sede de inquérito, apenas resultou que a arguida, no ano de 2007 (bem anterior à data da prática dos factos) apresentou queixa pelo furto de objectos de diminuto valor (nomeadamente, gaiola de papagaio e papagaio) – fls. 378-393 – nada existindo quanto ao suposto furto de documentação. Não tem coerência aquilo que a arguida transmitiu aos condóminos com a realidade, aliás, não tem coerência que quem quer que fosse furtasse documentos, eventualmente códigos de acesso a contas bancárias e não tivesse tirado partido disso...
Passamos agora aos factos que dizem respeito ao edifício E…:
- factos descritos no ponto 13, o Tribunal valorou o teor das actas constantes dos autos a fls. 132 e 135, conjugadamente com o teor dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento (com excepção de J… e X…), já que as testemunhas revelaram conhecimento genérico sobre tais documentos.
- factos descritos no ponto 14, a sua prova decorreu da aplicação de regras de experiência comum que para o correcto exercício da administração do condomínio, em principio tais documentos de escrituração comercial, financeira e legal do condomínio (onde se incluem identificação de contas bancárias, livros de actas, facturas ou recibos, etc.) sejam entregues à pessoa ou sociedade que a exerce. Só não é assim quando o anterior administrador não tenha facultado tais documentos ou quando se trata de um condomínio novo.
Para além disso, embora de forma indirecta tal resultou do depoimento prestado por K…, F… e I….
- factos descritos no ponto 15, a titularidade da conta resultou do teor de fls. 139, 144, 149, 150 e 315-351.
- factos descritos no ponto 16, apesar de não existir nos autos reprodução de qualquer acta em que conste a deliberação dos condóminos quanto à adjudicação das obras a tal empresa, tal facto foi confirmado pelo teor dos depoimentos prestados por K…, F… e I… (embora não soubessem precisar a data em que ocorreu a reunião), sendo nessa sequência que foi solicitado o orçamento e elaborado o contrato de empreitada com o valor constante de fls. 140 e seguintes.
- a prova dos factos constantes em 17 e 18 resultou da conjugação de vários elementos documentais constantes dos autos, mormente o teor da troca de e-mails de fls. 142, com o teor do contrato de empreitada, com o extracto de conta de fls. 143 e que foi fornecido aos condóminos pela “V…”.
Vejamos, o supra referido extracto de conta não está datado, mas, plasma que a última factura que se encontra paga foi emitida em 17-03-2011 e que nessa mesma data estavam pagos €102.881,90. Estes pagamentos estão documentados a fls. 335, 336, 341 e 346, mediante a conjugação de vários débitos efectuados na conta do condomínio. Não existe qualquer razão para que determinada empresa falseie o seu extracto de conta corrente de clientes quando haja recebido menos do que aquilo que lá consta.
Por outro lado, haverá que fazer menção ao (controverso) documento de fls. 630, que não se confirmou totalmente que tenha sido elaborado pela arguida, do qual é possível extrair-se que €117.033,70 estão referidos como tendo sido entregues à administração do condomínio (são referidos pagamentos parciais relativos a dois condóminos, em valor que se desconhece). Esse documento tem aposta a data de 30-04-2011, sendo que as testemunhas F…, AC…, G…, H…, I…, embora sem trazerem documentos comprovativos referiram que terminaram de pagar os valores que aí constavam nas suas fracções como estando em falta e que o fizeram à arguida (sendo que outros condóminos efectuaram o pagamento posteriormente ao desaparecimento da arguida).
De todo o modo cotejou-se ainda o teor de fls. 315-351 para verificar se existiam depósitos que correspondessem à listagem constante de fls. 168 e 630, sendo que se conseguiu fazer uma correspondência relativamente a várias fracções. Na verdade a correspondência não foi total, mas percebeu-se que foi a partir do mês de Maio de 2009 (data posterior ao contrato de empreitada) que se iniciou o maior volume de transferências e depósitos na conta do condomínio, sendo algumas dessas transferências de valores avultados e que perfazem os montantes referidos pelas testemunhas e que constam do extracto de conta da V… e de fls. 168 e 630.
Resta ainda referir que pese embora a falta de correspondência perfeita entre os valores constantes das listagens a que vimos fazendo referência, de acordo com regras de lógica e experiência comum, nem sempre existe disponibilidade para se proceder aos pagamentos de forma constante, pelo que muitas pessoas preferem amealhar algum dinheiro e, depois, efectuar pagamentos mais avultados.
- prova dos factos ínsitos em 19 resultou do confronto da fotocópia do cheque emitido por F… em 30-11-2009 (fls. 145, 146, 147 e 148) com a informação prestada pela T… a fls. 511, de onde resulta a titularidade da conta em que tal cheque foi depositado. Também revelou a admissão de J… no sentido de que tal cheque lhe foi entregue pela arguida, só não convencendo o Tribunal da razão pelo qual lhe foi entregue já que nem sequer conseguiu esclarecer (nos moldes que supra se analisou) se trabalhou no edifício E… no ano de 2009.
E, ainda, a ausência de referência do seu depósito na conta do condomínio (fls. 315-351).
- para prova dos factos vertidos em 20 e 21 a análise objectiva de fls. 157, 158, 160-161, 162-163, 164-165, documentos em que surge retratada a transferência de montantes pecuniários e a correspondência do titular de tal conta com a de fls. 506 (folha de assinaturas da conta da titularidade de N…).
Ora, por um lado, da análise das certidões das matrículas das sociedades identificadas em 2 dos factos dados como provados, resulta líquido que N… não exerceu qualquer cargo de gerência nem é sócia das mesmas. por outro lado, da prova testemunhal resultou que esta não trabalhava no negócio da mãe e, por outro lado, ainda, do teor de fls. 506 resulta que tinha 19 anos de idade no ano de 2010.
Assim, se não tinha qualquer ligação ao negócio gerido pela arguida, como se justificaria que tivesse tido acesso às contas bancárias dos edifícios administrados pela arguida e que tivesse sido ela a proceder às transferências bancárias? Nada nos autos o justifica, pelo que recorrendo a juízos de experiência comum (pois que não se dispõe da ficha de assinaturas da conta de onde proveio o dinheiro) se conclui que apenas a arguida era portadora e sabedora dos cartões e/ou códigos necessários para que se fizessem aquelas transferências.
- prova dos factos vertidos em 22, análise dos e-mails enviados por F… para contas de e-mail que lhe haviam sido previamente fornecidas pela arguida (segundo o seu depoimento), em que é solicitada a devolução de todo o material e documentação na posse da arguida, em que é feita expressa menção a pedido de prestação de contas por “desvio” de dinheiro em proveito da administração da sociedade e em que se adverte do recurso a Tribunal para obtenção das verbas em falta – fls. 152, 153 e 154.
De todo o modo, da análise do documento constante de fls. 55, apesar de se tratar de escrito remetido pelo condomínio a outro edifício, consta menção expressa aos endereços P1…@sapo.pt e M1…@sapo.pt. Ainda da análise dos depoimentos prestados por C…, F… resultou que não só a arguida tinha na frente de loja onde exercia as suas funções profissionais menção a e-mails para contacto, como igualmente não comunicou qualquer alteração de contactos aos condóminos, nem respondeu a qualquer missiva escrita, telefónica ou presencial que lhe tenham feito a solicitar a devolução dos livros de actas, documentos contabilísticos, etc. que estavam na sua posse.
Ou seja, existiu interpelação, a qual pode ser feita por qualquer meio, não sendo exigido uma carta registada com aviso de recepção (embora a mesma fosse mais sagaz e cautelosa).
É, igualmente, de referir que, se efectivamente tivesse ocorrido um furto ao escritório da arguida, dadas as responsabilidades inerentes ao cargo que desempenhava, não teria esta tido a diligência de apresentar queixa, mesmo que contra desconhecidos, para assim ficar salvaguardada (ainda para mais vive em união de facto com um militar da GNR)? Decorre de regras de experiência comum que assim seria. Contudo, de acordo com a pesquisa efectuada em sede de inquérito, apenas resultou que a arguida, no ano de 2007 (bem anterior à data da prática dos factos) apresentou queixa pelo furto de objectos de diminuto valor (nomeadamente, gaiola de papagaio) – fls. 378-393 – nada existindo quanto ao suposto furto de documentação. Não tem coerência aquilo que a arguida transmitiu aos condóminos com a realidade, aliás, não tem coerência que quem quer que fosse furtasse documentos, eventualmente códigos de acesso a contas bancárias e não tivesse tirado partido disso...
Prova dos factos dados como provados sob 23 a 27, resultaram de regras de experiência comum, pois que é possível presumir com base nos factos dados como provados a intenção subjectiva, já que se trata de presunção natural que quem, no exercício de função de administradora de prédios, que tem por funções, entre outras, gerir contabilística e economicamente os mesmos, gerir os montantes pecuniários que lhe são entregues para esse efeito, gerir a regularização dos livros de actas, facturas, recibos, etc.:
a) saber que apenas está na posse desses elementos documentais e pecuniários enquanto se mantiver a administração e que, cessando a mesma ou sendo-lhe solicitada a exibição ou devolução tem de assim proceder, sob pena de estar a contrariar não só os seus deveres, como igualmente normas criminais e, mesmo assim, quer praticar tais actos;
b) saber que ao utilizar quantias monetárias para fins diferentes daqueles para que se destinam ou ao não afectar quantias monetárias ao pagamento de despesas dos administradores, que assim está a violar os seus deveres legais e normas criminais e, mesmo assim, quer praticar tais actos.
- para prova dos factos ínsitos em 28-33, as declarações da arguida que não levantaram reservas ao Tribunal.
- para prova da ausência de antecedentes criminais registados, o Tribunal fundamentou-se no teor do Certificado de Registo Criminal constante dos autos a fls. 629.
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Relativamente aos factos dados como não provados, especifica-se que:
- facto não provado vertido em A, tal como resulta da fundamentação da matéria factual constante de 6 dos factos provados, não se conseguiu apurar que tais valores fossem iguais entre todos os condóminos e que correspondessem aos indicados na acusação.
- facto não provado vertido em B, inexistindo nos autos qualquer prestação de contas ou extracto bancário de onde pudesse decorrer a conclusão do recebimento de “grande parte das quotas”, ou qualquer documento que comprovasse quanto efectivamente gastou, não foi possível ao Tribunal “dar o salto” qualitativo de que a arguida fez suas quantias monetárias pertencentes ao edifício L…. Até porque o único extracto bancário de que se dispõe relativo à conta deste edifício é o de fls. 399 e aí, entre 05-01-2011 e 10-07-2011 só existem pagamentos efectuados à Q… e à “EDP/AGUA/GAS”.
- facto não provado sob C, tal como resulta da fundamentação do facto dado como provado sob 8, os valores constantes dos vários documentos dos autos diferem e não foi possível concluir que a dívida à Q… fosse efectivamente de €2.851,68.
- facto não provado sob D, dos elementos documentais constantes dos autos e do teor do depoimento de C… não se conseguiu extrair a prova de que tenha sido solicitada a devolução de quaisquer quantias monetárias.
- facto não provado constante de E, na acta n.º34 (fls. 135) é referida a existência de uma dívida à Q… no montante de €3.286,02 a título de capital e de €746,02 a título de juros. Por outro lado, nas contas relativas ao ano de 2010 (fls. 170) e na rubrica “despesas” são feitos plasmar valores pagos àquela empresa no ano de 2010 e 2011, sendo que de fls. 150 resultam pagamentos efectuados à Q….
Contudo, não existe a junção aos autos de qualquer escrito remetido pela Q… ao edifício E… onde constem valores concretos ou referência a facturas, e, mesmo que K… tenha afirmado a sua recepção, não pode o Tribunal confirmar o valor concretamente em dívida, ficando na dúvida quanto ao mesmo.
- facto não provado sob F, dos elementos documentais constantes dos autos e do teor do depoimento de F…, K… e de H… não se conseguiu extrair a prova de que tenha sido solicitada a devolução de quaisquer quantias monetárias, pese embora tenham sido expressamente referidas nos e-mails constantes de fls. 152-154.
- facto não provado sob G, pese embora da análise da apresentação de contas relativas aos anos de 2009 e 2010, onde são mencionados os valores recebidos a título de quotas (€12.593,74 para os anos de 2007, 2008 e 2009 e €12.045,89 para os anos de 2009 e 2010) e as despesas efectuadas e confrontado o mesmo com o teor do extracto bancário constante de fls. 315-351, poder-se-ía concluir no sentido apontado em tal facto.
Contudo, a verdade é que os condóminos para chegarem às conclusões vertidas a fls. 184 (pois que tal documento foi elaborado pelos condóminos), não tendo a escrituração comercial e financeira, tiveram que presumir quais as despesas que seriam do condomínio e quais seriam as injustificadas.
Ora, no entender do Tribunal não existe certeza quanto à qualificação da natureza de todas as transferências realizadas pela arguida, ou seja, apenas indiciariamente se poderia concluir nos termos indicados na acusação. Daí ter-se ficado com dúvidas e dado o facto como não provado.
- facto não provado sob H, do teor objectivo de fls. 166 resulta que em 28-07-2010 ocorreu transferência daquele valor para o NIB …………………. Igualmente a fls. 336 consta tal movimento.
Contudo, apesar da verbalização por parte de algumas testemunhas de que a transferência ocorrera para o edifício AB…, que não tem qualquer ligação com o E…, não especificaram como é que chegaram a esse conhecimento e, na realidade, não há nos autos qualquer documento comprovativo de que aquele NIB pertence a conta titulada por aquele edifício. Assim, não ficou o facto total e devidamente comprovado.
(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, há que decidir as seguintes questões:
● Impugnação da matéria de facto provada sob os pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26 e 27;
● Contradição insanável;
● Violação do artº 410º n2 al.a) e c) do CPP;
● Violação dos arts . 164º e 169º do CPP.
● Violação do princípio in dubio pro reo;
● se a sentença é nula nos temos do artº 379º nº1 alínea c) do CPP;
● Se inexiste prova do elemento subjectivo do dolo, em sede do crime de infidelidade previsto no artº 224º do CP;
● Se inexiste prova dos elementos do crime de abuso de confiança previsto no artº 205º nº1 e 4 da) do CP.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
A recorrente alega que a sentença recorrida sofre de contradição insanável, para logo invocar a violação dos vícios prevenidos no art. 410º nº2 al.a) e c) do CPP, isto é os vícios do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
A existência de todos os vícios previstos no nº 2 do artº 410º do CPP tem que forçosamente resultar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo permitido, para a demonstração de que existem, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. – cfr., por todos, ac. do STJ, de 19/12/90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este preceito .
Como se escreveu em acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confecção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
Por sua vez, «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão» - cfr. Ac. do STJ de 20/04/2006, disponível in www.dgsi.pt
Finalmente, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do nº 2, do artº 410º do CPP, ocorre quando o tribunal não dá como «provado» nem como «não provado» algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, ou que seja relevante para a medida concreta da pena, e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa.
Tendo em conta estas noções logo se constata, com o devido respeito, que a Recorrente invoca a existência dos vícios fora das condições legais, pois aquilo que alega na motivação é ausência de prova que permita alicerçar as conclusões fácticas dadas como provadas, recorrendo, para a sua demonstração, à invocação de documentos, declarações e depoimentos produzidos na audiência de discussão e julgamento.
A recorrente não indica nem concretiza quer em sede motivação quer em sede de conclusões em que parte da sentença tais vícios ocorrem, antes se limitando a discordar da apreciação da prova efectuada pelo tribunal.
Aliás e no que concerne à invocada contradição insanável, o que a recorrente alega, sob “Primeiro falecimento” não é qualquer contradição relativa à matéria de facto, mas antes e já em sede de direito, que os factos provados não permitem a conclusão jurídica a que o tribunal chegou, de condenação, o que não se prende com os vícios do artº 410º nº2 do CPP.
Improcede pois a invocação dos vícios do artº 410º nº2 do CPP.
Alega a recorrente que se verifica a nulidade da sentença, nos termos do artº 379º nº1 al.c) do CPP, porquanto “o Tribunal a quo extrai conclusões por construções imaginárias ou deduções intuitivas ou esquemas imaginários e não por provas”. (conclusão OO).
No artº 379 nº1 al.c) do CPP, prevê-se a nulidade da sentença “ Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Como cristalinamente decorre do alegado pela recorrente, a mesma não imputa à decisão recorrida qualquer omissão ou excesso de pronúncia sobre questão que não devesse conhecer, antes e mais uma vez manifesta a discordância quanto à apreciação da prova efectuada naquela, por considerar ser a mesma insuficiente para matéria dada como provada.
Improcede pois também a alegada nulidade.
Passemos então à apreciação da Impugnação da matéria de facto.
Não obstante os tribunais da Relação conhecerem de facto e de direito nos termos do disposto no artº 428º do CPP, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Fórum Justitiae, Maio 99.
Na verdade, fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º - o que, manifestamente, não é o caso - o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso. Ao tribunal de recurso cabe apenas “…aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significara que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”. Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253.
Para permitir que no recurso se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, a lei prevê a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência – cfr. artº 363º e 364º, ambos do CPP.
Neste caso, o recorrente tem o ónus de especificar, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, cfr. artº 412º nº 1 e 3, als.a) e b) do CPP, sendo que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações de prova previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nos termos do nº 4 do mesmo preceito, havendo que ter em conta a interpretação afirmada no Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 3/2012, 8 de Março de 2012 publicado no DR 1º série de 18 de Abril de 2012, o qual fixou jurisprudência no sentido de que “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para efeitos do disposto no artº 412ºº nº3 alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.
Vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º do CP, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, No sentido apontado, veja-se o Acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.
A recorrente indica como factos que considera erradamente julgados os constantes dos pontos 5,6,7,8,9,10,12,14,16,17,18,19,20,21,22,23,24,26 e 27 da matéria de facto provada.
Como provas que em seu entender “impõem” uma diferente convicção indica relativamente aos factos 7,8,910 e 12 (Edíficio L…) os depoimentos das testemunhas C…, e D…, nas passagens que transcreve em resposta das testemunhas a instâncias do ilustre mandatário.
Porém desde já se adianta que tais passagens não impõem uma diferente convicção daquela que foi tomada pelo tribunal.
Com o devido respeito, parece a recorrente esquecer que a lei refere provas que «impõem» e não as que «permitiriam» solução diversa, pois casos haverá em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Por isso, quando o recorrente pretenda impugnar a matéria de facto, recai sobre o mesmo o ónus de especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa, o que terá de ser feito por referência ao consignado na acta, -relativamente às provas gravadas – indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Nos termos artº 127º do CPP «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
O princípio acabado de enunciar, responsabiliza o julgador ao permitir-lhe a avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro predefinido que fixe o valor das provas (sistema da prova legal).
Esta liberdade na valoração das provas admitidas pressupõe, por parte do julgador, a revelação da credibilidade que cada um dos meios de prova lhe mereceu, da sua relevância objectiva, dos raciocínios elaborados a partir deles e, por último, do confronto crítico exercido.
É certo que «a livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova», pois que «a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica» -cfr. Maia Gonçalves, em anotação ao artº 127º do CPP, 16º ed.
Daí a exigência do artº 374º nº2 do CPP de uma correcta fundamentação da fáctica da sentença, de modo a permitir um efectivo controlo da sua motivação.
Mas diversamente daquilo que parece entender a recorrente, nada impede que o tribunal forme a convicção sobre a existência de um facto com recurso a presunções naturais, baseadas em regras de experiência ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra[1] que “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”. Mas “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios, ou a falta de um ponto de ancoragem, no percurso lógico de congruência segundo as regras da experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada por impressões.”[2].
Sobre a distinção entre prova directa e prova indirecta escreve o Prof. Germano Marques “Se se tratar de prova directa, a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal; na prova indirecta a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção.”[3]
Também a jurisprudência se vem pronunciando no sentido da admissibilidade da prova indirecta, acentuando contudo as especiais exigências que se deve ter na apreciação deste tipo de prova.
Assim e tendo como referência o disposto no artº 192º nº2 do CPP Italiano, entendeu-se no ac. da Relação de Guimarães de 19/1/2009 proferido no processo 20125/08-2, (relator Cruz Bucho), que os indícios recolhidos permitem fundamentar uma condenação quando os mesmos sejam graves, precisos e concordantes, no sentido em que nesse acórdão se escreveu “Segundo Paolo Tonini, são graves os indícios que são resistentes às objecções e que, portanto, têm uma elevada capacidade de persuasão; são precisos quando não são susceptíveis de diversas interpretações, desde que a circunstância indiciante esteja amplamente provada; são concordantes quando convergem todos para a mesma direcção (La prova penale, 4ª ed. Pádua, 2000, apud Eduardo Araújo da Silva, Crime Organizado – procedimento probatório, editora Atlas, São Paulo, 2003, pág.157).
Por sua vez no ac do STJ de 7/4/2011 proferido no proc. nº 936/08.0JAPRT.S1 em que foi relator o conselheiro Santos Cabral, para além de se acentuar que “A avaliação dos indícios pelo juiz implica uma especial atenção que devem merecer os factos que se alinham num sentido oposto ao dos indícios culpabilizantes, pois que a sua comparação é que torna possível a decisão sobre a existência, e gravidade, das provas”, escreveu-se “ Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime, nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que sendo uma convicção com géneses em material probatório, é suficiente, para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral, mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova.”
No caso dos autos, lida a motivação da sentença recorrida, impõe-se concluir que não estamos perante uma convicção racionalmente objectivada, em que não foram utilizadas provas proibidas e sem que se detecte qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova previsto o artº 127º do CPP.
Pelo contrário aquilo que se extrai é que o tribunal com base quer na prova documental quer na prova testemunhal logrou chegar à matéria de facto, através de juízos lógicos e racionais que a recorrente nem sequer logra pôr em causa.
Em concreto a fundamentação expendida pelo tribunal relativamente aos factos provados sob os pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 12 da matéria de facto provada tem suporte nos documentos indicados e nos depoimentos mencionados os quais foram criticamente apreciados.
A recorrente não indica qualquer erro de julgamento, que imponha alteração da matéria de facto face às provas que indica, limitando-se a tecer comentários, e interrogações. Sendo absolutamente conforme às regras da experiência que alguém que exerceu a administração de um condomínio durante um período de mais de 10 anos, naturalmente estivesse na posse da escrituração legal e financeira. Quanto à questão de a arguida ter sido instada e não ter devolvido a escrituração do condomínio como bem se refere na fundamentação, a mesma tem pleno apoio no depoimento da testemunha C…, depoimento por nós integralmente ouvido nos termos do artº 412º nº6 do CPP, e que expressamente relatou a instâncias do Magistrado do MPº os telefonemas que fez à arguida e as justificações apresentadas pela mesma para não fazer.
Quanto à matéria provada sob os pontos 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22, relativa ao “Edifício E…”, a recorrente indica como provas que em seu entender “impõem” uma diferente convicção, os depoimentos das testemunhas K…, F…, G…, H…, I…, J….
Dando por reproduzido o que supra se escreveu sobre o princípio da livre apreciação da prova e sobre a fundamentação com base em prova indirecta, efectuada na sentença recorrida, lidas e ouvidas as passagens indicadas, também quanto a estes factos a impugnação é manifestamente improcedente, uma vez que também quanto aos mesmos a recorrente se limita a fazer transcrições dos depoimentos das testemunhas e a tecer comentários e interrogações, sem indicar qualquer prova que imponha uma diferente convicção, ou demonstrar a existência de algum erro de julgamento por parte do tribunal, e sem nunca relacionar as concretas passagens que imporiam uma diferente convicção com cada um dos concretos factos impugnados. O raciocínio expendido na sentença recorrida permite face às regras da experiência concluir que a arguida recebeu a documentação respeitante à administração do condomínio e que sendo ela quem exercia as funções de administradora foi também quem recebeu as quantias pagas pelos condóminos.
Sem prejuízo dir-se-á brevemente quanto aos sucessivos pretensos“falecimentos” visionados pela recorrente:
No que respeita à alegada contradição insanável, (primeiro falecimento) na perspectiva da matéria de facto já nos pronunciámos sobre sobre a sua inexistência, sendo que quanto à integração do crime previsto no artº 205º nº4 do CP, oportunamente nos iremos pronunciar em sede de apreciação de direito.
Quanto a não poder ser dada como provada a matéria constante do ponto 5 dos factos provados, (segundo falecimento) como supra já se afirmou é improcedente a impugnação, revelando-se coerente e lógica a fundamentação da sentença.
Quanto ao (terceiro falecimento) que a recorrente expressa como “Nulidade absoluta dos valores que se consideram que o condomínio se encontra em dívida: o Tribunal a quo parte de um raciocínio absolutamente errado, porquanto, parte do princípio que se encontram devedores de determinadas quantias, simplesmente porque os credores terão afirmado que devem determinadas quantias”, trata-se de um comentário genérico em que e com o devido respeito, mais uma vez a recorrente ignora a fundamentação constante da sentença, sem especificar a que concretos valores se refere sendo que a convicção do tribunal assenta na conjugação não só da prova testemunhal, mas também da prova documental, realçando-se a cuidada análise crítica efectuada na decisão, como bem salienta o MP na sua resposta.
No (quarto falecimento), mais uma vez limita-se a recorrente a por em causa a convicção e raciocínio a que o tribunal chegou, sem indicar provas que imponham uma diferente convicção, pelo que se dá como reproduzido o que supra se escreveu acerca do princípio da livre convicção e utilização da prova indirecta, sendo que a fundamentação da sentença expõe com clareza o raciocínio a que chegou para dar como provados os pagamentos de quotas efectuados pelos condóminos estando a apreciação dos documentos sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, não se mostrando a existência de qualquer violação dos arts 164º e 169º, (este artigo refere-se apenas a documentos autênticos ou autenticados) que aliás a recorrente se limita a invocar, sem concretizar.
Nos quinto, sexto e sétimo “falecimento” parece a recorrente querer questionar o óbvio. Como se escreveu na fundamentação da sentença “- para prova dos factos vertidos em 20 e 21 a análise objectiva de fls. 157, 158, 160-161, 162-163, 164-165, documentos em que surge retratada a transferência de montantes pecuniários e a correspondência do titular de tal conta com a de fls. 506 (folha de assinaturas da conta da titularidade de N…).
Ora, por um lado, da análise das certidões das matrículas das sociedades identificadas em 2 dos factos dados como provados, resulta líquido que N… não exerceu qualquer cargo de gerência nem é sócia das mesmas. por outro lado, da prova testemunhal resultou que esta não trabalhava no negócio da mãe e, por outro lado, ainda, do teor de fls. 506 resulta que tinha 19 anos de idade no ano de 2010.
Assim, se não tinha qualquer ligação ao negócio gerido pela arguida, como se justificaria que tivesse tido acesso às contas bancárias dos edifícios administrados pela arguida e que tivesse sido ela a proceder às transferências bancárias? Nada nos autos o justifica, pelo que recorrendo a juízos de experiência comum (pois que não se dispõe da ficha de assinaturas da conta de onde proveio o dinheiro) se conclui que apenas a arguida era portadora e sabedora dos cartões e/ou códigos necessários para que se fizessem aquelas transferências...” Nada mais se afigura acrescentar.
Por fim e no que concerne ao elemento subjectivo, o mesmo como é sabido, fora dos casos de confissão, tal materialidade terá de resultar necessariamente de prova indirecta, por se tratarem de elementos de estrutura psicológica. Como se escreveu no ac. da Rel. de Lisboa de 8/2/2007 “ o que pertence à vida interior de cada um, só possível de apreender através de factos materiais comuns, podendo comprovar-se por meio de presunções judiciais, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência.”[4] No caso dos autos, face à materialidade objectiva assente, tais elementos resultam dos factos objectivos, nada tendo resultado dos autos que afaste a evidência de uma actuação voluntária da arguida e do conhecimento da ilicitude da sua conduta,
Falece pois a pretensão de alteração à matéria de facto, já que como elucidativamente, se escreve no acórdão do STJ de 21/03/2003, proc. 02ª4324, relator Conselheiro Afonso Paiva,
“A admissibilidade da respectiva alteração (referência à matéria de facto) por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram ) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado.
c) Apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
Do que vem de se dizer, reafirma-se que a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação.
Em suma, não se detecta em relação aos factos que foram dados como provados nenhum erro de julgamento que imponha a sua alteração, e a convicção expressa pelo tribunal não se mostra violadora das regras da experiência nos termos do artº127º do CPP.
Também não se vê do texto da decisão recorrida que o tribunal a quo tivesse tido dúvidas sobre a existência dos factos impugnados. Daí que não se vislumbre em que medida é que existiu violação do princípio in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal.cfr. Figueiredo Dias Dtº Processual Penal, pág 213.
Daqui decorre que a violação deste princípio só ocorra quando resulta da decisão que o tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto e, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Ora, a decisão impugnada não revela, em momento algum, que o tribunal recorrido tenha ficado na dúvida em relação a qualquer facto dado como provado. Bem pelo contrário, afirma convictamente a matéria dada como provada. Com o que não tem fundamento invocar a violação de tal princípio [nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2008, Processo n.º 1787/08 - 5.ª Secção (Cons. Souto Moura): I - A invocação do princípio in dubio pro reo só tem razão de ser se, depois do tribunal a quo reconhecer ter caído num estado de dúvida, contornasse um non licet decidindo-se, sem mais, no sentido mais desfavorável para o arguido. Mas já não assim se, depois de ultrapassadas as dúvidas que o pudessem ter assaltado, perfilhasse uma determinada convicção e decidisse coerentemente – in Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, http://www.stj.pt acedido em Janeiro de 2009].
Vejamos então se a decisão recorrida violou os artº 205º nº1 e 224ºdo CP.
Alega a recorrente que houve violação dos elementos do tipo de abuso de confiança p.p. pelo artº 205º nº1 e nº4 al.a) do CP (nono “falecimento”).
Com esta alegação está desde logo a recorrente a esquecer que a sentença recorrida condenou a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança simples previsto pelo artº 205º nº1 do CP e não pelo crime de abuso de confiança qualificado p.p. pelo artº 205º nº1 e nº4 al.a) do CP.
Não obstante, a questão da posse da arguida dos documentos foi já oportunamente decidida em sede de apreciação da impugnação.
Dispõe-se no artº 205º do CP "Quem ilegitimamente se apropriar de coisa imóvel que lhe tenha sido entregue por título translativo da propriedade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
E na alínea a) do nº 4 do mesmo preceito, estipula-se que se o valor for elevado o agente é punido é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
Os elementos do tipo em análise são pois, a apropriação ilegítima de coisa que tenha sido entregue por título não translativo da propriedade. Porém e diferentemente do furto em que a apropriação acompanha a posse ou detenção da coisa, aqui a apropriação sucede a essa posse ou detenção. [5] Isto é, o agente inicialmente recebe validamente a coisa, a título precário ou temporário, mas depois vem a fazer a inversão do título de posse. Como refere o professor Figueiredo Dias[6] “A apropriação traduz-se sempre no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção
Da matéria provada resulta que foram entregues à arguida a escrituração comercial, financeira e legal dos condomínios dos Edifícios L… e E…, pontos 5 e 14 da matéria de facto provada.
E que “apesar de sucessiva, repetida e devidamente instada a devolver a escrituração comercial, financeira e legal” dos referidos condomínios nada fez ou justificou.
Foi ainda dado como provado que “A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito consumado de fazer seus os objectos e dinheiro acima mencionados que lhe foram entregues para o exercício da sua função de administradora dos condomínios L… e E….”
Face aos conceitos supra enunciados, e tal como foi entendido na sentença recorrida tal conduta integra os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança p.p. pelo artº 205º nº1 do CP, resultando da sentença recorrida que apenas considerou verificado o referido crime de abuso de confiança no que concerne à apropriação da documentação e já não das quantias monetárias, por não ter ficado provado que em relação às mesmas foi feita interpelação, cf. factos não provados da alínea F).
Porém como resulta da matéria de facto provada, resultou provado em relação ao condomínio E… que:
“.20. Acresce que B… sem que nada o justificasse realizou várias transferências bancárias da conta do condomínio do edifício E… para a conta da sua filha N…, com o n.º.-…………., do U…, nomeadamente, em 23-12-2010, a quantia de €5.000,00; em 19-01-2011 a quantia de €455,00; em 04-04-2011 a quantia de €4.200,00; em 03-06-2011, a quantia de €750,00; em 28-06-2011 a quantia de €1.000,00; em 20-07-2011 a quantia de €1.000,00.
21. N… não exerceu funções profissionais, nem prestou serviços para nenhuma das sociedades referidas em 2.
Tendo sido dado como provado que:
“.23. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito consumado de fazer seus os objectos e dinheiro acima mencionados que lhe foram entregues para o exercício da sua função de administradora dos condomínios dos edifícios L… e E….
24. Sabia que tais objectos e dinheiro não lhe pertenciam, que estava obrigada a devolvê-los e a utilizá-los apenas em proveito dos referidos condomínios e que ao apoderar-se dos mesmos agia contra a vontade do respectivo proprietário, causando-lhe um prejuízo de valor não inferior aos aludidos objectos e dinheiro.”
Com o devido respeito por posição contrária, entendemos que não obstante estarmos perante coisa fungível, e não desconhecendo as exigências doutrinárias para a demonstração de actos concludentes de apropriação em relação às coisas fungíveis, pois que conforme escreve o Professor Figueiredo Dias Comentário Conimbricense a fls. 104, a propósito das situações de confusão de patrimónios a “mera confusão ou o simples uso são, em si mesmos, insuficientes paras integrar o elemento objectivo da apropriação”, no momento em que a arguida faz transferências do dinheiro, para a conta da sua filha sem que nada o justificasse, e à qual os ofendidos não têm acesso, a arguida passa a agir em relação ao dinheiro como dona e procedeu de modo inequívoco à inversão do título de posse, independentemente da existência ou não de uma interpelação para a devolução das quantias, uma vez que estas já se encontravam na disponibilidade de terceira pessoa que não a arguida.
Trata-se de actos concludentes da apropriação na medida, em que ficou provado que a arguida agiu com intenção de se apropriar de tais quantias.
Assim e considerando que o total das quantias transferidas pela arguida para a conta de terceiro, sua filha, ascendem ao montante de 12.405 € (onze mil quatrocentos e cinco) euros, a arguida cometeu um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artº 205º nº4 a) do CP e não o crime de infidelidade pelo qual foi condenada.
Na verdade como vem sendo entendido pela doutrina, o crime de infidelidade pressupõe a inexistência de apropriação, pelo que existindo aquela verifica-se um concurso aparente com o crime de abuso de confiança.
É certo que subjaz a conduta da arguida em relação ao condomínio do Edifício L…. Porém as quantias em causa não atingem aquele valor elevado, que a doutrina, equipara ao mal importante, vale dizer 50 unidades de conta (5.100 €) , nem por outro lado resultaram provados factos de que as vítimas, no caso os condóminos, ficaram numa situação económica difícil, de modo a verificar-se o duplo critério, objectivo e subjectivo de que fala o Prof. Taipa de Carvalho.[8]
Há pois que absolver a arguida pelo crime de infidelidade pelo qual vinha acusada, ficando prejudicada a questão da recorrente de saber se existe prova do elemento subjectivo do crime de infidelidade.
Nota-se que a qualificação jurídica agora efectuada dos factos no crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artº 205º nº4 a) do CP, é permitida já que como vem sendo afirmado vem pelo Supremo Tribunal de Justiça, o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, pelas implicações que pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus.
Significa isto que, perante a moldura penal de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias, tendo presentes os critérios estabelecidos no artº 71º do CP, face ao valor das quantias apropriadas, (12.405 euros), ao valor do prejuízo causado, não tendo emergido da matéria provada qualquer acto arrependimento, e as demais circunstâncias ponderadas na decisão recorrida, considerando que a pena que o tribunal havia aplicado pelos mesmos factos, com a diferente qualificação no crime de infidelidade p.p. pelo artº 224º nº1 do CP foi de 190 (cento e noventa dias de multa) , em obediência ao princípio da proibição da reformatio in pejus consagrado no artº 409º nº1 do CPP, considera-se adequada a pena de 190 (cento e noventa) dias de multa à taxa diária de 9 euros fixada na decisão recorrida a qual nos termos do artº 47º nº 2 do CP se considera adequada à situação económica e financeira da arguida e encargos provados.
Uma segunda nota para referir que a qualificação jurídica efectuada, não necessita de ser comunicada à arguida nos termos do artº 424º nº3 do CPP, uma vez que a arguida encontrava-se já acusada pela prática de um crime, de abuso de confiança p.p. pelo artº 205 nºs 1 e 4 alínea a) do CP, pelo que não desconhecia tal qualificação.
Por fim anota-se que, muito embora se entenda, aliás em conformidade com o despacho de 621- 622, que inexiste queixa válida apresentada nos autos pelos condóminos lesados do edifício E…, titulares dos interesses patrimoniais que o legislador quis proteger com a incriminação do crime de abuso de confiança, face à natureza pública do crime pelo qual vai condenada, nada há nesta sede a conhecer.
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III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em no parcial provimento do recurso interposto pela arguida B…:
Absolver a arguida da prática de um crime de infidelidade p.p. pelo artº 224º nº1 do CP.
Alterar a qualificação jurídica efectuada na sentença recorrida, condenado a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança na forma consumada p.p.pelo artº 205º nº1 e 4 al.a) do CP na pena de 190 (cento e noventa) dias de multa à taxa diária de 9 (nove) euros, o que perfaz o montante global de 1710 (mil setecentos e dez ) euros.
Sem tributação artº 513º nº1 do CPP.

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 13/1/2016
Lígia Figueiredo
Neto de Moura
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[1] Direito Probatório Material – BMJ 112/190.
[2] Ac. do STJ de 17/03/04 (Processso nº265/03), in http://www.dgsi.pt/jstj,nsf
[3] Curso de Processo Penal,II, editorial Verbo 2008, pág.109,110.
[4] Proferido no processo nº197/07, 9ª secção (relator Carlos Benido) citado no ac. de 12/5/2007 da Relação do Porto, proc.OTRP000400822 relatado por Artur Oliveira.
[5] Cfr. Leal Henriques e Simas Santos, CP anot. 2º vol. Pág 460
[6] Comentário Conimbricense do Código Penal,Parte especial, Tomo II, Coimbra Editora 1999,pág.103.
[7] Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal,Parte especial, Tomo II, Coimbra Editora 1999,pág.109.
[8] Comentário Conimbricense Código Penal,Parte especial, Tomo II, Coimbra Editora 1999,pág.367.
[9] Cf. Ac. STJ de 24/2/2010, proc. 59/06.7GAPFR.P1.S1 (relator Raul Borges) dgsi.pt.