Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0653974
Nº Convencional: JTRP00039524
Relator: ABÍLIO COSTA
Descritores: REGULAÇÃO DO PODER PATERNAL
ALIMENTOS
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP200610020653974
Data do Acordão: 10/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: LIVRO 273 - FLS. 153.
Área Temática: .
Sumário: O FGDAM é responsável pelo pagamento de alimentos devidos a menor se, no momento inicial da sua fixação, o Tribunal decide que dos progenitores não tem condições económicas para os prestar por, ao tempo, estar desempregado e sem rendimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Foi requerida no Tribunal de Família e Menores do Porto a regulação do poder paternal relativamente à menor B……….. .
Entretanto, foi aquela regulação alterada em conferência realizada no dia 12-1-05.
Em consequência, e no que respeita a alimentos, ficou estabelecido o seguinte: “não se fixa por ora qualquer prestação para a progenitora contribuir para o sustento da filha, uma vez que a mesma se encontra desempregada”.
Suscitou então o pai da menor, C……., à guarda de quem aquela se encontrava, a fixação de um montante mensal a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição da devedora.
Tal foi indeferido por despacho proferido em 24-2-06.
Escreveu-se aí: “...não se tendo fixado a prestação alimentar inexiste qualquer incumprimento da obrigação e, assim, não poderá o Tribunal atribuir prestação substitutiva através do FGA.
Com efeito, refere o art. 3º, nº1, al. a) do DL 164/99 de 13/5 que “o Fundo assegura o pagamento das prestações alimentares... quando: a) a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfaça as quantias em dívida...”
Nestes autos a requerida não se encontra judicialmente obrigada a prestar alimentos pelo que não se encontra em dívida qualquer quantia”.
Inconformado, o pai da menor interpôs recurso.
Conclui assim, entre o mais:
-a questão em análise encontra enquadramento na Lei nº75/98 de 19 de Novembro e no DL nº164/99 de 13 de Maio, diplomas que dão expressão ao princípio genérico contido nos art.s 63º, nº3, e 69º, nº2, da CRP, que comete ao Estado a protecção dos cidadãos no que toca à falta ou diminuição dos meios de subsistência assegurando, nomeadamente, especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal, estando em causa direitos fundamentais, inalienáveis e de personalidade relativos à vida, à subsistência das crianças;
-a decisão recorrida faz uma leitura objectiva do instituto, isolando-o do contexto normativo em que se insere e procede a uma interpretação meramente literal do disposto no art.1º da Lei nº75/98 de 19 de Novembro, entendendo que, sem que os progenitores sejam judicialmente obrigados a pagar alimentos e sem que haja incumprimento, não pode o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores ser condenado a pagar uma prestação a título de alimentos em substituição dos obrigados a essa prestação;
-subscrever tal entendimento seria o mesmo que aceitar que o legislador apenas se preocupou com as crianças cujos pais têm suficientes meios económicos para verem reconhecida a obrigação de pagar uma prestação de alimentos aos seus filhos;
-excluídas da protecção ficariam precisamente as crianças mais desprotegidas e mais carecidas de protecção social, que são aquelas cujos progenitores são tão pobres que nem mesmo num momento inicial puderam assumir a obrigação de pagamento de uma prestação de alimentos;
-tal solução violaria um dos princípios basilares de todo o nosso ordenamento, o princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.13º da CRP, de cuja formulação se retira, sob o nº2 do artigo, que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito... em razão de... situação económica, condição social...;
-e não encontraria o mínimo de adesão aos objectivos expressos no preâmbulo do DL nº164/99 de 13 de Maio;
-a decisão recorrida é inconstitucional, por violação dos art.s 13º, 63º e 69º da CRP;
-e viola o disposto nos art.s 1º e 2º, nº2, da Lei nº75/98 e 3º, nº3, e 5º do DL nº164/99 de 13 de Maio.
Houve contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Matéria de facto a ter em consideração:
-consta do relatório.
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Questão a decidir:
-verificação dos pressupostos que determinam a fixação de prestação alimentar pelo FGADM, uma vez que não foi fixada prestação alimentar a cargo da requerida.
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Relatámos, há dias, um acórdão- agravo nº4366/06- em que a questão a decidir consistia em saber a partir de que momento são devidas as prestações devidas pelo FGADM.
E escrevemos aí que: “estámos perante uma obrigação do requerido perante o menor, garantida pelo FGADM. Só assim se explica o direito de sub-rogação do Fundo perante todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações. Se fica sub-rogado, é porque não satisfaz uma obrigação própria, mas de outrem, do requerido”.
E, mais à frente: “no caso concreto, parece ter sido intenção do legislador acudir a uma situação de necessidade do menor, necessidade presente, decorrente do incumprimento do obrigado principal. Evitar que se repitam situações, que podem ser irremediáveis, de o menor não ter alimentos. Fazer com que, verificado o incumprimento do principal obrigado, o menor tenha assegurado o seu sustento. Não volte a ter fome, frio, etc. Precisamente porque quanto ao que se passou, já nada se pode fazer. À fome e ao frio de ontem já ninguém pode valer. Então, importa virarmo-nos para o presente e para o futuro”.
E concluímos: “em suma, o Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, não pretendeu garantir a totalidade da prestação do obrigado a alimentos, substituir-se-lhe completamente, mas apenas acudir a uma situação de necessidade do menor, garantir-lhe aquele mínimo necessário ao seu desenvolvimento como pessoa humana, direito fundamental com consagração constitucional”, reportando-nos ao art.69º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
Pensámos que destes excertos já se retira o nosso entendimento sobre estoutra concreta questão: assiste clara, manifesta, evidente razão ao recorrente.
Vejámos.
Na conferência oportunamente realizada, atenta a requerida alteração da regulação do poder paternal relativamente à menor B……., ficou clausulado em: “3) não se fixa por ora qualquer prestação para a progenitora contribuir para o sustento da filha, uma vez que a mesma se encontra desempregada”.
Entendeu-se, por isso, na decisão recorrida que a requerida não se encontra judicialmente obrigada a prestar alimentos, pelo que não se encontra preenchido o pressuposto previsto no art.3º, nº1, al. a), do DL nº164/99 de 13/5, uma vez que não há prestações em dívida.
Uma interpretação meramente literal daquela norma levava-nos, efectivamente, àquela conclusão.
Mas, como se sabe, em sede interpretativa da lei- art.9º do C.Civil- visa-se alcançar o espírito (pensamento) da lei através da sua letra. Ou seja, partindo da letra da lei, e tendo a mesma como limite, o que se pretende é encontrar o “pensamento legislativo”, o espírito, o sentido da norma- ver BAPTISTA MACHADO in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 175 e seg.s.
Ora, desde logo, dispõe o art.69º, nº1, da CRP que: “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”.
Visando consagrar aquele direito na lei ordinária- direito das crianças à protecção e ao seu desenvolvimento integral- foi publicada a Lei nº75/98 de 19 de Novembro, regulamentada pelo DL nº164/99 de 13 de Maio.
No preâmbulo daquele Decreto Lei escreveu-se: “ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado, as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.
E, mais à frente: “de entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável (sublinhado nosso) doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos de toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais”.
Assim, de facto, normalmente o que acontece é, fixada judicialmente a prestação de alimentos, o obrigado, pelas razões referidas no preâmbulo- desemprego, doença, etc.- deixar de cumprir. Paga algumas prestações e, numa fase posterior, entra em incumprimento por impossibilidade.
Mas aquela impossibilidade de cumprimento pode ocorrer logo no acto da fixação da prestação. Logo no início, no acto da fixação da prestação alimentar, o obrigado pode já estar desempregado, doente, etc..
Ora, é para nós absolutamente líquido que o legislador visou as duas situações, porque ambas merecem exactamente o mesmo tratamento: tanto merece protecção a criança que, depois de fixada a prestação alimentar, o respectivo obrigado entra em incumprimento por impossibilidade, como aquela em que, logo no acto da fixação da prestação, aquele já está impossibilitado de prestar alimentos. É exactamente a mesma situação. Apenas ocorre em momentos diferentes.
Mas se é exactamente a mesma situação, porque há-de merecer tratamento diferente?
Concluindo: quando, logo no acto da fixação da prestação de alimentos, esta não se fixa por impossibilidade de o obrigado os prestar, está preenchido o requisito previsto no art.3º, nº1, al. a), do DL nº164/99 de 13 de Maio.
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Diz-se na decisão recorrida que a requerida não se encontra judicialmente obrigada a prestar alimentos.
Em princípio, assim é. Na verdade, a mãe da menor não ficou vinculada ao pagamento de qualquer prestação. Por outro lado, dispõe o art.2013º, nº1, al. b), do C.Civil, que a obrigação de prestar alimentos cessa “quando aquele que os presta não possa continuar a prestá-los ou aquele que os recebe deixe de precisar deles”.
Pelo que já dissémos, parece-nos que este argumento é irrelevante. Entendemos, todavia, que mesmo que se pretenda dar-lhe relevância, esta interpretação literal do art.3º, nº1, al. a), do DL nº164/99 de 13 de Maio não colhe.
Na verdade, para a obrigação de alimentos a cargo da requerida cessar, nos termos do disposto no art.2013º, nº1, al. b), do C.Civil, era necessária uma decisão judicial nesse sentido. Decisão que não existe.
Com efeito, a sentença proferida na conferência de alteração da regulação do poder paternal, que homologou o acordo dos pais, não decidiu nesse sentido. Antes, homologou o acordo dos pais no sentido de que “não se fixa por ora (sublinhado nosso), qualquer prestação para a progenitora contribuir para o sustento da filha, uma vez que a mesma se encontra desempregada”.
Pelo que a obrigação de alimentos a cargo da requerida não cessou. Antes, está judicialmente reconhecida já que ficou estipulado, o que foi homologado, que apenas por ora, enquanto a requerida se encontrar desempregada, não presta alimentos. Ou seja, está dispensada de os prestar, enquanto, e só enquanto, aquela impossibilidade se mantiver. Não lhe é exigível o cumprimento da obrigação de alimentos durante aquele período, por estar desempregada- precisamente uma das situações referidas no preâmbulo do DL nº164/99 de 13 de Maio e, daí, o nosso sublinhado supra- e enquanto tal situação se mantiver. Ora, se apenas está dispensada de prestar alimentos enquanto estiver desempregada, é porque a obrigação existe. Doutro modo não precisava de ser dispensada.
Aliás, atente-se que, a entender-se de outro modo, estava na disponibilidade dos pais obrigar o FGADM a intervir. Bastava-lhes acordar num montante qualquer, nem que fosse simbólico, sabendo já de antemão que não iria ser cumprido. E então esta questão já nem se levantava. Não pode ser. Neste caso, no fundo, há uma situação de incumprimento por parte da mãe da menor, judicialmente obrigada a prestá-los, e que não o faz por impossibilidade. Impossibilidade que, por se ter verificado logo no acto da fixação da respectiva prestação, levou a que nem sequer ficasse estabelecido qualquer montante.
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Do que fica dito resulta claro, para nós, que a situação em apreço cabe na letra e no espírito da lei.
Mas para quem tenha relutância em ver assim a situação parece-nos que, ao menos, terá de chegar lá pela via da interpretação extensiva.
Efectivamente, se não se vir esta situação na letra da lei, é porque o legislador disse menos do que aquilo que queria, que estava no seu espírito. Porque no espírito do legislador estava, de certeza absoluta. Basta ler o preâmbulo do DL nº164/99 de 13 de Maio, de que acima transcrevemos alguns excertos.
Até porque, a dar-se outra interpretação aos diplomas legais em causa- Lei nº75/98 de 19 de Novembro e DL nº164/99 de 13 de Maio- os mesmos enfermavam de inconstitucionalidade, por violação dos art.s 13º e 69º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, o Estado não prestava protecção a crianças carenciadas, quando a prestava a outras, em idêntica situação e, eventualmente, até menos carenciadas.
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Escreveu-se nas contra-alegações o seguinte: “a posição defendida pelo agravante levantaria problemas insolúveis no que concerne à possibilidade de reembolso por parte do Estado... Se à progenitora não foi fixada uma prestação alimentícia (por falta de condições económicas) não pode defender-se uma situação de dívida, ficando, assim, precludida a possibilidade de sub-rogação por parte do Fundo”.
É discutível, antes de mais, que seja assim.
De qualquer modo, no caso em apreço, o que importa saber é se se verificam, ou não, os factos constitutivos do direito invocado. Se assiste ao requerente o direito a demandar o FGADM. E a questão do reembolso nada tem a ver com aquele direito. Não é facto constitutivo do mesmo. É, antes, uma consequência do seu exercício. Pelo que nada nos esclarece, ou adianta, sobre a questão.
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Em conclusão:
- a situação em apreço cabe na letra e no espírito da lei;
- a não se entender assim, a situação sempre seria abrangida pela lei por via da interpretação extensiva;
- doutro modo, aquela lei violava, sobretudo, o princípio constitucional da igualdade- art.13º da CRP.
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Acorda-se, em face do exposto, e concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos.
Sem custas.

Porto, 02 de Outubro de 2006
Abílio Sá Gonçalves Costa
Baltazar Marques Peixoto
António Augusto Pinto dos Santos Carvalho