Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
963/13.6TBSJM.1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
EXEQUIBILIDADE DE TRANSAÇÃO EM PROCEDIMENTO CAUTELAR
do Documento: RP20150609963/13.6TBSJM.1.P1
Data do Acordão: 06/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A execução das providências decretadas em sede de procedimento cautelar comum não pode ser indeferida com fundamento na existência de garantia penal da medida cautelar.
II - A garantia penal da providência, consagrada na Reforma do Processo Civil de 1995-6 — no artigo 391.º, de teor idêntico ao normativo que actualmente a prevê (artigo 375.º) — não afasta de modo algum a possibilidade de recurso a meios executivos por forma a dar efectividade à decisão.
III - A natureza provisória da decisão proferida em procedimento cautelar não é critério para afastar a sua exequibilidade. Provisoriedade e exequibilidade não se excluem reciprocamente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 963/13.6TBSJM.1.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
Nos autos de procedimento cautelar comum que B… e C… moveram a D… e E… foi proferida sentença e 2013.07.18 sentença homologatória da transacção efectuada nesse mesmo dia entre os aí requeridos e requerentes (ora apelantes), a qual transitou em julgado.
Nessa transacção se comprometeram os requeridos e aqui apelados a:
a) retirar os troncos do portão a norte, junto da Rua …;
b) retirar o cadeado do portão a sul;
c) Não obstar à passagem dos aí requerentes e aqui exequentes pela alegada faixa de terreno.
Não tendo os requeridos cumprido aquilo a que se comprometeram, os requerentes instauraram acção executiva pedindo:
- A realização de perícia para verificação da existência da infracção, e subsequente apuramento da importância provável das despesas;
- Demolição da obra à custa dos executados, com a reposição do estado anterior à colocação da terra e arvores que impedem a passagem, desimpedindo a faixa de terreno.
- A indemnização do prejuízo sofrido que se liquida até ao presente em 2.100,00 € (dois mil e cem Euros) correspondente a 100,00 € diários durante vinte e um dias (até ao presente) e juros vincendos desde a sua fixação.
- A aplicação de sanção pecuniária compulsória, pelo período em que se mantiver a violação do dever de não obstar à passagem dos exequentes pela faixa de terreno, de valor diário não inferior a 100,00 € (cem Euros).
Sobre este requerimento executivo recaiu despacho de indeferimento liminar nos termos seguintes:
Nos presentes autos foi proferida decisão de homologação de transacção em procedimento cautelar, e não em acção definitiva.
Constatada a alegada infracção do decretado, incumbe assim aos requerentes recorrer ao disposto nº art. 375º do CPC.
Nestes termos indefere-se liminarmente o presente requerimento executivo.
Custas pelos requerentes.
Inconformados, apelaram os exequentes, apresentando as seguintes conclusões:
«1ª – A sentença proferida nos autos de procedimento cautelar constitui título executivo.
2ª – tendo a mesma transitado em julgado.
3ª - Aí se comprometeram os requeridos e aqui executados a:
a) retirar os troncos do portão a norte, junto da Rua …;
b) retirar o cadeado do portão a sul;
c) Não obstar à passagem dos aí requerentes e aqui exequentes pela alegada faixa de terreno.
4ª- A mesma não foi cumprida, e continua a não sê-lo, pelos requeridos/executados.
5ª - O incumprimento pelos requeridos dos termos homologados por Douta sentença no procedimento, admite o recurso á acção executiva, pelo que foi intentada a competente execução.
6ª - Que foi objecto de despacho indeferimento liminar, nos seguintes termos:
“Nos presentes autos foi proferida decisão de homologação de transacção em procedimento cautelar, e não em acção definitiva.
Constatada a alegada infracção do decretado, incumbe assim aos requerentes recorrer ao disposto no art. 375º do CPC.
Nestes termos indefere-se liminarmente o presente requerimento executivo.
Custas pelos requerentes.”
7ª - A sentença proferida constitui titulo executivo nos termos do art. 703º nº 1 al. a) do NCPC.
8ª - Não sendo a mesma cumprida, pode assim ser instaurada a competente execução com vista ao seu cumprimento.
9ª - Nos termos do art. 726º do NCPC o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo nos termos das alíneas a), b) c) e d) do seu nº 2.
10ª - Não se verificam nenhuma das circunstâncias referidas nas alíneas do referido artigo, não sendo aplicáveis as alíneas c) e d), não havendo também falta ou insuficiência de título (muito menos manifesta) prevista na alínea a), e manifestamente não ocorre qualquer excepção dilatória não suprível de conhecimento oficioso, nos termos da alínea b) – não constituindo o art. 375º do NCPC qualquer excepção.
11ª - nem nenhuma referência se faz no despacho relativamente a qualquer alínea do referido artigo, o que constitui também falta de fundamentação da própria decisão.
12ª - Limitando-se a dizer “que incumbe aos requerentes recorrer ao disposto no art. 375º do CPC”
13ª - Pelo que não poderia ser indeferida liminarmente a execução.
14ª - O art. 375º do CPC (Garantia Penal da providência), não afasta a possibilidade de executar a decisão, muito antes pelo contrário, pois admite-a
15ª - O art. 375º do NCPC, á semelhança do anterior art. 391º, que constitui reprodução ipsis verbis do seu texto, não afasta a possibilidade de execução da decisão.
16ª - A expressão “sem prejuízo das medidas adequadas á sua execução” é, no modesto entender dos aqui requerentes, inequívoca.
17ª - Também é inequívoco que o requerente da providência tem que executar a decisão cautelar pois é essa a única existente para já, não o podendo fazer no processo principal, no qual ainda não há decisão, que possa ser executada.
18ª – Tal recurso á via executiva é uma das formas legitimas e possíveis para reagir ao incumprimento verificado.
19ª - Não está dependente de qualquer outro procedimento prévio, nem está impedido de o fazer através do processo executivo, nem pelo art. 375º referido nem qualquer outro.
20ª - O facto de incorrer no crime aí previsto, quem infrinja a providência cautelar decretada, não obriga que se tenha que seguir esta via penal, nem tal artigo obriga a que se tenha que seguir outra via que não a executiva.
21ª - Entende assim o aqui exequente que o despacho proferido, constitui mero lapso na análise da questão, lapso esse passível de ser corrigido.
22ª - Na anotação ao antigo artigo 391º do CPC anotado do professor José Lebre de Freitas de 2001 vol. 2 pág. 64 e 65, no seu ponto 3. diz expressamente “salvaguarda-se o recurso às medidas adequadas à execução da providência” e complementa “trata-se do recurso á acção executiva, em qualquer das suas espécies:….”.
23ª - È assim claro e manifesto que o despacho proferido ofende o próprio artigo 375º do NCPC que invoca para indeferir a execução.
24ª – Ofendendo ainda o disposto no artigo 703º nº 1 al. a) do NCPC “à execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatória.
25ª - E ainda o art. 726º do NCPC (em concreto o seu nº 2) conforme referido.
26ª - Pelo que o mesmo deve ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento da instância executiva
E Assim se fará inteira e habitual JUSTIÇA»

3. Do mérito do recurso

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se em saber se a execução das providências decretadas em sede de procedimento cautelar comum pode ser indeferida com fundamento na existência de garantia penal da medida cautelar.

Os apelantes, requerentes de um procedimento cautelar comum, intentaram execução na sequência do incumprimento pelos requeridos apelados das medidas cautelares acordadas entre as partes e homologada pelo tribunal.
Essa execução foi liminarmente indeferida com fundamento em se tratar de decisão provisória, remetendo a decisão recorrida para a tutela penal da providência, consagrada no artigo 375.º CPC.
A garantia penal da providência, consagrada na Reforma do Processo Civil de 1995-6 — no artigo 391.º, de teor idêntico ao normativo que actualmente a prevê — não afasta de modo algum a possibilidade de recurso a meios executivos por forma a dar efectividade à decisão.
O legislador, ao consagrar aquela garantia penal, teve, aliás, o cuidado de esclarecer que a garantia penal não impedia o recurso às medidas necessárias à sua execução coerciva.
Como referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 2.ª ed., pg. 66, em anotação ao artigo 391.º CPC revogado, de idêntico teor ao artigo 375.º CPC:
«Trata-se do recurso à acção executiva, em qualquer das suas espécies: acção executiva comum para pagamento de quantia certa (arts. 810 e ss.); acção executiva comum para entrega de coisa certa (arts. 928 a 931) acção executiva comum para prestação de facto (arts. 933-942); acção executiva especial por alimentos provisórios (arts. 1118 a 1121 A e 404-2). A ela se recorre quando a providência consiste na intimação do requerido para que realize uma prestação, positiva ou negativa, e ele não a realiza».
E bem se compreende a solução legislativa, se atentarmos à finalidade dos procedimentos cautelares.
A finalidade das providências antecipatórias ou conservatórias é remover o periculum in mora por forma a garantir a efectividade do direito ameaçado.
A tutela penal da providência é apenas mais um meio de coerção ao cumprimento da decisão cautelar, ao lado da sanção pecuniária compulsória (artigo 365.º, n.º 2, CPC), e da execução coerciva.
Ora, se a ameaça penal falhou na vertente dissuasora do incumprimento, se não foi suficiente para compelir os requeridos ao cumprimento das medidas acordadas e homologadas por sentença judicial, não faz sentido indeferir a execução destinada ao seu cumprimento coercivo com fundamento na tutela penal.
A queixa por desobediência poderá levar à punição dos apelados, mas isso em nada resolverá a situação dos apelantes, que continuarão impedidos de aceder ao prédio.
Daí a importância dos meios destinados à execução coerciva, enquanto instrumentos da eficácia da decisão: execução para prestação de facto (artigo 868.º e ss. CPC).
Estabelecido que a tutela penal da providência não obsta ao recurso aos meios executivos, importa equacionar o argumento da provisoriedade da decisão.
O despacho recorrido começa pelo seguinte parágrafo:
“Nos presentes autos foi proferida decisão de homologação de transacção em procedimento cautelar, e não em acção definitiva".
A natureza provisória da decisão proferida em procedimento cautelar não é critério para afastar a sua exequibilidade. Provisoriedade e exequibilidade não se excluem reciprocamente.
A providência cautelar destina-se a salvaguardar o direito ameaçado até que seja proferida decisão na acção principal, salvo ocorrendo inversão do contencioso (artigo 364.º, n.º 1, CPC). E, em princípio, mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão que julgar improcedente a acção principal (artigo 373.º, n.º 1, alínea c), CPC).
Como escreveu Abrantes Geraldes, Temas da Reforma, III, Almedina, 3ª ed., pg. 35, [os procedimentos cautelares]
«São, afinal, uma antecâmara do processo principal, possibilitando a emissão de uma decisão interina ou provisória destinada a atenuar os efeitos erosivos decorrentes da demora na resolução definitiva ou a tornar frutuosa a decisão que, porventura, seja favorável ao requerente».
A providência cautelar decretada só será eficaz na salvaguarda do direito ameaçado se, na ausência de cumprimento voluntário, a parte dispuser de mecanismos que permitam a sua execução.
Como sublinha Abrantes Geraldes, op. cit., pg. 109,
«Atenta a urgência da situação carecida de tutela, o tribunal pode antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal e que será objecto de execução.
As medidas deste tipo excedem a natureza cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências, ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo. Estas providências antecipatórias não se limitam a assegurar o direito que se discute na acção principal, nem a suspender determinada actuação, garantindo-se, desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter carácter definitivo».
A natureza provisória da decisão proferida no procedimento cautelar não contende, pois, com a sua exequibilidade.
Nesse sentido são oportunas as considerações de Abrantes Geraldes, op. cit., 264: «Proferida e notificada a decisão cautelar de que resulte para o requerido uma verdadeira obrigação de pagamento de quantia certa, de entrega de coisa certa ou de prestação de facto positivo ou negativo, cabe ao requerente o ónus de impulsionar o seu cumprimento coercivo. Independentemente da qualificação jurídico-processual da decisão cautelar como sentença ou como despacho, trata-se de uma verdadeira decisão judicial que, por isso, goza da garantia da coercibilidade e da executoriedade, nos termos normais, como decorre dos arts. 46.°, alª a), e 48.°.
Não encontramos justificação alguma para uma interpretação restritiva do art.
48.º, de modo a excluir dessa norma as decisões que, no âmbito de procedimentos cautelares, fixem obrigações de dare ou de facere.
Contra isto não vale argumentar com a natureza provisória das decisões cautelares. A provisoriedade não é sinónimo de inexequibilidade, como meridianamente resulta do art. 391.°. Pelo contrário, a exequibilidade das decisões cautelares que imponham imediatamente um dever de agir é condição fundamental para a sua eficácia.
E continua, a pg. 265:
Com ressalva da execução que tenha por objecto a prestação alimentícia ou relativa a arbitramento de reparação provisória (art. 404.°, n.º 2), que seguirão os termos do processo executivo especial previsto nos arts. 1118.º e segs., as demais serão tramitadas de acordo com a forma de processo comum, nos termos do art. 465.º, n.º 2, correndo, em regra, por apenso ao procedimento cautelar (art 90.°, n.º 3). “

Também Alberto dos Reis, Processo de Execução, 1.º vol., 3ª ed, pg. 116-36: defende que ao atribuir eficácia executiva às sentenças de condenação, o Código quis abranger nesta designação todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade.
Nessa medida, a sentença homologatória de transacção em procedimento cautelar constitui título executivo.
O despacho de indeferimento liminar não pode, pois, manter-se.

4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, determinando o prosseguimento da execução, não ocorrendo outros obstáculos.
Sem custas.

Porto, 9 de Junho de 2015
Márcia Portela
Francisco Matos
Maria de Jesus Pereira
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Sumário
1. A execução das providências decretadas em sede de procedimento cautelar comum não pode ser indeferida com fundamento na existência de garantia penal da medida cautelar.
2. A garantia penal da providência, consagrada na Reforma do Processo Civil de 1995-6 — no artigo 391.º, de teor idêntico ao normativo que actualmente a prevê (artigo 375.º) — não afasta de modo algum a possibilidade de recurso a meios executivos por forma a dar efectividade à decisão.
3. A natureza provisória da decisão proferida em procedimento cautelar não é critério para afastar a sua exequibilidade. Provisoriedade e exequibilidade não se excluem reciprocamente.

Márcia Portela