Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
625/11.9TUMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA SOARES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ITA
NATUREZA INDISPONÍVEL
INDEMNIZAÇÃO OFICIOSA
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP20180924625/11.9TUMTS.P1
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO 2ª
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º282, FLS.185-188)
Área Temática: .
Sumário: É lícito ao Juiz, em acção emergente de acidente de trabalho, condenar a responsável em indemnização por incapacidades temporárias, ainda que não peticionada pelo sinistrado, atendendo à natureza indisponível dos direitos em causa, e desde que previamente, observe o princípio do contraditório estabelecido no nº3 do artigo 3º do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº625/11.9TUMTS.P1
Relatora: M. Fernanda Soares – 1564
Adjuntos: Dr. Domingos José de Morais
Dra. Paula Leal de Carvalho
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
B… instaurou acção emergente de acidente de trabalho, a correr seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Matosinhos – Juiz 2 –, contra C…, LDA., e D…, S.A.. pedindo a condenação das Rés, na medida da suas responsabilidades, a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual que vier a ser fixada de acordo com a IPP que lhe vier a ser atribuída em Junta Médica, nunca inferior a 24%, e com início em 21.10.2010.
Alega que no dia 21.10.2010, quando exercia as funções de cozinheira, ao serviço da primeira Ré, ao levantar a panela da sopa torceu o pé. Em consequência do evento sofreu entorse do tornozelo esquerdo, o que lhe determinou uma IPP.
A Ré seguradora veio contestar alegando a caducidade do direito da Autora e relativamente ao sinistro referiu ter pago já à Autora a quantia de €13.355,98. Requereu a realização de exame médico-legal por Junta Médica e apresentou quesitos.
Foi proferido despacho saneador onde se conheceu da excepção de caducidade, tendo a mesma sido julgada improcedente. Foram consignados os factos já assentes, elaborada a base instrutória e ordenado o desdobramento do processo para fixação de incapacidade. Procedeu-se a julgamento com gravação da prova pessoal e foi proferida sentença a “Condenar as rés a pagar à autora, com efeitos a partir de 12.12.2012 (dia imediato ao da alta definitiva), o capital de remição no valor de €5.291,50, calculado com base numa pensão de €360,85, sendo €3.517,31 com base numa pensão de €239,86 da responsabilidade da seguradora e €1.774,19 com base numa pensão de €120,99 da responsabilidade da entidade empregadora, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde aquela data até integral pagamento. Condenar a ré seguradora a pagar à autora a quantia de €5.756,98 a título de diferenças nas indemnizações pelos períodos de incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora desde o vencimento até integral pagamento. Condenar a ré entidade empregadora a pagar à autora a quantia de €2.904,05 a título de diferenças nas indemnizações pelos períodos de incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora desde o vencimento até integral pagamento”.
A Seguradora, inconformada, veio recorrer da decisão, na parte em que a condenou no pagamento da quantia de €5.756,98 a título de diferenças nas indemnizações pelos períodos de incapacidades temporárias, pedindo a sua revogação e substituição por acórdão que condene a apelante na diferença correspondente aos €5.756,98 devidos e os €4.757,68 já pagos, ou assim não se entendendo, anulada a sentença com remessa dos autos à 1ª instância para o exercício do contraditório e para inclusão do facto 9 da contestação na base instrutória, concluindo do seguinte modo [após convite da relatora para sintetizar as conclusões]:
1. A recorrente alegou no artigo 9º da contestação que já tinha liquidado no âmbito do presente processo a quantia de €13.355,98, facto que não foi levado à base instrutória, como deveria ter sido.
2. Na fase conciliatória do processo a recorrente juntou um documento onde refere os valores pagos a título de incapacidades temporárias, nomeadamente no valor de €4.757,67.
3. Aquando da tentativa de conciliação, a Autora não peticionou as quantias devidas a título de incapacidades temporárias.
4. Ora, face a estes factos e documentos juntos, nunca a recorrente poderia ter sido condenada a pagar à Autora a quantia de €5.756,98 pela indemnização por incapacidades temporárias.
5. A sentença deveria limitar-se ao peticionado, já que apenas foi pedido o capital de remição devido pela IPP de que viesse a padecer.
6. Não podia a recorrente ser condenada nas quantias devidas a título de incapacidades temporárias sem que para tal lhe fosse dada a possibilidade de defesa e contraditório, sendo certo que do processo já constavam documentos que comprovam o pagamento de €4.757,67 a título de incapacidades temporárias, nem podia ser condenada em quantidade superior ao peticionado.
7. De acordo com o documento junto na fase conciliatória já foi pago à Autora a quantia de €4.757,67 a título de incapacidades temporárias, como se comprova pelos documentos agora juntos.
8. A simples análise dos documentos já juntos aos autos deveria levar a condenação diferente da que foi proferida, nomeadamente à condenação no pagamento da diferença entre o já pago e o devido.
9. Caso assim não se entenda, deve dizer-se que deveria ter sido levado à base instrutória o facto constante do artigo 9º da contestação.
10. Devendo, deste modo, ser anulada a sentença e ser aditado à base instrutória o referido facto.
11. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 3º do CPC, 131º e 135º do CPT.
Com as alegações de recurso a apelante juntou 14 documentos.
A sinistrada veio contra alegar defendendo que ao caso é aplicável o determinado no artigo 74º do CPT concluindo pela improcedência do recurso.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso com o fundamento de que as conclusões são a reprodução das alegações. Por despacho da relatora, de 03.07.2018, considerou-se não se verificar motivo para rejeitar o recurso com fundamento no disposto na al. b) do nº2 do artigo 641º do CPC e convidou-se a recorrente a sintetizar as conclusões do recurso.
Admitido o recurso cumpre decidir.
* * *
II
Questão preliminar – da junção de documentos com as alegações de recurso.
Nos termos do artigo 651º, nº1 do CPC “ As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância”.
Por sua vez determina o artigo 425º do CPC “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
A apelante juntou 14 documentos com as alegações de recurso.
Todos esses documentos, intitulados “Pagamento”, são dirigidos à Autora, reportam-se ao acidente dos autos e contêm “indicação” de pagamento de indemnização por ITA referente aos anos de 2010 e 2011. Reportam-se, assim, a factos ocorridos antes do encerramento da audiência de julgamento, a significar que a Ré não estava impedida de os juntar até àquele momento. Por isso, ao caso não é aplicável a situação prevista na primeira parte do artigo 651º, nº1 do CPC. E será aplicável a parte final do mesmo preceito?
Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, defendem que a parte final do nº1 do artigo 706º do CPC [idêntica à parte final do nº1 do artigo 651º do actual CPC] “não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quanto esperava obter ganho da causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida”. – Manual de Processo Civil, página 517.
António Abrantes Geraldes, em comentário à parte final do artigo 651º, nº1 do CPC, refere o seguinte: (…) “ a jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado” – Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, página 185.
A Autora não formulou qualquer pedido de indemnização referente a incapacidades temporárias. Daí não ser expectável, para a Ré seguradora, que o Tribunal a quo a viesse a condenar no referido pagamento.
E se assim é, então, podemos concluir que a junção dos documentos com as alegações de recurso integra a situação prevista na parte final do nº1 do artigo 651º do CPC.
Termos em que se admite a junção aos autos dos documentos apresentados pela apelante com o recurso.
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III
Matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo.
1. À data do acidente, ocorrido em 21 de Outubro de 2010, a Autora tinha a categoria profissional de cozinheira, e trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré C…, LDA.
2. Naquela data a Autora auferia a remuneração mensal de €550,00 x 14 mais €100,00 x 14 mais €5,00 x 22 x 11 subsídio refeição, num total anual de €10.310,00.
3. A 1ª Ré tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a 2ª Ré através de contrato de seguro titulado pela apólice nº…………., pela remuneração mensal de €489,50, acrescida de subsídio de férias e de subsídio de natal.
4. Em 21.10.2010, quando trabalhava na cozinha da sede da 1ª Ré, ao levantar a panela da sopa que se encontrava no fogão, para a terminar, a Autora girou a panela sobre si própria no sentido dos ponteiros do relógio e torceu o pé.
5. Em consequência do movimento referido em 4 a Autora fez um entorse do tornozelo esquerdo.
6. O que foi causa de 366 dias de ITA para o trabalho durante os 366 dias seguintes seguidos de 180 dias de ITP de 40% para o trabalho.
7. E é causa de IPP para o trabalho, com o coeficiente de 5%.
8. A consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 12.12.2012.
9. A Autora nasceu no dia 22.02.1968.
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IV
Objecto do recurso
Do montante pago pela apelante a título de indemnização por ITA e sua consideração na decisão final.
Antes do mais cumpre dizer o seguinte.
Apesar de referir que a Autora não formulou qualquer pedido a título de indemnização por ITA e que por isso o Tribunal a quo não poderia condenar a apelante nessa quantia, certo é que termina o seu recurso pedindo que a sentença seja alterada no sentido de considerar o montante já pago por ela a esse título. E se assim é, então, a Ré seguradora não «questiona» que a Autora tem direito a receber as quantias calculadas na sentença a título de indemnização por ITA e por ITP, até porque nem sequer impugnou a factualidade constante do facto 6 [O que foi causa de 366 dias de ITA para o trabalho durante os 366 dias seguintes seguidos de 180 dias de ITP de 40% para o trabalho].
Por isso, o presente recurso versará apenas a não consideração pelo Tribunal a quo dos montantes que a Ré diz ter pago a título de ITA.
Na sentença recorrida escreveu-se o seguinte: (…) “A autora tem também direito a haver o valor das indemnizações relativas aos períodos de incapacidades temporárias absoluta e parcial que decorreram desde o acidente até à data da alta” (…) que ascende ao valor de €8.661.03 sendo da responsabilidade da seguradora o montante de €5.756,98.
A apelante refere: não podia a recorrente ser condenada nas quantias devidas a título de incapacidades temporárias sem que para tal lhe fosse dada a possibilidade de defesa e contraditório, sendo certo que do processo já constavam documentos que comprovam o pagamento de €4.757,67 a título de incapacidades temporárias. De acordo com o documento junto na fase conciliatória já foi pago à Autora a quantia de €4.757,67 a título de incapacidades temporárias, como se comprova pelos documentos agora juntos. A simples análise dos documentos já juntos aos autos deveria levar a condenação diferente da que foi proferida, nomeadamente à condenação no pagamento da diferença entre o já pago e o devido. Caso assim não se entenda, deve dizer-se que deveria ter sido levado à base instrutória o facto constante do artigo 9º da contestação. Analisemos então.
Em 15.12.2016 a Mmª. Juiz a quo convidou a Autora a apresentar nova petição onde alegue “as lesões que sofreu em consequência do acidente, quais as sequelas de tais lesões, qual a situação em que se encontrou desde o acidente até à consolidação das lesões, qual a data da consolidação das lesões e se a responsabilidade da entidade empregadora estava integralmente transferida para a ré seguradora, em caso negativo, qual a medida da retribuição transferida e qual o número de apólice” [no auto de tentativa de conciliação ficou consignado que a Autora não aceitou a data da alta – 12.12.2012 – o resultado do exame médico e os períodos de incapacidade temporárias].
A Autora veio apresentar nova petição onde alega ter estado 366 dias com ITA e 180 dias com ITA [artigo 17º]. A Ré seguradora contestou alegando o seguinte: “7.O sinistro constante dos autos foi participado à ora contestante, 8. assumindo a Ré os tratamentos da Autora, 9. tendo liquidado até ao momento, a quantia de €13.355,98 com o presente processo” – artigos 7,8 e 9.
Com a contestação a Ré não apresentou qualquer meio de prova do que alegou em 9.
A Ré, por outro lado, não alegou, como era seu dever, qual a razão do pagamento da referida quantia, já que «tratamentos» é muito vago não se sabendo se naquela quantia estaria incluído o pagamento da indemnização por incapacidades temporárias. Aliás, a Ré não faz alusão, na contestação, a qualquer pagamento à Autora a título de indemnização por incapacidades temporárias. Contudo, assim aconteceu, em nosso entendimento, porque a Autora, na petição inicial, não formula qualquer pedido relativamente à indemnização por incapacidade temporária [apenas formulou pedido de condenação no pagamento de pensão].
E se não foi formulado qualquer pedido a esse respeito não tinha a Ré, salvo melhor entendimento, que referir, à partida, o que pagou a título de ITA [apesar de na fase conciliatória dos autos a Ré seguradora ter junto, a folhas 50, declaração contendo indicação discriminada das quantias pagas a título de ITA, declaração cuja notificação à Autora também não se mostra comprovada nos autos].
No entanto, estamos plenamente de acordo com a Mmª. Juiz a quo quando refere que a condenação da Ré no pagamento da referida indemnização se impõe “face à natureza indisponível dos direitos em causa”.
Em face disso, e tendo em conta o princípio estabelecido no artigo 3º, nº3 do CPC [«O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem»] deveria a Mmª. Juiz a quo, antes de proferir sentença, notificar as partes para tomarem posição quanto à questão de condenação das Rés, apesar de não peticionado, nas indemnizações por ITA e ITP, o que não aconteceu.
Ocorreu, deste modo, ofensa do princípio do contraditório, a determinar, a anulação da sentença apenas no que à condenação em indemnização por ITA e ITP respeita.
Procede, assim, a apelação.
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Termos em que se anula a decisão recorrida – na parte em condenou as Rés no pagamento da indemnização a título de ITA e ITP – se ordena que a Mmª. Juiz a quo observe o contraditório, nomeadamente notificando a Autora dos documentos ora juntos com o recurso [já que nada disse nas contra-alegações quanto aos mesmos] e igualmente do documento/declaração de folhas 50 dos autos [onde é referido pela apelante ter pago à Autora a quantia de €4.757,67 a título de indemnização por ITA] e após profira decisão em conformidade.
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Custas a final a cargo da parte vencida.
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Porto 24.09.2018
Fernanda Soares
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho