Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
169/15.0T8AMT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
EMPRESAS LOCAIS
SUBSUNÇÃO AO REGIME INSOLVENCIONAL COMUM
PER
DEVERES DO ADMINISTRADOR JUDICIAL PROVISÓRIO
Nº do Documento: RP20150623169/15.0T8AMT-C.P1
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito da Lei nº 50/2012 de 31 de Agosto, as empresas locais são pessoas coletivas de direito privado, sujeitas ao regime jurídico que lhe é específico, à lei comercial, aos respetivos estatutos e, subsidiariamente, ao regime do setor empresarial do Estado, sem prejuízo das normas imperativas neste previstas.
II - Assim, e na ausência de norma imperativa em sentido contrário, não se encontram essas empresas excluídas ou ressalvadas do regime insolvencial comum, pelo que, verificando-se o pressuposto objetivo – situação de insolvência -, podem as mesmas ser declaradas insolventes.
III - Para a declaração dessa insolvência são materialmente competentes os tribunais comuns, sendo o processo de insolvência o próprio para o efeito.
IV - No processo de revitalização, o administrador judicial provisório tem não só o dever de comunicar a falta de plano de recuperação ao processo, mas deve, simultaneamente, informar o tribunal sobre se, em seu entender e de acordo com os elementos que conhece, o devedor está, ou não, em situação de insolvência, requerendo a respetiva declaração, em caso afirmativo.
V - Não procedendo deste modo, deve-lhe ser determinado oficiosamente que o faça, fundamentando, com factos, a sua conclusão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 169/15.0T8AMT-C.P1
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- B…, S.A., com sede na …, n.º .., ..º, em Paços de Ferreira, requereu que se desse inicio ao processo de revitalização tendente à sua recuperação económica.
2- Esta pretensão, no entanto, foi liminarmente indeferida, por se ter entendido que a requerente é uma entidade pública empresarial e, portanto, não tem legitimidade para ser sujeita um processo de insolvência, em termos de lhe poder ser aplicada uma qualquer medida prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
3- Esta decisão veio, porém, a ser revogada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que entendeu, ao invés, que a requerente não é uma entidade pública empresarial, e, nessa medida, não está excluída do âmbito de aplicação do CIRE. Ordenou-se, por isso, o prosseguimento dos autos.
4- Desencadeada a tramitação subsequente, veio, a final, na sequência da não aprovação de qualquer plano de recuperação da Requerente, o Sr. Administrador Judicial Provisório a requerer a insolvência da mesma.
5- Em processo judicial apenso, foi, por sentença proferida no dia 16/02/2015, declarada a insolvência da referida sociedade, B…, S.A., depois de se afirmar tabelarmente a competência material do tribunal.
6- Inconformada com esta sentença, dela recorre a C…, S.A., terminando a sua motivação recursiva com as seguintes conclusões:
“1. A insolvente é uma empresa municipal sujeita à legislação especial do Lei 50/2012, de 31 de Agosto, que no seu artigo 64º-2 determina de forma clara e inequívoca, que a dissolução e liquidação das empresas locais obedece ao regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução de entidades comerciais, ou seja, ao DL. Nº 76-A/2006, de 29 de Março, ex vi artigo 144, do Código das Sociedades Comerciais;
2. Consequentemente, face àquela lei especial (artigo 7º, nº 3, do C. Civil), este Tribunal é materialmente incompetente para apreciação dos presentes autos de insolvência, nos termos dos artigos 96 a 99, 278-1-a, 576-2, 577- a), todos do Código de Processo Civil;
3. Resulta de todo o quadro normativo aplicável ao sector empresarial local, designadamente, entre outros, da Lei 50/2012, de 31 de Agosto, DL.133/2013, de 03 de Outubro, Lei 73/2013 de 3 de Setembro, Lei 53/2014, de 25 de Agosto, Código dos Contratos Públicos (DL.18/2008, de 29/01) e LADA), que a insolvente está quase exclusivamente ou essencialmente sujeita a leis de direito público;
4. As empresas locais pertencem ao direito público, são sujeitos da administração pública, localizam-se dentro do universo da administração pública, criadas por entes públicos, para realização de fins públicos, gerem dinheiros públicos e sua sustentabilidade e gestão equilibrada das empresas municipais são uma exigência de serviço público.
5. Assim, e não obstante a insolvente ser formalmente considerada uma empresa de direito privado é materialmente uma entidade do sector público, uma pessoa coletiva de direito público para efeitos de processo de insolvência;
6. A atribuição dessa qualificação formal não invalida a sua ilegitimidade substantiva para o presente processo de insolvência, pelo facto de ser materialmente uma pessoa coletiva de direito de público, exceção dilatória de ilegitimidade que expressamente se invoca, nos termos do artigo 2º-2, do Cire e artigos 30º e 577, alínea e), ambos do CPC;
7. Por outro lado, nos termos do artigo 40º, da Lei 50/2012, de 31 de Agosto, artigos 23-7 e 37, da Lei 53/2014, de 25 de Agosto, o Estado, ainda que de forma indireta através dos municípios, é solidariamente responsável pelo pagamento da dívidas das empresas municipais;
8. Logo, as dívidas da B… terão que ser obrigatoriamente/legalmente assumidas e pagas pelo Município …, pelo que esta não se encontra numa situação de insolvência (artigo 3º, do Cire) face à garantia de liquidação do seu passivo;
9. Por outro lado ainda, e como é sabido, o parecer/requerimento do Sr. Administrador provisório, previsto no artigo 17-G-4, do Cire, corresponde a uma petição inicial do pedido de declaração de insolvência previsto no artigo 23º, do mesmo diploma legal;
10. Sucede que, aquele parecer/requerimento é vago e genérico, não expondo os factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência por si requerida (artigo 3º e 23º, ambos do Cire. De facto,
11. Nele não constam sequer, e por exemplo, os seguintes factos essenciais: o valor do ativo e passivo da B… avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis; se o valor do passivo era manifestamente superior ao ativo (artigo 3-2); qual o valor dos créditos reclamados; se os créditos reclamados sobre o Município eram ou não suficientes para liquidar o passivo; se houve ou não uma suspensão generalizada no cumprimento das suas obrigações e quais as circunstâncias concretas desse incumprimento;
12. Existe, assim, uma total omissão de factos e dos meios de prova em que assenta a sua decisão da declaração de insolvência.
13. Por todo o exposto, por erro de interpretação e aplicação, violou a decisão recorrida os preceitos legais supra citados, pelo que a B… não podia ter sido declarada insolvente.
7- Também inconformada com a mesma sentença, recorre o F…, S.A., terminando as suas alegações nos termos seguintes:
“1. O presente caso revela grande originalidade, pois pela primeira vez – segundo se tem conhecimento – uma empresa municipal unipessoal, detida a 100% por um Município, se apresentou a um PER e, agora, à insolvência, como se fosse uma vulgar sociedade comercial, sem um regime jurídico especial que exclui essas hipóteses…
2. As empresas locais estão sujeitas a um regime especial, extravagante, cuja lei actual resulta de uma Reforma da Administração Local que ajuda a perceber o seu escopo e pode ser apreendido no respectivo Livro Branco.
3. Desse regime jurídico resulta, desde logo, um impossibilidade legal (de insolvência)!, que ao Exmo. Senhor Juiz a quo competia oficiosamente verificar.
4. Desta forma, a douta sentença de insolvência de 16-2-2015, com todo o respeito, olvidou o regime próprio e especial das Empresas Locais, que está desenhado de forma a que as mesmas jamais possam “insolver”, e limitou-se a aplicar um raciocínio matemático às normas do CIRE, que contradiz, claramente, o espírito da lei.
5. Isto, sem prejuízo de (previamente) dever constatar-se que a aplicação do CIRE está afastada.
6. Mas, mesmo tendo-o aplicado, seguramente que o artigo 17.º-G do CIRE não pretende que a declaração de insolvência seja “automaticamente” declarada, apenas mudando de mãos, do Sr. Administrador Provisório (que requer) para o Sr. Juiz de Direito (que declara);
7. A este exige-se, pela função de soberania que exerce, outro papel…O papel de aferir da possibilidade ou não de insolvência deste tipo de entidades e, em caso afirmativo, controlar (ainda) a verificação dos pressupostos e fundamentação da requerida insolvência, que deveria ter sido apreciada pelo Sr. Administrador: o Juiz controla a atuação do Administrador, sob pena de não poder declarar a insolvência.
8. Tal não ocorre na sentença recorrida, o que se pretende ver corrigido no presente recurso, até pela importância pioneira e crucial que o caso sub judice assume, pois pela primeira vez na história das “Empresas Municipais”, uma sociedade deste tipo está em juízo para o decretamento da sua insolvência, ao invés do regime próprio que especialmente a Lei lhes dedica e do processo próprio e especificamente consagrado que tal Lei especial imperativamente impõe.
9. Estamos, pois, perante um caso sui generis, em que a Lei Geral derrogou a Lei Especial!!
10. Face a toda esta ilegal situação, os credores terão necessariamente que ter legitimidade para vir requerer a não declaração de insolvência da requerida, ao invés do decidido na sentença recorrida, sob pena de uma diminuição inconstitucional do respectivo direito de acesso à Justiça e direito de “defesa” ou à tutela jurisdicional efectiva e plena.
11. Para uma análise séria e justa de toda a situação, é necessário, em primeiro lugar, analisar o regime jurídico das empresas municipais, pelo menos desde a data da constituição da B… (Outubro de 2007).
12. Tal regime próprio, especial e “extravagante”, consagra importantes regras de equilíbrio financeiro, consolidação de contas e responsabilidades municipais, estando, portanto, totalmente desenhado em função da impossibilidade de insolvência deste tipo de empresas.
13. Pretendendo a extinção das empresas municipais “tecnicamente falidas”, o legislador estipulou casos obrigatórios de dissolução, para que as mesmas não continuem a ser um “sorvedouro para os dinheiros públicos” e definiu o respectivo “procedimento de extinção”.
14. Nesses casos, nos termos do artigo 62.º da Lei n.º 50/2012, há a obrigação legal da sua apresentação a um procedimento de dissolução e consequente responsabilidade do Município respetivo pela transferência das verbas indispensáveis ao pagamento das dívidas aos credores da sociedade municipal, nos termos igualmente do regime jurídico da Recuperação Financeira Municipal (FAM), previsto na Lei n.º 53/2014, de 25 de agosto, e do n.º 1 do artigo 52.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro (Lei das Finanças Locais).
15. Tal procedimento de dissolução é, conforme artigo 62.º, n.º 2, o previsto no regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, que corre termos na Conservatória do Registo Comercial, pelo que o caso sub judice está ferido de Incompetência Material do Tribunal.
16. Pela mesma razão, o Meio Processual é errado, pois o procedimento legalmente imposto é de iniciativa voluntária, iniciando-se através de requerimento apresentado pelo interessado na Conservatória, ou de iniciativa oficiosa, iniciando-se através de auto do Conservador, conforme artigos 4.º e 5.º.
17. Acresce que, como já referido, o regime jurídico próprio das Empresas Municipais está desenhado sob a absoluta Impossibilidade Legal de Insolvência deste tipo de entidades.
18. Tal como decorre de todo o regime jurídico das empresas municipais e do Direito Especial das Autarquias Locais, aquelas entidades, mesmo que constituídas sob a forma comercial, nunca poderão insolver (mas podem e devem ser extintas, nos casos expressamente previstos nesse regime jurídico).
19. Mas mesmo que não houvesse essa impossibilidade legal de insolvência, o CIRE afasta, ele próprio, a sua aplicação a este tipo de entidades.
20. Na verdade, numa necessária e obrigatória interpretação atualística do artigo 2.º, n.º 2 alínea a), cujos conceitos vertidos para o CIRE em 2004 tinham uma determinada interpretação e conotação legal, consentânea com o regime jurídico das empresas municipais de então (Lei n.º 58/98), forçoso é concluir que tal normativo afasta do âmbito subjectivo da sua aplicação este tipo de instituições que prosseguem fins públicos e atribuições municipais.
21. Em 2004, as empresas municipais eram pessoas colectivas públicas, excluídas, portanto, do âmbito subjectivo do CIRE, pelo seu artigo 2.º, n.º 2 alínea a).
22. Sem prescindir, se se entendesse que o CIRE era aplicável, então teríamos de concluir que no caso sub judice não se verificam os pressupostos da declaração de insolvência, pois havendo, nos termos do tal regime especial das empresas locais, um responsável pela sua situação económico-financeira e, portanto, pelas dívidas da empresa, jamais se poderá decretar a insolvência da B… de acordo com os critérios do artigo 3.º do CIRE.
23. O Município … é, assim, o responsável último pela situação da empresa, devendo, portanto, cumprir a lei, decidindo a sua dissolução e assumindo o pagamento das suas dívidas.
24. A sentença recorrida viola, pois, todo este regime, imposto em leis de valor reforçado (designadamente a Lei n.º 50/2012, o Decreto-Lei n.º 133/2013, e Lei n.º 73/2013) o que constitui uma inconstitucionalidade (na vertente de ilegalidade, nos termos do artigo 280.º da CRP) que se alega para todos os efeitos legais.
25. Mais, ao retirar legitimidade aos credores de porem em causa a declaração judicial de insolvência, está a limitar de forma inadmissível (nos termos do artigo 18.º, n.º 2 da CRP) um direito fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais e a garantia de tutela jurisdicional efectiva e plena, consagrados no artigo 20.º da CRP.
26. A sentença sob recurso violou todos os preceitos legais identificados, sendo, por isso, manifestamente ilegal e nas várias vertentes em que essa ilegalidade se coloca nas antecedentes conclusões.
27. Uma interpretação contrária ao aqui expendido constitui um inegável perigo, desde logo em termos práticos, pois seguramente este tipo de entidade que prossegue interesses públicos e atribuições municipais ficará no futuro “apartada” de qualquer “financiamento”, com prejuízo evidente para o interesse público então em causa…
28. Mas também em termos de Reforma da Administração Local, pois contradiz todo o espírito da Reforma do Setor Empresarial Local e da Lei n.º 50/2012, até porque, caso os municípios apagassem a sua responsabilidade financeira sobre as empresas municipais, incumprindo os seus deveres, designadamente de transferência e de cobertura das dívidas, conforme impõe o artigo 40.º, e, em casos mais graves, fugindo à sua obrigação de dissolução obrigatória, imposta no artigo 62.º, n.º 1, com a simples manobra de poderem recorrer à aplicação do CIRE, estaríamos, seguramente, perante um cenário ainda mais grave do que o atual, de facilitismo e irresponsabilidade gestionária.
29. Igualmente em termos legais e de coerência do sistema jurídico, pois a possibilidade de a B… se apresentar a um processo de insolvência constituirá uma “fraude” à Lei e aos credores que confiaram no setor público empresarial (in casu, local), permitindo aos municípios, até, contornar todas as regras e mecanismos que têm sido introduzidos no ordenamento jurídico para “credibilizar” o sistema financeiro público português.
30. Se, na verdade, as empresas locais ficassem abraçadas pelos mecanismos de insolvência e de recuperação (revitalização) das normais sociedades comerciais, então, claramente, estava aberta a porta para os Municípios contornarem a Lei dos Compromissos (e dos pagamentos em atraso – Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro), a Lei das Finanças Locais (Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro), e o Regime Jurídico da Recuperação Financeira Municipal (Lei n.º 53/2014, de 25 de Agosto), criando empresas municipais em vez de prosseguir diretamente as atribuições municipais, sem grandes preocupações financeiras, de contenção do défice orçamental, de diminuição da dívida pública e de combate ao despesismo público…
31. E pior, ultrapassando os próprios desideratos da Lei n.º 50/2012, que surge marcada pela avaliação resumida no Livro Branco (o que ajuda a perceber com clareza o “espírito do legislador”) e procura o saneamento das empresas cuja situação económico-financeira seja grave e constitua um “sorvedouro para os dinheiros públicos” [o que explica, inclusivamente, que tenha havido a preocupação de inserir uma norma transitória (n.º 3 do artigo 70.º)…].
32. A ideia de deixarem de ser tal sorvedouro implica, precisamente, que são os “dinheiros públicos” (in casu, dos municípios) os responsáveis últimos por estas entidades anómalas.
33. Daí que nunca se coloque (em termos legais) a hipótese da sua insolvência…
34. Deve ser, assim, decidida a revogação da sentença recorrida e substituída por outra que reconheça a impossibilidade legal de insolvência, a incompetência material do Tribunal e a inedoneidade do meio processual, para além da ilegalidade da sentença sob recurso, tudo com as legais consequências, no que se inclui a extinção da presente instância, por impossibilidade legal”.
Pede, assim, a procedência do presente recurso, com a revogação da sentença recorrida, “decretando-se a impossibilidade legal de insolvência da B… ou, ao menos, a não verificação de tal situação, no que se refere à Recorrida”
8- O Ministério Público e a insolvente responderam em apoio do julgado.
9- Recebidos os recursos e preparada a deliberação, importa tomá-la:
*
II- Mérito dos recursos
A- Definição do seu objeto
1- A par das questões de conhecimento oficioso, o objeto de qualquer recurso jurisdicional é delimitado, por regra, pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4 e 639.º, nº1, do Código de Processo Civil).
Assim, aplicando este critério no caso presente, temos que o objeto dos recursos em apreço é constituído pelas seguintes questões fundamentais:
a) Em primeiro lugar, saber ocorre a exceção de caso julgado;
b) Não ocorrendo a exceção do caso julgado, determinar se uma empresa municipal pode, ou não, ser declarada insolvente e, na negativa, quais as respetivas consequências, designadamente no plano processual;
c) E, por fim, decidir se a Apelada, B…, S.A., está, objetivamente, em situação de insolvência.
*
2- Da alegada exceção de caso julgado
Apesar de não ter recorrido da sentença que a declarou insolvente, a Apelada, B…, S.A., veio invocar a exceção de caso julgado, por nestes autos já terem sido definitivamente dirimidas as questões processuais suscitadas pelas Apelantes.
Como veremos, esta objeção não é de acolher, mas visto que se trata de uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, importa, ainda que sinteticamente, tomar posição sobre o assunto.
Como é sabido, visa a exceção referida, de caso julgado, portanto, evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Implica, por isso, sempre que verificada, a absolvição do réu da instância (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 578.º e 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Traduz-se no principal corolário da obrigatoriedade e da prevalência das decisões dos tribunais, consagrado no n.º 2 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual: “[a]s decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades”.
Este princípio tem como justificação material a segurança jurídica e pacificação social prosseguidas por toda a atividade jurisdicional, que, de outro modo, ficariam irremediavelmente comprometidas se as decisões definitivas proferidas no exercício dessa atividade, pudessem, por regra, ser contrariadas por outros juízos decisórios subsequentes.
A definitividade decorrente da força do caso julgado atribuída às decisões judiciais, desdobra-se em duas vertentes: por um lado, as questões decididas em definitivo não podem ser reapreciadas (trata-se do campo próprio de atuação da exceção dilatória de caso julgado ou do efeito negativo do caso julgado); e, por outro lado, o respeito pelo conteúdo da decisão anteriormente tomada, a título definitivo, implica que a mesma não possa ser posteriormente contrariada (o que se traduz a denominada autoridade do caso julgado ou o efeito positivo do caso julgado)[1].
Por outras palavras, “[…] a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal). [...] Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente. […]”[2].
Ora o que verificamos no caso presente é que nenhuma das aludidas dimensões está afetada. Não está afetada a exceção do caso julgado porque não há, desde logo, identidade de causas entre o processo de revitalização e este processo de insolvência. Naquele, a Apelada dizia ser capaz de garantir a solvabilidade dos seus compromissos financeiros (artigo 3.º do requerimento inicial) e pedia a abertura de negociações formais com os seus credores com essa finalidade. Neste, ao invés, foi constatada a frustração do resultado conciliatório dessas negociações e, nessa sequência, desencadeada a insolvência com vista à liquidação do património da mesma Apelada e pagamento aos respetivos credores. Não se verifica, portanto, a tríplice identidade a que alude o artigo 581.º, do Código de Processo Civil.
E também não se verifica qualquer ofensa à autoridade do caso julgado, uma vez que, embora já tivesse sido decidido por este Tribunal da Relação que a B…, S.A., podia ser objeto de revitalização, sendo coincidente o âmbito subjetivo desse processo com o deste, de insolvência[3], não podem, ainda assim, ser considerados as Apelantes abrangidos por aquela decisão por, à data, não serem partes naquele processo[4].
Como defende Antunes Varela[5], “nenhuma razão há, de acordo com o espírito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada”. E nas outras situações cobertas pelas regras gerais, a invocação da “autoridade de caso julgado” formado num processo não pode conduzir a que se produzam na esfera de terceiro efeitos com que este não poderia contar, pelo facto de emergirem de um processo em que não teve qualquer intervenção[6].
Concluímos, assim, que não se verifica a arguida exceção de caso julgado que afete o direito recursório das Apelantes.
*
3- Da alegada inadmissibilidade legal de insolvência das empresas municipais e respetivas consequências jurídico-processuais
Embora as Apelantes questionem diversos pressupostos processuais, que dizem não estar verificados no caso presente (competência material da jurisdição comum para a declaração de insolvência, ilegitimidade da Apelada, B…, S.A., para ser demandada num processo desta natureza e erro na forma de processo), a verdade é que todas essas objeções decorrem do entendimento segundo o qual é inadmissível, do ponto de vista jurídico, a declaração de insolvência de uma empresa municipal. É esta, no fundo, a primeira grande razão de discórdia das Apelantes em relação à sentença recorrida. De modo que, devido às suas implicações no plano jurídico-processual, não pode essa temática deixar de ter a primazia na nossa análise.
Esta questão, adiantamo-lo desde já, reveste alguma complexidade, na medida em que convoca para a sua resolução diversas áreas do direito, porquanto, como veremos, estamos perante algumas das consequências do movimento de privatização das formas organizativas da Administração Pública, que se acentuaram entre nós particularmente a partir da década de oitenta do século XX.
Efetivamente, “[a]s últimas décadas têm permitido observar que, paralelamente à criação de pessoas coletivas públicas, existem, em número cada vez maior, pessoas coletivas de direito privado que são criadas por entidades de direito público e instrumentalizadas à prossecução de fins primariamente integrantes da esfera destas últimas”[7]. E essa instrumentalização, não só transformou o tradicional modelo organizativo da Administração Pública, provocando “uma verdadeira revolução organizativa” como abalou os quadros tradicionais do Direito Privado comum e do Direito Administrativo garantistico, gerando o que hoje se denomina de “Direito Comercial Administrativo” ou “Direito Administrativo Comercial”, que refletem, nem mais nem menos, do que a erosão de muitos dos conceitos sedimentados naqueles dois ramos do direito primeiramente referidos.
Neste novo contexto, por exemplo, o tradicional conceito de personalidade jurídica de direito público é desvalorizado ou debilitado, “observando-se que nem todas as pessoas coletivas públicas exercem poderes de autoridade – tal como sucede com as “entidades públicas empresariais”- e, simultaneamente, diversas entidades de tipo societário gozam de poderes de autoridade que normalmente seriam confiados a pessoas coletivas públicas”.
Por outro lado, “deixou de existir uma identidade absoluta entre organização administrativa e subordinação predominante ao Direito Administrativo, pois as entidades integrantes da “Administração Pública sob a forma privada” não se encontram normalmente sujeitas ao Direito Administrativo e, em termos semelhantes, múltiplas pessoas coletivas que fazem parte da “Administração Pública sob a forma pública” passaram a estar sujeitas a um regime de Direito Privado”.
Neste movimento de “societarização” da atividade administrativa e de “descontratualização” das sociedades comerciais, muitos dos conceitos do direito comum ficaram, pois, alterados[8]. O que obriga a novas reformulações, novos enquadramentos conceptuais, tendo em vista a obtenção de soluções ajustadas aos atuais quadros jurídicos de referência.
Neste processo de ajustamento, porém, é importante não perder de vista que estamos perante transformações propositadamente adotadas pelo legislador. Não podem, assim, essas transformações ser combatidas pelo intérprete da lei em nome de outros valores, designadamente de ordem política, pois que esses valores, para obterem predominância, devem ser afirmados por outras vias, que não a jurisdicional, sob pena de ficar subvertido o princípio da separação de poderes.
Ao intérprete da lei cabe atribuir significado a esta última, ou seja, determinar o seu sentido e alcance, tendo em vista a sua correta aplicação ao caso concreto. Correta, sob o ponto de vista jurídico e não sob outro ponto de vista qualquer. Ao intérprete, e particularmente ao julgador, cabe, na expressão de Manuel de Andrade[9], servir de “intermediário entre a norma e a vida”, traduzir o comando abstrato da lei no comando concreto a aplicar ao caso. E, nesse exercício, deve presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Não pode, assim, “ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Ou seja, o enunciado linguístico da lei é, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de limite, já que não pode ser considerada pelo intérprete uma solução que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa[10].
Não significa isto, obviamente, que na interpretação da lei o intérprete não deva atender a outros elementos. O artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, expressamente determina o contrário, ao prescrever que “[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. Além do elemento literal, pois, o intérprete tem de se socorrer dos elementos lógicos com os quais tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade e a sua lógica. São elementos de ordem histórica e circunstancial, elementos de ordem sistemática e elementos de ordem racional ou teleológica. Mas, repetimos, nenhum deles, pode ultrapassar a letra da lei.
Ora, como veremos, no caso presente este critério vem a revelar-se de decisiva importância para a resolução da questão que temos para decidir.
Essa questão radica num problema identitário. Do que se trata de saber, em suma, é se a B…, S.A., corresponde, ou não, a alguma das entidades jurídicas excluídas ou ressalvadas do regime insolvencial comum. Se corresponder, não pode ser declarada insolvente. Mas, na hipótese contrária, essa consequência é inevitável, desde que verificado o pressuposto objetivo, ou seja, a situação de insolvência. Isto porque, como resulta do n.º 20 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, não há vazios de regulamentação no regime jurídico da insolvência. Todas as entidades jurídicas, patrimonialmente autónomas, que não beneficiem das exceções e ressalvas legalmente previstas, estão sujeitas a ser declaradas insolventes, se nessa situação objetiva se encontrarem, uma vez que, como assinalam Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda[11], o n.º 1 do artigo 2.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[12], estabelece uma enumeração taxativa aberta.
Ora, sabendo nós (designadamente, através da documentação junta aos autos - fls. 110 a 133) que a referida sociedade é uma empresa municipal, constituída sob a forma de sociedade anónima, cujo capital é detido pelo Município …, tendo por objeto tarefas ligadas ao desenvolvimento local[13], facilmente concluímos que a mesma não se enquadra em nenhuma das categorias previstas no artigo 2.º, n.º 2, al. b), do CIRE.
Mas poderá ser considerada como “pessoa coletiva pública” ou “entidade pública empresarial”, como previsto no artigo 2.º, n.º 2, al. a), do CIRE?
Prevê expressamente o artigo 19.º, n.º 4, do Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais (doravante designado por RJAEL), aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de Agosto, que as empresas locais - de que as empresas municipais constituem uma espécie -, são pessoas coletivas de direito privado. Neste contexto, atendendo às regras hermenêuticas já enunciadas e a outros argumentos de ordem histórica e sistemática que adiante desenvolveremos, dificilmente se pode arredar a referida natureza.
Há quem entenda, no entanto, que esse resultado é possível, esbatendo o elemento literal já assinalado e acentuando, ao invés, aquele que decorre do regime jurídico aplicável a tais empresas, mormente quando, como é o caso, estamos perante uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos. Em tais circunstâncias, chegaríamos à conclusão de que estamos perante um organismo de direito público e, portanto, mediante uma interpretação corretiva do já citado artigo 2.º, n.º 2, al. a), do CIRE, encontraríamos forma de aí acomodar o aludido tipo de sociedades.
Segue esta tese, Carlos José Batalhão[14], para quem, independentemente da sua natureza jurídica, o que é decisivo “é o regime jurídico a que estão sujeitas as empresas locais e a sua subordinação a vários vínculos jurídico-públicos (…)”[15]. Trata-se, como conclui o mesmo Autor, de “um regime jurídico sui generis, especial, extravagante, que fica entre o direito público e o direito privado contrastante com a disciplina comum das sociedades comerciais; é um direito privado publicizado”[16] e, portanto, devido às especificidades desse regime e aos fins públicos por aquelas sociedades prosseguido, nunca as mesmas podem ser objeto de extinção por insolvência nos termos do CIRE. Correspondem, afinal, ao que à data da aprovação deste último diploma legal (CIRE) eram as empresas públicas municipais previstas na Lei n.º 58/98 de 18 de Agosto e, assim, nunca, como então, podem, ser declaradas insolventes, mas, sim, extintas por dissolução.
Ao invés das sociedades comerciais, acrescenta, “as empresas locais regem-se específica e primeiramente pela lei do SEL (Lei n.º 50/2012), pelas normas imperativas do capítulo V (arts. 62.º a 67.º) e ainda, por alguns artigos do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro (regime do setor empresarial do Estado, cujo regime jurídico afasta abertamente (…) a sua submissão a um processo de insolvência ou de recuperação de empresa “que manifestamente não é pensado para elas mas para as empresas propriamente privadas””[17].
É preciso revisitar, ainda que muito sumariamente, a evolução do regime jurídico a que têm estado sujeita a atividade empresarial local e precisar, com rigor, os contornos do atual regime, para se perceber quão infundada é, presentemente, esta conclusão. Isto, sem prejuízo, naturalmente, do profundo respeito que nos merece a opinião contrária.
De um modo geral, em Portugal, antes de 1998, a atividade económica da Administração Pública local era desenvolvida através de um sistema de administração municipal direta, por recurso, nomeadamente, aos serviços municipalizados. O artigo 48.º, n.º 1, al. o), da Lei n.º 79/77, de 25 de Outubro (que definia as atribuições das autarquias e competências dos respetivos órgãos), atribuía à assembleia municipal a competência para autorizar o município “a formar empresas municipais” e, posteriormente, o artigo 39.º, n.º 2, al. g), do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, também reiterava a competência da assembleia municipal para autorizar o município “a criar empresas públicas municipais”. Mas, como se refere no Livro Branco do Sector Empresarial Local[18], “a criação de empresas municipais ou empresas públicas municipais assumiu um carácter pontual e episódico”.
Foi só com a Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto, que a situação se alterou.
As empresas municipais e intermunicipais [classificadas em empresas públicas, empresas de capitais públicos e empresas de capitais maioritariamente públicos, em função da proveniência do seu capital estatutário] passaram a ter reconhecida, na lei, a sua personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e patrimonial (artigo 2.º, n.º 1).
Do regime então instituído resulta, em traços gerais, que as aludidas empresas:
- “São criadas pela assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal, ou pela assembleia intermunicipal, sob proposta do conselho de administração da associação de municípios, em cuja deliberação são fixadas unilateralmente as condições gerais da participação da autarquia [artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 58/98 e artigo 53.º, n.º 2, alínea m), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro];
- O objecto social limita-se à exploração de actividades que prossigam fins de reconhecido interesse público cujo objecto se contenha no âmbito das atribuições das autarquias (artigo 2.º, n.º 2);
- Sujeição da respectiva actividade, em regra, ao regime de direito privado, incluindo o direito laboral, e ao regime fiscal geral (artigos 3.º, 17.º, 36.º e 37.º);
- Aplicação subsidiária do regime das empresas públicas estaduais e, no que neste não for especialmente regulado, das normas aplicáveis às sociedades comerciais (artigo 3.º);
- Sujeição das empresas públicas e das empresas de capitais públicos à tutela e superintendência dos executivos autárquicos, com destaque para o poder de aprovarem preços e tarifas (artigos 16.º e 23.º);
- Sujeição ao regime jurídico das empreitadas das obras públicas [artigo 3.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 559/99, de 2 de Março];
- Sujeição ao controlo financeiro sucessivo do Tribunal de Contas (artigo 35.º);
- Relevância, para os limites da capacidade de endividamento do município, de empréstimos contraídos pelas empresas públicas municipais (artigo 25.º, n.º 4)”[19].
Assim, na decorrência deste regime, a maioria da doutrina tendia a qualificar as referidas empresas como pessoas coletivas públicas[20].
No dia 01/01/2007, entrou em vigor, porém, a Lei n.º 53-F/2006, de 29 de dezembro, (artigo 50.º), que aprovou o novo regime jurídico do setor empresarial local, iniciando-se, então, uma nova fase na regulamentação deste setor.
Tal como veio a suceder posteriormente com o Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, em relação ao sector empresarial do Estado [que integrou no conceito de empresa pública duas espécies empresariais – artigo 3.º], a Lei n.º 53-F/2006, adotou também o princípio de dualismo organizativo, prevendo, por um lado, a existência das “sociedades constituídas nos termos da lei comercial”, e, por outro, as designadas “entidades empresariais locais” (artigo 3.º n.ºs 1 e 2, e 33º a 39.º).
As primeiras, constituídas por empresas municipais, intermunicipais e metropolitanas, são aquelas nas quais os municípios, associações de municípios e áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, respectivamente, possam exercer, de forma directa ou indirecta, uma influência dominante em virtude da detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto ou do direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou de fiscalização (artigo 3.º n.º 1).
E as segundas, são pessoas coletivas de direito público que os municípios, as associações de municípios e as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto constituam, ou já tenham constituído anteriormente, ao abrigo da Lei n.º 58/98, pois que, todas elas, ficam a reger-se por iguais normas (artigo 34.º); ou seja, pelas normas do capítulo VII e, subsidiariamente, pelas restantes normas da Lei n.º 53-F/2006, que inclui a remissão expressa para os estatutos dessas entidades e, subsidiariamente, para o regime do sector empresarial do Estado e ainda para as normas aplicáveis às sociedades comerciais (artigo 6.º).
Este quadro legal, porém, cedo veio a demonstrar a sua inadequação para os tempos subsequentes que se seguiram.
Em 2010, fruto da crise financeira com que Portugal então foi confrontado, decidiu o Conselho de Ministros, promover elaboração do Livro Branco do Sector Empresarial Local, já referido, com o objetivo de proceder ao diagnóstico e caracterização desse sector (Resolução do Conselho de Ministros n.º 64/2010, de 30 de Agosto).
O mandato da Comissão de Acompanhamento da elaboração desse Livro Branco, foi prorrogado (Resolução do Conselho de Ministros n.º 39/2011, de 22 de Setembro de 2011) e, por isso, antes da sua divulgação, perante o pedido de assistência financeira internacional então formulado por Portugal, houve a necessidade de fazer algumas alterações no setor empresarial local.
Neste âmbito, em 2011, foi apresentado o Documento Verde da Reforma da Administração Local[21], que propôs três tipos de reformas: uma reforma de gestão, uma reforma de território e uma reforma política do poder local. Com quatro eixos de atuação: no setor empresarial local; na organização do território; na gestão municipal, intermunicipal e financiamento; e ao no plano da democracia local.
Quanto à reforma do setor empresarial local, pretendeu-se racionalizá-lo, “reduzindo o número de Entidades, adequando-o à sua verdadeira missão, de acordo com as especificidades locais, determinando concretamente quais as suas áreas estratégicas de actuação, gerando economias de escala, melhor gestão e mais eficiência dos recursos públicos”.
É neste contexto que vem a ser aprovada pela Lei n.º 50/2012, o RJAEL, já mencionado.
Nele se observam alterações significativas, que, para o que está em causa nestes recursos, cumpre destacar:
Em primeiro lugar, a atividade empresarial local passa a ser desenvolvida pelos municípios, pelas associações de municípios, independentemente da respetiva tipologia, e pelas áreas metropolitanas, através dos serviços municipalizados ou intermunicipalizados e das empresas locais (artigo 2.º).
Depois, desaparece o dualismo organizativo que vigorava na Lei nº. 53-F/2006, e as empresas locais passam a ser apenas as sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei comercial, nas quais as entidades públicas participantes exercem, de forma direta ou indireta, uma influência dominante, motivada pela propriedade (detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto) ou controlo de gestão (que se traduz no direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de gestão, de administração ou de fiscalização ou qualquer outra forma de controlo de gestão em relação às mesmas - artigo 19.º, n.º 1, do RJAEL.
Em terceiro lugar, as empresas locais, que são sempre de responsabilidade limitada (por quotas ou anónimas), ao contrário do que sucedia anteriormente com as entidades empresariais locais que eram qualificadas como pessoas coletivas de direito público, passam expressamente a ser tidas por lei como “pessoas coletivas de direito privado” (artigo 19.º, n.º 4, do RJAEL)[22].
E, em quarto lugar, ao nível do regime jurídico que lhes é aplicável, passa também a haver uma inversão do plano subsidiário; ou seja, enquanto, antes, depois do regime específico e dos estatutos, as empresas municipais estavam, subsidiariamente, sujeitas ao “regime do sector empresarial do Estado e pelas normas aplicáveis às sociedades comerciais”, presentemente, as empresas locais regem-se pelo regime jurídico que lhe é próprio e, depois, “pela lei comercial, pelos estatutos e, subsidiariamente, pelo regime do setor empresarial do Estado, sem prejuízo das normas imperativas neste previstas” (artigo 21.º, do RJAEL).
Ora, não havendo norma imperativa no regime do setor empresarial do Estado, aprovado pela Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, que impeça a insolvência das sociedades contratualmente constituídas, mas apenas das entidades públicas empresariais (cfr. artigo 35.º, n.º 2), e não revestindo as empresas locais esta última categoria, é manifesto que as mesmas não estão isentas daquela consequência.
E nisto não vemos qualquer ofensa a direitos constitucionalmente consagrados, na medida em que tal solução se encontra no espaço de conformação do legislador, sendo assegurado sempre e ainda o direito, quer dos credores, quer do próprio devedor, de questionarem os atos jurisdicionais praticados no processo de insolvência. Continua, assim, assegurado o pleno direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
Repare-se que as entidades públicas empresariais, além de serem sempre criadas por Decreto-Lei, são também legalmente tipificadas como “pessoas coletivas de direito público” (artigos 56.º e 57.º, nº 1). Logo, divergem claramente, nestes aspetos de decisiva importância para a temática que estamos a tratar, das empresas locais que, como vimos, são “pessoas coletivas de direito privado”, constituídas ou participadas nos termos da lei comercial.
Pensamos, assim, que não há fundamento jurídico bastante para as equiparar.
Por outro lado, se é certo que empresas locais podem e, em certas circunstâncias até devem, ser objeto de alienação, dissolução, transformação, integração, fusão e internalização (Capítulo VI da Lei n.º 50/2012), a verdade é que nenhuma dessas soluções pertence à iniciativa dos respetivos credores. O que deixa claramente em aberto a possibilidade destes últimos recorrerem a outros mecanismos legais tendentes à realização coerciva dos seus créditos, os quais, no limite, podem passar pela insolvência. Tal como sucede, de resto, com outras sociedades com as quais, não raramente, atuam em concorrência.
E se os credores podem equacionar essa solução, não vemos que a devedora esteja impedida de o fazer igualmente, sempre que o detentor do seu capital social se recuse a providenciar pela respetiva solvabilidade.
É verdade que a lei institui mecanismos tendentes a assegurar essa solvabilidade ou, pelo menos, a impedir o resultado contrário. Até porque tratando-se de entidades dominadas, total ou parcialmente, por entes públicos, no limite, é o crédito e bom nome destes últimos que está em causa. Mas o facto do legislador ser diligente na instituição de mecanismos tendentes à prevenção da insolvência das empresas locais não significa que, em termos absolutos, negue a possibilidade de, em tese, tal vir a verificar-se. Pelo contrário, como já vimos, todo o regime que elencámos aponta para essa possibilidade. E não pode dizer-se que o legislador não o previu. Cremos, aliás, ao contrário do que é defendido pelas Apelantes, que, nos termos do artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil, que essa previsão deve presumir-se. Ou seja, o legislador, tendo a exata noção do âmbito subjetivo do regime insolvencial comum, presume-se que, ao mantê-lo inalterado e configurando as empresas locais como pessoas coletivas de direito privado, sujeitas, em domínios não imperativos, ao regime do direito comercial, quis assinalar esse risco, consentindo na sua consumação.
Verdade é, com efeito, que, nos estritos termos da lei, estão as empresas locais sujeitas ao regime jurídico que lhes é próprio e, depois, à lei comercial, aos respetivos estatutos e, subsidiariamente, ao regime do setor empresarial do Estado, sem prejuízo das normas imperativas neste previstas.
E mesmo que se entenda que a ordenação de regimes deve ser outra, como sucede com alguma doutrina[23], ou seja, a sujeição daquelas empresas ao regime jurídico que lhe é próprio, “às ordens do RJAEL, normas imperativas do RJSPE, normas imperativas do direito administrativo geral, lei comercial e regras de direito privado, estatutos da empresa e subsidiariamente, pelas normas não imperativas do setor empresarial do Estado”, a verdade é que essa mesma doutrina, não havendo normas imperativas de aplicação prioritária, advoga o englobamento no regime comercial comum do Código das Sociedades Comerciais, “o regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais (referido aliás no n.º 3 do artigo 62.º), o Código de Registo Comercial, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como, em geral, as regras do direito privado”[24]/[25].
Não há dúvidas, portanto, que, no quadro legislativo atual, uma empresa local, do tipo da Apelada, pode ser objeto quer de um processo de revitalização, quer de um processo de insolvência. Seja porque não assume nenhuma das qualidades previstas nas exclusões legalmente enunciadas (artigo 2.º, n.º 2 als. a) e b) do CIRE), seja ainda porque estando também, como vimos, sujeita ao direito privado comum e detendo a autonomia patrimonial bastante para o efeito, é suscetível de incorrer nessa situação, desde logo por ser uma pessoa coletiva (artigo 2.º, n.º 1 al. a) do CIRE).
E não se diga que por ter um objeto limitado, cingido à “exploração de atividades de interesse geral ou a promoção do desenvolvimento local e regional” (artigo 20.º, n.º 1, do RJAEL) e por dever prosseguir o interesse público, a sua natureza é mista e, consequentemente, tal circunstância arreda a aplicação do regime extintivo das sociedades comerciais, com as quais não pode, para esses efeitos, ser comparada.
É que, além de toda a argumentação já expendida, também as sociedades participadas, ou seja, aquelas em que os municípios, as associações de municípios e as áreas metropolitanas adquirem participações “devem prosseguir fins de relevante interesse público local, compreendendo-se o respetivo objeto social no âmbito das atribuições das entidades públicas participantes” (artigos 51.º, n.º 1 e 52.º, da RJAEL) e nem por isso essas sociedades estão excluídas dos processos de revitalização e/ou insolvencial.
Cremos, portanto, que, em qualquer plano jurídico que nos coloquemos, a insolvência e/ou revitalização das empresas locais são suscetíveis de ser jurisdicionalmente declaradas, sem que daí resulte qualquer ofensa ao direito ordinário ou constitucional.
E sendo-o, não só este processo é adequado para o efeito, como igualmente são os tribunais comuns os competentes para essa declaração.
À jurisdição comum, com efeito, compete julgar os litígios que não sejam atribuídos à competência de outras ordens judiciais [artigo 211.º, n.º 1, da CRP e artigo 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ)]. E à jurisdição administrativa e fiscal, por sua vez, compete o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212.º, n.º 3, da CRP); ou seja, litígios que tenham nomeadamente por objeto:
“a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo no qual se fundou a respetiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal”.
Ora, como é bom de ver, a declaração de insolvência de uma pessoa coletiva de direito privado, como concluímos ser o caso da sociedade, B…, S.A., não se integra em nenhuma das hipóteses acabadas de descrever. Até porque não está em causa o exercício de poderes de autoridade por parte daquela sociedade, caso em que, aí sim, seriam competentes os tribunais administrativos, por força do disposto no artigo 23.º, nº 1, “ex vi” artigo 67.º, do Decreto-Lei nº 133/2013, de 3 de outubro.
Por conseguinte, os tribunais comuns são os competentes, sob o ponto de vista material, para essa declaração (artigo 23.º, nº 2, “ex vi” artigo 67.º, do mesmo Decreto-Lei nº 133/2013), sendo este o processo próprio para o efeito.
*
4- Avancemos agora para a questão de saber se a Apelada, B…, S.A., preenche o pressuposto objetivo para ser declarada insolvente
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 do CIRE, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas.
Além disso, acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito, que, “[a]s pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.
Não se pode, porém chegar à conclusão de que uma determinada entidade jurídica está insolvente sem factos que o demonstrem.
Sucede que a sentença recorrida é totalmente omissa a este respeito; ou seja, não elencou um único facto tendente a demonstrar que a referida sociedade se encontra insolvente. Limitou-se a declará-lo.
Ora, pela leitura conjugada do preceituado no artigo 17.º-G, n.ºs 2 e 3, do CIRE, percebe-se que o juiz, no caso de não ser aprovado qualquer plano de recuperação do devedor, como sucedeu no caso presente, só pode declarar a insolvência do mesmo se ele se encontrar nessa situação. Caso contrário, o processo é simplesmente encerrado, extinguindo-se todos os efeitos do processo especial de revitalização.
Não há dúvidas, portanto, de que não há qualquer automaticidade entre a ausência de plano de recuperação do devedor e as consequências legais daí decorrentes. Tem de haver um juízo de intermediação entre ambas as realidades, no sentido de verificar quais dessas consequências são legalmente adequadas para o caso. E esse juízo só pode fundar-se em factos que o demonstrem. De resto, tal como sucede, em geral, com a maioria das decisões judiciais.
Efetivamente, nos termos do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. E, em sede processual civil, dispõe o artigo 154.º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1- As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2- A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
No que especificamente à sentença concerne, dispõe por seu turno o artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”.
O dever de fundamentação, mesmo em termos de facto é, pois, a regra relativamente às decisões judiciais.
E percebe-se que assim seja. Na verdade, a fundamentação, para além de legitimar a decisão judicial, constitui garantia do direito ao recurso, na medida em que uma decisão só pode ser objeto de impugnação eficaz, se o destinatário tiver acesso aos seus fundamentos de facto e de direito[26].
A tal ponto é importante o cumprimento deste dever que o artigo 615.º, n.º1, do Código de Processo Civil, reputa de nula a sentença que “[n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Ora, é, justamente, esse o caso. De modo que a sentença recorrida só pode ser declarada nula.
A declaração desta nulidade, porém, nem sempre implica que o tribunal de recurso fique dispensado de conhecer do objeto da apelação. A regra é até a contrária (artigo 665.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Ponto é que o tribunal de recurso tenha elementos em seu poder que lhe permitam exercitar o referido poder de substituição.
Ora, como veremos, não é isso que se passa no caso presente.
Este processo, já o sabemos, foi originado por um pedido da Apelada, B…, S.A., tendente à sua recuperação económica. Alegou ela que se encontrava “numa situação financeira difícil, tendo seríssimas dificuldades para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por falta de liquidez”.
No entanto, acrescentava: “se dispuser do tempo necessário para pagar as suas dívidas e regenerar a sua atividade tem capacidade para a revitalização/recuperação atendendo a que mantém todo um conjunto de programas e incentivos ao investimento, continuando a desenvolver negociações com uma carteira de empresas e investidores interessados, traduzindo-se, futuramente, em possíveis vendas” (artigos 3.º 3 4.º do requerimento inicial).
Não foi possível, no entanto, obter qualquer acordo de viabilização da citada sociedade com os respetivos credores e o Administrador Judicial Provisório acabou por dar conta desse facto no processo, o que originou, como já vimos, a declaração de insolvência questionada nestes recursos.
Se percorrermos o parecer do aludido Administrador, porém, facilmente verificamos que o mesmo se limita, no essencial, a dar conta das razões pelas quais não teve sucesso a tentativa formal de revitalização.
Diz ele: “Convidados os credores a participarem nas negociações tendo em vista a elaboração de um plano Económico-financeiro que permitisse a Revitalização da B…, de entre os quais se incluía o Programa Comunitário Financiador D…, foi o signatário e a Administração da B… surpreendida com a recusa de participação por parte deste organismo nas respetivas negociações, informando mesmo que só participaria nas mesmas no âmbito do Processo de Insolvência.
Se a recusa por parte do D… em participar nas negociações, numa primeira fase não inviabilizaria as mesmas, apenas não lhe concedia direito de voto no Plano de Recuperação, mais grave e essa sim, inviabiliza o referido Plano, foi a decisão por deliberação da Comissão Diretiva do D… de revogação das decisões de Financiamento.
Se todos os pressupostos do Plano de Recuperação, passavam pelo recebimento dos remanescentes de financiamento ainda em curso para a conclusão das obras em curso, pois só por esta via, seria possível gerar receitas para honrar os compromissos da empresa, esta decisão do D… deu a “machadada final” em todas as perspetivas de revitalização da mesma.
De realçar que o Plano económico-financeiro apresentado à votação dos credores, previa a conclusão das obras do Polo 5 com os apoios do D… e eram a principal base de receitas da B….
Independentemente da posição assumida pelo D…, os seus dois principais credores C… e E… (F…), vieram a reprovar o Plano apresentado, tal como consta do mapa de votações em devido tempo apresentado pelo aqui signatário.
Face ao exposto, é parecer do aqui Administrador Judicial Provisório, que a empresa, face à recusa de aprovação do Plano apresentado pela B…, pelos seus credores, tal como consta do mapa de votações oportunamente enviado ao Tribunal, que a empresa deverá prosseguir para INSOLVÊNCIA”.
Ora, como cremos já ter deixado suficientemente claro, não é a falta de aprovação do plano de recuperação que implica, necessariamente e por si só, a insolvência da entidade que foi sujeita a esse plano. O que determina essa insolvência é a insolvabilidade de tal entidade; ou, como diz a lei, a impossibilidade do devedor de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas ou ainda, no que concerne às pessoas coletivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, o facto do seu passivo ser manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
Importa, pois, que esteja demonstrado esse estado. E, para o efeito, o parecer do Administrador Judicial Provisório é de inestimável utilidade.
Como referem Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda[27], o Administrador não deve só comunicar a falta de plano de recuperação ao processo. “[D]eve, simultaneamente, informar o tribunal sobre se, em seu entender, e de acordo com os elementos que conhece, o devedor está ou não em situação de insolvência, requerendo a respetiva declaração em caso afirmativo…”. Até porque, como cremos ser doutrina e jurisprudência dominante, mas não unânime[28], o parecer do Administrador Judicial Provisório não equivale ao reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência, como numa primeira leitura se pode ser tentado a concluir da remissão que no nº 4 do artigo 17.º-G consta para o artigo 28.º, ambos do CIRE.
“Em face do que se comina na parte final do n.º 3 [do artigo 17.º-G], a aplicabilidade, determinada no n.º 4, do art.º 28.º, apenas releva para confirmar que, perante o requerimento de insolvência apresentado pelo administrador, o tribunal tem o poder – e o dever – de proferir despacho para a correção de vícios supríveis, que, naturalmente, o administrador está vinculado a cumprir exatamente em razão do caráter funcional das suas competências.
De todo o modo, a primeira parte do mesmo n.º 3 (…) tem de ser entendida, não no sentido de conferir ao tribunal o poder oficioso de declaração de insolvência, mas sim em articulação com o n.º 4 e, por isso, no sentido de que a situação de insolvência tem de ser verificada pelo administrador no parecer que emite e, em consequência, por ele requerida, sendo então decretada sem necessidade de apresentação ou de requerimento de algum dos legitimados, para esse efeito, pelo art. 20.º e no quadro do regime nele definido”[29].
É, assim, inequívoco que o parecer do Administrador Judicial Provisório, que requer a insolvência de uma entidade sujeita a um processo de revitalização, tem de ser fundamentado a respeito do pressuposto que integra essa consequência jurídico-processual. E quando o não for, o juiz deve determinar a correção dessa falta, tal como deve, por imposição do disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, determinar todas as diligências necessárias à comprovação da situação económico financeira do devedor, posto que lhe é lícito, inclusive, avaliar essa situação com base em factos que não estejam sequer alegados pelas partes (artigo 11.º do CIRE). Isto, sem prejuízo do ónus que compete ao devedor de demonstrar os factos em que baseia a sua pretensão. Mas, uma vez que, a nosso ver, o requerimento de insolvência do devedor formulado pelo Administrador Judicial não se reconduz, nem confunde, com a apresentação pelo devedor, não é aqui aplicável o disposto no artigo 3.º, n.º 4, do CIRE. O que afasta qualquer presunção sobre o estado de insolvência e impõe a demonstração da verificação desta por recurso a factologia bastante.
Ora, no caso presente, já o dissemos e repetimos, nem a sentença recorrida, nem o parecer do Administrador Judicial Provisório, têm qualquer facto que comprove a situação de insolvência da Apelada. A que acresce que toda a documentação produzida, mormente a que foi apresentada inicialmente pela mesma Apelada (fls. 110 a 134), foi toda direcionada para a comprovação da sua viabilidade económica.
Há, pois, necessidade de recolher novos elementos de prova, designadamente através do Administrador Judicial já referido, tendentes a clarificar a atual situação económica da B…, S.A., no sentido de saber se a mesma está, ou não, em situação de insolvência. E essa instrução não pode deixar de ser feita pelo tribunal recorrido, como resulta do disposto no artigo 662.º, n.º 2 al. c), do Código de Processo Civil.
Impõe-se, assim, a anulação da sentença recorrida com esta finalidade, ainda que se confirme, no mais, a decisão ali tomada a respeito dos pressupostos processuais e exceções que foram questionadas nestes recursos.
Nesta decorrência, o recurso da C…, S.A. será julgado parcialmente procedente (cfr. clª 12ª) e, no mais, será de julgar improcedente; improcedência que é total em relação ao recurso do F…, S.A., pois que este baseou a sua discórdia em relação à sentença recorrida na verificação de pressupostos que, como vimos, não podem ser acolhidos.
*
III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em:
1º- Julgar parcialmente improcedente o recurso apresentado pela C…, S.A. e totalmente improcedente o recurso do F…, S.A., e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida quanto aos pressupostos processuais e exceções questionadas nos mesmos recursos.
2º- No mais, concedendo parcial provimento ao recurso da C…, S.A., anula-se a referida sentença e determina-se que se ordene a correção do parecer emitido pelo Sr. Administrador Judicial, no sentido de o mesmo fundamentar factualmente a situação de insolvência em que diz ter incorrido a Apelada, B…, S.A., e, após, se outras diligências instrutórias não se afigurarem necessárias, se decida em conformidade.
*
- O F…, S.A. suportará, em exclusivo, as custas referentes ao seu recurso e a C…, S.A., por sua vez, pagará metade das custas também do recurso que interpôs, sendo a parte restante suportada pela parte vencida a final – artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
*
Porto, 23/06/2015
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
Henrique Araújo
__________
[1] Neste sentido veja-se, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora 2007, Jorge Miranda e Rui Medeiros, página 78, anotação XII, alínea a).
[2] Miguel Teixeira de Sousa “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material”, BMJ, 325, págs. 176 e 179
[3] Cfr. neste sentido, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5ª ed., Almedina, pág. 276.
[4] Note-se que se tratou de uma decisão liminar tomada no processo de revitalização desencadeado pela própria B…, S.A.
[5] Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 727.
[6] Ac. STJ de 18/06/2014, Proc. 209/09.1TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[7] Paulo Otero, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, pág. 468.
[8] Como refere PROSPER WEIL, “O Direito Administrativo” (Tradução), Almedina, Coimbra, 1977, citado por Juliana Coutinho, “A Geometria Variável do Direito Administrativo”, consultável em http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/66169, “O ente público agindo para um fim de interesse geral com meios que exorbitam do direito comum: constelação clássica que explodiu em três direcções. Os entes públicos já não têm o monopólio da actividade administrativa. Já não é verdade que a actividade administrativa seja sempre conduzida com meios que exorbitam do direito comum. O fim de interesse geral é ele próprio objecto de cambiantes que lhe esbatem os contornos. No prosseguimento desta dissociação, hoje consumada, entre os órgãos, os fins e os meios, o regime jurídico da actividade administrativa adquiriu uma complexidade tal que é bastante difícil desenlear um tal emaranhado”.
[9] Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 4ª ed., Coimbra 1987, pág.73, conforme citação transcrita no Ac. STJ de 19/03/2015, Proc. 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A, consultável em www.dgsi.pt
[10] Cfr. neste sentido, além de outros, o Ac. STJ de 06/05/2015, Proc. 327/14.4TTLRA.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[11] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição atualizada, Quid Juris, pág. 77.
[12] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, e subsequentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto, Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, Decreto-Lei n.º 282/2007, de 07 de Agosto, Decreto-Lei n.º 116/2008, de 04 de Julho, Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12 de Agosto, Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e Decreto-Lei n.º 26/2015, de 06 de Fevereiro.
[13] Ou seja, a “[p]romoção, manutenção e conservação de infraestruturas urbanísticas e gestão urbana e a renovação e reabilitação urbanas e gestão do património edificado” – Cfr. cópia da certidão permanente (do Registo Comercial), de fls. 110 a 112.
[14] Que, em abono da verdade, deve dizer-se, subscreveu o requerimento que consta de fls. 144 a157, dirigido ao Sr. Administrador Judicial Provisório antes do parecer por este emitido no âmbito do processo de revitalização e integra também, ao que parece, o escritório dos mandatários da Apelante F…, S.A. (cfr. fls. 141).
[15] Empresas Municipais, S.A. (“S” de Sociedades e “A” de Anómalas) e a Aplicação do CIRE, prefácio de Pedro Costa Gonçalves, AEDRL, Braga 2015, pág. 67.
[16] Carlos José Batalhão, Ob. Cit., pág. 103.
[17] Carlos José Batalhão, Ob. Cit., pág. 106, citando ainda Miguel Assis Raimundo, no seu livro “As Empresas Públicas nos Tribunais Administrativos, pág. 348.
[18] Consultável, por exemplo, em http://www.nedal.uminho.pt/0_content/lb_-_sel.pdf.
[19] Parecer da PGR de 18/01/2007, seguindo a enunciação de João Pacheco de Amorim em obra citada.
[20] Cfr. o Parecer da PGR já referido (de 18/01/2007), no qual se afirma que “[a]pesar do laconismo da Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto – que se limita a dispor que «as empresas gozam de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial» (artigo 2.º, n.º 1) – tem-se entendido que o respectivo regime jurídico, com destaque para os traços enunciados, aponta para a natureza pública das empresas reguladas na Lei n.º 58/98, isto é, para a sua qualificação, no plano da respectiva forma jurídico-organizatória, como pessoas colectivas públicas”.
E conclui que essas empresas devem ser todas qualificadas de ““empresas públicas municipais”, não num sentido latíssimo que abstraia da forma jurídico-organizatória adoptada (como acontece com as … “empresas públicas estaduais”), mas no sentido tradicional entre nós de “entes de direito público com regime de actuação jurídico-privado””.
[21] Que pode ser consultado neste endereço eletrónico: http://www.portugal.gov.pt/media/132774/doc_verde_ref_adm_local.pdf.
[22] E neste caso, como refere Juliana Coutinho, A Geometria Variável do Direito Administrativo, pág. 122, nota 40, consultável em http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/66169, não se colocará, à partida, qualquer dificuldade qualificativa entre a personalidade jurídico-privada e a personalidade jurídico-pública “relativamente às pessoas colectivas que o legislador qualifica como públicas ou privadas. Independentemente do regime jurídico elaborado e da sua maior ou menor coerência com a qualificação legal da pessoa colectiva, — o que depende do critério que se adopte para a distinção entre personalidade jurídica pública e personalidade jurídica privada —, a verdade é que o intuito do legislador não pode ser negligenciado, embora possa ser reinventado”.
[23] Pedro Costa Gonçalves, Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local, Almedina, 2012, pág. 115, e Paulo Henrique Vaz Alvarenga, Setor Empresarial Local, o enfoque sobre as Empresas Locais, Cedipre online I, 21, pág. 57, consultável em http://www.fd.uc.pt/cedipre/publicacoes/online/public_21.pdf.
[24] Pedro Costa Gonçalves, ob. Cit., pág. 117, e Paulo Henrique Vaz Alvarenga, ob. cit., pág. 59.
[25] O sublinhado é da nossa responsabilidade.
[26] Como assinalam Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, pág. 70, a fundamentação das decisões judiciais cumpre simultaneamente, uma função de caráter objetivo – traduzido na pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões –, e uma função de caráter subjetivo – que, através do controlo da correção material e formal das decisões pelos seus destinatários, visa garantir o direito ao recurso.
[27] Ob cit, pág. 177.
[28] Cfr., o Ac. RP de 26/03/2015, Proc. 89/15.8T8AMT-C.P1, consultável em www.dgsi.pt, ainda que não fosse esta a questão a dirimir naquele recurso.
[29] Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob cit., pág. 178.