Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3782/16.4T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE
ADMINISTRADOR
Nº do Documento: RP201706293782/16.4T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 101, FLS. 61-63)
Área Temática: .
Sumário: Cabendo ao administrador os poderes de representação em relação ao devedor declarado em estado de insolvência e, detendo este, a posição de credor relativamente a terceiro, verifica-se um quadro suficiente para justificar a legitimação que faculta a um credor desencadear a abertura de processo de insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 3782/16-17 3.ª RP
Relator: Mário Fernandes (1635)
Adjuntos: Leonel Serôdio
Ataíde das Neves.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.

A “Massa Insolvente” da sociedade “ B… Unipessoal, Ld.ª”, representada pelo seu Administrador.

veio intentar acção especial de insolvência contra

C… e mulher D…, com última residência conhecida na …, …, Vila do Conde, no essencial invocando que a aludida sociedade declarada insolvente – esta por força do sentenciado em 15.7.2015 no respectivo processo – era credora dos Requeridos pelo montante de 45.725 euros, na sequência da celebração de negócio de trespasse de estabelecimento comercial de restauração com os Requeridos, os quais haviam deixado de cumprir as obrigações inerentes a tal negócio, a ponto de ter corrido execução instaurada pela sociedade insolvente contra aqueles últimos, onde se fixou por acordo o montante em dívida e os termos do seu pagamento, mas tendo os Requeridos falhado na liquidação das prestações acordadas, situação de incumprimento que também sucede com outros credores, tudo a caracterizar uma situação de incumprimento generalizado de obrigações assumidas pelos Requeridos e também por isso se justificando a pretensão deduzida.

Após ser documentada a declaração do estado de insolvência da referida sociedade “B…”, proferiu-se despacho a indeferir liminarmente a pretensão deduzida pela Requerente, no essencial aduzindo-se não dispor aquela última de legitimidade para desencadear o procedimento de insolvência contra terceiros, posto a respectiva “massa” ou seu “Administrador” não poderem considerar-se “credores” para os termos do art. 20 do CIRE, para além de não caber nas funções do “Administrador da Insolvência”, em representação dos demais credores, a instauração de tal tipo de procedimento.

Inconformada, interpôs a identificada “Massa Insolvente” recurso de apelação, concluindo as suas alegações nos termos que se passam a transcrever:
- A Autora, representada pelo Sr. Administrador da insolvência nomeado no âmbito da insolvência, em que foi declarada insolvente a sociedade “B… Unipessoal, Ld.ª”, veio requerer a declaração de insolvência dos Requeridos C… e D…;

- Para fundamentar a sua pretensão, a Autora alega que é credora dos Requeridos e que estes últimos se encontram numa situação de insolvência;

- O Tribunal a quo considerou ilegítimo o Administrador da Insolvência, em representação da massa insolvente da referida sociedade, para instaurar uma acção desta natureza;

- O tribunal a quo entende que não assiste legitimidade à Requerente, representada pelo Sr. Administrador da insolvência, para instaurar insolvência contra terceiros, até pelos fins visados com este processo (e o âmbito do mesmo, que ultrapassa a cobrança de créditos e os interesses directos de quem pretenda apenas obter o pagamento do seu crédito), como se disse, para além do que resulta expresso do citado art. 20 (veja-se o consagrado no art. 1 do CIRE, segundo o qual “1 - O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores…”);

- Que a massa insolvente ou o Sr. Administrador da insolvência não representam os credores da insolvente e, desse modo, não pode intentar acções desta natureza contra terceiros;

- Que nos termos dos arts. 52 e segs. resulta que são distintos os “Órgãos da Insolvência” e nas funções previstas para o Sr. Administrador da Insolvência não consta a representação dos credores. Pelo contrário, resulta que exerce essas tarefas com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, sinal evidente de que os não representa. A tal acresce o facto dos credores terem de reclamar os respectivos créditos e de poderem impugnar os créditos reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência, o que demonstra que este não actua em representação dos credores;

- Que não obstante o Sr. Administrador da insolvência ter legitimidade para instaurar as acções previstas no art. 82, n.º 2, als. a/ a c/ do CIRE, conforme defendem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa, 2008, p. 346) aí está-se perante acções que se referem a “casos de responsabilidade de terceiros, conexos com a situação de insolvência”;

- Que a acção não visa a responsabilidade dos Requeridos, mas antes a declaração dos mesmos como insolventes. Pelo que, também por esta via não se vê que esteja assegurado o pressuposto da legitimidade activa, nem se vê qualquer possibilidade de suprimento;

- A recorrente entende que o Administrador da Insolvência tem legitimidade activa para instaurar insolvência contra terceiros;

- Ao administrador judicial estão cometidas funções e poderes/deveres muito importantes e de grande responsabilidade, pelo que é considerado, pelo legislador, servidor da Justiça e do Direito;

- O administrador Judicial, no exercício das suas funções, tem de acudir aos interesses de todos os intervenientes num processo especial de revitalização ou num processo de insolvência, mormente, aos credores que são quem mais prejuízos sofrem nos seus direitos de crédito;

- O Administrador de Insolvência tem, muitas vezes, de dar o impulso processual. Equivale isto a dizer que a natureza das funções que lhe são atribuídas ultrapassa o mero exercício cautelar da administração da massa, para o converter numa das “peças” centrais de todo o processo;

- O Administrador de Insolvência tem a função de: apreender todos os bens do devedor; administrar e dispor dos bens integrantes da massa insolvente; liquidação do activo; resolução dos actos prejudiciais à massa; verificação dos créditos; apreensão dos elementos da contabilidade do devedor insolvente; proceder ao pagamento dos créditos sobre a massa insolvente, bem como dos créditos sobre a insolvência (art. 55, n.º 1);

- O Administrador de Insolvência também exerce funções complementares ou acessórias, nomeadamente: elaborar um inventário; preparar uma lista provisória de credores; elaborar um relatório contendo uma análise dos documentos entregues com a petição inicial, do estado da contabilidade, da situação económica e financeira; cumprir determinadas obrigações fiscais durante o processo de insolvência; elaborar um plano de insolvência; proceder ao encerramento de estabelecimentos do devedor; efectuar a alienação da empresa do devedor ou dos seus estabelecimentos; escolher a modalidade da alienação dos bens; alegar o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afretadas por tal qualificação; abrir uma conta bancária em nome da massa insolvente para lá depositar todas as receitas obtidas com a liquidação dos bens do devedor; promover à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando, quanto possível, o agravamento da sua situação económica; poderá celebrar contratos para a admissão de trabalhadores; promover a cessação de contratos de trabalho, nesse caso através dos procedimentos previstos na legislação laboral, designadamente despedimentos colectivos; assinar os impressos destinados ao ‘Fundo de Garantia Salarial’ por parte dos trabalhadores; pedir a apensação ao processo de insolvência dos processos judiciais em curso contra o devedor insolvente; optar pela execução ou recusar o cumprimento de contratos quanto a negócios ainda não cumpridos;

- Ora, quem pode o mais, pode o menos. Se o Administrador de Insolvência tem a obrigação de proteger os interesses dos credores, evitar causar ainda mais prejuízos aos credores e a Massa Insolvente tem expectativa jurídica de receber alguma importância por conta de crédito que, naturalmente, reverterá para a massa Insolvente, então, a Massa Insolvente tem legitimidade para intentar a competente acção;

- Salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” violou a aplicação do art. 82, n.º 2, als. a/ a c/ do CIRE, ao não considerar a presente acção como “casos de responsabilidade de terceiros, conexos com a situação de insolvência”;

- Em suma, com o devido respeito, no entender da recorrente o tribunal “a quo” não deveria julgar a Autora como parte ilegítima, por se entender que quem permite o mais permite o menos, logo a presente acção constitui uma expectativa jurídica de aumentar o activo da Autora, proteger os interesses dos credores, diminuir os prejuízos dos credores;

- Termos em que, na procedência do recurso, deve revogar-se a sentença recorrida e julgar-se a acção inteiramente procedente.

Inexistem contra-alegações a considerar.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância se mantém válida.
II. FUNDAMENTAÇÃO.

A realidade a atender para a apreciação do presente recurso contende, no essencial, com a fundamentação avançada no requerimento inicial para ser justificada a instauração da acção, matéria que deixámos plasmada no relatório supra quanto às suas linhas principais.

Constitui, por sua vez, objecto do recurso dirimir a questão atinente à legitimidade da identificada “massa insolvente” para instaurar processo de insolvência contra um devedor daquela mesma “massa”.

Deixámos mencionado ter o tribunal “a quo” dado resposta negativa a tal problemática, posto a aludida “massa” ou o seu “administrador” não poderem considerar-se credores dos Requeridos ou representantes do “credor”, em ordem dar-se como verificado o pressuposto processual de legitimidade (activa), tendo em conta a previsão contida no art. 20 do CIRE.

Vejamos se é de acolher a motivação assim adiantada para justificar o indeferimento do requerimento inicial.

Resulta, com efeito, do prescrito no n.º 1 do citado art. 20 que um dos legitimados para instaurar processo de insolvência contra o devedor é o seu credor – única situação a equacionar no caso dos autos.

Como decorre da alegação inicial, vem invocada a existência dum crédito por parte da sociedade “B… Unipessoal, Ld.ª”, entretanto declarada insolvente, crédito esse que se teria constituído em momento anterior à declaração desse estado de insolvência.

Em face de tal decisão declaratória de insolvência e por força do prescrito no art. 81, n.º 4 do CIRE, o “administrador” da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, sendo certo que entre as várias funções que àquele incumbem destaca-se a de prover à conservação e frutificação dos direitos de insolvência (art. 55, n.º 1, al. b/, do CIRE).

Assim, para a instauração de acções posteriores à decisão de insolvência que a esta interessem – por o seu resultado poder afectar o activo ou o passivo da massa insolvente – só o administrador de insolvência, por princípio, tem legitimidade, apesar de não estar arredada a possibilidade do próprio insolvente tomar a iniciativa da acção, quando esteja em causa a valorização do património da massa insolvente – v., neste sentido, Lebre de Freitas, in “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil”, Vol. II, 2.ª ed., págs. 487 a 499.

Perante o assim regulado e tendo presente, com maior incidência, os poderes de representação que na insolvência cabem ao “administrador”, pergunta-se se a iniciativa de instaurar a lide a que vimos aludindo cai fora dos exercício das funções que lhe estão conferidas, até mesmo enquanto representante do património autónomo formado pela “massa insolvente”.

Cremos que a resposta a esta questão deverá ser positiva, pois que, numa primeira abordagem, cabendo ao “administrador” os poderes de representação em relação ao devedor declarado em estado de insolvência e detendo este, segundo o alegado, a posição de credor relativamente a terceiro (no caso, os Requeridos), verifica-se um quadro suficiente para justificar a legitimação a que alude o n.º 1, do art. 20 do CIRE, que faculta a um credor desencadear a abertura de processo de insolvência.

De assinalar que, através desse procedimento, estará também em causa a defesa de interesses de natureza patrimonial com interesse para a insolvência, precavendo-se eventual dissipação de património que pode servir para o aumento do activo da massa insolvente e, assim, poder garantir-se a salvaguarda do falado crédito.

Para além disso, porque a “massa insolvente” abrange, desde logo, o património do devedor à data da declaração de insolvência (art. 46, n.º 1 do CIRE), não vemos motivos para nele deixar de integrar o crédito de que aquele – o devedor declarado em estado de insolvência – é titular e, por via disso, considerar aquela “massa” igualmente legitimada para exercer o direito de acção a que nos vimos referindo.

Na base do assim expendido, afastamo-nos da tese que fez vencimento no acórdão citado na decisão recorrida (ac. da RE de 12.2.2015, disponível na base de dados do MJ), não só por o fundamento que esteve na génese da instauração de processo de insolvência naquele referido se relacionar com um caso atinente à responsabilidade de terceiro (sócio da sociedade declarada insolvente), conexa com a situação de insolvência (v. art. 82, n.º 3 do CIRE), algo que não se enquadra na hipótese aqui em análise, a que acresce não acompanharmos o aí afirmado no que toca à rejeição do “Administrador de Insolvência” poder assumir o papel de representante do devedor – insolvente e também credor de terceiro – em ordem a desencadear processo de insolvência contra esse mesmo terceiro.

Equivale o explanado a considerar insubsistente a decisão de indeferir liminarmente o requerimento inicial, enquanto sustentada na ilegitimidade activa do “Sr. Administrador”, em representação da identificada “massa insolvente”, propor, com a alegada fundamentação, a insolvência dos Requeridos.
III. CONCLUSÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, nessa medida, revogando-se a decisão recorrida, determina-se o prosseguimento dos ulteriores termos da presente lide.

Custas da apelação segundo critério a definir aquando da apreciação do pedido deduzido na acção.

Porto, 29 de Junho de 2017
Mário Fernandes
Leonel Serôdio
Ataíde das Neves