Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1393/12.2TBFLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
INSOLVÊNCIA DO LOCATÁRIO
REGIME
Nº do Documento: RP201506151393/12.2TBFLG-A.P1
Data do Acordão: 06/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O regime insolvencial do contrato de locação financeira é o previsto nos artigos 102 e 104 do CIRE e não no artigo 108 deste mesmo diploma.
II – Sendo o insolvente o locatário, e encontrando-se ele na posse da coisa locada, aquele regime resulta da conjugação do disposto nos artigos 102 e 104, n.º 3 do CIRE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sumário (da responsabilidade do relator): 1 – O regime insolvencial do contrato de locação financeira é o previsto nos artigos 102 e 104 do CIRE e não no artigo 108 deste mesmo diploma. 2 – Sendo o insolvente o locatário, e encontrando-se ele na posse da coisa locada, aquele regime resulta da conjugação do disposto nos artigos 102 e 104, n.º 3 do CIRE.

Processo 1393/12.2TBFLG-A.P1

Recorrente – B…
Recorrido – C…, SA

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 - Relatório
1.1 – Os autos na 1.ª instância:
B… deduziu oposição à execução que lhe move o C…, SA e pediu que a mesma (a) seja julgada extinta ou, caso assim se não entenda, que (b) seja reduzida a quantia exequenda; (c) se declare que com a execução do imóvel dado em garantia, a oponente nada deve; (d) se declare a inexigibilidade da quantia exequenda no respeitante a juros moratórios liquidados, juntamente com o capital alegadamente em dívida e, caso assim se não entenda, (e) a redução da quantia exequenda ao capital que se apurar em dívida, deduzidos “os juros exorbitantes e cláusulas penais”.

Alegou a oponente, em síntese, que se verifica litispendência e que inexiste título executivo; impugnou a quantia exequenda e a existência de resolução do contrato de locação financeira, tanto mais que a executada esta só deixou de pagar as prestações quando entrou em processo de insolvência. Acrescenta que, por haver garantia superior ao débito, o exequente abusa do direito de ação e encontram-se pagas inúmeras prestações, não havendo direito ao recebimento de quantia superior à do capital de dívida. A exequente contestou (fls. 22 e ss.), impugnando o alegado pela oponente e concluindo pela improcedência da oposição.

No despacho saneador foi fixado o valor da causa (13.379,33€) e decidiram-se as exceções de litispendência e de inexistência de título executivo, que foram desatendidas[1]. Realizou-se a audiência de julgamento nos termos documentados no processo e foi proferida decisão sobre da matéria de facto. Conclusos os autos, foi proferida sentença que decidiu “julgar parcialmente procedente a oposição e fixar a quantia exequenda em €7.626,34 a título de capital (que inclui já IVA), acrescido de juros de mora a` taxa contratada de 4,474% e das sobretaxas máximas previstas na Lei para contratos desta natureza, sem prejuízo do valor máximo executado pela exequente e constante do ponto N) dos factos provados.
1.2 – Do recurso:
Inconformada, a oponente veio apelar. Pretende a revogação da sentença e apresenta as seguintes Conclusões:
A - O contrato de locação em causa nos presentes autos apenas deixou de ser cumprido em virtude de ter sido declarada a insolvência da locatária, sendo que o mesmo foi pontualmente cumprido até 30.12.2011, data em que foi paga a última prestação.
B - A Administradora de Insolvência da devedora principal, D…, Lda. apenas em 18.04.2013 é que declarou optar pelo não cumprimento do contrato de locação, conforme consta de fls. 155.
C - Ora, até essa data, nos termos do disposto no art. 102, n.º 1 do CIRE, o cumprimento do contrato ficou suspenso até à declaração emitida pela Administradora de Insolvência.
D - Não pode concluir-se nos presentes autos que o incumprimento do contrato de locação ocorreu em 30.12.2011, porquanto, o cumprimento do referido contrato encontrava-se suspenso por efeito da falta de declaração de opção que deveria ter sido efectuada pela Senhora Administradora e que apenas ocorreu em 18.04.2013.
E - Na verdade, a exequente não poderia ter resolvido o contrato de locação com fundamento em incumprimento desde 30.12.2011, pois que a haver incumprimento o mesmo ocorreu depois de ter sido emitida a declaração pela Senhora Administradora a não optar pelo cumprimento do mesmo.
F - Por outro lado, resultou provado que a oponente não recebeu qualquer comunicação de resolução do contrato.
G - Encontra-se previsto nas condições gerais do Contrato de Locação no seu artigo 11.º que o contrato “poderá ser resolvido por iniciativa do locador, no caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações do locatário, se o mesmo, interpelado para o efeito, através de carta registada do locador, não eliminar o incumprimento”.
H - Ora, se o próprio contrato de locação financeira exige que a interpelação admonitória seja comunicada à parte contrária por carta registada do locador, a não receção de qualquer comunicação por parte da oponente, tal formalidade não se pode ter por cumprida.
I - O não cumprimento de tal formalidade invalida também a resolução posteriormente operada pela ré, pelo que tal implica a improcedência do pedido executivo.
J - Acresce que, mesmo que assim se não entenda, é errada a interpretação levada a cabo pelo tribunal no sentido de que “como resulta dos factos dados como provados, a locatária apenas cumpriu o contrato supra identificado até 30/12/2011, data a partir da qual não procedeu ao pagamento de qualquer das rendas convencionadas”.
K - Pois, a haver incumprimento, o que não se concede, o mesmo ocorreu em data posterior, ou seja, apenas após a declaração emitida pela administradora de insolvência, sendo que até essa data o cumprimento do contrato encontrava-se suspenso.
L - Após essa data não foi dado qualquer conhecimento à oponente relativamente ao incumprimento do referido contrato de locação.
M - Por outro lado, entende o tribunal que “nos termos do artigo 11.º n.º 7 das condições gerais do contrato de locação financeira celebrado, em alternativa à resolução, (a exequente podia) exercer os seus direitos de crédito sobre a locatária, vencidos na dada de verificação do incumprimento (30/12/2011), vencendo juros de mora à taxa convencionada, desde essa data”, mas tal interpretação não pode prevalecer. Senão vejamos:
N - Na verdade, à data do preenchimento da livrança ainda nem sequer está vamos perante uma situação de incumprimento, porquanto a Sra. Administradora de Insolvência ainda não se havia pronunciado quanto à opção ou não pelo cumprimento do contrato.
O - Acresce que a exequente recuperou o veículo objeto do contrato de locação e procedeu de imediato a` sua venda, pelo preço de 10.000,00€.
P - De facto, a sentença proferida em 1.ª Instância pretende em alternativa à resolução do contrato de locação, conferir à exequente o direito a uma indemnização correspondente ao pagamento de todas as rendas vincendas, acrescidas dos juros moratórios, desde as datas do vencimento dessas mesmas rendas até às da sua efetiva cobrança.
Q - Ora, a resolução do contrato, ao importar o pagamento de todas as rendas vincendas, gera uma situação de grave desequilíbrio.
R - Pelo que, esta cláusula (penal) invocada pelo Tribunal é abusiva e como tal nula.
S – Neste sentido foram já proferidos diversos acórdãos entre os quais o da Relação do Porto proferido em 24/10/2005, disponível in dgsi que dispõe que “É nula, num contrato de locação financeira mobiliária, cláusula que estabelece que, em caso de resolução do contrato por incumprimento do locatário, este é devedor da totalidade das rendas”.
T - Determina o n.º 1 do art. 811 do Código Civil que a locadora não pode jamais exigir cumulativamente, do locatário, o cumprimento da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal contratualmente fixada, razão pela qual cláusula invocada na douta sentença, porque contrária à Lei, encontra-se imperativamente ferida de nulidade.
U - Na verdade, apesar da exequente ter feito suas as rendas já recebidas e já ter vendido o veículo objecto do contrato de locacão, através da presente sentença, a executada foi ainda condenada a pagar-lhe o valor das rendas vencidas (acrescidas de juros de mora) e das rendas vincendas, acrescidas dos respectivos juros, apesar do bem ter sido restituído antes da data prevista para o fim do contrato celebrado.
V - Pelo que, mal andou o Tribunal ao decidir que a pretensão da exequente mereceu provimento, pois que, tal decisão levará ao absurdo de se verificar uma situação em que, pelo incumprimento contratual do locatário, a locadora poderá vir a receber mais do que aquilo que receberia se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido.
W - O que consubstancia uma frontal violação de disposições legais, em concreto a proibição de o credor exigir uma indemnização superior ao valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 811 do CC.
X - Sendo entendimento jurisprudencial que a resolução operada pela locadora apenas lhe confere o direito a receber uma indemnização correspondente aos danos que efetivamente sofreu com a celebração do contrato, não englobando os benefícios que alegadamente (uma vez que já vendeu o bem locado) deixou de auferir com o incumprimento do locatário.
Y - Acresce que a indemnização pretendida pela exequente – correspondente ao pagamento de todas as prestações vencidas e vincendas, acrescido de juros, entre outros – impunha a compra pela locatária.
Z - O que no caso nem sequer é possível, porquanto a exequente já vendeu o bem a terceiro.
AA - A jurisprudência tem sido unânime em considerar inadmissível e injustificada a cumulação de indemnização pela resolução com o pagamento das prestações vincendas.
BB - A cláusula que serve de fundamento à decisão proferida nestes autos pelo Tribunal a quo está ferida de nulidade ao abrigo do disposto no art. 294 do Código Civil, por violação das normas de carácter imperativo contidas no art. 811 do mesmo código.
CC - Pelo que, o Tribunal procedeu a incorreta interpretação e aplicação da Lei substantiva.
DD - Assim, sob pena de se verem violadas disposições legais, nomeadamente os arts. 811 e 294 do Código Civil, não poderá manter-se a decisão, devendo a mesma ser revogada.

O Banco recorrido respondeu. Defendendo a decisão sob recurso, conclui: 1 - No processo principal foi executada uma livrança, na qual a apelante prestou o seu aval à subscritora. 2 - A livrança em causa foi entregue ao oponido em caução e garantia do bom e pontual cumprimento de todas as responsabilidades emergentes de contrato de locação financeiro celebrado com a sociedade D…; 3 - Nomeadamente "as obrigações pecuniárias, presentes e futuras, resultantes do incumprimento temporário ou definitivo do contrato, bem como juros remuneratórios, valor residual, comissões e outras despesas e encargos." 4 - A apelante não foi portanto parte no contrato de locação. 5 - Foi o incumprimento do contrato de locação que determinou o preenchimento da livrança que, não foi paga na data do seu vencimento nem posteriormente, o que veio a determinar a execução. 6 - O contrato de locação deixou de ser cumprido em 30.12.2011. 7 - Em 16/01/2012 a locatária foi declarada insolvente. 8 - A Administradora de Insolvência da locatária veio a optar pelo não cumprimento do contrato de locação. 9 - A declaração de insolvência não suspendeu o contrato de locação (art. 108 n.º 1 ab initio do CIRE), tendo continuado a vencer-se as suas prestações e sempre sem se observar o seu pagamento. 10 - Motivo pelo qual o oponido, devidamente autorizado, promoveu o preenchimento da livrança; 11 - E em face do não pagamento da mesma, em 27.06.2012, interpôs ação executiva contra a apelante. 12 - Ou seja, volvidos 6 meses sem que fossem pagas quaisquer prestações do contrato. 13 - O exequente não resolveu o contrato de locação porquanto estava legalmente impedido de o fazer por força do artigo 108 n.º 4 do CIRE. 14 – O oponido não estava obrigado a resolver o contrato para promover o preenchimento da livrança avalizada pois tal preenchimento estava sujeito às condições acordadas entre o exequente e a apelante aquando da subscrição do pacto de preenchimento. 15 - Decorre do pacto assinado pela apelante que foi o oponido autorizado a promover o preenchimento da livrança sempre que ocorresse "o incumprimento temporário ou definitivo, da rescisão, caducidade e da ineficácia do citado contrato de locação financeira." 16 - Releva in casu o incumprimento e não a resolução do contrato. 17 - E o incumprimento teve inicio em 30.12.2011 e permaneceu. Facto conhecido da apelante, que foi gerente da locatária. 18 - No que toca a` invocada nulidade do art. 11.º n.º 7 das condições gerais, a apelante não tendo sido parte naquele contrato não é parte legítima para invocar tal nulidade. 19 - Aliás enquanto avalista, determina o art. 32 da Lei Uniforme que "A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma." 20 - O tribunal atendeu não só ao contrato de locação mas também e sobretudo ao determinado pelo pacto de preenchimento da livrança de modo a alcançar o valor titulado pela livrança. 21 - E tal como resulta "no pacto de preenchimento da livrança executada, assinado pela oponente, consta que aquela é dada em garantia do bom e pontual cumprimento das responsabilidades decorrentes do contrato de locação financeira, e que compreendem as obrigações pecuniárias resultantes do incumprimento temporário ou definitivo do contrato, bem como juros remuneratórios, valor residual, comissões e outras despesas e encargos, nos termos definidos a fls. 34 dos autos." 22 - Não é verdade que a decisão do tribunal conduzira´ a um recebimento superior àquele que sucederia com cumprimento pontual do contrato. 23 - O cumprimento pontual do contrato determinaria o pagamento de todas as rendas nele vertidas, acrescidas dos respectivos juros remuneratórios e IVA. 24 - E quanto a` compra do bem locado pela locatária, esta configura, conforme resulta do contrato, uma opção. 25 - Não resulta qualquer duplicação de valores na condenação que emerge da sentença recorrida. 26 - A sentença encontra-se consentânea com a lei e com as responsabilidades assumidas pela apelante, não merecendo por isso qualquer reprovação ou revisão.

O recurso de apelação foi recebido nos termos legais e, na Relação, ponderando a fixação da matéria de facto (fls. 240) dispensaram-se os Vistos. Cumpre apreciar o mérito do recurso.

1.3 – Objeto do recurso:
Definido pelas conclusões da apelante, o objeto deste recurso versará as seguintes questões:
1.3.1 - Se não houve (na data considerada na decisão apelada) incumprimento do contrato e locação, nem válida resolução do mesmo;
1.3.2 - Se nunca seriam devidas na totalidade as rendas vincendas, verificando-se a nulidade da cláusula que fundamenta a decisão e a violação do disposto no artigo 811 do Código Civil.

2 – Fundamentação
2.1 – Fundamentação de facto:
A 1.ª instância deu como assente a seguinte factualidade (aqui não discutida):
A - A exequente intentou a execução apensa com base na livrança junta com o requerimento executivo, datada de 4.11.09, no valor de 13.284,15€, com data de vencimento de 3.07.12, subscrita por D…, Lda. e avalizada pela oponente;
B – A Identificada livrança não foi paga na data do seu vencimento nem posteriormente, nem pela subscritora nem pela ora oponente;
C - Em 4.11.09, a exequente celebrou com D…, Lda. um contrato de locação financeira mobiliária n.º …-….-…-……., nos termos constantes de fls. 27/31, referente ao Chevrolet, …, matrícula ..-II-.., adquirido por 19.916,67€, acrescido de IVA;
D - O contrato tinha a duração de 5 anos, com início em 30.11.09 e termo em 30.11.14, mediante o pagamento de 60 rendas, fixação de um valor residual de 304,42€, acrescido de IVA, e garantido pela livrança (identificada em A), em branco, subscrita por D…, Lda. e avalizada pela oponente;
E – A identificada livrança apenas foi assinada (em branco) pela executada;
F - Os restantes elementos da livrança foram preenchidos pela exequente;
G - O contrato (referido em C) apenas foi cumprido até 30 de dezembro de 2011, nos termos constantes do plano prestacional de fls. 157 e 158;
H - Por sentença de 16.01.2012, transitada em julgado, a D…, Lda. foi declarada insolvente (Proc. 61/12.0TBFLG, do 1.º Juízo do TJ de Felgueiras);
I - A oponente não recebeu qualquer comunicação de resolução do contrato referido em C);
J - A oponente assinou o pacto de preenchimento da livrança constante de fls. 34;
K - A Administradora de Insolvência da sociedade D…, Lda. declarou optar pelo não cumprimento do contrato referido em C), nos termos de fls. 155;
L - O veículo identificado em C) foi vendido pela exequente em 28.01.2014 por 10.000,00€;
M – Tal veículo foi entregue à exequente em setembro de 2013;
N - Por requerimento de 23.10.13, apresentado na execução, a exequente comunicou a entrega do veículo e a redução da quantia exequenda para o valor de 10.559,35€.

2.2 – Aplicação do Direito:
Na 1.ª instância a decisão que julgou parcialmente procedente a oposição – procedência parcial que, ainda assim, veio suscitar a inconformidade da recorrente – sustentou-se na fundamentação que ora sinteticamente se transcreve, para melhor compreensão do objeto do recurso, mormente, e sendo disso caso, o definido em 1.3.2. Assim, repetimos agora: “Como negócio cambiário que é, o aval tem como características a literalidade, a autonomia, a incorporação e a abstração. O aval surge como uma garantia pessoal das obrigações, pois que um determinado património torna-se responsável pelo pagamento de uma dívida alheia. (...) No caso, o aval foi expresso com expressões equivalentes à prevista no artigo 31 da LULL, pelo que estamos perante o denominado aval completo. Assim sendo, e considerando que a oponente deu aval pessoal à livrança, é responsável pelo pagamento. No entanto, a livrança está relacionada com o contrato de locação financeira celebrado, pelo que a determinação do valor em dívida tem de ser efetuada mediante a análise do contrato em questão. Ora, de acordo com o disposto no art. 1.º do DL. 149/95 o contrato de locação financeira é (...) Uma das formas de extinção deste contrato consiste na resolução, a qual pode ser acionada por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento em incumprimento (art. 17 do DL. 149/95). No caso em apreço, o contrato foi celebrado entre o exequente e a sociedade D…, Lda., que no mesmo figura como única locatária. Por outro lado, verifica-se que, não obstante o incumprimento da locatária, a exequente não resolveu o contrato com base em tal fundamento, até porque tal lhe estava vedado pelo disposto no artigo 108 n.º 4 alínea a) do CIRE. Ficou, no entanto, demonstrado que, após a declaração de insolvência em 16.01.2012, a Administradora de Insolvência optou pelo não cumprimento do contrato, por comunicação de 18.04.2013. E isto por força do disposto nos artigos 102 n.º 1 e 108 do CIRE. Ficou ainda demonstrado que o veículo locado apenas foi devolvido à exequente em setembro de 2013. Sucede que a locatária apenas cumpriu o contrato até 30.12.2011, data a partir da qual não procedeu ao pagamento das rendas. Tal facto permitia à exequente, nos termos do artigo 11 n.º 7 das condições gerais do contrato, em alternativa à resolução, exercer os seus direitos de crédito sobre a locatária, vencidos na dada de verificação do incumprimento (in casu, 30/12/2011), vencendo juros de mora à taxa convencionada, desde essa data. Por outro lado, no pacto de preenchimento da livrança, assinado pela oponente, consta que é dada em garantia do bom e pontual cumprimento das responsabilidades decorrentes do contrato, e que compreende as obrigações pecuniárias resultantes do incumprimento temporário ou definitivo, bem como juros remuneratórios, valor residual, comissões e outras despesas e encargos. Afigura-se assim que, face ao convencionado entre exequente e locatária no contrato, bem como entre exequente, locatária e oponente no pacto de preenchimento, não era necessário a resolução para o preenchimento da livrança dada como garantia nem exigência, à oponente, das responsabilidades que a mesma assumiu enquanto avalista, sendo apenas necessário o incumprimento temporário do contrato, o que se verificou a partir de 30.12.2011. Ora, à data do preenchimento da livrança, encontravam-se em dívida 6 prestações mensais, no valor total de €2.294,30 (fls. 157). No entanto, e face ao estipulado no artigo 11 n.º 7 das condições gerais do contrato, com este incumprimento, venceram-se não só estes valores, como também todos os direitos de crédito da exequente sobre a locatária, ou seja, as prestações vincendas e juros (...) à data de 03/07/2012, acrescida das sobretaxas (...) sendo as prestações então vincendas no valor total de €10.664,08 (até 30/11/2014, data do termo do contrato), sendo os juros à data do incumprimento à taxa de 4,474%. A estes valores acrescem os de mora, nos termos constantes do pacto de preenchimento de fls. 34, bem como o valor residual, de €308,42 (acrescido de IVA). Relativamente às comissões e despesas, a exequente não logrou demonstrar as mesmas, pelo que, nesta parte, procede a oposição. Por último, refira-se que a entrega do veículo locado foi feita em setembro de 2013 e tal valor imputado às rendas vincendas e ao valor residual (...) Sendo certo que, não obstante o valor de venda do veículo a terceiros tenha assumido a quantia de €10.000,00, não tem [a exequente] obrigação de imputar tal valor, na totalidade, ao montante em dívida, uma vez que o veículo locado sempre pertenceu à exequente, e não à oponente. Verifica-se assim que, com esta redução, permanece em dívida a quantia de €7.626,34 a título de capital (que inclui já IVA), acrescido de juros a` taxa contratada e das sobretaxas máximas previstas para contratos desta natureza.”

Apreciemos.

1.3.1 Se não houve (na data considerada na decisão apelada) incumprimento do contrato e locação, nem válida resolução do mesmo.
A primeira razão do recurso encontra-a a recorrente na circunstância de não ter havido incumprimento do contrato de locação, fundamento da eventual resolução pelo locador, atenta a data em que a Administradora de insolvência da sociedade locatária declarou não pretender cumprir o contrato e, porque, antes dela, o mesmo estaria suspenso.

A recorrente invoca, em abono do seu entendimento, o disposto no artigo 102, n.º 1 do CIRE, sem outro acrescento e, o recorrido, insurgindo-se contra a interpretação da apelante, invoca (tal como o fez a sentença aqui apelada) o disposto no artigo 108 do mesmo diploma legal, citando a parte inicial do seu n.º 1, que nos diz que “A declaração de insolvência não suspende o contrato de locação em que o insolvente seja locatário...”, ou seja (dizemos agora, citando), “salvo se a locação for habitacional, a declaração de insolvência não “suspende” o contrato”[2].

Ora, salvo o devido respeito, a apelante invoca o preceito que contém a regra genérica, esquecendo as especificidades do artigo 104 do CIRE, e o apelado, pensamos que erradamente, toma como financeira a locação que se prevê no artigo 108. Ainda assim, entendemos entre aquele generalização e este lapso, há que dar razão à recorrente, como melhor se verá.

Esclareça-se, primeiro, que não está em causa a resolução do contrato de locação pelo locador, que não foi feita: está em causa, como os autos evidenciam e transparece da sentença, o incumprimento do contrato por falta de pagamento das rendas pela locatária, que foi – tal incumprimento – invocado e, por via dele, (invocada) a responsabilidade da avalista.

A este propósito, importa verificar o que revelam os factos: - A exequente intentou a execução apensa com base na livrança datada de 4.11.09, no valor de 13.284,15€, com data de vencimento de 3.07.12 (sublinhado nosso), subscrita por D…, Lda. e avalizada pela oponente[3]; - O contrato [de locação financeira] tinha a duração de 5 anos, com início em 30.11.09 e termo em 30.11.14, mediante o pagamento de 60 rendas, fixação de um valor residual de 304,42€, acrescido de IVA, e garantido pela livrança, em branco, subscrita por D…, Lda. e avalizada pela oponente; - O contrato apenas foi cumprido até 30.12.11, nos termos constantes do plano prestacional; - Por sentença de 16.01.12, transitada, a D…, Lda. foi declarada insolvente (Proc. 61/12.0TBFLG do TJ de Felgueiras); - A Administradora de Insolvência da sociedade D…, Lda. declarou optar pelo não cumprimento do contrato referido em C), nos termos de fls. 155 (em 18.04.2013); – O veículo foi entregue à exequente em setembro de 2013.

Em resumo: o apelado preencheu a livrança subscrita pela sociedade e avalizada pela apelante, com vencimento a 3.07.2012, apondo-lhe a quantia resultante das prestações em dívida e, em razão destas, das demais vincendas (além de juros e encargos); a sociedade pagou as rendas até dezembro de 2011 e em janeiro de 2012 foi declarada insolvente. O bem locado havia sido entregue à locatária (já que devolvido em setembro de 2013). A Administradora (só) em abril de 2013 declarou optar pelo não cumprimento do contrato.

Se aplicável a esta factualidade o disposto no artigo 108 do CIRE, a apelante não tem razão em discordar da sentença; já a terá – como pensamos e adiantámos – se for de aplicar o disposto nos artigos 102 e 104 do mesmo diploma legal.

Nos termos do artigo 102, n.º 1 do CIRE, mas sem prejuízo dos artigos que se lhe seguem, “em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.” Um dos preceitos que concretiza esta disciplina geral[4] é justamente o artigo 104[5]. Este artigo estabelece no seu n.º 1 que “No contrato de compra e venda com reserva de propriedade em que o vendedor seja o insolvente, a outra parte poderá exigir o cumprimento do contrato...”, esclarecendo no n.º 2 que essa previsão se aplica “em caso de insolvência do locador, ao contrato de locação financeira[6]...” e, no n.º 3, com especial relevo para a situação que aqui apreciamos, dispõe: “Sendo o comprador ou locatário o insolvente, e encontrando-se ele na posse da coisa, o prazo fixado para o administrador da insolvência, nos termos do n.º 2 do artigo 102º, não pode esgotar-se antes de decorridos cinco dias sobre a data da assembleia de apreciação do relatório, salvo se o bem for passível de desvalorização considerável durante esse período e a outra parte advertir expressamente o administrador da insolvência dessa circunstância.”

Como decorre da leitura conjugada dos preceitos, e a doutrina assinala, “se o insolvente for o futuro adquirente e a coisa estiver em seu poder, o alienante pode fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este decidir se opta pelo cumprimento ou pelo não cumprimento”[7] e “onde o art. 102.º, n.º 1, se aplique, o cumprimento do contrato fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou pela recusa do cumprimento.”[8] O preceito em análise “determina a aplicação plena do direito de escolha do administrador de insolvência, nos termos do artigo 102º”[9] e, com efeito, o regime estabelecido no seu n.º 3 apenas se desvia no que respeita à “notificação cominatória prevista no n.º 2 do artº 102º, quanto ao terminus ad quem do prazo estabelecido pela outra parte.”[10]

Podemos dizer, em suma, com manifesto reflexo no caso presente,[11] que, nos casos em que é insolvente o comprador ou o locatário e se “o comprador/locatário insolvente estiver na posse da coisa, o n.º 3 [do citado artigo 104 do CIRE] fixa prazos especiais de persistência da suspensão”[12] (sublinhado nosso).

Decorre de tudo quanto dissemos, e voltando a olhar aos factos apurados, que a sociedade locatária pagou as rendas até ao mês em que foi declarada insolvente; que o (cumprimento) do contrato de locação financeira celebrado entre o recorrido e a locatária foi suspenso, precisamente com a declaração de insolvência e que, não tendo havido ou não sendo conhecida qualquer interpelação à administradora da insolvência, essa suspensão se manteve até à ocasião em que a mesma veio a declarar optar pelo não cumprimento do contrato, em data muito posterior ao vencimento da livrança aposto pelo exequente, no pressuposto do incumprimento contratual.

Em conformidade, o pressuposto que legitimava o preenchimento do título – e que o exequente invoca no seu requerimento executivo – falece: não está demonstrado, pelo contrário, o incumprimento contratual da subscritora da livrança, não respondendo, no caso, a avalista, ainda que responsável cartular, por uma obrigação do subscritor que não existe.

Em suma, ao contrário do decidido, por não estar em causa a aplicação do disposto no artigo 108 do CIRE, mas o que dispõem os artigos 102, n.º 1 e 104, n.º 3 do mesmo Código, a recorrente vê procedente a sua apelação e, revogada a decisão pela solução dada à primeira das questões que aqui se apreciavam, é manifesta a consequente inutilidade do conhecimento da segunda (1.3.2 - se nunca seriam devidas na totalidade as rendas vincendas, verificando-se a nulidade da cláusula que fundamenta a decisão e a violação do disposto no artigo 811 do Código Civil), que se tem por prejudicada.

As custas (do recurso como da ação/oposição) são a cargo do apelado, atento o decaimento.

3 – Decisão:
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a presente apelação e, em conformidade, revoga-se a decisão recorrida e julga-se extinta a execução movida pelo exequente/recorrido C…, SA à oponente/recorrente B….

Custas do recurso e da oposição a cargo do recorrido.

Porto, 15.06.2015
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
___________
[1] “Alega a oponente a existência de litispendência, face à execução 2590/12.6TJVNF. Analisado o requerimento executivo de tal processo constata-se que o título executivo ai´ apresentado consiste numa livrança derivada de um contrato de abertura de crédito. Por outro lado, nestes autos, a livrança apresentada como título deriva de um contrato de locação financeira, não sendo sequer um valor correspondente ao peticionado na outra ação. Assim, não se verifica uma identidade de causa de pedir e de pedido, necessária à verificação da litispendência (...) Alega ainda que a causa de pedir não coincide com o título. Ora, a causa de pedir da ação principal consiste no valor alegadamente devido pelo contrato celebrado e constante do título executivo, que, enquanto título cambiário, é autónomo, dispensando mesmo a alegação de mais factos.”
[2] Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pág. 329.
[3] Dizendo no requerimento executivo, além do mais, que “a referida livrança titula o valor em dívida decorrente do incumprimento do contrato de locação financeira mobiliária, celebrado entre exequente e a referida sociedade D…, ao abrigo da atividade bancaria a que o primeiro se dedica.”
[4] Não “tão geral como parece, ou pretende ser”, para usarmos a expressão de José Gonçalves Ferreira, “As dívidas da massa insolvente e os negócios ainda não cumpridos: breves notas a propósito do regime geral”, in I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, Coordenação: Catarina Serra, Almedina, 2014, págs. 141/157, a págs. 151/152, que logo esclarece: “Primo, o artigo 102º/1 postula que só se aplica aos negócios bilaterais afastando assim uma importante fonte das obrigações qual seja a dos negócios unilaterais. Secondo, exige-se que não exista ainda total cumprimento por ambos os contraentes, o que exclui, de per se, imensas relações contratuais pois, as mais das vezes – e numa perspectiva meramente empírica -, os contratos até poderão ter sido cumpridos na íntegra por uma das partes. Tertio, existem preceitos de direito material contendo normas específicas que afastam a aplicação deste preceito de natureza geral.”
[5] Que se aplica “ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, ao contrato de locação financeira (leasing) e ao contrato de locação com cláusula segundo a qual, uma vez pagas todas as rendas convencionadas, o locatário adquire o direito de propriedade da coisa locada (vd., sob o regime dos demais contratos de locação, o art. 108º) – Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, Quid Juris, 2013, pág. 491.
[6] Sobre o contrato de locação financeira, e especificamente sobre o seu regime insolvencial, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª edição, Almedina, 2013, págs. 519/523.
[7] Ana Prata/Jorge Morais Carvalho/Rui Simões, ob. cit., pág. 304.
[8] Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, pág. 153.
[9] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 5.ª edição, Almedina, 2013, pág. 169. Exatamente no mesmo sentido, Maria do rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 4.ª edição, Almedina, 2012, pág. 173.
[10] Luís A. Carvalho Fernandes/ João Labareda, ob. cit., pág. 492.
[11] No qual afastamos uma eventual objeção de cumprimento integral do contrato por qualquer das partes (e, com relevo, pelo locador) atento o (dever de) pagamento das rendas, em curso, o dever de proporcionar o gozo do bem locado e, relevantemente, implicando um comportamento contratual positivo, o (dever) decorrente da opção de compra.
[12] José de Oliveira Ascensão, “Insolvência: Efeitos sobre os negócios em curso”, in Novo Direito da Insolvência, Edição Especial, THEMIS/2005, Almedina, 2005, págs. 105/130, a pág. 123.