Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6790/09.8TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
NARRAÇÃO DOS FACTOS
Nº do Documento: RP201107066790/09.8TDPRT.P1
Data do Acordão: 07/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NÃO PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Mesmo quando o requerimento para abertura da instrução [RAI] formulado pelo assistente vise tão só a discussão de divergência quanto à classificação jurídica dos factos operada no despacho de arquivamento, continua a ser de exigir, sob pena de rejeição, que naquele requerimento seja feita a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem coma a indicação das disposições legais aplicáveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 1ª SECÇÃO CRIMINAL –
Processo nº 6790/09.8TDPRT.P1
Tribunal de Instrução Criminal do Porto – 3º Juízo
Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
B……….., assistente nos autos supra referenciados, recorre do despacho de fls 175 e sgs que, com fundamento em inadmissibilidade, não admite o seu requerimento de abertura de instrução, já que, ao contrário do que se concluiu no despacho recorrido, aquele reúne os elementos necessários ao desiderato a prosseguir, tendo havido violação dos preceitos dos artigos 286º e 287º, nº 3, do CPP.
Notificados os demais intervenientes processuais, apresentou resposta o Ministério Público, sustentando a bondade do despacho recorrido.
Foi admitido o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
O procurador-geral adjunto neste tribunal pronunciou-se no sentido de o despacho recorrido não merecer censura.
Não houve resposta.
Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso - artigos 417º, nº 9, 418º e 419º nºs 1, 2 e 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1. Dá-se por reproduzido o requerimento de fls 163 a 170, pelo qual a recorrente, assistente nos autos, requer a abertura da instrução.
Transcrevem-se os trechos mais significativos do despacho recorrido de fls 175 e sgs que, com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução, não admite aquele requerimento.
(…)
No caso dos autos, a assistente B………, não narra os factos integradores do elemento subjectivo (o momento intelectual — representação da conduta e o momento volitivo vontade de realização do tipo objectivo de ilícito) de factos qualificados como crime na lei penal, conforme prescreve o art. 283° nº 3 b) ex vi do art. 287° n° 2 do C.P.P, do crime pelo qual pretende a sujeição do arguido C…….. a julgamento, quedando-se por apresentar as razões de discordância e depois, por narrar apenas os factos integradores do tipo objectivo do crime que não diz qual é.
Sobre esta questão, pronunciou-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 7/1/2009 no proc. n° 0846210 dizendo que “Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, o requerimento do assistente para abertura da instrução que não descreva os elementos subjectivos do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido“.
Faltando, na “acusação“ inserta no requerimento instrutório da assistente B……… a narração do elemento subjectivo do tipo de crime, essa acusação alternativa está incompleta, padecendo de uma nulidade.
Consequentemente, não pode haver legalmente pronúncia do arguido C………...
Isto porque a decisão de pronúncia, nos termos do art. 308°, n° 1, do C.P.P, tem de descrever os factos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Ora, se o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente no contém esses factos, a sua inclusão na pronúncia significaria uma pronúncia por factos que constituiriam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento, sendo tal decisão nula por força do disposto no já citado nº 1 do art. 309°.
O C.P.P. — art. 287° n° 2 — diz que ao requerimento do assistente é aplicável “o disposto no art. 283°, n° 3, alíneas b) e c)”, e o art. 283° n° 3 refere que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, “a narração ... dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (b); a indicação das disposições legais aplicáveis (c)”.
Sendo tal requerimento nulo, essa nulidade é do conhecimento oficioso por força da remissão do art. 287° n° 2 e tem como consequência a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado.
(…)
Por conseguinte, sem necessidade de mais fundamento ou desenvolvimento, pelas razões que se deixaram apontadas, nos termos do disposto no n° 3 do art. 287° do CPP, este Tribunal decide rejeitar o requerimento instrutório de fls 163 a 170, por inadmissibilidade legal da instrução.
Transcrevem-se as conclusões da motivação do recurso.
1. Vem o presente Recurso interposto do Despacho proferido pelo Mm.° Juiz de Instrução Criminal, nos termos do qual se decidiu rejeitar o Requerimento de Abertura de Instrução Criminal (doravante “RAI”) apresentado pela ora Recorrente por inadmissibilidade legal do mesmo.
2. Entendeu o Tribunal a quo que o RAI apresentado pela ora Recorrente não se apresenta estruturado como uma acusação, omitindo a indicação do tipo de crime e respectivas normas legais incriminadoras.
3. Concluindo a decisão recorrida que “faltando na acusação inserta no requerimento instrutório da assistente B…….., a narração do elemento subjectivo do tipo de crime, essa acusação alternativa está incompleta, padecendo de nulidade”.
4. Entende a Recorrente que, em face dos contornos concretos da decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público e o RAI apresentado, a decisão proferida não tem qualquer acolhimento nas normas de Processo Penal, nem na própria jurisprudência que versa precisamente sobre estas questões.
5. De acordo com o disposto no art. 287°, n° 2, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas c) e d) do n.° 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal.
6. Assim, por aplicação do disposto nas als. c) e d) do art. 283.°, n.° 3, do Código de Processo Penal o Requerimento de Abertura de Instrução quando for apresentado pelo Assistente deve ainda conter i) “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e ii) “A indicação das disposições legais aplicáveis”.
7. O crime que a Assistente pretende ver imputado ao Arguido, ora Recorrido, é o crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143.° do Código Penal.
8. Devidamente analisado o Despacho de Arquivamento proferido pelo Ministério Público verifica-se que, relativamente à Assistente, é esse o crime referenciado e é o tipo de crime pelo qual a Assistente vem acusada de ter praticado na pessoa do Recorrido.
9. Motivos pelos quais, no RAI a ora Recorrente, se limitou a invocar as razões de facto e de direito que, por referência aos elementos de prova indiciários constantes dos autos, eram susceptíveis de demonstrar a não coerência da argumentação dos factos imputados à Assistente, ou seja, visava-se apenas a sindicância judicial da motivação do Arguido, ou seja, a apreciação da verificação dos elementos de prova existentes que levaram à acusação/arquivamento.
10. Conforme flui de uma atenta leitura do requerimento apresentado pela Assistente, ora Recorrente, os seus arts. 4°, 5° e 12° tratam precisamente esta questão, fazendo concreta e directa referência aos factos que precisamente demonstram que dos mesmo tipo de factos — as lesões verificadas foi possível proferir quanto à Recorrente uma acusação e quanto ao Recorrido um arquivamento.
11. Com efeito, perante as razões que fundamentaram o arquivamento deduzido que sobretudo consistem no não presenciar dos factos o RAI apresentado visou sobretudo demonstrar as razões de facto e de Direito de discordância relativamente à não acusação pelo Ministério Público, identificando os meios de prova que colocando em causa os testemunhos que corroboram a versão do ora Recorrido, impunham uma decisão precisamente inversa.
12. De resto, os factos que se imputam ao Arguido são de extrema simplicidade e derivam directamente do segurar do braço e do empurrão para o chão que foi infligido à Assistente, que lhe provocou ofensas no corpo conforme demonstrado nos autos, resultado que o ora Recorrido quis e sabia proibido e punido por lei, o que resulta sem mais do facto de, pelos mesmo factos ter apresentado queixa, factualidade suficientemente narrada no RAI.
13. O art. 286.°, n.° 1 do Código de Processo Penal que delimita a finalidade e o âmbito da instrução determina que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, pelo que não se pode deixar de entender que a principal finalidade do requerimento de abertura de instrução, seja ele apresentado pelo Arguido ou pelo Assistente — é precisamente indicar as razões de discordância perante a decisão do Ministério Público no final do Inquérito.
14. A fórmula de apresentação desse requerimento estará assim sempre dependente dos fundamentos concretos apontados no despacho do Ministério Público, sendo por demais evidente que, se o elemento subjectivo - a vontade de ofender - não é discutido e, por conseguinte, imediatamente perceptível pelo Juiz de Instrução Criminal, como acontece no caso vertente, não poderá este demitir-se de o apreciar, escudando-se em argumentos meramente formais.
15. Em face do exposto, não se pode deixar de concluir que do presente RAI, resultam suficientemente definidos, quem foi o agente do crime como que factos é que o mesmo praticou e quando os praticou, enunciando ainda os elementos probatórios e as razões de Direito que foram desatendidas no despacho de constantes dos arts. 287.°, n.° 2 e 283.°, n.° 3, als. a) e b) do Código de Processo Penal.
16. Neste mesmo sentido, citam-se as decisões proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 31.03.2010, Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.11.2004 (in www.dgsi.pt — Processo n.° 2886/04), e do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2006 (in www.dgsi.pt - Processo 1931/06), nos termos do qual se esclarece que sempre que, apesar das deficiências, o Juiz possa conhecer claramente o que está em causa, que factos se pretende ver apreciados, a instrução deverá realizar-se, uma vez que o apelo ao formalismo do requerimento de abertura de instrução nunca deve ser definitivo.
17. O RAI delimita o objecto da instrução, porém, esta delimitação não se pode confundir com as rigorosas exigências impostas para a acusação. No essencial, o que importa “é que o juiz, pelo requerimento, saiba claramente que factos estão em causa, quem são os seus agentes e as razões porque o assistente entende que deve haver acusação”.
18. Verificando-se que no RAI apresentado são suficientemente perceptíveis os factos imputados, a descrição do lugar, do tempo e da própria motivação do Arguido no cometimento dos mesmos, bem como as normas legais aplicáveis, até por se tratar de queixa contra queixa, em plena harmonia e conformidade com as exigências formais impostas pelos arts. 283.°, n.° 3, als. b) e c) e 287.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, não deveria o Tribunal a quo ter rejeitado a instrução requerida com argumentos meramente formais desadequados aos presentes autos.
19. Deste modo, conclui-se que o Mm.° Juiz de Instrução Criminal se demitiu de apreciar as questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução que se prendem precisamente sobre os mesmo factos, os mesmos elementos subjectivos terem conduzido a resultados diametralmente opostos, rejeitando liminarmente a Instrução, sem cuidar de avaliar se a decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Publico se justificava perante os elementos de prova constantes nos autos e as disposições legais aplicáveis no caso concreto.
20. Deste modo não se pode deixar de concluir que a decisão recorrida viola o disposto nos arts. 286.° e 287.°, n.° 3 do Código de Processo Penal, impondo-se a revogação do despacho a quo e a sua subsequente substituição por outro que admita a abertura da instrução nos termos requeridos.
21. Nestes termos e nos demais de Direito, deverá ser revogado o despacho recorrido e, em consequência, ser substituído por outro que reconheça a legitimidade da Recorrente para prosseguir nos presentes autos como Assistente e determine a abertura da Instrução, pois, só assim se fará a verdadeira e costumada Justiça.
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2. Em apreciação o cumprimento por parte da assistente, no seu requerimento de abertura da instrução, dos requisitos exigidos pelos artigos 283º, nº 3, alíneas b) e c), e 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, posição defendida pela recorrente, ou não, o que se sustenta no despacho recorrido, como fundamento para a rejeição com base em inadmissibilidade legal da instrução, prevista no nº 3 deste último preceito.
2.1. Compulsemos o quadro legal em causa.
O nº 1 do artigo 287º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “finalidade e âmbito da instrução”, preceitua que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Já o nº 2 do artigo 287º, relativo ao requerimento para abertura da instrução, dispõe que «o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c)».
E o nº 3 do mesmo artigo refere que «o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução».
O artigo 283º, nº 3, sob a epígrafe “acusação pelo ministério público” diz que «a acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis (…)».
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2.2. A assistente pretende ter cumprido minimamente os ónus que daqueles preceitos decorrem quanto à conformação do seu requerimento para a abertura da instrução. Nomeadamente, no que ora nos importa, não terá desrespeitado as exigências das alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º, para as quais remete o preceito constante do artigo 287º, nº 2. Porquanto, em seu entendimento, “a fórmula de apresentação desse requerimento estará assim sempre dependente dos fundamentos concretos apontados no despacho do Ministério Público, sendo por demais evidente que, se o elemento subjectivo - a vontade de ofender - não é discutido e, por conseguinte, imediatamente perceptível pelo Juiz de Instrução Criminal, como acontece no caso vertente, não poderá este demitir-se de o apreciar, escudando-se em argumentos meramente formais”. Acrescentado que “não se pode deixar de concluir que do presente RAI, resultam suficientemente definidos, quem foi o agente do crime bem como que factos é que o mesmo praticou e quando os praticou, enunciando ainda os elementos probatórios e as razões de Direito que foram desatendidas no despacho de arquivamento”.
Não parece que lhe assista razão.
Na verdade, o requerimento de instrução, se formulado pelo assistente, desempenha uma dupla função, como decorre do disposto no nº 2 do artigo 287º.
Por um lado, serve para carrear as razões pelas quais o assistente discorda do despacho de arquivamento. Mas, porque nenhuma acusação foi formulada, destina-se também a enunciar esta, como resulta inequivocamente da parte final daquele preceito – «sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c)». Pelo que o requerimento de abertura de instrução do assistente tem de estar sujeito ao formalismo da acusação, já que se lhe equipara.[1]
Assim, no requerimento para abertura de instrução, tem o assistente de indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida. Factos que o juiz de instrução irá apurar se se indiciam ou não. Equivalendo esse requerimento à acusação, define e delimita o objecto do processo, por força da estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português.
Ora, o requerimento apresentado pela assistente não cumpre este último desiderato, limitando-se, no essencial, a avançar as razões da sua discordância do despacho final de arquivamento proferido. Omitindo a indicação das normas legais aplicáveis e os factos que preencheriam o elemento subjectivo do tipo do crime. Ou seja, a assistente não elaborou um requerimento de abertura da instrução em que desse cumprimento às imposições legais supra referidas, de molde a que se pudesse afirmar estarmos perante uma verdadeira acusação.
O não acatamento pela assistente de tais exigências é, por outro lado, insuprível, já que o juiz de instrução está limitado aos factos descritos pelo assistente no requerimento de abertura da instrução, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 309º do CPP.
Pelo exposto, dúvidas não ficam de que o requerimento apresentado pela assistente não preencheu os requisitos contemplados no artigo 283º, nº 3, aplicável por força da remissão operada pelo artigo 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, que a lei exige para a acusação pública, pelo que não pode deixar de considerar-se nulo, à semelhança do que sucede com a acusação pública deduzida sem observância de tais requisitos.
A esse propósito, não podemos deixar de transcrever o que de mais incisivo se discorre no acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/2004, de 19 de Maio (Maria Fernanda Palma)[2], no que concerne às exigências do princípio do acusatório, consagrado no artigo 32º, nº 5, da Constituição como uma das garantias de defesa em processo criminal, das quais decorre a disciplina da alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP que, por esse motivo, é conforme aos ditames daquele diploma fundamental.
Diz-se no referido aresto.
A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.
Será, porém, aceitável a exigência de que tal menção seja feita por remissão para elementos dos autos, ou pelo contrário, será inconstitucional, por violação do direito ao acesso aos tribunais, que seja vedada a possibilidade de tal indicação ser feita por remissão para elementos dos autos.
A resposta é negativa.
Com efeito, a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.”
Considerandos que nos levam a rejeitar a plasticidade que a recorrente pretende introduzir na interpretação daquela alínea b), apelando a que nos presentes autos o requerimento de abertura da instrução visou tão só a discussão de divergência quanto à classificação jurídica dos factos operada no despacho de arquivamento, sendo certo que esses factos já constavam deste, da queixa e da contra-queixa.[3] Não se vislumbra, na verdade, atento o princípio do acusatório, de que forma se possa colmatar a ausência da expressa menção dos factos, ainda que sintética, como exigido na dita alínea b), para a qual remete a parte final do nº 2 do artigo 287º.
Continuamos a concordar com o senhor juiz autor do despacho recorrido, quando diz que nem sequer colhe despacho de aperfeiçoamento, louvando-se no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2005, publicado no D.R. I Série-A n.º 212, de 4 de Novembro de 2005, que decidiu que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Podemos, pois, concluir que, mesmo quando o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente vise tão só a discussão de divergência quanto à classificação jurídica dos factos operada no despacho de arquivamento, continua a ser de exigir, sob pena de rejeição, que naquele requerimento seja feita a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
III
DISPOSITIVO
Julga-se o recurso improcedente.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC – artigo 8º, nº 5, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
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Notifique e registe.
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Porto, 6 de Julho de 2011
José Manuel Ferreira de Araújo Barros
Joaquim Maria Melo de Sousa Lima
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[1] Nesse sentido, os acórdãos da Relação de Lisboa de 12/05/1998 (Franco de Sá), BMJ n.º 477.º, pág. 555, da Relação do Porto de 15/04/1998 (Veiga Reis), BMJ n.º 476.º, pág. 487, da Relação de Lisboa de 2/12/1998 (Santos Carvalho), BMJ n.º 482.º, pág. 294, da Relação de Lisboa de 21/10/1999 (Gomes da Silva), CJ, XXII pág. 158, e da Relação de Lisboa de 9/02/2000 (Pereira Marques), CJ, XXIII, 1.º, 153.
[2] In tribunalconstitucional.pt.
[3] E tal tem a ver tão só com a impossibilidade em ultrapassar a ausência de narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, já que, como tivemos ocasião de defender no acórdão desta relação do Porto de 17 de Novembro de 2010, in dgsi.pt, “não deve ser rejeitado o requerimento de abertura de instrução que, embora desajeitado, prolixo e confuso, mencione todos os factos que integram o tipo do crime imputado ao arguido”, nesse caso, “cabendo ao juiz de instrução, em eventual despacho de pronúncia, ordenar, sintetizar e clarificar os mesmos”.