Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
575/22.3T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO NÃO HABITACIONAL
NRAU
TRANSIÇÃO PARA O NRAU
Nº do Documento: RP20231023575/22.3T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O disposto no nº 4 do artigo 1110º do Código Civil, na redação da Lei nº 13/2019 de 12 de fevereiro não é aplicável a contrato de arrendamento celebrado na década de oitenta do século passado e que transitou para o Novo Regime do Arrendamento Urbano em 2016.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 575/22.3T8PRT.P1


Sumário do acórdão proferido no processo nº 575/22.3T8PRT.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
………………………………………………………………...
………………………………………………………………...
………………………………………………………………...

***
*
***



Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:


1. Relatório
Em 10 de janeiro de 2022, no Juízo Central Cível do Porto, Comarca do Porto, AA instaurou a presente ação declarativa sob forma comum contra A..., Limitada pedindo que:
1) se declare o autor dono e legítimo proprietário do prédio urbano sito na rua ..., da freguesia ..., concelho e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto sob o número ...07 (anterior descrição em livro com o nº ..., do livro nº ...51), inscrito na respetiva matriz sob os artigos ...17 e ...18, da citada freguesia e concelho;
2) se declare a caducidade do contrato de arrendamento não habitacional, datado de 9 de abril de 1980;
3) se condene a ré a restituir ao autor, livre de pessoas e bens, o prédio sito na rua ..., da freguesia ..., concelho do Porto, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
4) a ré seja condenada no pagamento da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), a título de compensação pela ocupação do local, calculada com base no valor de mercado de €3.000,00 por mês, desde a data de caducidade do arrendamento – 31.08.2021 - acrescida ainda dos juros de mora vencidos, calculados à taxa legal e dos juros de mora vincendos, calculados sobre a mesma taxa, até efetivo e integral pagamento;
5) a ré seja condenada ao pagamento das quantias mensais vincendas devidas pela ocupação indevida do imóvel até à data em que se efetivar a sua entrega, no mesmo montante mensal de €3.000,00;
6) a ré seja condenada a abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou diminua a utilização, por parte do autor, do referido local.
Para fundamentar as suas pretensões o autor alegou, em síntese, que é dono do prédio urbano sito na rua ..., da freguesia ..., concelho e distrito do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...07 (anterior descrição em livro com o nº ..., do livro nº ...51), inscrito na respetiva matriz sob os artigos ...17 e ...18, da citada freguesia e concelho; no mês de março de 2000, BB e CC, doaram-no à sua filha DD, mãe do aqui autor, tendo reservado, para si, o usufruto do mesmo, a extinguir no todo à morte do último; o referido prédio adveio à posse e propriedade do autor por doação de sua mãe, DD; por contrato de arrendamento não habitacional, datado de 9 de abril de 1980, o proprietário BB - avô do aqui autor - deu de arrendamento à sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada sob a firma “B..., Limitada” o rés do chão do prédio supra identificado com entrada pelos nºs ...5 e ...1, da Rua ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...17 e o rés do chão do prédio supra identificado com entrada pelos nºs ...3 e ...7, da Rua ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...18; BB deu de arrendamento o identificado prédio para a arrendatária nele instalar a sua oficina e nele exercer a sua atividade de reparação e pintura de automóveis; por contrato de trespasse, celebrado em 2 de fevereiro de 2009, a “B..., Limitada” transmitiu à ré “A..., Limitada”, a oficina instalada no rés do chão do prédio supra identificado, sito na Rua ..., da freguesia ..., concelho do Porto; por carta datada de 3 de junho de 2016 e rececionada a 29 de junho de 2016, a então usufrutuária do prédio, CC, comunicou à ré a sua intenção de proceder à transição do respetivo contrato de arrendamento para o Novo Regime de Arrendamento Urbano, bem como comunicou a sua intenção de proceder à atualização do valor da renda de acordo com aquele novo regime e a ré nada disse; o autor, por carta datada de 30 de outubro de 2020, comunicou à ré a sua oposição à renovação automática do contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo, a qual chegou ao conhecimento da ré em 2 de novembro de 2020; apesar de o autor ter interpelado novamente a ré, através de carta registada com aviso de receção datada de 28 de junho de 2021, na qual mantém a posição anteriormente participada, renovando a sua oposição à pretendida renovação automática do arrendamento e para a ré proceder à entrega do imóvel totalmente livre de pessoas e bens no fim do prazo do contrato, o que deveria ter ocorrido no dia 31 de agosto de 2021, a ré a isso não acedeu, continuando, desde então, a ocupar o imóvel pertencente ao autor, sem qualquer título, aprovação e/ou autorização do autor; em agosto de 2021, a ré efetuou a transferência para a conta bancária do autor do valor de €461,33, correspondente ao pagamento da renda do mês de setembro de 2021, tendo o autor procedido à sua devolução, por transferência bancária de 9 de agosto de 2021; apesar das múltiplas interpelações do autor para entrega do local em apreço, a ré nada fez, nele permanecendo contra a vontade do autor.
Citada, a ré contestou por exceção invocando erro na forma de processo e ineptidão da petição inicial por contradição do pedido com a causa de pedir; por impugnação admitiu a generalidade dos factos articulados pelo autor na petição inicial, sustentando que por efeito da entrada em vigor da Lei nº 13/2019 o autor ficou impedido de se opor à renovação do contrato no decurso do primeiro quinquénio, razão pela qual o arrendamento se mantém em vigor, procedendo a ré ao pagamento da ré devida, não obstante a recusa do autor em a receber; alega que o autor litiga de má-fé por alterar a verdade dos factos; conclui pela procedência das exceções por si deduzidas ou, assim não se entendendo, pela total improcedência da ação com condenação do autor por litigância de má-fé em indemnização nos termos previstos na alínea a) do nº 1 do artigo 543º do Código de Processo Civil.
Convidado a, querendo, responder à matéria de exceção, o autor ofereceu articulado pugnando pela inverificação das exceções invocadas pela ré.
Realizou-se audiência prévia, frustrando-se a tentativa de conciliação das partes e após comunicação do tribunal às partes da sua intenção de conhecer imediatamente do mérito da causa, os Ilustres Mandatários das partes alegaram oralmente.
Em 01 de fevereiro de 2023 foi proferida decisão final[1] que terminou com o dispositivo que na parte pertinente ao objeto do recurso se reproduz de seguida:
Pelo exposto, tudo ponderado e ao abrigo das disposições legais acima referidas, julgo a acção parcialmente procedente, por também parcialmente provada e, em consequência, declarando o autor AA legítimo dono e proprietário do imóvel acima referido e caducado em Junho de 2021 o contrato de arrendamento que havia sido celebrado com a ré A... Lda., decido:
A- Condenar a Ré a restituir ao Autor, livre de pessoas e bens, o prédio sito na rua ..., da freguesia ..., concelho do Porto, em bom estado de conservação e em perfeitas condições;
B- Condenar a Ré no pagamento de quantia de 615,00 euros (seiscentos e quinze euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel, desde Agosto de 2021 até efectiva entrega, acrescida dos juros de mora legais vencidos e vincendos até pagamento (sem prejuízo das quantias entretanto entregues e/ou depositadas pela ré à ordem do autor, ainda que a outro título, que serão imputadas no mês a que disserem respeito e sem contabilização de juros);
C- Absolver a ré do demais peticionado pelo autor.
Em 06 de março de 2023, inconformada com a decisão que precede, A..., Limitada interpôs recurso de apelação, requerendo que lhe seja atribuído efeito suspensivo, oferecendo-se para tanto a prestar caução e terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I – O pedido de procedência da excepção de ineptidão da petição inicial, está intrinsecamente ligado com a existência, ou não, da caducidade do contrato de arrendamento alegada pelo apelado, sendo que o tribunal “a quo”.
II - Não sendo declarada a caducidade do contrato de arrendamento não habitacional, sobre o locado objecto dos autos, não poderá proceder desde logo a acção de reivindicação.
III - A Sentença proferida reconheceu e declarou a caducidade do contrato de arrendamento, socorrendo-se essencialmente do contrato existente à data do trespasse do anterior inquilino e suas cláusulas, e ainda da notificação feita pelo autor à ré para transição do arrendamento para o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), assim como o número 2 do artigo 297.º do Código Civil.
IV - A comunicação da transição para o NRAU, havendo aceitação ou silêncio do inquilino, estamos em face de um contrato novo, encerrando-se o vinculísmo existente no contrato anterior, passando a ser um “contrato novo” resultante da referida transição, e as regras do novo contrato são as constantes e decorrentes do Novo Regime de Arrendamento Urbano, ou seja, é aplicável a versão do artigo 1110.º do Código Civil na redação dada pela Lei n.º 13/2019 de 12 de fevereiro.
V – Com a transição para o NRAU, iniciou-se um novo contrato, por força das formalidades e dos requisitos materiais impostos pelo Novo Regime, ou seja, fruto de uma negociação, na qual o silêncio também tem relevância como aceitação de proposta, mas não deixa de ser uma negociação, sendo novo contrato, temos que a sua vigência para efeitos das alterações da lei n.º 13/2019, tem a sua contagem decorrente das novas regras advenientes da mencionada transição, e por isso, tem aplicação o artigo 1110.º do Código Civil.
VI - Assim temos que a carta do autor, datada de 30 de outubro de 2020 (já estando em vigor a lei .º 13/2019) de oposição à renovação automática do contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo, não poderá ser atendível, sendo já objecto da lei n.º 13/2019, como não poderia deixar de ser.
VII - Sendo um “contrato novo” a transição para o NRAU, ocorrida em junho de 2016 (facto 9 dado como provado), será a partir desta data que se inicia o primeiro período de vigência do contrato, ao qual, durante este período inicial e até ao fim do quinto ano, o senhorio não poderá opor-se à primeira renovação de mais 5 anos.
VIII - O “novo” contrato, por força da transição para o NRAU, iniciando-se em junho de 2016, terminou a primeira vigência em junho de 2021, não podendo haver oposição à renovação do mesmo, este renova-se por mais 5 anos, terminando esta vigência em junho de 2026, aí sim, poderá o senhorio opor-se à renovação.
IX - Assim a oposição à renovação do contrato de arrendamento dado aos autos, é ineficaz, sendo improcedente o pedido de caducidade do mesmo por oposição à renovação.
NORMAS VIOLADAS:
Artigo 1110.º n.º 3 e 4; Artigo 297.º n.º 2 ambos do Código Civil.
AA respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos, no efeito suspensivo.
Atenta a natureza estritamente jurídica do objeto do recurso e a jurisprudência produzida sobre a problemática em causa, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos[2], cumprindo apreciar e decidir de imediato.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
A única questão a decidir é a seguinte:
- no caso de contrato de arrendamento inicialmente celebrado em 1980 e que transitou para o Novo Regime do Arrendamento Urbano mediante proposta do senhorio comunicada à arrendatária em 29 de junho de 2016 é eficaz a denúncia do contrato de arrendamento declarada pelo senhorio antes do fim do prazo de cinco anos a contar da transição do contrato e para produzir efeitos logo após o termo desse prazo quinquenal?

3. Fundamentos de facto[3] exarados na decisão recorrida que não se mostram impugnados pela recorrente, não se divisando qualquer fundamento que legalmente imponha a sua alteração oficiosa
3.1 Factos provados
3.1.1
Mostra-se descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial e inscrito o autor como seu proprietário, o prédio urbano sito na rua ..., da freguesia ..., concelho e distrito do Porto, descrito na Conservatória de Registo Predial do Porto sob o número ...07 (anterior descrição em livro com o nº ..., do livro nº ...51), inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...17 e ...18, da citada freguesia e concelho.
3.1.2
No mês de março de 2000, os primitivos proprietários do prédio, BB e CC, doaram-no à sua filha DD (mãe do aqui autor), tendo reservado, para si, o usufruto do mesmo, a extinguir no todo à morte do último.
3.1.3
Com o falecimento dos usufrutuários BB e CC, o usufruto extinguiu-se e a propriedade consolidou-se na, então proprietária da raiz, DD, mãe do autor[4].
3.1.4
Tal prédio adveio à posse e propriedade do autor por doação de sua mãe, DD[5].
3.1.5
Por contrato de arrendamento não habitacional, datado de 9 de abril de 1980, o então proprietário, BB, avô do aqui autor, deu de arrendamento à sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada sob a firma “B..., LIMITADA”:
a) O rés do chão do prédio supra identificado com entrada pelos nºs ...5 e ...1, da Rua ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...17;
b) O rés do chão do prédio supra identificado com entrada pelos nºs ...3 e ...7, da Rua ..., da freguesia ..., no Porto, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...18.
3.1.6
O senhorio deu de arrendamento o identificado prédio para a primitiva arrendatária nele instalar a sua oficina e nele exercer a sua atividade de reparação e pintura de automóveis.
3.1.7
Os aí outorgantes, BB e EE – este último como sócio gerente e em representação da “B..., LIMITADA” – sempre reconheceram mutuamente as respetivas qualidades, próprias e recíprocas, de senhorio e arrendatária do imóvel sub judice.
3.1.8
Por contrato de trespasse, celebrado em 2 de fevereiro de 2009, a “B..., LIMITADA” transmitiu à ré “A..., Limitada”, a oficina instalada no rés do chão do prédio supra identificado, sito na Rua ..., da freguesia ..., concelho do Porto.
3.1.9
Por via do referido trespasse de estabelecimento comercial, o arrendamento transmitiu-se à ré “A..., Limitada”.
3.1.10
Por carta datada de 3 de junho de 2016 e rececionada a 29 de junho de 2016, a então usufrutuária do prédio, CC, comunicou à ré a sua intenção de proceder à transição do respetivo contrato de arrendamento para o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), bem como comunicou a sua intenção de proceder à atualização do valor da renda de acordo com aquele novo regime e alteração do prazo de duração, passando a ser de cinco anos, renovável por períodos de dois anos, salvo oposição à renovação ou denúncia de qualquer uma das partes.
3.1.11
Aí se previa ainda que o valor da renda, a partir de 1 de janeiro de 2020, fosse de 7.381,32 euros anuais, a pagar em duodécimos de 615,00 euros.
3.1.12
Decorrido o prazo de 30 (trinta) dias para apresentar resposta à supra referida comunicação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 51º do NRAU, a ré nada disse, aceitando a proposta.
3.1.13
O autor, por carta datada de 30 de outubro de 2020, comunicou à ré a sua oposição à renovação automática do contrato de arrendamento não habitacional com prazo certo, a qual chegou ao conhecimento da Ré em 2 de novembro de 2020.

4. Fundamentos de direito
No caso de contrato de arrendamento inicialmente celebrado em 1980 e que transitou para o Novo Regime do Arrendamento Urbano mediante proposta do senhorio comunicada à arrendatária em 29 de junho de 2016, é eficaz a denúncia do contrato de arrendamento declarada pelo senhorio antes do fim do prazo de cinco anos a contar da transição do contrato e para produzir efeitos logo após o termo desse prazo quinquenal?
A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida sustentando, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, que o contrato de arrendamento que a recorrida afirma ter caducado é um contrato novo celebrado na sequência da manifestação de vontade da anterior senhoria de transição do anterior contrato para o Novo Regime do Arrendamento Urbano. Em abono desta posição cita um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 20 de setembro de 2021[6].
Na decisão recorrida, sobre a questão nuclear objeto deste recurso escreveu-se o seguinte:
Como vemos, da alteração legislativa, resultou que o senhorio não pode opor-se à primeira renovação do contrato de arrendamento.
Tem aplicação ao caso o disposto no art. 297 nº 2 do Código Civil, que preceitua que a lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial.
Porém, temos também de entender que não se tratou de uma primeira renovação do contrato.
Com efeito, como se vê dos factos acima referidos e do contrato inicial de arrendamento, este foi celebrado em 9 de Abril de 1980, com início contado desde 1 de Março desse ano, pelo prazo de um ano, “renovável nos termos legais”(doc. nº 4 junto com a petição inicial).
Isto é, desde 1980 que o contrato vem sendo sucessivamente renovado anualmente, até à transição para o NRAU, como acima referido.
Pelo que não estamos no âmbito de uma primeira renovação do contrato, não tendo aplicação ao caso dos autos o disposto no art. 1110 nº 4 do Código Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 1110º do Código Civil, “[n]os primeiros cinco anos após o início do contrato, independentemente do prazo estipulado, o senhorio não pode opor-se à renovação.”
Esta previsão legal resultou das alterações introduzidas ao regime do arrendamento urbano pela Lei nº 13/2019 de 12 de fevereiro[7] .
No caso dos autos, como previsto e permitido no artigo 50º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, nas redações introduzidas pelas Leis nº 31/2012 de 14 de agosto e nº 79/2014 de 19 de dezembro, por iniciativa da então senhoria e conhecida pela arrendatária em 29 de junho de 2016, veio a operar-se a transição para o NRAU[8] do contrato de arrendamento para fim não habitacional que havia sido celebrado em 09 de abril de 1980.
Por força de tal transição operou-se uma modificação quanto ao tipo e prazo do contrato que era de duração indeterminada e com o prazo de um ano renovável nos termos legais, passando a ser de prazo certo de cinco anos, renovável por períodos de dois anos e também quanto à renda que passou a ser a proposta na carta remetida pela então senhoria à arrendatária e datada de 03 de junho de 2016.
No mais, afigura-se-nos que se mantiveram as restantes cláusulas contratuais constantes do contrato de arrendamento celebrado em 09 de abril de 1980.
Serão aquelas modificações de algumas cláusulas contratuais bastantes para se afirmar que a partir de então se iniciou um novo contrato, “apagando-se”, nomeadamente, todo o tempo anteriormente decorrido desde a celebração do contrato primitivo por efeito da opção do senhorio e que passa a reger-se pelas regras do Novo Regime do Arrendamento Urbano?
Não se desconhece que em obter dictum o Supremo Tribunal de Justiça[9], já sustentou que a comunicação do senhorio endereçada ao arrendatário para operar a transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano dá “início a um verdadeiro processo negocial obrigatório encetado com vista à formação de um novo contrato”.
Deu-se já anteriormente conta que esta referência do nosso mais alto Tribunal foi acolhida no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto que a recorrente cita para abonar a sua posição. Ainda assim, importa vincar que o acórdão deste Tribunal que a recorrente cita coloca entre aspas o adjetivo “novo” referido ao contrato de arrendamento.
Embora o uso das aspas não esteja explicitado no referido aresto, cremos que com o uso de tal sinal se terá querido vincar que se trata de uma novidade relativa às novas cláusulas propostas, pois que está em causa um expediente legal que permite a transição de um contrato anterior ao novo regime do arrendamento urbano para este último regime jurídico.
Esta questão não é jurisprudencialmente inédita, tendo sido já analisada no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de junho de 2023, proferido no processo nº 518/22.4T8CTB.C1, acessível na base de dados da DGSI e em termos que merecem a nossa concordância.
Na realidade, não obstante a alteração de algumas cláusulas contratuais, a fonte primária da concessão do gozo dos imóveis mediante arrendamento à agora recorrente continua a ser o contrato celebrado em 09 de abril de 1980, pois que aí se determina o seu objeto, o seu fim, se contêm cláusulas quanto a obras e quanto à instalação elétrica e à canalização de água.
Neste contexto, só ficcionando se pode afirmar que o contrato de arrendamento ao abrigo do qual a ora recorrente vem ocupando os imóveis propriedade do autor se iniciou apenas com a manifestação de vontade da então senhoria no sentido da transição de tal contrato para o Novo Regime do Arrendamento Urbano.
Tal como a modificação subjetiva no contrato de arrendamento decorrente do trespasse celebrado em 02 de fevereiro de 2009 não implicou que a partir de então se devesse considerar existir um novo contrato de arrendamento, também a alteração das cláusulas contratuais relativas ao tipo e à duração do contrato e bem assim relativamente ao montante das rendas não envolve, a nosso ver, a configuração de um novo contrato de arrendamento com início na data da eficácia da proposta de transição do contrato para o Novo Regime do Arrendamento Urbano.
Finalmente, sopesando a teleologia subjacente ao nº 4 do artigo 1110º do Código Civil decorrente da Lei nº 13/2019 de 12 de fevereiro e que cremos ser a de garantir ao arrendatário de imóvel para fins não habitacionais um gozo mínimo garantido de cinco anos, afigura-se-nos que a mesma não colhe no caso dos autos pois que esse gozo vem perdurando há largos anos.
Assim sendo, quando foi comunicada à ora recorrente a oposição à renovação do contrato de arrendamento este já se havia iniciado há mais de trinta anos, sendo por isso inaplicável ao caso dos autos o disposto no nº 4 do artigo 1110º do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 13/2019 de 12 de fevereiro.
Deste modo conclui-se que a decisão recorrida, nos pontos impugnados pela recorrente, não merece qualquer censura e deve ser confirmada, improcedendo totalmente o recurso de apelação interposto por A..., Limitada.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente pois que improcedeu totalmente a sua pretensão recursória (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por A..., Limitada e, e consequência, em confirmar a sentença recorrida proferida em 01 de fevereiro de 2023, nos segmentos impugnados.

Custas a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***



O presente acórdão compõe-se de doze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 23 de outubro de 2023
Carlos Gil
Eugénia Cunha
Mendes Coelho
_____________
[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 02 de fevereiro de 2023.
[2] Sublinhe-se que a dispensa de vistos na era do Citius não tem as consequências que tinha no tempo em que o processo era exclusivamente físico. Na verdade, com o processo eletrónico, cada um dos Juízes-Adjuntos pode aceder ao processo e consultá-lo mesmo que tenha havido dispensa de vistos. Daí que, na nossa perspetiva, apenas quando o objeto do recurso envolva a impugnação da decisão da matéria de facto com reapreciação da prova gravada, pressupondo que o projeto de acórdão é remetido aos adjuntos quando o processo vai a vistos (artigo 657º, nº 2, do Código de Processo Civil), se justifique que os autos vão aos vistos dos Juízes-Adjuntos, a fim de que estes, se necessário, tenham tempo suficiente para ouvir e ponderar a prova que haja para reapreciar.
[3] Expurgados das meras referências probatórias.
[4] Em rigor, este ponto contém conclusões jurídicas mas que por não serem objeto da controvérsia nuclear entre as partes, são de tolerar. Na realidade, o que verdadeiramente constitui facto neste ponto é a data do óbito dos usufrutuários vitalícios.
[5] Também este ponto contém conclusões jurídicas que não são controvertidas entre as partes. Neste caso, o facto de que emerge a conclusão jurídica dada como assente é a celebração do contrato de doação do imóvel em benefício do autor.
[6] A recorrente não indica o número de processo em que foi proferido esse acórdão, nem esclarece se foi publicado. Feita a necessária pesquisa verificou-se que o acórdão que a recorrente invoca para confortar a sua posição foi relatado pela Exma. Colega Primeira-adjunta neste acórdão no processo nº 16721/20.9T8PRT.P1 e está publicado na base de dados da DGSI. Este acórdão, no que respeita à “novidade” do contrato resultante da transição para o Novo Regime do Arrendamento Urbano, segue de perto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de setembro de 2018, tirado por maioria no processo nº 8346/15.7T8LSB.L1.S1, acessível na base de dados da DGSI, mas coloca entre aspas o adjetivo “novo”. Mais adiante tentaremos determinar o sentido do uso deste sinal gráfico.
[7] Esta lei teve origem remota na proposta de lei nº 129/XIII/3 e dizemos remota porque nesta proposta não estava contemplado o referido normativo. Apenas numa proposta de alteração apresentada pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista com data de 18 de setembro de 2018 foram propostas alterações, além do mais, aos artigos 1097º e 1110º do Código Civil, com redações similares; posteriormente, no texto de substituição os artigos antes citados ficaram com as redações que constam atualmente do Código Civil, não sendo percetível em termos de trabalhos preparatórios dos referidos preceitos por que razão não se manteve a redação proposta pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista com data de 18 de setembro de 2018. Acedeu-se aos trabalhos preparatórios da Lei nº 13/2019 de 12 de fevereiro com a seguinte ligação: https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42542
[8] Acrónimo de Novo Regime do Arrendamento Urbano.
[9] Referimo-nos ao acórdão de 18 de setembro de 2018, já antes citado, tirado por maioria no processo nº 8346/15.7T8LSB.L1.S1 e acessível na base de dados da DGSI.