Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5199/12.0TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: NOVO REGIME JURÍDICO DO DIVÓRCIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
BENEFÍCIOS DOS CÔNJUGES
DOAÇÃO
Nº do Documento: RP201505265199/12.0TBMAI.P1
Data do Acordão: 05/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O regime da nova Lei nº 61/2008, de 31.10, designadamente o estatuído no artº 1791º/ do CC, aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01.12.2008), mas que nessa data ainda subsistam e já não àqueles que à data dessa vigência já tenham sido dissolvidos.
II - O critério escolhido para a aplicação da lei velha e da lei nova deve respeitar o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante.
III - O art. 334.º do CC funciona como uma válvula de segurança do sistema jurídico, como forma de travar certas actuações que apesar da aparência de licitude e de exercício de direito, traduzem uma não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e a negação de interesses sensíveis de outrem
IV - Feita uma doação de imóvel pelos pais a filho e nora pelo facto de estes terem esta qualidade e na pressuposição de que o casamento se mantivesse e demandada posteriormente acção de divórcio litigioso (convertido em mútuo consentimento) pelo filho donatário com fundamento na culpa do seu cônjuge (abandono do lar conjugal e coabitação com outro homem) na qual o casamento veio a ser dissolvido por decisão judicial proferida antes da vigência da Lei nº 61/2008, de 31.10, tendo sido instaurada – agora na vigência dessa lei 61/2008 – acção pelos doadores contra a donatária visando a perda do benefício por esta obtido com a doação, aí se alegando factualidade integrante da culpa da ré no seu aludido divórcio e sem que tenha sido deduzida contestação, não pode esta, depois de ter deixado passar o “perigo” da (sua) declaração de cônjuge principal culpado na acção de divórcio, assim se “libertando” das consequências que lhe pudessem advir da estatuição legal ínsita no artº 1791º CC, na redacção então vigente, vir agora invocar essa mesma estatuição legal para se defender, alegando que a previsão normativa, afinal, ....não foi declarada na acção de divórcio, dessa forma logrando visar colher um benefício, ou libertar-se de um vínculo que lhe era indesejável (a reversão da doação).
V - Esta pretensão da Ré, para além de violar aquele princípio constitucional, excede manifestamente os fins impostos pela boa fé (dos doadores e do donatário, seu ex-cônjuge), consubstanciando abuso do direito, na vertente do venire contra factum proprium.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 5199/12.0TBMAI.P1
Relator: Fernando Baptista
Adjuntos:
Des. Ataíde das Neves
Des. Amaral Ferreira

I- RELATÓRIO:

Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

1. B… e a sua mulher C…, residentes na Rua …, n.º .., Porto, e L... vêm propor acção declarativa de processo ordinário contra D…, E…, F… e esposa G…, H… e esposa I…, J… e esposa K….

Alega, em síntese, que no dia 5 de Fevereiro de 2001 as aqui Autoras, em conjunto com o também Autor B…, na qualidade de marido da Autora C…, efectuaram escritura de doação do prédio misto sito no …, freguesia …, concelho da Maia, inscrito da matriz predial sob o artigo urbano e rústico com o valor patrimonial de 212.120$00 (€1.058,08).
Mais alegam que tal prédio, pela apresentação n.º 6/121092, foi indevida e ilegalmente registado como tendo sido adquirido pelas Autoras C… e L… e pelo Autor B…, por sucessão hereditária por óbito dos pais de C… e L…, o que não corresponde à verdade uma vez que B… e C… contraíram matrimónio do regime de comunhão de adquiridos.
Deste modo concluem afirmando ter sido efectuada uma doação de bens alheios sob tal prédio, uma vez que B… não é proprietário de tal bem, pelo que peticionam que seja declarada a nulidade da doação efectuada.
Como pedido subsidiário requerem que seja decretada a perda do benefício obtido pela 1.ª Ré com a doação efectuada, uma vez que alegam que a mesma teve em conta a qualidade de nora e sobrinha dos Autores daquela, no pressuposto de que o casamento desta com o 2.º Réu se mantivesse, pelo que com o divórcio entre estes desapareceu o interesse na permanência deste beneficio recebido gratuitamente pela 1.ª Ré.
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Regularmente citados os Réus não contestaram.
*
Foi dado cumprimento o disposto no artigo 484.º, n.º 1 do Código de Processo Civil na redacção anterior à Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho tendo sido considerados confessados todos os factos articulados pelos Autores.
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Notificados nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 484.º do Código de Processo Civil na redacção anterior à da Lei n.º 41/2013, Autores e a 1.ª Ré D… vieram apresentar alegações de direito.

A final foi sentenciada a causa nos seguintes termos:
«Por tudo o exposto, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e em consequência:
1. Julgar improcedente o pedido deduzido a título principal, absolvendo-se os Réus do mesmo;
2. Julgar procedente o pedido deduzido a título subsidiário, declarando a perda do benefício obtido pela 1.ª Ré D… com a doação efectuada por escritura pública de dia 5 de Fevereiro do ano de 2001, no 7.º Cartório Notarial do Porto, a fs. 27 a 28 V.º do Lº D –tendo por objecto o imóvel Prédio misto composto por casa de um pavimento e quintal, terreno de cultura e ramada, sito no …, freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob os artigos 18 urbano e 1 rústico, com o valor patrimonial total de duzentos e doze mil cento e vinte escudos, correspondendo à parte urbana o valor de cento e noventa e quatro mil e vinte e seis e o atribuído de igual valor e parte rústica o valor de dezoito mil e noventa e quatro escudos e o atribuído de igual valor e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número mil duzentos e trinta e cinco “…”, revertendo a sua quota-parte no identificado imóvel a favor dos doadores B…, C… e L….».

Inconformada com a sentença, dela veio recorrer a Ré D…, tendo apresentado alegações que remata com as seguintes

“CONCLUSÕES:
I. Os Autores vieram propor contra os Réus a presente acção declarativa de processo ordinário. Alegaram que no dia 5 de Fevereiro de 2001 as Autoras, em conjunto com o também Autor B…, na qualidade de marido da Autora C…, efectuaram escritura de doação do prédio misto sito no …, freguesia …, concelho da Maia, inscrito da matriz predial sob o artigo urbano e rústico com o valor patrimonial de 212.120$00 (€1.058,08). Mais alegam que tal prédio, pela apresentação n.° 6/121092, foi indevida e ilegalmente registado como tendo sido adquirido pelas Autoras C… e L… e pelo Autor B…, por sucessão hereditária por óbito dos pais de C… e L…, o que não corresponde à verdade uma vez que B… e C… contraíram matrimónio do regime de comunhão de adquiridos. Concluem afirmando ter sido efectuada uma doação de bens alheios sob tal prédio, uma vez que B… não é proprietário de tal bem, pelo que peticionam que seja declarada a nulidade da doação efectuada. Subsidiariamente, requereram que seja decretada a perda do benefício obtido pela 1.° Ré com a doação efectuada, uma vez que alegam que a mesma teve em conta a qualidade de nora e sobrinha dos Autores daquela, no pressuposto de que o casamento desta com o 2.° Réu se mantivesse, pelo que com o divórcio entre estes desapareceu o interesse na permanência deste benefício recebido gratuitamente pela 1.° Ré.
II. Foi proferida decisão que decidiu:
1. Julgar improcedente o pedido deduzido a título principal, absolvendo-se os Réus do mesmo;
2. Julgar procedente o pedido deduzido a título subsidiário.
III. No nosso entender a decisão recorrida está fulminada por:
Violação do disposto no artigo 12.° e 1971.° do Código Civil
IV. Entendeu o Tribunal aplicar ao caso o disposto no artigo 1791.° do Código Civil com a redacção da Lei 61/2008, de 31 /10 e uma vez que, na actual redacção do artigo 1791.°, não se mostra necessário o requisito da culpa, caso o disposto naquele preceito operasse ipso iure, ambos os cônjuges perderiam o benefício recebido por terceiro, o que pode não corresponder à intenção do doador entendeu decretar a perda do benefício obtido pela Recorrente.
V. A decisão em causa viola o disposto no artigo 12.° do Código Civil, pois considerando que a doação foi realizada no ano de 2001 e o divórcio decretado no ano de 2006 por mútuo consentimento, o disposto legal a aplicar seria o resultante da redacção do artigo 1791.° do Código Civil anterior à Lei 61/2008, de 31 /10, ou seja teria que verificar-se o trânsito em julgado da sentença proferida na acção de divórcio litigioso que declarou um dos cônjuges único ou principal culpado para operar a perda do beneficio.
VI. Deve ser a lei em vigor á data do divórcio e não uma posterior que deve regular a presente situação, conforme preceituado na norma geral de aplicação das leis no tempo constante do artigo 12.° do Código Civil.
VII. O princípio geral de aplicação das leis no tempo consagrado no artigo 12.° é o de que a lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Todavia, quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que ela "abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor".
VIII. Ora no presente caso o casamento já não subsistia á data da sua entrada em vigor.
IX. Assim e nos termos do disposto no artigo 12.° do Código Civil o regime introduzido pela Lei n.° 61/2008 aplica-se aos casamentos celebrados antes da sua data de entrada em vigor (01.12.2008) e que nessa data ainda subsistam, isto é, não tenham sido dissolvidos.
X. Ora no presente caso, o divórcio foi decretado em 2006.
XI. Esta solução conduz a que a nova versão do artigo 1791.° do Código Civil não seja aplicável aos casamentos dissolvidos em data anterior á sua entrada em vigor.
XII. Atentos os factos dados como provados e conforme resulta do disposto no 1791.° do CC (na sua versão anterior) só pode perder os benefícios quem for declarado único ou principal culpado do divórcio, ora conforme resulta dos autos o divórcio foi decretado por mútuo consentimento em 2006, pelo que não existindo a declaração prevista no artigo 1787.° do CC não poderia o pedido proceder e acção deveria ter sido julgada totalmente improcedente.
XIII. Ao não fazê-lo o Tribunal violou o disposto no artigo 12.° do Código Civil e consequentemente o artigo 1791 do Código Civil na redacção anterior à Lei n.° 61/2008.

Normas violadas: 12.° do Código Civil e consequentemente o artigo 1791 do Código Civil na redacção anterior à Lei n.° 61/2008.

Termos em que deve o presente Recurso ser admitido e julgado procedente por provado e, consequentemente a decisão em crise revogada e substituída por outra que julgue a presente acção totalmente improcedente por não provada.».

Foi apresentada resposta às alegações, na qual se pugna pela confirmação da sentença.

Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO.
II.1. AS QUESTÕES:

Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº4 e 639º, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão suscitada no recurso é esta:
Se deve ser aplicada ao caso sub judice a redacção do artº 1791º do CC vigente à data do divórcio dos 1º e 2º Réus e, como tal, se a nova versão daquele normativo, decorrente da Lei nº 61/2008, de 31.10, se não aplica aos casamentos dissolvidos antes da sua entrada em vigor.

II.2. OS FACTOS:

No tribunal recorrido deram-se como provados os seguintes factos:

1. Pela apresentação n.º 6/121092 o prédio misto composto por casa de um pavimento e quintal, terreno de cultura e ramada, sito no …, freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob os artigos 18 urbano e 1 rústico, com o valor patrimonial total de duzentos e doze mil cento e vinte escudos, correspondendo à parte urbana o valor de cento e noventa e quatro mil e vinte e seis e o atribuído de igual valor e parte rústica o valor de dezoito mil e noventa e quatro escudos e o atribuído de igual valor e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número mil duzentos e trinta e cinco … foi registado como tendo sido adquirido por sucessão hereditária pela morte de M… e N…, pais das Autoras, por estas e por B…;
2. No dia 5 de Fevereiro do ano de 2001, no 7.º Cartório Notarial do Porto, a fs. 27 a 28 V.º do Lº D – 264, foi efectuada escritura pública de doação tendo por objecto o imóvel supra identificado;
3. Na escritura de doação intervieram como doadores e primeiros outorgantes B…, a sua esposa C… e L…, e como segundos outorgantes F… e mulher G…, casados sob o regime de comunhão de adquiridos; H… e mulher I…, casados no regime da comunhão de adquiridos; J… e mulher K…, casados sob o regime da comunhão de adquiridos, E… e mulher D…, casados sob o regime da comunhão de adquiridos;
4. Da escritura celebrada consta que “DECLARARAM OS PRIMEIROS OUTORGANTES: Que são donos e legítimos possuidores do seguinte imóvel:
Prédio misto composto por casa de um pavimento e quintal, terreno de cultura e ramada, sito no …, freguesia …, concelho da Maia, inscrito na matriz sob os artigos 18 urbano e 1 rústico, com o valor patrimonial total de duzentos e doze mil cento e vinte escudos, correspondendo à parte urbana o valor de cento e noventa e quatro mil e vinte e seis e o atribuído de igual valor e parte rústica o valor de dezoito mil e noventa e quatro escudos e o atribuído de igual valor e descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número mil duzentos e trinta e cinco “…”, e aí registado a seu favor pela inscrição G – um. Que pela presente escritura, doam aos segundos outorgantes filhos e noras dos doadores C… e B… e sobrinhos da doadora L…, o prédio acima referido. Que esta doação a que atribuem o valor de duzentos e doze mil cento e vinte escudos, é feita quanto aos filhos por conta da quota disponível. DECLARAM OS SEGUNDOS OUTORGANTES: Que aceitam a presente doação”.
5. O 2.º Réu E… é filho dos Autores B… e C…;
6. O 1.º Réu E… e a 1.ª Ré D… contraíram casamento católico a 10 de Novembro de 1983, sem precedência de convenção antenupcial;
7. A 1.ª ré D… abandonou o lar conjugal constituído com o segundo Réu E… tendo ido coabitar com outro homem como se de casados se tratassem;
8. Por sentença de 08 de Março de 2006, a 1.ª Ré e o 2.º Réu divorciaram-se por mútuo consentimento;
9. A doação foi efectuada à 1.ª Ré D… pelo facto de ser nora e sobrinha dos Autores;
10. E na pressuposição de que o casamento com o 2.º Réu se mantivesse;
11. Pelo que com o divórcio desapareceu o interesse na permanência deste benefício recebido a título gratuito pela 1.ª Ré.

III. O DIREITO

Vejamos, então, as questões suscitadas no recurso.

Como sito supra, em causa está saber se deve ser aplicada ao caso sub judice a redacção do artº 1791º do CC que vngava vigente à data do divórcio dos 1º e 2º Réus (D… e E…) e, como tal, se a nova versão daquele normativo, decorrente da Lei nº 61/2008, de 31.10, se não aplica aos casamentos dissolvidos antes da entrada em vigor desta Lei.

Dispõe o artº 1791º CC, na redacção do DL 496/77, de 25.11:
«(Benefícios que os cônjuges tenham recebido ou hajam de receber)
O cônjuge declarado único ou principal culpado perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento. (...)».

Com a redacção decorrente da Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, esse normativo ficou com a seguinte redacção:
«Cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento. (...)».

Assim se vê que esta nova lei suprimiu a expressão «O cônjuge declarado único ou principal culpado». Pelo que, agora, a perda do benefício ali previsto, por banda do cônjuge, deixou de depender da circunstância de haver, ou não, culpa na produção do divórcio.

No caso sub judice, vieram os AA instaurar acção contra os Réus, alegando, designadamente - para o que interessa ao âmbito deste recurso –, que no dia 5 de Fevereiro de 2001 as Autoras, em conjunto com o também Autor B…, na qualidade de marido da Autora C…, efectuaram escritura de doação do prédio misto identificado nos autos, pedindo fosse decretada a perda do benefício obtido pela 1.° Ré com essa doação, já que (segundo alegam) a mesma teve em conta a qualidade daquela 1ª Ré de nora e sobrinha dos Autores, tendo sido feita no pressuposto de que o casamento da 1ª Ré com o 2.° Réu se mantivesse, pelo que, tendo-se estes divorciado, desapareceu com o divórcio o interesse na permanência deste benefício recebido gratuitamente pela 1.° Ré.

Entendeu o Tribunal recorrido aplicar ao caso o disposto no artigo 1791.° do Código Civil com a redacção da Lei 61/2008, de 31 /10. Daí que, uma vez que, na actual redacção do artigo 1791.°, não se mostra necessário o requisito da culpa, caso o disposto naquele preceito operasse ipso lure ambos os cônjuges perderiam o benefício recebido por terceiro, o que pode não corresponder à intenção do doador, pelo que se decidiu decretar a perda do benefício obtido pela Recorrente.

A Ré apelante, diferentemente, entende que a decisão recorrida viola o disposto no artigo 12.° do Código Civil, pois (diz) «considerando que a doação foi realizada no ano de 2001 e o divórcio decretado no ano de 2006 por mútuo consentimento, o disposto legal a aplicar seria o resultante da redacção do artigo 1791.° do Código Civil anterior à Lei 61/2008, de 31 /10, ou seja teria que se verificar o trânsito em julgado da sentença proferida na acção de divórcio litigioso que declarou um dos cônjuges único ou principal culpado para operar a perda do beneficio.».
Qui juris?

Vejamos.

A Lei nº61/2008 instituiu o novo regime jurídico do divórcio português.
O divórcio corresponde à dissolução do casamento, isto é, à ruptura da relação matrimonial entre os cônjuges, ficando ambos desvinculados de todos os direitos/deveres inerentes a essa mesma relação (artigo 1788º Código Civil).
O divórcio dissolve o casamento e tem os mesmos efeitos jurídicos que a dissolução do casamento por morte (art.1788.º do Código Civil), isto é, determina a cessação da generalidade dos efeitos pessoais e patrimoniais do casamento, bem como dos deveres conjugais operando, em princípio, para o futuro.
Assim, designadamente, nenhum dos cônjuges, aquando da partilha, pode receber mais do que aquilo que receberia caso o regime de bens adoptado fosse o de comunhão de adquiridos (artigo 1790º do Código Civil), cada cônjuge perde todos os benefícios auferidos do outro ou de terceiro que estejam relacionados com o estado de casado (artigos 1791º e 2317º al. d) do Código Civil) e perdem também o direito de suceder como herdeiro legal do outro (artigo 2133º n.º3 do Código Civil).
Decretado o divórcio, cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, de acordo com os artigos 1688.º, 1788.º e 1789.º, n.º 1 do Código Civil, devendo proceder-se, de seguida, à partilha dos bens do ex-casal, de acordo com o regime de bens adoptado e a sua meação no património comum, extrajudicialmente, quando exista acordo entre as partes, ou em processo de inventário, quando tal não se verifique – artigos 2102, n.º2 do Código Civil e 1404.º do Código Processo Civil.
Existem diferenças entre este regime (Lei 61/2008) e o anterior quanto aos efeitos da culpa pois, neste último, o cônjuge declarado único ou principal culpado não poderia receber na partilha mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime de comunhão de adquiridos. Tratava-se assim de uma sanção pois, mesmo que o casal em causa tivesse casado segundo o regime de comunhão geral de bens, o cônjuge culpado não poderia receber mais do que receberia segundo o regime da comunhão de adquiridos.
Actualmente, com a supressão da averiguação da culpa no divórcio, as consequências patrimoniais e de natureza sancionatória para o cônjuge declarado único ou principal culpado foram eliminadas passando a regra a ser que, à partida, nenhum dos cônjuges pode receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos (artigo 1790º do Código Civil). Como tal, todos os casos de divórcio, decretados após a entrada em vigor desta nova lei, ficam reduzidos à situação da comunhão de adquiridos para efeitos de partilha, embora ainda existam muitos casamentos celebrados de acordo com o regime da comunhão geral de bens em Portugal. O legislador justificou esta alteração tendo em vista obstar “que o divórcio se torne num meio para adquirir bens, para além da justa partilha do que se adquiriu com o esforço comum na constância do matrimónio, e que resulta da partilha segundo a comunhão de adquiridos. Afirma-se o princípio de que o cônjuge que contribui manifestamente mais do que era devido para os encargos da vida familiar adquire um crédito de compensação que deve ser satisfeito no momento da partilha”[1].

No que concerne aos benefícios, ao abrigo do anterior regime, o cônjuge declarado culpado perdia todos os benefícios já recebidos bem como os que houvesse receber do outro cônjuge ou de terceiro, na sequência do casamento ou em consideração do estado de casado, nomeadamente doações testamentárias ou outras. Ficava ainda obrigado a reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge, provocados pelo divórcio, nos termos da responsabilidade civil.

A Lei nº 61/2008 – que entrou em vigor no dia 1 de Dezembro de 2008 –, porém, estabeleceu um regime transitório.
Assim, segundo o artº 9º da mesma Lei, esta aplica-se apenas aos processos que tenham sido instaurados após a sua entrada em vigor – não se aplicando, portanto, aos processos pendentes, isto é, aos processos que tenham sido instaurados antes da sua entrada em vigor, mas cuja decisão judicial apenas venha a surgir após a sua vigência. Estes casos serão decididos de acordo com a tramitação da lei anterior (artigo 9º da lei 61/2008).
No que diz respeito à regulação do exercício das responsabilidades parentais, Tomé D’ Almeida Ramião advoga: “Temos pois que a LN se aplica às relações jurídico - familiares constituídas antes da sua entrada em vigor, já que veio introduzir alterações de conteúdo dessas relações, salvaguardando as relações jurídico-familiares que constituam objecto de acções pendentes, que serão reguladas pela LA”[2].

Aplicando o exposto ao caso sub judice e considerando que quando aquele artigo 9º da lei 61/2008 fala em “processos pendentes” se está a referir aos processos de divórcio e com ele “conexos” (v.g., regulação do exercício do poder paternal, incumprimento de responsabilidades parentais, ...) e outrossim que o processo de divórcio que correu termos entre os 1º e 2ª RR terminou por sentença proferida nos autos em 08.03.2006 (cfr. fls. 25-27), há muito transitada em julgado, na sequência da conversão do divorcio litigioso instaurado em divórcio por mútuo consentimento, parece evidente que os efeitos do divórcio entre os 1º e 2º RR não poderão deixar de ser lidos ao abrigo do disposto na lei substantiva civil na redacção vigente antes daquela Lei nº 61/2008.
Portanto, no caso presente, determinando o artigo 9.º da Lei n.º 61/2008 a sobrevigência da lei velha quanto aos processos pendentes em tribunal, quer isto dizer que, após a entrada em vigor da lei nova, será em princípio imediatamente aplicável o seu novo regime relativo ao divórcio e ao exercício das responsabilidades parentais, a menos que o caso a que ele se aplique se reporte a processo (já) pendente em tribunal. Para esta situação - e só para ela - valerá o regime velho, onde ainda existia "divórcio litigioso" e "poder paternal".

A presente acção, a pedir, designadamente, a perda do benefício da doação em relação à 1ª Ré, extravasa, portanto (até pela sua natureza e.... altura da demanda), do âmbito da expressão “processos pendentes” ínsito naquele artº 9º da Lei 61/2008.

Esta opção tão expressivamente clara do legislador quanto à subsistência da lei anterior relativamente às situações colocadas e a colocar em “processos pendentes” (o que abrange a instância matriz e as posteriores instâncias que assumam natureza incidental daquela (como sucederia, v.g., com o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais fixadas nos acordos havidos no processo de divórcio por mútuo consentimento – a essa instância incidental já se aplicaria o regime legal atinente ao exercício das responsabilidades parentais anterior à Lei nº 61/2008), significa, a contrario, que ficam de fora da aplicação da lei anterior todo e qualquer processo que seja instaurado após a sua entrada em vigor e que não tenha aquela natureza incidental relativamente a processo que já anteriormente tenha sido instaurado (como é exemplo o já referido). Outro entendimento apenas poderia decorrer da inconstitucionalidade do regime transitório formal estabelecido nesse artigo 9º, sendo que isso passaria aqui pela recusa de aplicação dessa norma, nos termos do artigo 204º da Constituição da República Portuguesa.
Note-se que este problema de constitucionalidade foi colocado ao Tribunal Constitucional que o resolveu, no sentido da conformidade constitucional do mencionado artigo 9º da Lei nº 61/2008, no Acórdão do Plenário nº 398/2011 (JOÃO CURA MARIANO)[3].
Deve, porém, ter-se sempre presente que o critério escolhido para a aplicação da lei velha e da lei nova terá que respeitar não só o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante, assim como também não poderá resultar na criação de desigualdades arbitrárias na aplicação da nova lei, após ela ter entrado em vigor.

Não é aplicável, assim, ao caso em análise a Lei nº 61/2008.
**
Mas a igual resultado chegaríamos com recurso à norma geral de aplicação da lei no tempo constante do artº 12º do CC.
Efectivamente, segundo o princípio geral de aplicação das leis no tempo que vem plasmado neste normativo legal, a lei só dispõe para o futuro. E mesmo que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. No entanto, dispondo a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que ela "abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor".
Que “relações jurídicas” se pode falar no caso sub judice? Obviamente, .... do casamento. E esta, à data da entrada em vigor da nova lei já há muito que tinha cessado, por via do divórcio havido entre os 1º e 2º RR.

Sendo assim, cremos que seria, de facto, inaplicável ao caso presente o regime introduzido pela Lei n.° 61/2008.
Dito de outra forma, o regime da nova lei aplica-se aos casamentos celebrados antes da sua data de entrada em vigor (01.12.2008), mas que nessa data ainda subsistam e já não àqueles à data dessa vigência já tenham sido dissolvidos. Logo, portanto, a sua inaplicabilidade à situação sub judice, dado que, como dito, o casamento entre os 1º e 2º RR já há muito estava dissolvido quando entrou em vigor a nova lei (a dissolução, por divórcio, ocorrera em...2006).

Sobre a questão da aplicação no tempo da Lei 61/2008, pode ver-se, ainda, o acórdão desta Relação do Porto de 06.02.2014[4] - de que, aliás, a apelante junta cópia.
Escreveu-se ali:
«... A Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, possui uma norma transitória de aplicação da lei no tempo. O artigo 9.º prescreve que o seu regime “não se aplica aos processos pendentes em tribunal”. Como é fácil de ver esta norma possui um interesse residual, pois apenas afasta a sua aplicação “aos processos pendentes”, sem definir, pela positiva, a que situações jurídicas que não estejam ainda a ser discutidas em tribunal se aplica. Essa dimensão de exclusão ou negativa da disposição transitória foi já objecto de duas decisões do Tribunal Constitucional que nos Acórdãos nos. 153/2010 e 398/2011 se pronunciou no sentido da constitucionalidade da solução legal de não aplicação da Lei n.º 61/2008 aos processos já pendentes[5].
A questão que nos interessa é distinta e consiste em saber a que situações jurídicas, ainda não submetidas a decisão judicial, se aplica imediatamente a nova lei. A solução, face ao silencio da própria Lei n.º 61/2008, que, como vimos, não resolve essa questão no artigo 9.º, tem de se ir buscar à norma geral de aplicação das leis no tempo constante do artigo 12.º do Código Civil.
O princípio geral de aplicação das leis no tempo consagrado no artigo 12.º é o de que a lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. Todavia, quando a lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que ela “abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
O divórcio é uma das formas de extinção da relação jurídica do casamento. Ao alterar a regulamentação do divórcio e respectivas consequências o legislador dispõe directamente sobre o conteúdo da relação do casamento, abstraindo dos factos que lhe deram origem, isto é, regulando a extinção da relação de forma genérica e não definindo uma regra específica para um determinado facto causal em particular. Por conseguinte, não há como deixar de entender que em virtude do disposto no artigo 12.º do Código Civil o regime introduzido pela Lei n.º 61/2008 se aplica mesmo aos casamentos celebrados antes da sua data de entrada em vigor (01.12.2008) e que nessa data ainda subsistam[6], isto é, não tenham sido dissolvidos, como sucede no caso dos autos em que o divórcio apenas foi decretado (08.01.2010) já em plena vigência da referida lei[7] - destaques nossos.
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Concluindo-se pela aplicabilidade ao caso sub judice do artº 1791º do CC na redacção anterior à vigência da Lei nº 61/2008, impõe-se, agora, fazer a subsunção dos factos provados à previsão legal ínsita naquele preceito – que reza que só perde os benefícios ali previstos o cônjuge “declarado único ou principal culpado” do divórcio.

Vejamos os factos.

Com especial relevância na apreciação da situação em apreço, ficou provada nos autos a seguinte factualidade:
«6. O 1.º Réu E… e a 1.ª Ré D… contraíram casamento católico a 10 de Novembro de 1983, sem precedência de convenção antenupcial;
7. A 1.ª ré D… abandonou o lar conjugal constituído com o segundo Réu E… tendo ido coabitar com outro homem como se de casados se tratassem;
8. Por sentença de 08 de Março de 2006, a 1.ª Ré e o 2.º Réu divorciaram-se por mútuo consentimento;
9. A doação foi efectuada à 1.ª Ré D… pelo facto de ser nora e sobrinha dos Autores;
10. E na pressuposição de que o casamento com o 2.º Réu se mantivesse;
11. Pelo que com o divórcio desapareceu o interesse na permanência deste benefício recebido a título gratuito pela 1.ª Ré.».
Igualmente resulta assente dos autos que o divórcio referido no nº 8 dos factos provados fora instaurado pelo 2º Réu, E…, contra a sua mulher, a 1ª Ré, D… (nome que lhe adveio do casamento com o aludido 2º réu) como divórcio litigioso, apenas tendo, já em audiência de julgamento, sido convertido em divórcio por mútuo consentimento (cfr. doc. de fls. 25-27 – 2ª Juízo do Tribunal de Família do Porto, 3ª sec.) – os sublinhados são nossos.

A factualidade aqui provada foi alegada pelos autores na petição inicial.
Ou seja, alegaram, de forma clara e expressa, os AA que: a doação do imóvel objecto dos autos teve lugar em consideração do estado de casado da Ré D… com o filho e sobrinho dos Autores, o Réu E…; a Ré “abandonou o lar conjugal constituído com o segundo Réu E… tendo ido coabitar com outro homem como se de casados se tratassem; em consequência dessa ruptura conjugal, o 2º réu instaurou acção de divórcio litigioso e que foi transformado em divórcio por mútuo consentimento” (cfr. artº 20 da p.i.).
Assim, parece não haver dúvidas de que a causa de pedir do divórcio era, precisamente, o abandono do lar conjugal por banda da Ré aqui apelante (ut artº 1779º CC na redacção anterior à Lei 61/2008).
Trata-se de factualidade que a Ré D… - única interessada em contestá-la, obviamente – aceitou, pois não deduziu qualquer oposição.
Nessa senda, não vemos censura a fazer ao que os recorridos vertem na sua douta resposta (fls. 234-2235):
«(...). A confissão destes fatos, a sua aceitação pela Ré, quando se pedia a perda do beneficio da doação e a declaração da sua reversão na parte doada à 12 Ré, determina a conclusão de que a Ré, bem sabendo das circunstâncias em que o divórcio ocorreu, do facto de a doação apenas lhe ter sido feita pelo motivo de ser nora e sobrinha dos doadores e na pressuposição de que este casamento se mantivesse, apesar da perda deste património, aceitou que tivesse praticado tais factos e submeteu-se às respectivas consequências.

Pelo que, aceitou a culpa no divórcio, com a caracterização que os AA. alegaram nos artigos 19 e 20, aceitou que tinha desaparecido a causa donandi.

O facto de a Ré ter abandonado o lar conjugal e ter passado a coabitar com outro homem, caracterizam a indignidade da donatária, por virtude da sua culpabilidade e dos efeitos da sua conduta.
O adultério não se coaduna com a "moral, particularmente sensível no domínio do divórcio e dos direitos da família".
"A moral é elemento suprapositivo a impor-se dentro de um quadro de soluções, através de uma jurisprudência ética".

Pelo que, os doadores se encontram na contingência de os seus bens, doados à Ré enquanto nora e sobrinho, virem a pertencer "ao outro homem" com quem praticou o adultério em agravo ao seu filho e sobrinho.».
Os sublinhados são nossos.

Cremos, com efeito, que seria.... abusivo por banda da Ré D…, depois de o seu ex-cônjuge (Réu E…) lhe ter movido acção de divórcio litigioso, com fundamento na violação por ela dos deveres conjugais passível de a declarar o cônjuge culpado no divórcio; depois de ver este aceitar (certamente para não assistir ao triste espectáculo de ver a vida privada do casal escrutinada em audiência pública) pôr termo à contenda de forma amigável; depois de não questionar minimamente as imputações que lhe são feitas na petição inicial desta acção que (inequivocamente) consubstanciavam aquela culpa da Ré na produção do divórcio (ao abrigo da legislação anterior à Lei nº 61/2008, ut artigos 1671º e 1672º CC) e bem assim aceitando a alegação (aqui também provada) de que a doação em causa foi feita em consideração do seu estado de casada com o filho e sobrinho dos AA (artºs 16 a 24 pi), vir agora (só agora) escudar-se (para não dizer...esconder-se) no facto de o divórcio ter sido convertido de litigioso em mútuo consentimento, para, assim,.....evitar devolver o que bem sabe que teria de devolver por via duma mera declaração (formal) de culpa no divórcio (culpa essa, repete-se, que nos parece seria inevitável atentos os factos ora provados)!

Mesmo a entender-se que à Ré assistia o direito que se arroga, sempre se estaria, no nosso modesto ver, perante um claro abuso do direito (ut artº 334º CC), na vertente do venire contra factum proprium, na medida em que a Ré D…, demandada em processo de divórcio litigioso, por violação dos deveres conjugais, logrou ali conseguir que o Autor o convertesse em divórcio por mútuo consentimento, aceitou aqui como verdadeira a factualidade “injuriosa” que lhe vem imputada na petição inicial (integradora da sua culpa no divórcio), mas, apesar disso, vem negar a devolução do que bem sabe que recebeu apenas “em consideração do estado de casada” com o filho e sobrinho dos AA!

A pretensão da Ré parece-nos, como tal, que excede manifestamente os fins impostos pela boa fé (do Réu E…, obviamente).
Efectivamente, parece evidente que se o Réu E…, aquando do início da audiência de julgamento de 08.03.2006 (onde aceitou a conversão do pedido de divórcio litigioso em mútuo consentimento), tivesse imaginado, sequer, que a ré viria mais tarde invocar essa mesma conversão em mútuo para, por essa via, lograr inviabilizar a perda do benefício decorrente da doação em causa nos autos (perda essa que era inevitável, perante a factualidade alegada - e...ora provada, porque nem sequer contestada pela Ré!), obviamente que deixaria que os autos prosseguissem como litigiosos, mais não fosse para lograr obter uma declaração (formal) de culpa da Ré, culpa essa que......agora bem se patenteia e a cuja factualidade integrante a Ré não logrou, sequer, deduzir a mais pequena oposição!

«....O exercício abusivo do direito traduz-se no “comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica — por não contrariar a estrutura formal — definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde — e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto — materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[8].
O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.
O art. 334.º do CC funciona como uma válvula de segurança do sistema jurídico, como forma de travar certas actuações que apesar da aparência de licitude e de exercício de direito, traduzem uma não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e a negação de interesses sensíveis de outrem[9].
Tal instituto, bem como os princípios da boa fé e da lealdade negocial, são meios de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que, objectivamente, e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça, prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa.
Como se afirmou no acórdão do S.T.J. de 10 de Outubro de 1991[10], “Nos termos do artigo 334.º do Código Civil há abuso de direito e é portanto ilegítimo o seu exercício quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Agir de boa fé tanto no contexto deste artigo como no do artigo 762.º, n.º 2, é “agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correcção e probidade a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”.
Os bons costumes entendem-se por seu turno como um “conjunto de regras de convivência que num dado ambiente e em certo momento as pessoas honestas e correctas aceitam comummente contrários a laivos ou conotações, imoralidade ou indecoro social”.
(...).
... um dos princípios fundamentais do sistema jurídico é o princípio da confiança que procura proteger aquele que, de boa fé, justificadamente, desenvolve certa actividade ou omite determinado acto, por acreditar que se manterá a conduta da contraparte que esteve na base da sua própria actuação[11].»[12].

Dir-se-ia que a Ré/Apelante, tendo deixado passar o “perigo” da (sua) declaração de cônjuge principal culpado na acção de divórcio, assim se “libertando” das consequências que lhe pudessem advir da estatuição legal (do artº 1791º CC, na redacção então vigente), vem agora invocar essa mesma estatuição legal para se defender, alegando que a previsão normativa, afinal, ....não foi declarada na acção de divórcio, dessa forma logrando visar colher um benefício, ou libertar-se de um vínculo que lhe era indesejável (a reversão da doação do imóvel na parte que lhe foi doada, a favor dos AA).
Cremos que o Direito não cobre – pelo menos...não deve cobrir – estas atitudes.
A proibição do venire contra factum proprium cai no âmbito do abuso de direito através da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé. Situação que, como vimos, reputamos preenchida no caso sub judice.

É motivo para trazer aqui à colação as palavras dum (saudoso) nosso Professor da Universidade de Coimbra, de Direito Romano (SEBASTIÃO CRUZ): «O Direito é tão moral que deixa de ser jurídico se atentar abertamente contra a moral”.

É jurisprudência pacífica que o abuso de direito é de conhecimento oficioso por ser função do Tribunal determinar os limites do direito mesmo que as partes não o invoquem[13].

Atento o acabado de expor, cremos não ser despiciendo reiterar aqui e agora o que supra já ficou dito: que o critério escolhido para a aplicação da lei velha e da lei nova terá que respeitar o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante.
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Em suma, mesmo aplicando a redacção do artº 1791º do CC antes da vigência da Lei nº 61/2008, de 31.10, cremos que a pretensão da apelante não poderia vingar, quer porque a culpa no divórcio resulta da factualidade apurada, quer porque o meio jurídico que ora usa para evitar a perda do benefício obtido com a doação efectuada atendendo ao divorcio com o 2ª réu consubstancia um abuso do direito na modalidade supra explanada[14].

Perante o exposto, e embora com diferente fundamentação, é nosso entendimento que a sentença deve ser confirmada – assim claudicando as conclusões da alegação de recurso.
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SUMÁRIO:
● O regime da nova Lei nº 61/2008, de 31.10, designadamente o estatuído no artº 1791º/ do CC, aplica-se aos casamentos celebrados antes da data da sua entrada em vigor (01.12.2008), mas que nessa data ainda subsistam e já não àqueles que à data dessa vigência já tenham sido dissolvidos.
● O critério escolhido para a aplicação da lei velha e da lei nova deve respeitar o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante.
● O art. 334.º do CC funciona como uma válvula de segurança do sistema jurídico, como forma de travar certas actuações que apesar da aparência de licitude e de exercício de direito, traduzem uma não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e a negação de interesses sensíveis de outrem
● Feita uma doação de imóvel pelos pais a filho e nora pelo facto de estes terem esta qualidade e na pressuposição de que o casamento se mantivesse e demandada posteriormente acção de divórcio litigioso (convertido em mútuo consentimento) pelo filho donatário com fundamento na culpa do seu cônjuge (abandono do lar conjugal e coabitação com outro homem) na qual o casamento veio a ser dissolvido por decisão judicial proferida antes da vigência da Lei nº 61/2008, de 31.10, tendo sido instaurada – agora na vigência dessa lei 61/2008 – acção pelos doadores contra a donatária visando a perda do benefício por esta obtido com a doação, aí se alegando factualidade integrante da culpa da ré no seu aludido divórcio e sem que tenha sido deduzida contestação, não pode esta, depois de ter deixado passar o “perigo” da (sua) declaração de cônjuge principal culpado na acção de divórcio, assim se “libertando” das consequências que lhe pudessem advir da estatuição legal ínsita no artº 1791º CC, na redacção então vigente, vir agora invocar essa mesma estatuição legal para se defender, alegando que a previsão normativa, afinal, ....não foi declarada na acção de divórcio, dessa forma logrando visar colher um benefício, ou libertar-se de um vínculo que lhe era indesejável (a reversão da doação).
● Esta pretensão da Ré, para além de violar aquele princípio constitucional, excede manifestamente os fins impostos pela boa fé (dos doadores e do donatário, seu ex-cônjuge), consubstanciando abuso do direito, na vertente do venire contra factum proprium.

IV. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Porto, 2015-05-26
Fernando Baptista
Ataíde das Neves
Amaral Ferreira
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[1] Grupo Parlamentar do PS, Projecto de Lei n.º 509/X - Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio - Exposição de Motivos, 10 de Abril de 2008, p. 14.
[2] V. RAMIÃO, Tomé D’Almeida, O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Actual, Lisboa, Quid Júris - sociedade editora, 2009, p. 163.
[3] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110398.html. Note-se que se tratou de recurso para o Plenário do Tribunal nos termos do artigo 79º-D da LTC, por existência de dois Acórdão contraditórios anteriores (os Acórdãos nºs 407/2010 e 153/2010).
[4] 124/10.6TBOAZ.P1 (ARISTIDES ALMEIDA), disponível em www.dgsi.pt.
[5] Este último Acórdão foi proferido pelo Plenário do Tribunal na sequência de recurso interposto ao abrigo do artigo 79º-D da Lei do Tribunal Constitucional, por existir contradição entre o Acórdão nº 153/2010, antes referido, e o Acórdão n.º 407/2010, que, contrariamente àqueles, se tinha pronunciado no sentido da inconstitucionalidade da não aplicação da nova lei aos processos pendentes. Observando este entendimento do Tribunal Constitucional vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.05.2013 (Pereira da Silva) e do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.04.2013 (Teles Pereira), in www.dgsi.pt.
[6] Nesse sentido neste sentido, Tomé d’Almeida Ramião, in O Divórcio e Questões Conexas, 3.ª edição, pág. 174. No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25.10.2011 (Regina Rosa) numa situação que quanto a datas possui as características da que aqui nos ocupa (casamento anterior e divórcio posterior a 01.12.2008) sem, no entanto, abordar directamente a questão, fez-se aplicação da nova lei.
[7] Para a explicação e justificação desta solução veja-se Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1982, pág. 231 e seguintes.
[8] Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, p. 391.
[9] Cfr. Coutinho de Abreu, citado na sentença de 18 de Junho de 1985 do Juiz do 7.º Juízo Cível do Porto, in CJ, Ano X, T. 5, p. 247.
[10] In BMJ, n.º 412, p. 460.
[11] Cfr. Ac. RP de 18.1993, in CJ, Ano XVIII, T. 5, p. 219.
[12] In Contratos Privados, Das Noções à Prática judicial, FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA, vol. I, pp 54 ss (com mais desenvolvimentos sobre este instituto jurídico).
[13] Cfr. Ac. RP de 20.04.87, in CJ, Ano XII, T. 2, p. 241.
[14] Já agora, consigna-se que, consignando-se na escritura pública de doação em causa nos autos que os doadores “doam aos segundos outorgantes filhos e noras dos doadores C… e B… e sobrinhos da doadora L…, prédio acima referido”, trata-se de conteúdo bastante a constar da escritura, para efeitos do estatuído no artº 1791º CC.
Neste sentido, cfr. o Ac. do STJ de 15.10.1996, recurso nº 464/96, in Col. Jur., 1996, 3º, 55, que reza: “I - A doação feita pelos pais de um dos cônjuges “a seu filho e nora”, está abrangida, em caso de divórcio dos donatários, pelo disposto no artigo 1791.º n.º 1 do CC sobre benefícios perdidos pelo cônjuge único culpado ou principal culpado. (…)”.