Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
448/12.8GEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: QUEIXA
OBJECTO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RP20150923448/12.8GEGDM.P1
Data do Acordão: 09/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para que o MP dê início à investigação não é necessário que a queixa descreva, com todo o pormenor, a forma como decorreram os factos e refira que o denunciado agiu com intenção de os praticar (elementos objetivos e subjetivos do crime): basta que o denunciante participe o evento naturalístico e revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes.
II – Entre “murros” e “empurrão” não se verifica uma diferença substancial quanto ao modo de execução do crime e a substituição de uma expressão por outra não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 448/12.8GEGDM.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Encerrado o Inquérito que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Gondomar com o nº 448/12.8GEGDM, o Ministério Público deduziu acusação contra B…, C… e D…, imputando a cada um dos arguidos a prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. no artº 143º nº 1 do Cód. Penal.
O assistente C… deduziu acusação particular contra B…, imputando-lhe a prática de um crime de dano p. e p. no artº 212º nºs. 1 e 4 e 207º nº 1 al. a) do Cód. Penal, acusação essa que não foi acompanhada pelo Ministério Público.

O arguido B… veio requerer a abertura de instrução, pugnando pela sua não pronúncia.
Realizadas as diligências instrutórias requeridas, após debate instrutório, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia.
Inconformado com a decisão instrutória, dela veio o assistente C… interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O arguido deveria ter sido pronunciado;
2. O arguido não trouxe aos autos nenhuma prova que alterasse os indícios recolhidos no inquérito;
3. Aliás nenhuma prova se fez além da que constava nos autos;
4. Nem a mesma foi posta em causa por qualquer novo elemento de prova feito em fase de instrução;
5. Nenhuma das diligências pedidas pelo arguido teve qualquer resultado que pusesse em causa ou inferisse o que já tinha sido apurado em sede de inquérito;
6. A queixa apresentada pelo assistente C… e a acusação particular relativamente ao crime de dano p. e p. pelo artº 212º do CP, contêm todos os elementos de facto e de direito, para que tivesse sido feita a pronúncia;
7. Pois em si contêm todos os pressupostos exigidos pelos artºs. 283º e 285º do CPP;
8. A prova recolhida no inquérito não foi posta em causa por nada na fase de instrução;
9. Pelo que o arguido tinha de ter sido pronunciado pelo crime de dano;
10. O mesmo se diga quanto ao crime de ofensas corporais simples p. e p. pelo artº 143º do C.P.;
11. O arguido não trouxe à instrução nenhuma nova prova que infirmasse os indícios já recolhidos em fase de inquérito, que aliás não foram postos em causa;
12. Tanto a queixa, como a acusação particular, como a acusação pública, contêm todos os elementos para que devesse ter sido feita a pronúncia;
13. Ao contrário do que é dito pelo TIC, o facto de os crimes imputados ao arguido dependerem de queixa, não delimita em toda a sua extensão a acusação que venha a ser proferida, muito menos no sentido pugnado pelo TIC, absolutamente restritiva;
14. As queixas feitas através de auto de denúncia normalmente não são feitas por quem tenha conhecimentos técnicos e jurídicos; 15. Pelo que apenas descrevem sucintamente os factos;
16. Tanto a queixa apresentada pelo assistente, como depois a acusação que veio a apresentar, contêm todos os elementos básicos exigidos para que seja feita uma acusação nos termos exigidos pelos artºs. 283º e 285º do CPP;
17. Para que esteja preenchido o tipo legal de crime de ofensas corporais simples, não é preciso que haja murros ou pontapés, um empurrão com intenção de derrubar alguém é mais do que suficiente;
18. Consta da queixa e da acusação particular e pública que as lesões que o assistente sofreu foram consequência do empurrão violento que o arguido deu ao assistente e que o desequilibrou e que levou a partir a telha e enfiar a perna o que lhe provocou as lesões constantes dos relatórios periciais;
19. Consta da queixa e das acusações a intenção do arguido em provocar ofender fisicamente o assistente, ao dar-lhe o empurrão violento;
20. Na sequência da discussão que estavam a ter e de ter sido chamado à atenção por estar a rasgar a tela de impermeabilização, no terreno do assistente;
21. Estando nos planos que estavam o arguido configurou que ao empurrar o assistente da forma que o fez lhe provocaria a queda e consequentemente danos;
22. Pelo que agiu com intenção de o derrubar;
23. Pelo que sempre terá de ter configurado que poderia provocar-lhe danos físicos;
24. Desta forma nem a queixa nem as acusações particular e pública sofrem dos vícios referidos pelo TIC;
25. Pelo que, não tendo sido trazido aos autos na instrução, nada que abalasse ou contradissesse o que tinha sido recolhido em fase de inquérito, tinha de ter sido proferido despacho de pronúncia;
26. É manifesto de tudo o que consta dos autos que o arguido tinha perfeita consciência de que os factos que praticava configuravam um ilícito, fosse ele criminal ou cível;
27. A verdade é que os praticou, e não é argumento dizer que desconhecia que era um crime;
28. Além do mais a douta decisão instrutória não está devidamente fundamentada, pois não basta dizer que o ofendido não disse que tinha sido agredido com murros, mas apenas empurrado e que por isso sofreu uma lesão na perna;
29. Tem de se ver todo o processo e não apenas a queixa, tudo o que se apurou em fase de inquérito;
30. O TIC passou tábua rasa em todo o inquérito, e na prova testemunhal e pericial que consta dos autos;
31. Que nem sequer analisou, nem comparou com o que o arguido trouxe de novo que foi nada;
32. A queixa e as acusações e a prova recolhida no inquérito, e que não foi posta em causa na instrução são mais do que suficientes para que o arguido tivesse sido pronunciado, como deve ser;
33. Por falta de fundamento legal e por estar em contradição com o que consta dos autos, nomeadamente a prova produzida em sede de inquérito que não foi posta em causa na instrução;
34. Desta forma a decisão de não pronúncia está em contradição com a prova dos autos;
35. Assim terá de ser a mesma revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido pelos crimes de danos p. e p. pelo artº 212º e de ofensas corporais simples p. e p. pelo artº 143º ambos do CP.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que deverá ser-lhe negado provimento.
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O arguido B… pugnou igualmente pela manutenção da decisão recorrida.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, concluindo que:
- no que tange à acusação particular a decisão instrutória de não pronúncia é inatacável e deverá ser mantida;
- No que concerne à acusação pública, deverá ser ordenado o reenvio do processo para cumprimento do artº 303º nº 1 do Código de Processo Penal – a agressão traduziu-se não num “murro”, como se pretende na acusação, mas sim num “empurrão que provocou o desequilíbrio do ofendido e o fez partir uma telha com a qual se feriu no pé”, como resulta sobejamente dos autos – devendo, a final, o arguido B… ser pronunciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física na pessoa do assistente C….
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., apenas o arguido B… veio responder nos termos constantes de fls. 435 a 437, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A decisão instrutória recorrida é do seguinte teor: [transcrição]
«Não há nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Não se conformando com as acusações contra si deduzidas, vem o arguido B…, requerer a abertura da instrução, pugnando pela não pronúncia dos crimes de que se encontra acusado de dano, pela acusação particular deduzida a fls. 255-259 e de ofensa à integridade física simples pela acusação deduzida pelo MºPº a fls. 263-266.
Para que um agente possa ser penalmente responsabilizado tem de praticar um ato típico, ilícito, culposo e punível. Ou seja, tendo liberdade para se determinar de acordo com o direito não o faz e, sem causa justificativa, adota uma conduta que preenche objetiva e subjetivamente os elementos de um tipo legal de crime, verificando-se as respetivas condições de punibilidade.
Como se referiu, encontram-se o arguido B… acusado por um crime de dano, pela acusação particular deduzida a fls. 255-259 e de ofensa à integridade física simples pela acusação deduzida pelo Mº Pº a fls. 263-266.
Quer o crime de dano, quer o crime de ofensa à integridade física imputados depende de queixa, nº 3 do artº 212º e nº 2 do artº 143º, ambos do C.P.
E qual foi a queixa apresentada?

o denunciado avançou a vedação e rasgou o plástico de isolamento, quando o sr. C… o confrontou para não rasgar mais o plástico, sendo empurrado tendo sofrido uma lesão na perna esquerda”, fls. 4 e § primeiro, penúltimo e último de fls. 19 dos autos.
Como, aliás, consta da sua acusação particular, fls. 256, itens 7 a 13.
Ora, considerando todo o exposto, não pode deixar de se concluir que não existem nos autos indícios suficientes que possam culpabilizar o arguido pelos respetivos crimes, porquanto não se consubstanciam factos demonstrativos do elemento subjetivo de qualquer dos crimes, assente que: “A queixa delimita o procedimento criminal, quer relativamente aos factos, quer relativamente à autoria na mesma indicada, não cobrindo as alterações eventualmente ocorridas relativamente a esta” – Ac. RP de 28.10.2009, proc. 3485/07.0TAVNG.
Afigura-se-nos assim que os factos descritos, embora denunciem um acontecimento, não integram a prática de um crime de dano e ofensa à integridade física.
Como melhor se argumenta no Ac. Rel. Porto de 06-06-2012, proc. 414/09.0PAMAI, e em que é relator Dr. Melo Lima:
“II – Para se afirmar o elemento inteletual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha atuado com consciência da ilicitude.
III – A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objeto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objeto do processo”.
O que não se alcança do objeto do processo, tal como definido na queixa e na acusação particular.
Em parte alguma o ofendido C… imputa ou descreve factos de que o arguido B… lhe tenha desferido murros, de que tenha sido por ele agredido com murros, ou de que tenha sofrido lesões causados por murros desferidos pelo arguido B…; apenas que o arguido B… rasgou o plástico de isolamento e, quando confrontado para não rasgar mais o plástico, o empurrou, tendo sofrido uma lesão na perna esquerda.
Consequentemente, por todo o exposto, não pronuncio o arguido B…, pelos crimes de Ofensa à Integridade Física e de dano de que vinha acusado, ordenando nessa parte o arquivamento dos autos.
Fixa-se em (1) uma UC a taxa de justiça devida pela realização da instrução.
Remessa dos autos a julgamento quanto aos arguidos C… e D…, acusados, pela acusação pública de folhas 263-266, pelo crime de ofensa à integridade física simples.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
De acordo com as conclusões das motivações formuladas pelo recorrente a questão que importa apreciar consiste em saber se a queixa e subsequentes acusações pública e particular contêm todos os elementos objetivos e subjetivos para que tivesse sido proferido despacho de pronúncia do arguido B… pela prática de um crime de dano p. e p. no artº 212º e de um crime de ofensa à integridade física p. e p. no artº 143º ambos do Cód. Penal.
Na decisão impugnada entendeu-se não pronunciar o arguido por “não se alcançar do objeto do processo, tal como definido na queixa e na acusação particular” o elemento subjetivo de qualquer dos crimes imputados ao arguido.
Para o que releva estabelece o art. 49.º do C.P.P. no seu n.º 1 que "Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo", acrescentando o seu n.º 2 que "Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele".
A queixa caracteriza-se e consiste numa manifestação de vontade de perseguição criminal, sendo pois condição objetiva de procedibilidade para os crimes de natureza semi-pública e particular.
Segundo Figueiredo Dias[3] a “queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (…)”. E acrescenta o mesmo autos a fls. 675 “No que toca à forma da queixa, tanto o CP como o CPP são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto … Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”.
Por outro lado, como vem sendo unanimemente entendido “o conhecimento do facto e dos seus autores, referido no artº 115º do C.P., é, manifestamente, um simples conhecimento naturalístico, e não judicial, pois estas disposições legais reportam-se a um momento em que não existe ainda ação penal pendente”[4].
Por isso é que a jurisprudência afirma que o que releva no exercício do direito de queixa, para que o Ministério Público instaure o respetivo inquérito e exerça a ação penal, no caso dos crimes semi-públicos, é o facto suscetível de integrar um crime, sendo este naturalístico, e não judicial[5].
Assim, no que ao caso em apreço respeita, para que o Mº Pº exercesse a ação penal, bastaria que o ofendido C… lhe desse conhecimento do facto naturalístico da “agressão” de que fora vítima, bem como da identidade do seu autor, manifestando a vontade de contra este ser instaurado o competente procedimento criminal.
É óbvio de que, para se desse início à investigação, não necessitava o queixoso de descrever com todo o pormenor a forma como decorreu a agressão ou o(s) instrumento(s) utilizado na sua concretização. Assim como é dispensável saber se o denunciado agrediu com intenção de ofender o corpo e a saúde ou, antes, se apenas se conformou com esse resultado. Tudo isso deverá ser devidamente investigado pelo Mº Público com vista à prolação de acusação ou de arquivamento do inquérito.
Bastava, como se disse, que o denunciante, ora recorrente, C…, participasse ao Mº Pº o evento naturalístico da agressão, sendo despiciendo que imputasse ao denunciado uma atuação dolosa ou, meramente, negligente. Principalmente quando estamos perante um ilícito típico que tanto pode ser punido a título de dolo como na forma negligente.
É por isso errado, salvo o devido respeito p.m.o., que se tente descortinar na “queixa” o elemento subjetivo da infração.
Os elementos típicos da infração – objetivos e subjetivos - têm, inquestionavelmente, de constar da acusação pública ou particular (ou ainda do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, quando o Mº Pº não deduz acusação), na medida em que é a acusação que delimita o objeto do processo é no âmbito desse objeto assim delimitado que há-de situar-se a eventual pronúncia (da mesma forma que, na fase do julgamento, a sentença há-de situar-se no âmbito do objeto delimitado pela acusação, ou pela pronúncia, se a houver). Estamos perante uma exigência do princípio da vinculação temática, princípio que é corolário do princípio acusatório, assim como das garantias de defesa do arguido (este, quer na fase da instrução, quer na fase do julgamento, tem de saber quais os factos e crimes que lhe são imputados na acusação, para que deles se possa defender, e não seja surpreendido com alguma imputação de factos ou crimes só na pronúncia ou só na sentença, sem conhecimento prévio da mesma).
Por isso, é apenas sobre a acusação (ou sobre o RAI formulado pelo assistente, na ausência daquela) que deverá recair a apreciação crítica do juiz de instrução, no momento de proferir a decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia.
No caso em apreço, o Sr. Juiz de Instrução só deveria ter reportado o seu juízo crítico à acusação pública quanto ao crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no artº 143º nº 1 do Cód. Penal, e à acusação particular quanto ao crime de dano p. e p. no artº 212º nº 1 do Cód. Penal, crime este que, no caso concreto, revesta natureza particular – artºs 212º nº 4 e 207º al. a) do Cód. Penal, em virtude de ofendido e arguido serem afins no 2º grau da linha colateral.

Aproveitamos aqui a oportunidade para realçar um facto sobre o qual o Mº Pº se deveria ter pronunciado e não o fez. O assistente C…, notificado nos termos do artº 285º nº 1 do C.P.P., deduziu acusação contra o arguido B… imputando-lhe não só a prática do crime particular de dano (para o qual tinha legitimidade), como também pela prática do crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no artº 143º do Cód. Penal.
Ora, tendo o crime de ofensa à integridade física simples natureza semi-pública, ao assistente só seria permitido, no prazo de dez dias após a notificação da acusação pública deduzida por este crime, acompanhar a acusação pública ou deduzir acusação pelos factos acusados pelo Mº Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles – artº 284º do C.P.P.
Ou seja, relativamente aos crimes semi-públicos o assistente não tem legitimidade para autonomamente deduzir acusação, devendo subordinar a sua atuação processual à acusação do Mº Público. E, se não for deduzida acusação pública, restar-lhe-á a possibilidade de requerer a abertura de instrução. Jamais se poderá antecipar ao Mº Pº e deduzir autonomamente acusação por crimes semi-públicos.
E se o fizer, como no caso sub judice, a acusação particular considerar-se-á como não escrita nessa parte.

Vejamos, então se, contrariamente ao referido na decisão instrutória, as acusações – pública e particular (esta apenas quanto ao crime de dano) – contêm todos os elementos típicos de cada uma das infrações imputadas ao arguido B…, em especial o respetivo elemento subjetivo.
Analisada a acusação particular deduzida pelo assistente a fls. 255 a 257, no que ao crime de dano importa, verificamos que a mesma contém os elementos objetivos do crime (pese embora as deficiências apontadas pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer de fls. 422 a 431), sendo porém omissa quanto ao respetivo elemento subjetivo do tipo.
Relevante para o crime em apreço é o dolo, uma vez que o crime de dano de dano só é punível a título de dolo. Consequentemente, na acusação terão de estar descritos os factos constitutivos do dolo.
Para que uma atuação seja dolosa, é forçoso que nela se revelem os seus momentos ou elementos inteletual, volitivo e emocional
O elemento inteletual ou cognitivo, como o próprio nome indica, exige “antes de tudo o conhecimento (a previsão ou a representação) da totalidade dos elementos constitutivos do respetivo tipo de ilícito objetivo, da factualidade típica”[6]. É necessário que, desde logo ― e aqui se manifesta o elemento inteletual ― que “o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência (consciência “psicológica” ou consciência “intencional”, note-se bem) das circunstâncias do facto (e não de facto, atente-se, porque tanto podem ser «de facto» como «de direito») que preenche um tipo de ilícito objetivo”. Por seu turno, com o elemento volitivo quer-se significar que o dolo não se basta com o conhecimento dos elementos da factualidade típica. Exige-se ainda “uma vontade dirigida à sua realização”[7].
Por fim, a acrescer a estes, a atuação dolosa exige ainda que o agente revele no facto uma “posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal”[8], o que só pode suceder se conhecer, tiver consciência do carácter ilícito (e criminalmente punível) da sua conduta.
Faltando qualquer destes elementos ou momentos, não pode ser a conduta imputada ao agente a título de dolo.
No caso em apreço, é manifesta a omissão na acusação particular deduzida a fls. 255 a 257 do elemento subjetivo do ilícito típico de dano. Com efeito, a única alusão ao elemento subjetivo feita pelo assistente a fls. 257 respeita, inequivocamente, apenas ao crime de ofensa à integridade física que, como se disse supra, se tem de considerar como não escrita nessa parte. O assistente refere “Com todo o descrito se depreende que o arguido ao atuar desta forma, fê-lo de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de atingir o Assistente no seu corpo e saúde, o que conseguiu”.
Nada se alega quanto à consciência e vontade do arguido em danificar a tela de isolamento propriedade do assistente.
Ora, de acordo com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 1/2015 de 20.11.2014[9] “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artº. 358.º do CPP.”
Não constando da acusação a indicação da tipificação subjetiva, não é possível ao juiz, seja ele o do julgamento ou o juiz de instrução, suprir essa omissão com a indicação, ainda que pela fórmula tabelar, da motivação subjetiva do agente, pois tal matéria, mais do que uma alteração substancial dos factos, que lhe está vedado operar, constitui a transformação de uma conduta objetiva sem cariz criminal, numa conduta perseguida criminalmente.
Na verdade, e colocado o assento tónico nesta realidade, não deixa de ser, claramente e sem dúvidas, mais do que uma mera alteração substancial dos factos a inserção no despacho de pronúncia da tipicidade subjetiva do agente, omitida na acusação particular, o que feriria de nulidade esse mesmo despacho, tal como se comina no artº 309º nº 1 do CPP.
A esse propósito é suficientemente esclarecedor o acórdão de uniformização que estamos a seguir, referindo o seguinte: “Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objeto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos. Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos”.
Sendo a acusação particular omissa quanto ao elemento subjetivo do crime de dano, impunha-se quanto a este ilícito a decisão instrutória de não pronúncia do arguido B…, pelo que improcede nessa parte o recurso interposto.

Quanto ao crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no artº 143º do Cód. Penal imputado ao arguido B… na acusação pública de fls. 263 a 265:
É evidente a falta de razão do Sr. Juiz de Instrução quando alude à ausência de factos demonstrativos do elemento subjetivo do crime, já que na parte final da acusação se refere: “O arguido B… agiu com o propósito de ofender o corpo e a saúde do arguido C…, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
Contudo, da acusação pública deduzida, no que respeita à factualidade objetiva da conduta, refere-se que os arguidos C… e B… começaram a discutir e “a dada altura ambos os arguidos começaram a agredir-se, reciprocamente com murros, tendo em consequência, o arguido C… caído no telhado”.
Por outro lado, no último § de fls. 264 fez-se constar: “Em consequência das agressões de que foi vítima o arguido C… sofreu no membro inferior esquerdo: cicatriz arciforme de concavidade superior, de cor arroxeada, medindo 12 cm de comprimento total, com depressão ligeira na sua região mais posterior e com referência a dor ao toque desta mesma região localizada na transição do terço médio para o terço inferior da face póstero-lateral da perna; essas lesões foram causa, direta e necessária, de 33 dias de doença sem afetação da capacidade para o trabalho geral, mas com afetação da capacidade para o trabalho profissional”.
Ora, da análise da prova produzida em inquérito, em especial das declarações do assistente C… (fls. 19 – “o denunciado estava bastante exaltado e ao ver a aproximação do denunciante empurrou-o com violência fazendo com que este se desequilibrasse; como estava em cima do telheiro e não tinha onde se segurar, ao desequilíbrio provocado pelo empurrão do denunciado, o aqui ofendido, colocou o pé numa telha, que se partiu, ficando o denunciante com o pé preso; a telha ao partir provocou-lhe um corte na zona do gémeo esquerdo, o qual de imediato começou a sangrar em abundância”), bem como do depoimento das testemunhas D… (fls. 25 – “o denunciado ao ser abordado pelo denunciante, de imediato se virou para ele e empurrou o denunciante provocando-lhe um desequilíbrio; ao desequilibrar-se, o denunciante partiu com o pé uma telha, ferindo-se”) e E… (fls. 29 – “o denunciado de imediato se virou agressivamente para o denunciante e empurrou-o, fazendo com que o pai da aqui depoente perdesse o equilíbrio e caísse; ao cair, partiu com o pé uma telha, ficando com o pé preso entre as telhas do telheiro, ferindo-se e começado de imediato a sangrar em abundância”) resulta que a agressão perpetrada pelo arguido B… ao assistente C… não consistiu em murros, mas sim num empurrão violento que provocou o seu desequilíbrio e consequente queda no telhado, onde se veio a ferir num pé.
De facto, se um “murro” desferido com as mãos não é suscetível de provocar lesões no membro inferior, já se compreende que um “empurrão” com consequente queda possa provocar lesões naquela zona do corpo.
Ou seja, onde o Mº Público descreve a atuação do arguido B… como “murros” desferidos contra o assistente C…, a prova produzida na fase de inquérito – e que não sofreu qualquer alteração na fase de instrução – revela-nos que o assistente foi empurrado pelo arguido, o que provocou o seu desequilíbrio e consequente queda no telheiro.
É certo que quem dá um empurrão no corpo de outrem não tem de admitir, necessariamente, que a vítima irá cair e ferir-se num pé, com as sequelas que se encontram descritas na acusação. Contudo, dúvidas não subsistem de que não fora o empurrão, que originou o desequilíbrio do assistente, e este não teria sofrido as lesões que se vieram a verificar. Existe, assim, nexo de causalidade entre a conduta do arguido B… e as lesões sofridas pelo assistente.
Conclui-se assim que entre “murros” e “empurrão” não se verifica diferença substancial quanto ao modo de execução do crime e que a substituição de uma expressão por outra não constitui alteração substancial dos factos imputados ao arguido B….
Será, assim, possível ao juiz de instrução proceder à referida alteração?
No nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objeto do processo; é ela que define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias, nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objeto do processo penal (mesmo quando o objeto não tenha sido conhecido na sua totalidade, dever considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo).
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantidas de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objeto do processo, uma vez definido este pela acusação.
Ao vedar, em regra, os poderes de cognição do tribunal a outros factos, que não os contidos na acusação, garante-se ao arguido que só deles se terá de defender e que apenas por estes poderá ser julgado. A finalidade visada é a proteção do arguido, assegurando-lhe o direito de não se deparar com surpresas relativas à imputação de factos com que não contava e não podia contar. A defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objeto o conjunto de factos imputados na acusação.
Pretendendo conciliar a celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos legais do princípio do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido, o processo penal admite, não obstante, a condenação por factos novos, ou seja, que traduzam alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos definidos nos artigos 358.º e 359.º do CPP.
Em contraposição à “alteração substancial dos factos”, ou seja, «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis»[10], existe alteração simples ou não substancial sempre que se não verifique uma alteração do objeto do processo. Para além dos factos constantes da acusação (os quais constituem o objeto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjetivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.. Estes factos novos fazem parte do chamado “objeto do processo em sentido amplo”. Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objeto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º, n.º 1, do CPP.
Também na fase de instrução, se resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, a lei permite que o juiz de instrução comunique a alteração ao defensor, interrogue o arguido sobre ela, concedendo-lhe um prazo para a preparação da defesa.
No caso em apreço, o concreto quadro com que nos deparamos não constitui manifestamente uma situação de alteração substancial dos factos, pela clara e simples razão de o novo facto (diferente modo de execução da agressão física) não ter como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso.
Segundo a posição que é unânime na nossa doutrina, a expressão “mesmo crime” não deve ser interpretado, no discurso constitucional, no seu estrito sentido técnico-jurídico, «mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime»[11].
Colhendo de novo os valiosos contributos de Frederico Isasca, o processo penal «só pode ser (…) o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário de vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível[12] .
Sobre a temática em análise, no domínio do Código de Processo Penal, acentua Cavaleiro de Ferreira, na parte que no presente contexto temos como relevante: «O conceito de identidade do facto irá buscar-se … ao direito material; a identidade do facto tem de apreciar-se naturalisticamente, como facto concreto, real».
Revertendo ao caso dos autos, perante os elementos conhecidos, existe identidade entre os factos constante da acusação pública e aqueloutro decorrente da prova produzida no inquérito. Efetivamente, o libelo acusatório e a prova pessoal acima transcrita narram o mesmo recorte histórico, o mesmo “pedaço de vida”, numa unidade de sentido. Ou seja, uma e outra fase processual reportam-se ao imputado crime de ofensa à integridade física simples.
Considerando que, relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples imputado ao arguido B… na acusação deduzida pelo Mº Público, se mostra devidamente alegado o elemento subjetivo do ilícito e que da prova produzida na fase de inquérito (e não contrariada na instrução) resulta ter o arguido praticado os factos que lhe são imputados, com a alteração acima referida, importa dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão instrutória proferida, que deverá ser substituída por outra que, sem prejuízo do disposto no artº 307º nº 4 do C.P.P., pronuncie o arguido pelo referido crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no artº 143º do Cód. Penal, após se dar cumprimento ao disposto no artº 303º nº 1 do Cód. Proc. Penal, a fim de se alterar o § 5º da acusação pública, dela passando a constar, relativamente ao arguido B… que este “empurrou o assistente C…, provocando o seu desequilíbrio e consequente queda, fazendo-o partir uma telha, com a qual se feriu no pé”.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo assistente C… e, em consequência, revogam a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, sem prejuízo do disposto no artº 307º nº 4 do C.P.P., pronuncie o arguido B… pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. no artº 143º do Cód. Penal, após ser dado cumprimento ao disposto no artº 303º nº 1 do C.P.P., nos termos supra referidos.
Sem tributação.
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Porto, 23 de Setembro de 2015
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 665.
[4] Cfr. Maia Gonçalves in Código Penal Português, anotado e comentado, 13ª ed., pág. 391.
[5] Cfr., neste sentido, Ac. Rel. Porto de 07.06.2000, Proc. nº 40233, Des. Conceição Gomes e Ac. Rel. Guimarães de 25.10.2004, Proc. nº 1679/04, Dês. Tomé Branco, disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal: Doutrina Geral do Crime (Lições ao 3.º ano da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), com a colaboração de Nuno Brandão, edição policopiada, 2001, pág. 91.
[7] Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, pág. 366.
[8] Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal …, pág. 88.
[9] Publicado no DR, I Série, de 27.01.2015.
[10] Cfr. artº 1º al. f) do C.P.P.
[11] Cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 1992, pág. 221, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira.
[12] Ob. cit., págs. 242 e 229.