Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
443/09.4TRPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MARCOLINO
Descritores: PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA PROVA LIVRE
FUNDAMENTAÇÃO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA
Nº do Documento: RP20150204443/09.4TRPRT.P2
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O sistema de prova livre ou prova cientifica existente no direito processual penal português assenta no princípio da livre apreciação da prova.
II – Tal princípio implica que a decisão quanto à matéria de facto tem de estar sustentada de forma racional e lógica nos meios de prova produzidos: o raciocínio lógico que relaciona o indício resultante da produção dos meios de prova com o facto probando tem de ser facilmente apreensível em termos objectivos pelos sujeitos processuais e pelo tribunal de recurso.
III - Tal principio, que é estruturante do processo penal, só é entendível e aceitável se interligado e conjugado com a obrigatoriedade de fundamentação das decisões, através da qual é possível verificar se a decisão não enferma do vicio de desvio do poder ou de finalidade e se o seu objectivo não foi absurdo, contraditório ou desproporcionado.
IV - O Tribunal de recurso só pode censurar a decisão recorrida, no que diz respeito à credibilidade de uma fonte de prova pelo julgador, assente na imediação e oralidade, quando ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum e do bom senso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 443/09.4TRPRT.P2
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
1. Nos autos de processo comum singular 443/09.4TRPRT, do 2º Juízo Criminal de Gondomar, acusado pelo MP, foi submetido a julgamento o arguido B…, casado, nascido 03.08.1960, advogado, filho de C… e de D…, natural da freguesia …, concelho de …, com residência profissional na Rua …, nº .., .º Dto., em Lisboa, pela prática de factos subsumíveis ao crime de difamação agravado, p. e p. nos artigos 180º, nº 1, 182º, 183º, nº 1, al. a) e 184º, por referência ao artigo 132º, nº 1, al. l), todos do Código Penal.

2. O ofendido deduziu PIC, pedindo que o arguido seja condenado a pagar-lhe a quantia de €5.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da notificação para contestar até efectivo pagamento.

3. Efectuado o julgamento foi o arguido absolvido tanto do crime por que vinha acusado como do PIC.

4. Não conformado, o Digno Magistrado do MP interpôs recurso.
Na procedência do mesmo foi anulada a sentença por falta de fundamentação.
Lê-se do acórdão desta Relação que “a Sr.ª Juiz não explica (a decisão é totalmente omissa nesta parte), e vai ter de o fazer, por que é que a expressão usada na resposta ao parecer do MP na Relação do Porto, na qual apelida o ofendido, conjuntamente com uma Sr.ª Juíza, de “Magistrados Prevaricadores”, não é ofensiva da honra quando se trata de emissão de um juízo de valor que, com o devido respeito, em nada “depende da análise jurídica do comportamento objectivamente comprovado do arguido”.

5. Lavrada nova sentença, foi novamente o arguido absolvido tanto da acusação como do PIC.

6. Porque continua irresignado, o Digno Magistrado do MP interpõe recurso, de cuja motivação extraiu as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida interpretou erradamente o principio consagrado no artigo 127 do CPP, ao dar como provado que um arguido advogado que apelida de prevaricador um Procurador da República, durante e por causa da postura deste num interrogatório judicial, não age com dolo, com intenção de ofender e ao dar como provado que tal epíteto é necessário á defesa de um cliente do advogado arguido, sem que alguma vez se tenha provado no dito magistrado uma postura criminosa.
2. E, tal interpretação errada, viola também o dito princípio consagrado no artigo 127 do CPP, por não ter feito uma análise criteriosa de toda a prova e apenas dado credibilidade à versão do arguido e de suas testemunhas, ao arrepio das regras de experiência, do bom senso, como exige o artigo 127 do CPP.
3. Deve pois a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que dê como provados todos os factos que constavam da acusação incluindo os três factos que agora a decisão recorrida deu como não provados e assim se dará cumprimento satisfatório ao artigo 127 do CPP.
4. E, tal nova decisão deverá terminar como tem de ser, pela condenação do arguido como vinha requerido na acusação e, só assim se poderá fazer uma esclarecida e saudável Justiça.

7. O arguido apresentou a sua resposta que, por despacho de fls. 571 foi mandada desentranhar e entregar ao apresentante.
Fundamentou a Sr.ª Juiz a sua decisão no facto de o prazo para responder ao recurso interposto terminou no dia 23/6/2014. Tendo as alegações do recorrido sido apresentadas em 4/7/2014, são, assim, manifestamente extemporâneas”.

8. O arguido atravessou requerimento, que apelidou de reclamação, suscitando a intervenção do Ex.mo Presidente desta Relação.
Conclui pedindo seja proferido despacho “que ordene a admissão da resposta oferecida, em tempo útil e legalmente oportuno pelo Arguido, às motivações de recurso apresentadas pelo MP de Gondomar, no âmbito dos presentes autos”.

9. Não foi lavrado qualquer despacho a dar destino à Reclamação.

10. Nesta Relação, o Exmo PGA emite douto parecer no qual consignou:
“Tais juízos são claramente ofensivos da honra e consideração de um Magistrado do Ministério Público porque incorporam a negação dos já enunciados deveres legais e estatutários a que o mesmo se mostra vinculado e deste modo atingem a sua honra, na dignidade da pessoa e na pretensão de respeito que lhe é devido
Destarte, acompanhamos a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª Instância, a cujos argumentos nada mais se nos oferece acrescentar com relevo para a apreciação e decisão do recurso pelo que, sem necessidade de mais considerações, se emite parecer no sentido da procedência do recurso”.

Colhidos os vistos dos Colhidos dos Ex.mos Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

II
1. O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade:
a) O arguido exerce a profissão de advogado.
b) No âmbito do processo-crime n.º 221/08.8JAPRT, teve lugar no dia 3 de Junho de 2009, no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, entre outros, o primeiro interrogatório judicial do E…, que tinha como defensor constituído, o ora arguido, Dr. B….
c) Iniciado o referido interrogatório, o arguido afirmou que o seu cliente havia sido detido em hora anterior à que consta dos mandados de detenção, encontrando-se, assim, ultrapassado o prazo máximo de quarenta e oito horas.
d) Para confirmar tal versão dos factos, o arguido apresentou como testemunhas alguns familiares do seu cliente que estavam presente naquele Tribunal.
e) Na conclusão desse requerimento, o arguido requereu que o seu cliente fosse restituído à liberdade.
f) O ofendido, Dr. F…, Procurador da República, que representava o Ministério Público no referido interrogatório, entendeu que não existiam nos autos elementos fiáveis que pudessem pôr em causa a hora da detenção constante dos mandados, além de que na diligência em causa não poderiam ser inquiridas quaisquer testemunhas, pelo que promoveu que se procedesse, de imediato, ao primeiro interrogatório judicial do cliente do aqui arguido.
g) A M.ª Juiz de Instrução que presidia ao interrogatório, argumentando que a diligência em causa destinava-se à aplicação de medidas de coacção e não à realização de diligências que contrariem aquilo que consta exarado nos autos, nomeadamente a hora em que o E… ficou privado da liberdade, indeferiu a pretensão do aqui arguido e passou, de imediato, ao interrogatório do seu cliente.
h) Ainda antes de iniciar o interrogatório, o arguido ditou para a acta um novo requerimento, invocando a nulidade do despacho da M.ª Juiz de Instrução e de todo o processado subsequente, requerendo a emissão da pertinente certidão com vista a intentar as queixas-crime que entender adequadas.
i) Na sequência desse requerimento, a M.ª Juiz de Instrução deferiu, de imediato, a certidão, relegando o conhecimento da nulidade invocada para o despacho referente às medidas de coacção.
j) No final do interrogatório de todos os arguidos, no dia 9 de Junho de 2009, a M.ª Juiz de Instrução proferiu despacho em que indeferiu as arguidas nulidades, ilegalidades e irregularidades suscitadas pelo aqui arguido e aplicou ao seu cliente, além do termo de identidade e residência, caução, no montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros) e proibição de contacto, por qualquer meio, inclusivamente por escrito, com os restantes arguidos, bem como com os legais representantes das empresas lesadas que negociaram com as sociedades instrumentais “G…/H…” e funcionários ao seu serviço.
k) Inconformado com tal decisão, no dia 3 de Julho de 2009, o arguido, na qualidade de Advogado do E…, apresentou um recurso que deu entrada no Tribunal de Instrução Criminal do Porto e destinava-se a ser apreciado pelo Tribunal da Relação do Porto.
l) Nas alegações desse recurso, o arguido escreveu nas conclusões o seguinte: “O interrogatório do arguido e ora recorrente, haverá que ser declarado nulo, bem como tudo quanto foi processado subsequentemente; Com efeito, o período de detenção antes da apresentação à Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, excedeu as quarenta e oito horas previstas na lei; Por outro lado, o mandado de detenção padece do vício previsto e punido pelo artigo 256°, n.º 1, alínea d) e n.º 4, do CP; Facto esse que por ser crime público e ter sido arguido, sem que fossem extraídas as consequências legais, faz incorrer a Meritíssima Juiz de Instrução e o Digníssimo Magistrado do Ministério Público no crime previsto e punido pelo artigo 369º, do CP”;
m) No dia 2 de Julho de 2009, o arguido dirigiu uma carta ao Procurador da República ofendido, Dr. F…, com o seguinte teor: “Ex.mo Senhor Procurador Adjunto, Doutor F…, B…, Advogado melhor identificado com sinais nos autos em referência, vem mui respeitosamente informar como segue: - Durante o primeiro interrogatório do arguido detido, foi levantado o incidente de falsidade do mandado de detenção; - Tal facto mereceu da parte da Meritíssima Juíza de instrução Criminal, remissão para os artigos 544.° e seguintes do CPC. Acontece que, - O facto denunciado constitui crime público, carecendo de investigação mal seja adquirida noticia do mesmo: - Por tal facto, salvo melhor e mais douta opinião, deveria V. Ex.ª (bem como a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal), no mínimo, requerer a extracção de certidão para que o factos em apreço fossem objecto de investigação: - Não o tendo feito, incorreu V. Exa, no modesto ponto de vista do ora subscritor na prática do crime previsto e punido pelo artigo 369º, do CP; - situação que o ora subscritor entende ser obrigado a levantar, em sede de recurso, tendo em conta o dever de patrocínio a que está adstrito; Por tal facto, e apesar do artigo 91º, do Estatuto da Ordem dos Advogados a tanto não obrigar, mas tendo em conta o dever de lealdade a que os operadores da justiça estão vinculados, serve o presente requerimento para informar V. Exa. que tal será focado nas suas motivações do recurso”.
n) Além disso, o arguido, na resposta ao parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto, deu entrada nesse Tribunal, no dia 8 de Setembro de 2009, uma peça processual por si subscrita, onde escreveu, referindo-se ao magistrado do Ministério Público ofendido e à M.ª Juiz de Instrução Criminal: “Vêm agora os Senhores Magistrados Prevaricadores defender-se, argumentando que o Advogado subscritor requereu certidão, no acto, para eventual procedimento criminal, como se o Advogado agisse com manifesta má-fé”.
o) Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Dezembro de 2009, o recurso interposto pelo arguido, Dr. B…, foi rejeitado por ser manifestamente improcedente.
p) O ofendido sentiu-se indignado e revoltado com as frases, afirmações e expressões transcritas, nomeadamente que o ofendido, na qualidade de magistrado do Ministério Público, teria cometido um crime de denegação de justiça e prevaricação.
q) Não se conhecem antecedentes criminais ao arguido.
r) O arguido é casado, advogado não exercendo a profissão de forma remunerada desde que foi instaurado o presente processo. A mulher é professora e aufere cerca de €1.300,00 líquidos por mês. Têm um filho de 24 anos, ainda a seu cargo, que estuda numa universidade pública pagando cerca de €1.000,00 anuais de propina. Vivem em casa arrendada pela qual pagam €500,00 mensais. Têm carro próprio, um Peugeot …, o qual ainda se encontram a pagar em mensalidades de €220,00.

2. E considerou a Sr.ª Juiz a quo não haver resultado provado que:
● As frases, afirmações e expressões transcritas, nomeadamente que o ofendido, na qualidade de magistrado do Ministério Público, teria cometido um crime de denegação de justiça e prevaricação, no contexto do recurso em cuja motivação se inscreveram e na economia das pretensões nele aduzidas não relevam, nem ganham qualquer significado quanto à defesa de qualquer interesse legítimo do cliente do aqui arguido, revelando-se desnecessárias e extravasando o objecto do recurso interposto, traduzindo urna vontade clara e consciente, por parte do subscritor de tal peça, na formulação de juízos de valor e de suspeição sobre o ofendido quando lhe imputa a prática de um crime grave, colocando assim em causa a sua prestação funcional, designadamente quanto à rigorosa observância da lei.
● Ao assim proceder de forma livre, deliberada e consciente, sabia o arguido que com tais imputações e juízos ofendia a honra e dignidade do ofendido, enquanto homem e magistrado do Ministério Público, pondo em causa o seu bom nome e prestígio pessoal, profissional e institucional, o que quis.
● Sabia também o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
● As ofensas praticadas pelo demandado constituem uma grave desconsideração profissional e até pessoa.
● As frases, afirmações e expressões transcritas, nomeadamente que o ofendido, na qualidade de magistrado do Ministério Público, teria cometido um crime de denegação de justiça e prevaricação, no contexto do recurso em cuja motivação se inscreveram e na economia das pretensões nele aduzidas não relevam, nem ganham qualquer significado quanto à defesa de qualquer interesse legítimo do cliente do aqui arguido, revelando-se desnecessárias e extravasando o objecto do recurso interposto, traduzindo uma vontade clara e consciente, por parte do subscritor de tal peça, na formulação de juízos de valor e de suspeição sobre o ofendido quando lhe imputa a prática de um crime grave, colocando assim em causa a sua prestação funcional, designadamente quanto à rigorosa observância da lei.
● Ao assim proceder de forma livre, deliberada e consciente, sabia o arguido que com tais imputações e juízos ofendia a honra e dignidade do ofendido, enquanto homem e magistrado do Ministério Público, pondo em causa o seu bom nome e prestígio pessoal, profissional e institucional, o que quis.
● Sabia também o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

3. A Sr.ª Juiz assim fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto:
“A matéria provada teve por base desde logo as declarações do arguido que apesar de negar de forma peremptória qualquer intenção deliberada em ofender, admitiu ter escrito a carta que enviou ao Sr. Procurador, o texto das alegações de recurso e bem ainda a resposta ao parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação pois que sempre entendeu que no caso em concreto tendo sido levantada a questão da falsidade do mandado de detenção do arguido que representava no âmbito do interrogatório onde estiveram os magistrados em causa que os mesmos deveriam, por dever de oficio ter extraído certidão para se investigar, pois que tendo sido o seu arguido detido às 8 h da manhã, ter falado com o agente da judiciária que estava com o seu cliente às 10 horas e partir daí nunca mais falou com e ele e o cliente dá entrada no TIC do Porto às 13h30 dizendo-se no mandado que foi detido às 11.45m, entende que houve um arranjar dos documentos para dar bem a hora da detenção e que por isso havia um dever inequívoco de mandar averiguar o que frisou nas suas alegações de recurso, tendo escrito a carta aos magistrados por cortesia e até para que estes, querendo, podiam ainda denunciar a situação e mandar averiguar. Refere que quando escreve prevaricadores estava claramente exaltado porque no interrogatório onde requereu a extracção de certidão ficou bem claro que não ia fazer qualquer denúncia contra ninguém e que por isso ficou exaltado, mas que aquela é a palavra do artigo do crime que entende ter sido praticado pelos magistrados. Admite ainda toda a factualidade constante da acusação pública no que concerne ao interrogatório e subsequente tramitação no âmbito do processo crime n°221/08.8JAPRT que aliás é comprovada por toda documentação junta aos autos.
Considerou-se ainda o depoimento das testemunhas de defesa I…, J… e K…, todos advogados que intervieram no interrogatório referido na acusação como defensores de arguidos que ali ouvidos e que explicaram que durante o referido interrogatório que durou cerca de 13 dias houve sempre por parte do arguido uma postura leal, urbana e cordial com todos os intervenientes processuais e na sua grande maioria os defensores levantaram a questão de que estaria excedido o período temporal das 48 horas e que teria havido ilegalidades no que concerne aos mandados de detenção de alguns arguidos para acobertarem o período de 48 horas, sendo que o arguido requereu a extracção de certidão quando foi indeferida a nulidade e que na altura teria havido um comentário de que o arguido iria proceder criminalmente contra os magistrados, ao que este respondeu de forma inequívoca que não o faria, o que corrobora as declarações do arguido nesse sentido.
Também o ofendido, F… e a Juíza de Instrução que presidiu ao interrogatório, L…, referiram que tudo se passou como relatado na acusação pública, que foi requerida a extracção de certidão por parte do arguido e a determinada altura ele disse, em resposta a um comentário, que não ia proceder criminalmente contra os magistrados e que efectivamente não o fez.
O ofendido explicou que ficou indignado e revoltado quando recebeu a carta que lhe foi directamente dirigida, que considerou uma alfinetada, e depois com o que foi escrito nas alegações de recurso e na resposta ao parecer do Ministério Público por entender que sempre pautou a sua conduta profissional pelo estrito cumprimento da lei, explicando que mantém a queixa em causa devido às muitas peças escritas e do que se diz nos meios de comunicação social em que os magistrados são insultados.
A Mma. Juíza de Instrução que presidiu ao interrogatório, L…, referiu que foi um interrogatório muito moroso, de 13 dias seguidos, com uma carga de trabalho extenuante, em que todos deram o seu melhor, e que quando recebeu a carta também não gostou e ficou ofendida, mas não quis qualquer procedimento criminal, explicando que o ofendido se demonstrou afectado até porque o Ministério Público é o defensor da legalidade.
Neste sentido foi também tido em consideração o depoimento das testemunhas M…, procurador da república, e N…, funcionária judicial que explicaram a indignação e revolta que o ofendido teve ao ser-lhe dirigida a carta pelo arguido a imputar-lhe a prática de um crime e depois com o que este escreveu no âmbito do recurso.
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido considerou-se o teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 387 e no que respeita às suas condições económicas relevou-se as suas próprias declarações.
A formação da convicção do tribunal quanto aos factos não provados resultou da circunstância de nenhuma prova se ter produzido em audiência de julgamento com relevância para a convicção positiva do tribunal.
De facto o que resuma dos presentes autos é que o arguido se limitou a fazer uma interpretação jurídica do comportamento do ofendido enquanto magistrado do Ministério Público, e que o fez no âmbito do direito de defesa do seu cliente explicando que o ofendido, enquanto magistrado do Ministério Público, no exercício das suas funções, ao não extrair as legais consequências ao lhe ser arguida a falsidade do mandado de detenção do seu cliente (havendo no seu entendimento indícios para tanto), incorre na prática do crime previsto e punido no art. 369° do Código Penal.
E o arguido assim o fez porque, estava convicto, como resulta das suas declarações e das testemunhas de defesa que foram ouvidas, que mereceram a credibilidade do tribunal, que efectivamente tinha existido falsificação do mandado de detenção do seu cliente.
Acresce que o que o arguido faz é relatar tal facto aos Senhores Desembargadores junto do Tribunal da Relação do Porto no âmbito das alegações do recurso que interpôs inconformado com a decisão que indeferiu a nulidade do mandado de detenção por si arguido. E fá-lo sem exceder os limites necessários à prossecução do seu direito, fazendo tão somente uma interpretação jurídica (errada ou não) do comportamento omissivo dos magistrados, dentro do próprio processo em que entende ter existido a falsificação do mandado, cuja validade era desde logo condição para a validade da detenção do seu arguido, o que dessa forma não o compromete com nenhuma forma desproporcionada de exprimir as razões que cria assistir-lhe, não extravasando dessa forma o objecto do recurso interposto e não se tratando de uma vontade clara e consciente na formulação de juízos de valor e de suspeição sobre o ofendido.
Quanto à carta que foi dirigida pessoalmente ao ofendido, da mesma ressalta e de forma expressa, e no contexto em que surge, uma preocupação do arguido em dar a conhecer ao ofendido que vai referir nas suas alegações de recurso um comportamento da sua parte, no âmbito do exercício das suas funções, que entende não ser o correcto e que no seu modesto ponto de vista integra a prática do crime previsto e punido no art. 369° do Código Penal, o que também foi explicado em audiência, e de forma impressiva e merecedora da credibilidade do tribunal, pelo próprio arguido, sendo certo que se outros, além do ofendido, conheceram o seu conteúdo foi porque o próprio ofendido a exibiu a terceiros assim dando a conhecer o que ali se dizia.
No que concerne à expressão «magistrados prevaricadores», que surge na resposta ao parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto, e isto ainda no âmbito do recurso interposto pelo arguido na defesa dos interesses do seu constituinte, ainda que o próprio arguido admita que quando a escreveu estava exaltado, querendo com tanto admitir que possa ser deselegante, a verdade é que tal palavra «prevaricadores» mais não faz do que expressar ou denominar quem pratica o crime em questão de denegação de justiça e prevaricação, que como supra se referiu o arguido entendeu qualificar o comportamento do ofendido sendo certo que relatou os factos concretos que entende consubstanciarem a prática de tal crime e que já havia imputado ao ofendido nas sua alegações de recurso, não estando por isso mesmo descontextualizada tal expressão.
Quanto ao dolo importa lançar mão dos ensinamentos de Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II, pág. 292) que refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta, como são todos os elementos de estrutura psicológica. E, exceptuando as situações de confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e dessas coisas se conclui pela sua existência; afirma-se, muitas vezes sem mais nada, o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material; quando um meio só corresponde a um dado fim ilícito e criminoso, o agente não pode tê-lo empregado, senão para alcançar aquele fim: Malatesta, A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pág. 172. E neste sentido o que acontece é que no caso em apreço o que se infere, até pelas declarações do arguido, que foram apoiadas pelos depoimentos das testemunhas de defesa, as quais mereceram a inteira credibilidade do tribunal, é precisamente o inverso do que está na acusação pública: que o arguido age é na convicção de estar cumprir o seu dever de ofício de defesa do seu cliente e de manifestar a sua opinião e denunciar o que entende por práticas não correctas, reconhecendo inclusivamente que quando escreveu na resposta ao parecer do PGA «magistrados prevaricadores» estava exaltado e que tal será deselegante.

4. No presente recurso, compulsadas as conclusões, por referência à motivação, facilmente se consta que é suscitada uma única questão, a de saber se devem ser considerados provados os factos não provados (elementos subjectivo do tipo em causa) porque “a decisão recorrida interpretou erradamente o principio consagrado no artigo 127 do CPP; e ainda porque não foi feita “uma análise criteriosa de toda a prova e apenas dado credibilidade à versão do arguido e de suas testemunhas, ao arrepio das regras de experiência, do bom senso, como exige o artigo 127 do CPP”.

III.
DECIDINDO
1. Questões Prévias
1.1 O arguido reclamou para o Ex.mo Presidente desta Relação do despacho que lhe mandou desentranhar a resposta ao recurso, por extemporaneidade.
Com o devido respeito, navega em alguma confusão conceptual.
A figura da reclamação para o Tribunal Superior está prevista apenas como forma de reacção contra o “despacho que não admita o recurso”[1] – n.º 1 do art.º 643º do CPP, aplicável ex vi do disposto no art.º 4º do CPP.
O que, manifestamente, não ocorre nos autos.
De todo o modo, ainda que fosse admissível reclamação, a mesma teria de ser indeferida porque, na realidade, a resposta ao recurso foi apresentada muito para além dos 30 dias que a lei concede ao recorrido para responder ao recurso.
Improcede, pois, a arguida reclamação.
Sem prejuízo de se censurar o facto de não ter recaído qualquer despacho sobre a reclamação.
Em todo o caso, a decisão do recurso prejudica a reclamação que, respete-se, é infundada.

1.2 O Colectivo de Juízes que, por lei, tem de apreciar o presente recurso, teve ocasião de, por forma muito clara, dizer que “a conclusão extraída pela Sr.ª Juiz a quo pode explicar, e explica (como se vê da decisão jurídica), por que é que não se considera subsumível ao tipo legal de difamação a denúncia da eventual prática de um crime de prevaricação em sede de motivação de recurso”.
Logo se acrescentou:
“Pela simples razão, dizemos nós, que quem denuncia a prática de um crime tem de relatar os concretos factos que integram o tipo legal.
Por mais ofensivos que sejam contra a honra da pessoa em causa.
E, depois, das duas uma:
- Ou são verdadeiros (ou em boa fé se têm por verdadeiros) e nenhuma responsabilidade jurídico penal pode ser assacada ao denunciante;
- Ou são falsos, o que dele é bem sabido, e sujeita-se a ser punido pela prática de um crime de denúncia caluniosa”.
Está, pois, a coberto do caso julgado, que vincula tanto o Tribunal a quo como este Tribunal, o objecto do processo atinente ao conjunto de factos que constam da denúncia apresentada em sede de motivação do recurso, sendo certo que os factos constantes da carta dirigida ao Participante não são ofensivos da honra e consideração que lhe são devidas enquanto Homem e enquanto Magistrado do MP.
Como é por demais evidente.
Resta, pois, como se vê do acórdão que anulou a sentença de 1ª Instância por falta de fundamentação, “a expressão usada na resposta ao parecer do MP na Relação do Porto, na qual apelida o ofendido, conjuntamente com uma Sr.ª Juíza, de «Magistrados Prevaricadores»”.
E isto porque, acrescentava-se, “se trata de emissão de um juízo de valor que, com o devido respeito, em nada «depende da análise jurídica do comportamento objectivamente comprovado do arguido»”.
Não se retira uma vírgula ao que então se escreveu.
Antes se reitera e reafirma tal fundamentação.

1.3 Os Tribunais são órgão de soberania que administram a justiça em nome do povo.
Num Estado de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana é estruturante e impõe-se a tudo e a todos.
É lamentável, categoricamente o afirmamos, que um profissional do foro use juízos de valor que em nada dignificam quem os emite.
Ademais, reconhecendo-se que a expressão usada é “deselegante”.
Mas sabendo-se também que está dirigida a outros profissionais do foro, os Magistrados.
Mas não é só deselegante como, na realidade, é objectivamente ofensiva da honra e consideração devidas ao visado.
O que é lamentável.
Mas mais lamentável é, ainda, quando um Ex.mo Advogado admite que escreveu a expressão em causa em peça processual no momento em que se encontrava em estado de “exaltação”.
Ora, a justiça exige serenidade e ponderação.
Condutas como estas ajudam a que a justiça se descredibilize.
E, por isso, não pode deixar-se sem um juízo de censura veemente o compotamente arguido.
Independentemente da decisão da questão penal.

2. De fundo
2.1 Resta, por isso, apurar se tal expressão, ou melhor, se a emissão de tal juízo de valor, no contexto, é ofensiva da honra devida a um Magistrado do MP, sabendo-se que, em abstracto, o é.
Na sequência, importa apurar se a decisão de não considerar provado o elemento subjectivo do tipo, quando analisado o juízo de valor no contexto em que foi emitido, importa, de per si, se considere provado que:
● As frases, afirmações e expressões transcritas, nomeadamente que o ofendido, na qualidade de magistrado do Ministério Público, teria cometido um crime de denegação de justiça e prevaricação, no contexto do recurso em cuja motivação se inscreveram e na economia das pretensões nele aduzidas não relevam, nem ganham qualquer significado quanto à defesa de qualquer interesse legítimo do cliente do aqui arguido, revelando-se desnecessárias e extravasando o objecto do recurso interposto, traduzindo urna vontade clara e consciente, por parte do subscritor de tal peça, na formulação de juízos de valor e de suspeição sobre o ofendido quando lhe imputa a prática de um crime grave, colocando assim em causa a sua prestação funcional, designadamente quanto à rigorosa observância da lei.
● Ao assim proceder de forma livre, deliberada e consciente, sabia o arguido que com tais imputações e juízos ofendia a honra e dignidade do ofendido, enquanto homem e magistrado do Ministério Público, pondo em causa o seu bom nome e prestígio pessoal, profissional e institucional, o que quis.
● Sabia também o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
● As ofensas praticadas pelo demandado constituem uma grave desconsideração profissional e até pessoa.
● As frases, afirmações e expressões transcritas, nomeadamente que o ofendido, na qualidade de magistrado do Ministério Público, teria cometido um crime de denegação de justiça e prevaricação, no contexto do recurso em cuja motivação se inscreveram e na economia das pretensões nele aduzidas não relevam, nem ganham qualquer significado quanto à defesa de qualquer interesse legítimo do cliente do aqui arguido, revelando-se desnecessárias e extravasando o objecto do recurso interposto, traduzindo uma vontade clara e consciente, por parte do subscritor de tal peça, na formulação de juízos de valor e de suspeição sobre o ofendido quando lhe imputa a prática de um crime grave, colocando assim em causa a sua prestação funcional, designadamente quanto à rigorosa observância da lei.
● Ao assim proceder de forma livre, deliberada e consciente, sabia o arguido que com tais imputações e juízos ofendia a honra e dignidade do ofendido, enquanto homem e magistrado do Ministério Público, pondo em causa o seu bom nome e prestígio pessoal, profissional e institucional, o que quis.
● Sabia também o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.

A resposta é, vista a fundamentação da Sr.ª Juíza, claramente negativa.

2.2 O crime de difamação
Dispõe o art.º 180º do C. Penal, sob a epígrafe “Difamação”:
1 — Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.
2 — A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e
b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
3 — Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.
4 — A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.
Como bem refere o STJ[2], “Doutrinariamente pode definir-se a difamação como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético – social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado.
Na linguagem da lei, a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém. Enquanto a honra constitui o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, a consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão.
Acusações difamatórias serão, portanto, afirmações que atribuem a alguém factos ou condutas, ainda que não criminosos, mas que sejam ofensivas da reputação do visado”.
A honra está ligada a valores de probidade e de honestidade.
A reputação está ligada à dignidade de cada pessoa, ao seu bom-nome.
O tipo legal, como todos os outros, desdobra-se em dois elementos:
- O elemento objectivo, aqui consistente na formulação de um juízo ofensivo da honra e consideração devidas ao Participante enquanto Homem e enquanto Magistrado do MP, veiculado através de terceiros;
- O elemento subjectivo, o dolo, em qualquer das suas modalidades, incluindo o dolo eventual[3], só estando, portanto, afastadas do seu âmbito as condutas negligentes.

2.3 O princípio da livre apreciação da prova.
Não há, em processo penal, um verdadeiro ónus da prova pois que, em última análise, recai sobre o juiz, que está vinculado ao objecto do julgamento, definido pela acusação ou pela pronúncia, se a houver, o dever de investigar o facto para além das contribuições dos sujeitos processuais.
O sistema de prova livre (Castanheira Neves, citando Radbruch e Sauer, chama-lhe sistema de “prova científica” porquanto “ao contrário do que acontece no sistema da prova legal - no qual a conclusão probatória é pré-fixada legalmente (…) - pelo princípio da «livre convicção» tem antes o julgador a liberdade de formar a sua convicção sobre a realidade («os factos») do caso submetido a julgamento com base apenas no juízo que se fundamente no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo”)[4], vigente no direito processual penal português (cfr. art.º 127º do CPP), manda que o Juiz aprecie os meios de prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção.
Por via dele, “o julgador é livre de apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório»[5].
Por regras da experiência entende-se “as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece”[6]; “assentam em factos do conhecimento geral (…) Isso não impede, por vezes, que as regras da experiência careçam, para serem definidas, duma explicação técnica ou científica, a qual pode obter-se mediante a perícia (…)”[7].
Importa ter presente que, apesar de a apreciação da prova ser livre, por parte do juiz, nos termos antes indicados, “a decisão (do juiz) não consiste numa operação matemática, ou meramente formal, devendo o julgador apreciar as provas, analisando-as dialecticamente e procurando harmonizá-las entre si e de acordo com os princípios da experiência comum, sem que o julgador esteja limitado por critérios formais de avaliação. (…)
Não se trata - na avaliação da prova - de uma mera operação voluntarista, mas de conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
Envolve a apreciação da credibilidade que merecem os meios de prova, onde intervêm elementos não racionalmente explicáveis, v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova em detrimento de outro - tem essencial relevo a imediação”[8].
Por isso, “O princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (…) os seus limites que não podem ser licitamente, ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada «verdade material» -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo. (...)
Do mesmo modo, a «livre» ou «íntima» convicção do juiz (…) não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Certo que, como já se notou, a verdade «material» que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal, relativamente à qual a própria lei não deixa de manifestar certa desconfiança. (...)
Se a verdade que se procura é, já o dissemos, uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando - parece-nos este um critério prático adequado, de que se tem servido com êxito a jurisprudência anglo-americana - o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará pois, na «convicção», de uma mera opção «voluntarista» pela certeza de um facto e contra a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse”[9].
Ou seja, em linguagem simples, a decisão quanto à matéria de facto tem de estar sustentada, de forma racional e lógica, nos meios de prova produzidos; o raciocínio lógico que relaciona o indício resultante da produção de meios de prova com o facto probando tem de ser facilmente apreensível, em termos objectivos, designadamente pelos sujeitos processuais e pelo tribunal ad quem. Não pode consistir num “acto de fé do julgador, sem qualquer necessidade de correspondência objectiva com o processualmente indiciado, numa primeira fase, e com o processualmente demonstrado, na fase decisória final”[10].
A lei – art.ºs 205º, n.º 1 da CRP, 97º, n.º 5 e art.º 374º, ambos do CPP – exige que os actos decisórios, entendidos estes como “os actos em que o juiz dá solução ao processo, pondo-lhe termo, conhecendo ou não do seu objecto, ou a qualquer questão interlocutória”[11], com especial realce para a sentença, sejam devidamente fundamentados em termos de facto e de direito. A fundamentação das decisões judiciais está, pois, sob reserva da lei, competindo a esta definir o seu âmbito, com maior ou menor latitude, mas tendo sempre presente o legislador que o dever de fundamentação é uma garantia do Estado de Direito democrático.
Saragoça da Matta[12], citando Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, afirma: “O juiz deve dar conta dos resultados probatórios obtidos e dos critérios com que avaliou os ditos resultados (…). Deve, assim, proceder à exposição concisa dos motivos de facto e de direito sobre os quais funda a decisão, com a indicação das provas que sustentam a mesma e a enunciação das razões que levaram a considerar não atendíveis as provas contrárias (…).
Ora, a imposição desta obrigação de concretizar as razões que levaram a excluir determinadas provas, ou a considerá-las menos ponderosas, é entendida pela doutrina precisamente como uma garantia concreta do direito de defesa do Arguido, que como tal assume a valência de um direito a ver valoradas pelo julgador as provas produzidas, no respeito pelo disposto no art. 6.° n.º 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. (…) Ou seja, da fundamentação terá de resultar que todos os meios de prova disponíveis foram ponderados, e quais as razões que levaram a preferir uns a outros. O que só se consegue se na decisão ficarem espelhados os ditos critérios e argumentos sopesados pelo decisor”.
Em conclusão: o princípio da livre apreciação da prova só é entendível e aceitável, podendo então, o sistema que lhe subjaz considerar-se de “prova científica”, se interligado e conjugado com a obrigatoriedade de fundamentação das decisões.
O princípio, que é estruturante do processo penal, “põe a descoberto que a decisão não enferma de vício de desvio de poder ou de finalidade bem como que o seu objectivo não foi absurdo, contraditório ou desproporcionado”[13]; tem plena aplicabilidade em todas as fases processuais pelo que, sempre que haja necessidade de proferir decisões que afectem direitos das pessoas, terá de se ter bem presente com todas as suas consequências, sob pena de nulidade da decisão[14].

Dito isto, e porque a motivação do Ilustre Recorrente suscita a questão em termos que não podem ser acolhidos, importa deixar bem claro que o Tribunal de recurso só pode censurar a decisão recorrida no que diz respeito à credibilidade atribuída a uma fonte de prova pelo julgador, assente na imediação e na oralidade, quando ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum.[15]
Com efeito, bem afirma a Relação de Évora[16], em consonância, de resto, com o nosso entendimento: “Por força do princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como «in casu» não está, pelo menos em parte, prova dita tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova é insindicável pelo tribunal de recurso, havendo apenas que indagar se é contrariado pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica”.
O que, manifestamente, não acontece no caso em apreço.
Na verdade, in casu, a M.ª Juiz a quo faz a análise crítica dos meios de prova com base em juízos que, assim se entende, estão ancorados no bom senso e nas regras da experiência de vida.
Consequentemente, considera-se inócua a conclusão do recurso na qual se ataca a decisão recorrida porque o Tribunal a quo “apenas (tenha) dado credibilidade à versão do arguido e de suas testemunhas”.
Porque, na realidade, no contexto, o podia fazer.
Atendendo, precisamente, a que tal versão, no dito contexto, é susceptível de ser interpretada da forma como é apresentada por tal versão.

2.4 A impugnação da matéria de facto
Para poder impugnar validamente a matéria de facto, segundo o disposto no n.º 3 do art.º 412º do CPP, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Acrescenta o n.º 4:
“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
O Ilustre Recorrente não indica as provas que impõem decisão diversa da recorrida e nem indica as concretas passagens que impõem decisão diversa da recorrida.
Consequentemente, não impugnou em forma ampla a matéria de facto.

Se bem se interpreta a tese recursiva, a materialidade provada, só por si, impõe se considere provado o elemento subjectivo do tipo legal.
Estaremos perante erro notório na apreciação da prova (e não já perante erro de julgamento).

Antes de entramos na análise da concreta questão suscitada, queremos deixar vincado que, com o STJ[17] afirmamos: “Importa ainda ter em consideração, quanto ao julgamento de facto pela Relação, que uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo even­tuais violações de regras e princípios de direito probatório”; e, por isso, o que “cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em primeira instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado”.
E nada mais.

Escreveu-se em recente acórdão da Relação de Évora[18]: “O erro de julgamento e o erro notório na apreciação da prova constituem formas distintas de impugnação da matéria de facto estando, por isso, sujeitas a regras processuais diferentes. Assim, enquanto o erro notório na apreciação da prova constitui um vício intrínseco da sentença, e por isso, tem de resultar por si só ou conjugadamente com as regas da experiência do texto da decisão (art. 410.º, n.º 2, do CPP), o erro de julgamento não se confina a esse domínio, tratando-se de uma forma ampla de impugnação, que, todavia, deve ser exercida com observância do disposto no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP”.
Como vimos, perante a não observância por parte do Recorrente dos ónus expressos no artigo 412º do CPP, está este Tribunal impedido de sindicar a decisão recorrida com base em erro de julgamento.
Resta o erro notório na apreciação da prova, sabido que, como consta da lei, o vício tem, de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
É pacífico o entendimento de que “O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”[19].
Configura erro notório na apreciação da prova o facto de o Tribunal não extrair dos factos provados a conclusão que lhe era imposta pela lei natural.
E foi nesta perspectiva que se anulou o 1º julgamento. Precisamente porque, na ausência de uma explicação plausível por parte da Sr.ª Juiz, a materialidade provada, segundo as regras da experiência, permitia se pudesse consider provado o elemento subjectivo do tipo.
Sucede, porém, que a Sr.ª Juiz a quo apresenta agora uma fundamentação que torna plausível a sua decisão quanto à matéria de facto.
Com efeito, lê-se na fundamentação da decisão da matéria de facto:
“No que concerne à expressão «magistrados prevaricadores», que surge na resposta ao parecer do Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto, e isto ainda no âmbito do recurso interposto pelo arguido na defesa dos interesses do seu constituinte, ainda que o próprio arguido admita que quando a escreveu estava exaltado, querendo com tanto admitir que possa ser deselegante, a verdade é que tal palavra «prevaricadores» mais não faz do que expressar ou denominar quem pratica o crime em questão de denegação de justiça e prevaricação, que como supra se referiu o arguido entendeu qualificar o comportamento do ofendido sendo certo que relatou os factos concretos que entende consubstanciarem a prática de tal crime e que já havia imputado ao ofendido nas sua alegações de recurso, não estando por isso mesmo descontextualizada tal expressão. (…)
E neste sentido o que acontece é que no caso em apreço o que se infere, até pelas declarações do arguido, que foram apoiadas pelos depoimentos das testemunhas de defesa, as quais mereceram a inteira credibilidade do tribunal, é precisamente o inverso do que está na acusação pública: que o arguido age é na convicção de estar cumprir o seu dever de ofício de defesa do seu cliente e de manifestar a sua opinião e denunciar o que entende por práticas não correctas, reconhecendo inclusivamente que quando escreveu na resposta ao parecer do PGA «magistrados prevaricadores» estava exaltado e que tal será deselegante”.
Ora, sendo plausível a decisão quanto à matéria de facto, segundo a doutrina que perfilhamos e que supra deixamos expressa, não pode este Tribunal sindicar a matéria de facto nos termos propugnados na tese recursiva, seja, no âmbito dos vícios de sentença.
Consequentemente, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto.

Razão pela qual o recurso tem de improceder já que, permanecendo inalterada a matéria de facto, dúvidas não há de que não está reunido o elemento subjectivo do tipo legal, razão pela qual a acusação claudica.

III.
DECISÃO
Termos em que, na improcedência do recurso, se mantém e conforma a douta sentença recorrida.
Sem tributação por dela estar isenta o MP.

Porto, 4/02/2015
Francisco Marcolino
Donas Botto
___________
[1] Assim, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Coimbra Editora 2009, pp 109 e segs, e 155 e segs.
[2] Ac do STJ de 6/10/2011, processo 87/2002.L2.S1, in www.dgsi.pt
[3] Assim, Faria da Costa in Comentário Conimbricense ao C. Penal, em anotação ao art.º 180º
[4] CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, Coimbra: João Abrantes, 1968, pp. [44, 45].
[5] CAVALEIRO DE FERREIRA, Manuel, Curso…, vol. III, p. 311.
[6] MARQUES DA SILVA, Germano, Curso …, III vol., p. 339.
[7] CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso…, II vol., p. 296.
[8] Ac da RG de 29/01/2007, processo 1917/07.1, in www.dgsi.pt
[9] FIGUEIREDO DIAS, Jorge, Direito Processual Penal, pp. [202-205].
[10] SARAGOÇA DA MATA, Paulo, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, p. 240.
[11] MARQUES DA SILVA, Germano, Curso …, II vol., p. 19.
[12] Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, p. 249.
[13] Ac do STJ de 27/01/2009, CJ, AcsSTJ, XVII, tomo I, p. 210
[14] Assim, SARAGOÇA DA MATA, Paulo, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, p. 272 e segs
[15] Neste sentido, o Ac. da RE de 25/05/2004, C.J. XXIX, III, pg. 258.
[16] Ac da RE de 6-09-2011, processo 241/07.0PCSTB.E1, in www.dgsi.pt
[17] Ac do STJ de 11/10/2012, CJ, Acs do STJ, XX, III, 195
[18] Ac da RE de 10/07/2014, processo 540/12.9TASTR.E1, in www.dgsi.pt
[19] Ac do STJ de 2/2/2011, processo 308/08.7ECLSB.S1, in www.dgsi.pt
[20] Realce nosso
[21] Idem