Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0416330
Nº Convencional: JTRP00037639
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Nº do Documento: RP200501260416330
Data do Acordão: 01/26/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: Na vigência da redacção introduzida pela Lei n.65/98, de 2 de Setembro, o crime de maus-tratos a cônjuge previsto no artigo 152, n.2 do Código Penal permitia a desistência de queixa a todo o tempo, mesmo naqueles casos em que o Ministério Público, ponderado o interesse da vítima, tivesse dado início ao procedimento criminal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. ../00. -ª Secção do -º Juízo Criminal do….., foi proferida decisão que homologou a desistência de queixa apresentada pela ofendida e declarou extinto o procedimento criminal contra o arguido B….. que havia sido acusado da autoria de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo art. 152 nºs 1 al. a) e 2 do Cód. Penal, cometido na vigência da redacção deste artigo introduzida pela Lei 65/98 de 2-9.
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O MP interpôs recurso desta decisão.
A única questão suscitada no recurso é a de saber se na vigência da redacção da redacção introduzida pela Lei 65/98 de 2-9, o crime de maus tratos a cônjuge do art. 152 nº 2 do Cód. Penal permitia a todo o tempo a desistência de queixa, mesmo naqueles casos em que MP, ponderado o interesse da vítima, tivesse dado início ao procedimento criminal.
Não houve resposta ao recurso.
Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no sentido do recurso não merecer provimento.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
A questão do recurso está em saber se, na vigência da redacção da redacção introduzida pela Lei 65/98 de 2-9, o crime de maus tratos a cônjuge do art. 152 nº 2 do Cód. Penal permitia a todo o tempo a desistência de queixa, mesmo naqueles casos em que MP, ponderado o interesse da vítima, tivesse dado início ao procedimento criminal.
A resposta é, diga-se desde já, afirmativa.
Tudo está na interpretação da norma do então nº 2 do art. 152 do Cód. Penal, segundo o qual “o procedimento criminal depende de queixa, mas o Ministério Público pode dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação”.
Começa a magistrada recorrente por invocar a natureza pública que o crime actualmente tem, após a entrada em vigor da Lei 7/00 de 27-5, o que teria “algum interesse para aferir da intenção do legislador e interpretar a citada disposição legal”.
Trata-se de argumento que não pode ser ponderado, pois a lei mais recente nada tem de interpretativo, sendo antes a manifestação de uma nova a vontade do legislador.
Também a gravidade do crime não é critério para a busca de solução, já que são vários os crimes punidos com penas elevadas que têm natureza semi-pública. É o caso de parte significativa dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nos quais, tal como no caso em apreço, para além do interesse da sociedade na punição do criminoso, há a ponderar o possível desejo da vítima em resguardar a privacidade de factos que dizem respeito à sua intimidade.
É certo que actualmente o legislador decidiu que o interesse público de perseguição do criminoso sobreleva o da intimidade da vítima, mas como se referiu, neste acórdão há apenas que determinar o regime vigente na Lei 65/98.
O crime de maus tratos a cônjuge está normalmente associado a situações de grande dependência psicológica da vítima, o que pode desencadear nesta mecanismos inibitórios do seu desejo de accionar penalmente o seu agressor. Tendo o crime natureza semi-pública, este maior tempo de reacção tinha consequências que o legislador de 1998 pretendeu afastar. Por um lado, a vítima algumas vezes dispunha-se a apresentar queixa quando já tinham decorrido os seis meses prescritos para o efeito (art. 115 nº 1 do Cód. Penal) e, por outro, quando a apresentava, já era mais difícil a recolha de prova – este crime está muitas vezes associado a sequelas físicas que desaparecem com o recurso do tempo.
Foi tendo em vista estes interesses que foi admitida a possibilidade de o MP «dar início» ao procedimento quando o interesse a vítima o impusesse. Mas isso não significava a transformação do crime semi-público em crime público. Para o legislador de 1998, em caso de conflito entre a punição do agressor e a resguarda da intimidade da vítima, deveria prevalecer este último valor. No nosso direito penal e processual penal, a referência à necessidade de «queixa» corresponde sempre a ideia de que, até à publicação da sentença em primeira instância, a possibilidade de condenação está dependente da vontade da pessoa titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – cfr. art. 116 nº 2 do Cod. Penal.
Aliás, se fosse outra a intenção, certamente teria sido utilizada redacção diferente, que se socorresse de alguma das fórmulas usuais na técnica legislativa quando se quer prever alguma excepção. Por exemplo, “o procedimento criminal depende de queixa, salvo se o MP ou excepto se....”.
Finalmente, a circunstância de na norma em análise se fazer referência à possibilidade de “oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação”, não constituía um limite temporal à faculdade de desistência de queixa por parte do ofendido, sendo antes um obstáculo ao prosseguimento processual por parte do MP. Como se escreveu no parecer do sr. procurador geral adjunto e se transcreve, “sendo o processo penal dominado pelo princípio do acusatório, haverá que distinguir o exercício da acção penal da condenação. A acção penal exerce-se com a dedução da acusação, enquanto a eventual condenação ocorre com a prolação da sentença. Compreende-se, por isso, que não tendo havido queixa expressa, o MP só possa iniciar o processo e deduzir acusação se, até esse momento, a vítima não tiver declarado a sua oposição. Uma vez exercida a acção penal, ou porque houve queixa, ou porque não houve oposição da vítima, sempre até à publicação da sentença da 1ª instância pode dar-se a extinção do procedimento criminal, por desistência expressa, desde que não haja oposição do arguido”.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação do Porto negam provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.
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Porto, 26 de Janeiro de 2005
Fernando Manuel Monterroso Gomes
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins