Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
108/13.2TALSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA
CONTRATO DE CONSÓRCIO
NÃO ENTREGA DE QUANTIAS RECEBIDAS
OUTRO MEMBRO DO CONSÓRCIO
APROPRIAÇÃO
Nº do Documento: RP20180110108/13.2TALSD.P1
Data do Acordão: 01/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º63/2017, FLS.267-276)
Área Temática: .
Sumário: Comete o crime de abuso de confiança o “ Chefe de Consorcio” que recebeu as quantias relativas a trabalhos prestados pela assistente, por titulo não translativo de propriedade e para serem entregues à assistente em pagamento dos serviços prestados, e não o fez na data convencionada (apresentação das respectivas facturas), apropriando-se das mesmas e agindo como se tais quantias fossem suas, invertendo o titulo de posse.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 108/13.2TALSD.P1
Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
1.1. B…, LDA., assistente devidamente identificada nos autos de instrução acima referenciados, inconformada com a decisão instrutória de não pronúncia, recorreu para este Tribunal da Relação do Porto, por entender que a prova indiciária resultante dos autos deveria ter levado à pronúncia dos arguidos.
1.2. Em suma, entende que cabia à “C… SA” e seus administradores, na qualidade de cabeça do consórcio, receber o preço dos serviços realizados e entregar à recorrente (assistente) aquilo que era a sua quota de obras e serviços. Ora, apesar de aquela empresa ter recebido o preço desses serviços, não o entregou à assistente, tendo-se apropriado, assim, ilegitimamente do mesmo.
1.3. O MP pugna pela improcedência do recurso, por entender que os factos em causa nos autos não indiciam a prática de um crime de abuso de confiança, por não ter havido inversão do título da posse.
1.4. Nesta Relação, o Ex.º Procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
1.5. Deu-se cumprimento ao disposto no art 417º, 2 do CPP.
1.6. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência
2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto
A decisão recorrida é do seguinte teor (transcrição).
Declaro encerrada a instrução
Relatório:
A Digna Magistrada do Ministério Público, findo o inquérito, proferiu despacho de arquivamento dos autos por considerar não existirem indícios suficientes da prática de ilícito criminal, nomeadamente de crime de abuso de confiança qualificada, pº e pº, pelo artigo 205º, n.º1 e 4 do Código Penal, tal como decorre de fls. 897 a 902 dos autos.
A assistente, B…, Ldª, inconformado com o despacho de arquivamento dos autos, requereu a abertura da instrução considerando existirem indícios suficientes da prática pelo arguido de um crime de abuso de confiança, pº e pº, pelo artigo 205º, n.º1 e 4 do Código Penal, nos termos plasmados a fls. 930 a 940 dos autos.
Declarada aberta a instrução, procedeu-se à inquirição do representante legal da assistente, D…, à inquirição das testemunhas E… e F…, seguido da realização do correspondente debate instrutório, cumprindo os formalismos legais, tal como a ata o demonstra.
Saneador:
O Tribunal é o competente.
O processo é o próprio e não são conhecidas nulidades
Os sujeitos processuais encontram-se dotados de capacidade e legitimidade.
Nada obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa.
Finalidade da instrução:
A instrução que tem carácter facultativo visa, in casu, a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídicos factuais do arquivamento e, assim, da decisão processual do Ministério Púbico proferir deduzir despacho de arquivamento - artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Constitui, portanto, uma fase preparatória e instrumental em relação ao julgamento.
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, no sentido em que não se pretende através dela a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios, sinais de ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção, para a decisão de pronúncia, de que existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. artigos 308º, nºs 1 e 2; 283º, nº 2 e 301º, nº 3 do Código de Processo Penal), visando-se assim apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos que constituam crime [cfr. Germano Marques da Silva, in “Curso de Direito Processual Penal”, Editorial Verbo, 1994, páginas 182/183].
O que sejam indícios suficientes procurou o legislador definir no artigo 283°, nº 2 do Código de Processo Penal, quando estatui “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Não basta assim a existência de meros indícios para submeter um arguido a julgamento, mas é também necessário que esses indícios permitam um juízo de prognose póstuma, no sentido de haver probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança. Por outras palavras, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1/3/2005 (Processo nº 1481/04-1, acessível em www.dgsi.pt/jtre): «Para que os indícios sejam suficientes, ou seja, para que os indícios tenham um valor probatório é necessário que sejam precisos, graves e concordantes».
Assim, «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime de que o não tenha cometido, havendo por isso uma probabilidade mais forte de condenação do que absolvição» (cfr. Acórdão de 05/06/1996 do Tribunal da Relação do Porto, disponível em www.dgsi.pt)
Constitui assim, a existência de indícios suficientes, que para terem valor probatório, terão de ser precisos, graves e concordantes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/03/2005 acessível em www.dgsi.pt), um verdadeiro pressuposto para a prolação do despacho de pronúncia.
Conforme referido, a suficiência dos indícios está intimamente ligada com um juízo de prognose sobre a aplicação, em sede de julgamento, de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido, sendo que na esteira do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt/acórdãos) temos por certo que o princípio da presunção de inocência não pode ser visto como uma «presunção meramente teórica da inocência, que na prática não redunda em qualquer posição processual vantajosa para o arguido, mas o coloca ilimitadamente à disposição da acusação, a qual pouco terá de demonstrar para que o julgamento se realize».
Não é plausível que, num Estado de Direito fundado sobre o princípio da presunção de inocência, havendo dúvidas sobre a culpabilidade de uma pessoa se opte por submeter a mesma a um julgamento e, assim, quer se queira quer não, à censura pública. Por isso, entendemos que, mesmo nesta fase da instrução, há que aplicar o princípio in dubio pro reo.
Em suma, há que fazer um juízo de prognose, apreciando criticamente as provas existentes nos autos, sempre com pleno respeito pelo princípio da presunção de inocência.
Contudo, além de avaliar da existência de indícios suficientes, o Juiz de Instrução deve também aferir da verificação dos pressupostos de punibilidade no caso concreto, sendo que, como bem refere o Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, pág. 170) «os mesmos fundamentos que determinam o arquivamento do inquérito, nos termos do art. 277.º, serão também causa de decisão instrutória de não pronúncia.»
Enquadramento factual e jurídico:
Vejamos.
O assistente imputa aos arguidos a seguinte factualidade:
“G…, com os sinais melhor identificados nos autos;
H…, com os sinais melhor identificados nos autos, I…, com os sinais melhor identificados nos autos,
1. A assistente dá por reproduzidos e seus, por verdadeiros, todos os factos assentes na participação criminal que deu e de onde irradiou o presente processo.
Sem prejuízo,
2. A assistente é uma sociedade comercial que tem por objecto social, sobretudo, a indústria de carpintaria, razão porque celebrou em Março de 2009 com a sociedade comercial C…, S.A., melhor identificada nos autos, um contrato de consórcio pelo qual ambas as sociedades, em empreendimento comum, se obrigaram a executar uma subempreitada numa obra para a sociedade J…, S.A.
3. Os denunciados assumiam naquela sociedade, a C…, S.A., a qualidade de legais representantes.
4. No âmbito do consórcio acordado, a assistente assumiu o mero lugar de consorte, cabendo à outra parte o lugar de Chefe do Consórcio, definindo-se os pagamentos a que cada um tinha direito pelo seguinte: a empreiteira geral J… S.A. pagaria à chefe do consórcio o valor a dever contra as facturas que esta emitiria contra aquela empresa, sendo que a assistente, para receber a sua quota parte, facturaria à chefe do consórcio os trabalhos realizados por si.
5. Numa palavra, à C… S.A. e aos seus administradores cabia receber o preço dos serviços realizados e distribuir daí à assistente aquilo que era a sua quota de obras e serviços.
6. Nesse seguimento, a assistente emitiu àquela sociedade as facturas representativas dos seus serviços, reclamando-lhe o pagamento de um valor total em dívida ascendente a 61.179,26 Euros (Factura ../2009, de 29.6.2009; Factura ../2009, de 29.6.2009; Factura ../2009, de 29.6.2009; Factura ../2009, de 29.8.2009; Factura ../2009, de 29.8.2009; Factura ../2009, de 29.11.2009; Factura ../2009, de 1.3.2011; Factura ../2009,de1.3.2011;Factura ../2009, de 1.3.2011;Factura ../2009, de 1.3.2011; Factura ../2009, de1.3.2011) 7. Em conformidade, a empresa J… S.A., no ínterim incorporada no grupo Construções K… S.A., pagou à chefe do consórcio todos os pecúnios devidos, agindo com o intuito de por isso pagar o que era a quota-parte do seu serviço, mas com isso confiando também o pagamento dos serviços realizados pela consorte B… Lda. 8. Sendo certo que a empreiteira geral pagou à chefe do consórcio a totalidade do que era devido, mais certo é que a chefe do consórcio, através dos seus legais representantes, não cumpriu, como era devido, com a obrigação de lhe entregar a parte do que era devido, e que se cifrava em 61.179,26 Euros.
9. Esse incumprimento, se é certo que funda um inarredável direito à demanda contratual, consubstancia contudo um ilícito de jaez criminal, revestido pela lei no art.º 204.º.1 e 4 do CP: abuso de confiança.
10. Com efeito, a sociedade C… S.A., com os seus administradores legais, retiveram na sua esfera uma quantia que não lhes pertencia e que sabiam ter de entregar à assistente.
11. Por conseguinte, apropriaram-se ilegitimamente de uma coisa móvel, no aso dinheiro ou quantia pecuniária, o qual lhes foi entregue, na quota parte da consorte aqui assistente, por titulo não translativo do direito de propriedade.
12. Esse valor, identificado supra, tem origem num acto imputável à C… S.A., mas também aos seus administradores, enquanto mão humana dos seus actos de gestão e, se não mais, ao menos à míngua de co-autores.
13. Consubstanciando o montante apropriado a soma de 61.179,26 Euros, integra a conduta dos arguidos um crime de abuso de confiança qualificado nos termos do n.º 4 do art.º 205.º do C.P.
14. Malgrado os arguidos arguam em sua defesa que só retiveram o dinheiro que lhes entregou a empreiteira geral por a isso lhes dar arrimo o contrato de consórcio, a verdade é que nada do seu clausulado lhes conferia essa faculdade.
15. Mais ainda, ainda que tal fosse verdade e ali houvesse a faculdade de alguma retenção equivalente a 10%, entre 61.179,26 Euros e 10% do valor da participação ou da facturação da denunciante, ou mesmo se os 10% se reportassem à facturação não liquidada ou em dívida, entre esses valores vai uma diferença assaz grande e para que aqueles nunca encontrariam justificação;
16. Sendo certo que a garantia autónoma referida na cláusula décima terceira da relação de consórcio, a ser prestada, sê-lo-ia em favor da empreiteira geral, a J… S.A., entretanto incorporada no grupo K… S.A., que seria quem poderia legitimamente recusar pagar o que fosse.
17. Sem isso, nem legitimidade nem contrato nenhum a servir de caução ao comportamento adoptado pelos arguidos, não oferece dúvidas o ilícito cometido.
Concluindo que os arguidos incorreram na prática de um crime de abuso de confiança qualificado, pº e pº pelo art.º 205º,1 e 4 do C.P”.
Sustenta os referidos factos, na prova documental junta aos autos e na testemunhal: F…, E…, F…, L… e D…, legal representante da assistente.
Vejamos
Como bem refere a assistente no seu requerimento de abertura da instrução, o que se trata nestes autos é saber se à assistente, B… Lda., sociedade comercial envolvida num consórcio com a sociedade C…, S.A. para execução de uma subempreitada em comum para a sociedade comercial J… S.A., incorporada na sociedade K…, S.A., empreiteira, assiste razão ao imputar à sociedade C…, S.A (entretanto declara insolvente) e aos seus administradores (arguido supra referenciados) a prática de um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelo art.º 205.º.1. e 4.b) do CP.
Isto porque, nos termos em que sustenta a assistente, uma vez pago o preço pela empreiteira à “C…”, estes terem feito seu todo o preço da obra.
Atento à prova dos autos, constata-se que a assistente e a “C… S.A. realizaram, em subempreitada para a J… S.A., uma obra, consistente na execução de uma subempreitada, em que as receitas do consórcio eram os pagamentos a efectuar pela J… S.A. contra facturas emitidas em nome do chefe do consórcio, ou seja, emitidas pela “C…” (cfr. clausula décima terceira, ponto e dois, fls. 79).
Por seu lado, competia à aqui assistente (consorte) a facturação dos trabalhos por si executados à consorte chefe do consórcio, precisamente à “C… S.A.”, competindo a esta o pagamento dessas facturas, como decorre da cláusula décima terceira do contrato de consórcio citado.
Dito isto, é aqui que surgem os problemas.
A assistente sustenta que executada a subempreitada, a sociedade J… procedeu ao respectivo pagamento junto da sociedade denunciada, que por sua vez não cumpriu com a obrigação de entregar à denunciante o que lhe era devido no âmbito do contrato de consórcio celebrado, e que se cifra no valor de 61.179,26 Euros, atento às facturas emitidas e não pagas. Esta é a factualidade que o representante legal da assistente e a testemunha F…, em sede de inquérito, fls. 254 a 257, como na instrução, em termos gerais sustentam.
Factos que são em parte corroborados pelos depoimentos de M…, economista, e L…, cujos depoimentos constam, respectivamente de fls. 343 e 344 dos autos.
Por seu lado, o arguido – G… - alegou que a sociedade “C…” passou por problemas financeiros, motivado pelo incumprimento de outras sociedades com quem trabalharam, ao ponto terem pedido a insolvência da sociedade no âmbito do processo 824/12.6TBLSD.
Alegou que a aqui assistente, para além de ter interposto processo judicial contra a “C…”, por via de injunção com o n.º 8528/12.3YIPRT, veio posteriormente denunciar a prática de um crime de abuso de confiança, mas que no seu entendimento não lhe assistente razão, não só por não concordarem com o valor reclamado em divida, que em seu entendimento seria na ordem de €34.692,64, dos quais €26.246,64 correspondiam a retenções de garantia bancária que permitisse a libertação da verba e o restante, na ordem de 8.446€, teria ficado suspenso face à entrada do citado processo de injunção (veja-se fls. 278 a 280).
Aliás, no âmbito da oposição apresentada pela “C…” no processo 8528/12.3YIPRT, de fls. 454 a 462, insistem nesse facto, reconhecendo as facturas ../2009, ../2009, ../2009, ../2009, ../2009, ../2009, e em que €26.246,64 corresponderia à retenção dos 10% da facturação e que ainda se encontraria por pagar a quantia €8.446,00. Por outro lado, no âmbito da citada oposição não reconhecem os trabalhos facturados pela assistente e apresentados por via das facturas ..;..; ..; .. e .., todos do ano de 2009.
A arguida H… demonstrou total desconhecimento sobre os factos, alegando inclusive que nunca usufruiu qualquer remuneração, nem participou na gestão corrente da empresa, uma vez que não tinha funções executivas – fls. 304.
Pois bem, atento à demais prova recolhida nos autos, quer no inquérito, como na instrução, o alegado por esta arguida não foi colocado em causa, porquanto não há prova de que a mesma tivesse praticado qualquer dos factos que lhe são imputados.
Já o arguido I…, a fls. 627 a 628, veio em parte reiterar os argumentos da oposição apresentada no âmbito do processo de injunção, insistindo que a assistente B…, Ldª não cumpriu com a prestação da garantia bancária, por referência ao descrito no contrato de consorcio na clausula 11º, que nos remete para a cláusula 4ª das condições gerais para a adjudicação de subempreitadas, de onde resulta a obrigação do Adjudicatário apresentar garantia bancária “on first demand”, com a assinatura do contrato de subempreitada, no montante de 10% do valor da subempreitada.
Em suma, os arguidos G… e I…, embora não concordando com o valor total reclamado e alegando a falta de cumprimento da entrega da garantia bancária, não negam que a assistente teria direito a uma parte no preço pago pela empreiteira geral, mediante a apresentação das correspondentes facturas.
Pois bem.
Analisado o teor do contrato de consórcio, constata-se que estamos perante contrato de consórcio externo, em regime de responsabilidade solidária, ao abrigo do nº2 do artigo 5º, do DL. 231/81, de 28.07.
No âmbito da cláusula 7ª, n.º1 e 2, alínea b), e cláusula 10ª, as receitas do consórcio são, fundamentalmente, os pagamentos a efectuar pela J…, S.A ao abrigo do contrato de subempreitada, mediante facturas emitidas em nome do chefe do consórcio.
Por seu lado, os pagamentos aos membros do consórcio, no caso à assistente, seriam efectuados pelo chefe do consórcio nos cinco dias imediatos aos pagamentos feitos pela J…, S.A, mediante a apresentação das correspondentes facturas à chefe do consórcio – a C…”, na proporção definida na cláusula 4º do contrato.
Por sua vez, como decorre da cláusula décima primeira, as consorciadas, ou seja, a assistente e a “C…” emitirão, em conjunto, e manterão em vigor nos termos, prazos e demais condições estipulados no contrato de subempreitada, as garantias bancárias necessárias e exigidas para a execução da subempreitada referida na Cláusula 1ª deste contrato.
E que cada outorgante entregaria ao chefe do consórcio toda a documentação exigida pelo empreiteiro geral, nomeadamente, seguro de acidentes de trabalho, mapas de segurança e plano de higiene e segurança.
Dito isto, analisado o respectivo contrato de consórcio, tudo leva a crer que as garantias bancárias era uma exigência comum às consorciadas, em relação ao empreiteiro geral, mas que o seu alegado incumprimento não obstou ao pagamento dos trabalhos realizados por parte da “J…” (empreiteiro geral), à chefe do consórcio – “C…”.
Assim sendo, a questão que se coloca é: o não pagamento das facturas emitidas pela B…, Ldª à chefe do consórcio – C…, S.A, constitui, para além de alegado incumprimento contratual, a prática de um crime de abuso de confiança?
Para melhor compreensão da questão em causa, vejamos o que dispõe a norma incriminadora.
Dispõe o artigo 205º do Código Penal, “quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até três anos.
Por sua vez, a alínea b), do nº 4 do citado artigo dispõe que “se a coisa referida no n.º1 for de valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.
Pois bem.
No crime de abuso de confiança exige-se a inversão do título de posse ou de detenção da coisa apropriada: a coisa encontra-se confiada ao agente, com determinada finalidade específica e, em certa altura, passa a comportar-se como dono, praticando sobre ela actos de disposição que apenas cabem ao titular do direito de propriedade, dispondo dela ou arrogando-se, por qualquer forma o respectivo, o direito de propriedade. O agente, mero detentor da coisa, passa a comportar-se em relação à mesma, como seu verdadeiro dono. Como observa FIGUEIREDO DIAS (Comentário Conimbricense Ao Código Penal, p. 103 e p. 104, na anotação feita ao crime de abuso de confiança) “a apropriação traduz-se sempre, no contexto do crime de abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção (...) o agente que recebeu a coisa uti alieno, passa, em momento posterior, a comportar-se em relação a ela uti dominus. (...) Sob que forma deva concretamente manifestar-se a apropriação, é em definitivo indiferente: necessário é apenas que, como acima se disse, se revele por actos concludentes que o agente inverteu o título de posse e passou a comportar-se como perante a coisa como proprietário”.
Por seu lado, “alheia é toda a coisa que, segundo o direito civil, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente”.
No presente caso, as quantias recebidas pela “C…”, enquanto chefe do consórcio, no âmbito das facturas emitidas à empreiteira geral “J…”, são verbas licitamente recebidas, sustentas e fundamentadas no próprio contrato de consórcio – cláusula 7ª e 13ª.
Na verdade, como decorre do n.º1 da cláusula 7ª, nos termos do citado contrato, o chefe do consórcio é a “C…”, representada por I…, para todos os efeitos descritos no nº2 da citada cláusula.
Nestes termos, da conjugação da cláusula 7ª com a 13ª, constata-se os pagamentos efectuados pela J…, S.A à chefe do consórcio, passaram a ser receitas do próprio consórcio.
Por sua vez, a B…, Ldª, com vista a obter pagamento, teria que emitir as facturas referentes aos serviços prestados à primeira outorgante, ou seja, à C…, procedendo assim esta ao correspondente pagamento dos montantes devidos.
Ora, como se sabe, de acordo com o regime constante do Decreto-Lei n.º 231/81, de 28 de Julho, pelo contrato de consórcio não é criada qualquer nova pessoa jurídica. Os membros do consórcio também não exercem uma actividade em comum, pois cada um continua a exercer uma actividade própria, embora concertada com as actividades dos outros membros.
Por outro lado, uma vez que a actividade realizada não é uma actividade global do consórcio, mas sim uma actividade individual de cada membro, cujos resultados pertencem a quem a exerce, a experiência decorrente da realização dessa obra é considerada como experiência da própria empresa, devendo ser reconhecida no âmbito da sua qualificação técnica.
Mais, por regra a responsabilidade dos membros do consórcio é meramente individual, uma vez que a ausência de personalidade jurídica e de autonomia patrimonial que caracteriza o consórcio significa que este não pode ser titular de débitos e de créditos. Sendo certo que os membros do consórcio podem, porém estabelecer que essa responsabilidade é solidária, tal como dispõe o art. 19° do Dec. Lei n° 231/81, no seu n° 1, pois nas relações dos membros do consórcio externo com terceiros não se presume solidariedade activa ou passiva entre aqueles membros.
Em suma, os sujeitos dos direitos e deveres emergentes das relações estabelecidas entre os membros do consórcio e os terceiros são os próprios consortes.
Por sua vez, no âmbito do DL. 231/81, de 28.07, no seu artigo 16º, sob a epígrafe (Repartição dos valores recebidos pela actividade dos consórcios externos), dispõe-se o seguinte:
1 - Nos consórcios externos cujo objecto seja o previsto nas alíneas b) e c) do artigo 2.º, cada um dos membros do consórcio percebe directamente os valores que lhe forem devidos pelo terceiro, salvo o disposto nos números seguintes e sem prejuízo, quer da solidariedade entre os membros do consórcio eventualmente estipulada com o terceiro, quer dos poderes conferidos a algum daqueles membros pelos outros.
2 - Os membros do consórcio podem estabelecer no respectivo contrato uma distribuição dos valores a receber de terceiros diferente da resultante das relações directas de cada um com o terceiro. 3 - No caso do número anterior e no respeitante às relações entre os membros do consórcio, a diferença a prestar por um destes a outro reputa-se recebida e detida por conta daquele que a ela tenha direito nos termos do contrato de consórcio.
4 - O regime do número anterior aplica-se igualmente no caso de a prestação de um dos membros do consórcio não ter, relativamente ao terceiro, autonomia material e por isso a remuneração estar englobada nos valores recebidos do terceiro por outro ou outros membros do consórcio.
No presente caso, como claramente resulta do contrato de consórcio estabelecido, as partes acordaram que quem receberia os valores devidos pela prestação de trabalho da empreiteira geral “J…”, era a chefe do consórcio, sendo que esta só teria a obrigação de pagar à consorte “B…, Ldª”, mediante a emissão e apresentação de facturação emitida àquela “C…”.
Assim sendo, os valores devidos pelo empreiteiro geral, ao contrário do previsto pelo artigo 16º do citado decreto-lei, não eram percebidos directamente por cada consorte do terceiro (no caso do empreiteiro geral), mas sim apenas por intermédio da facturação do chefe do consorte àquele.
Nestes termos, o facto do chefe do consorte ter recebido directamente os valores dos serviços prestados ao empreiteiro geral, e não ter, posteriormente, cumprido com os pagamentos à consorte B…, Ldª, em nosso entender, não consubstancia a prática de um crime de abuso de confiança, porquanto não há a inversão do título da posse ou detenção da coisa apropriada/recebida, mas sim incumprimento contratual.
Na verdade, o artigo 20º, sob a epígrafe (proibição de fundos comuns), dispõe o seguinte:
1º - Não é permitida a constituição de fundos comuns em qualquer consórcio;
2º- Nos consórcios externos, as importâncias entregues ao respectivo chefe ou retidas por este com autorização do interessado consideram-se fornecidas àquele nos termos e para os efeitos do artigo 1167º, alínea a), do Código Civil, que neste caso dispõe, o mandante é obrigado, alínea a) a fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, se outra coisa não foi convencionada.
Dito de outra forma, as importâncias recebidas pelo chefe do consorte, nos termos contratualizados, não podem ser entendidas como pertencendo a cada um dos consortes, mas sim importâncias fornecidas àquele nos termos e para os efeitos do artigo 1167º, alínea a), do Código Civil, ou seja, meios necessários à execução do mandato, ou seja, receitas próprias como expressamente se diz no n.º1 da cláusula 13ª do contrato de consórcio.
Não se trata, portanto, de um fundo comum (pois a lei proíbe), mas sim receitas do próprio consórcio, razão pela qual não se pode entender que há inversão do título da posse, ao não haver o pagamento do chefe do consórcio ao consorte/aqui assistente.
O que há, em nosso entender, é matéria susceptível de integrar alegado incumprimento contratual.
Por outro lado, sempre se dirá que em relação à arguida H… e G… nem sequer existem quaisquer indícios de que estes tiveram qualquer intervenção na não liquidação das facturas emitidas pela assistente à “C…”, porquanto toda a prova testemunhal aponta para a responsabilidade factual de tal facto para o arguido I… o representante legal e contratual do chefe do consórcio.
Por sua vez, constata-se que o Ministério Público, em sede de debate instrutório, sustentando não existir crime de abuso de confiança, pº e pº, pelo artigo 205º, n.º1 e 4º do CC, alegou que poderíamos estar perante um crime de burla, o que foi corroborado pela assistente, na eventualidade de não se perfilhar a existência de um crime de abuso de confiança.
Pois bem.
Como se sabe, não basta alegar que pode existir a prática de um crime de burla, torna-se necessário descrever e imputar essa factualidade aos arguidos, o que manifestamente não se vislumbra do requerimento de abertura da instrução, tal como não se vislumbra do requerimento gravado, em sede de debate instrutório, do Ministério Público.
Vejamos.
Dispõe o artigo 217º do CP, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Através da incriminação jurídico-penal da burla, pretendeu o legislador conferir tutela penal ao património, enquanto segmento indispensável à génese e conservação de qualquer comunidade existencial. Neste sentido e para o efeito de identificar rigorosamente o bem jurídico protegido na sua específica intencionalidade, haverá que entender o património numa acepção jurídico-económica, fazendo-o coincidir com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutele ou, pelo menos, não desaprove (com um entendimento jurídico-económico de património no sentido assinalado veja-se, entre muitos outros, Figueiredo Dias, Crime de Emissão de Cheque Sem Provisão, CJ ano XVII, 1992, III, pp. 68; Sousa Brito, A Burla do artigo 451º do Cód. Penal - Tentativa de sistematização, Separata da SI, Braga, 1983, pp. 4 e 30 e ss.).A protecção que ao património é, assim, retrospectivamente dispensada é colocada pelo legislador no momento em que evento danoso ocorre, em que o prejuízo patrimonial se verifica - sob a forma de dano emergente ou de lucro cessante -, sendo esse, então, o momento da consumação do crime.
Deste modo, não se bastando a consumação típica com a simples colocação em perigo do bem jurídico assinalado, antes exigindo a verificação de uma lesão efectiva evidenciada pela concreta produção de um determinado prejuízo, pode dizer-se que o crime de burla é, do ponto de vista da actuação do agente sobre o bem jurídico tutelado, um crime de dano e, uma vez que o evento lesivo se distingue, em termos fenomenológicos, da conduta que lhe dá causa, um crime material ou de resultado.
Para que determinada conduta possa ser reconduzida à factualidade ora analisada é, desde logo, necessário que, por meio de erro ou engano astuciosamente provocados pelo agente, seja outrem induzido à prática de determinado acto que lhe cause a si ou a outra pessoa prejuízo patrimonial.
Ora, no sentido que interessa ao preenchimento do tipo em causa, por erro haverá de entender-se toda a adesão ao falso, caracterizada por um acto positivo de assentimento e por uma aprovação do falso, que se apresenta como verosímil: corresponderá, em suma, à falsa representação ou a falta de representação da realidade, funcionando uma e outra como pressupostos viciantes do consentimento da vítima.
Já o engano, intervindo nos mesmos termos, reportar-se-á ao artifício utilizado para induzir alguém ao erro, abusando da sua boa fé, coincidindo, de um modo geral, com a mentira (cfr. Carlos Alegre, Crimes contra o património, Cadernos da Revista do Ministério Público,1988, pg.109).
Erro ou engano terão, em todo o caso, de ter sido astuciosamente provocados pelo agente, ou seja, conseguidos através da utilização de subtis ou ardilosos esquemas de convencimento da vítima.
Na sua formulação mais vulgar, a astúcia é equiparada à habilidade para o mal, à manha, à sagacidade, à habilidade para enganar, à subtileza para defraudar, ao ardil, à maquinação ou ao estratagema (cfr. José António Barreiros, Crimes contra o património, 1996, pg.157).
Em perspectiva jurídico-criminal, mais propriamente quando se trata de determinar o sentido a atribuir a tal indeterminado conceito, se certo é que se tende modernamente a prescindir do accionamento de rebuscados processos ou engenhosas encenações destinadas a ludibriar a vítima, verdade é também que se supõe sempre, no plano dos factos, a manipulação de uma outra pessoa, fazendo-se depender o preenchimento do tipo da possibilidade de reconhecer, na conduta empreendida pelo agente, uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo tido em vista (cfr. Almeida Costa, in: Comentário Conimbricense, Tomo II, pg. 298). São, assim, os seguintes os elementos constitutivos do crime de burla: o uso pelo agente de erro ou engano sobre factos, astuciosamente provocado; a prática de actos em consequência de tal erro ou engano que causem prejuízo patrimonial; a intenção do agente em obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
No caso dos autos, não obstante o potencial incumprimento contratual, atento à prova recolhida e factos indiciados, julgamos não existir prova suficiente e sustentada de que qualquer um dos arguidos, nomeadamente I…, tenha atuado com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou.
Dito de outra forma, apesar do alegado incumprimento contratual, não se vislumbra que a actuação dos arguidos, em particular I…, tem na sua base a prática de qualquer ato com base em erro ou engano, muito menos astuciosamente provocados.
Por outro lado, sempre se dirá que, a verificarem-se tais factos, estes jamais poderiam ser tidos em conta na presente instrução por consubstanciarem uma alteração substancial dos factos, por força do nº3 do artigo 303º do CPP.
Dos factos indiciados:
A assistente – B…, Ldª- é uma sociedade comercial que tem por objecto social, sobretudo, a indústria de carpintaria, razão porque celebrou em Março de 2009 com a sociedade comercial C…, S.A., um contrato de consórcio pelo qual ambas as sociedades, em empreendimento comum, se obrigaram a executar uma subempreitada numa obra para a sociedade J… S.A. O arguido I… assumiu naquela sociedade, a C…, S.A., a qualidade de legal representante e chefe do consórcio.
No âmbito do consórcio acordado, a assistente assumiu o mero lugar de consorte, cabendo à outra parte o lugar de Chefe do Consórcio, definindo-se os pagamentos a que cada um tinha direito pelo seguinte: a empreiteira geral J… S.A. pagaria à chefe do consórcio o valor a dever contra as facturas que esta emitiria contra aquela empresa, sendo que a assistente, para receber a sua quota parte, facturaria à chefe do consórcio os trabalhos realizados por si.
A assistente emitiu àquela sociedade as facturas representativas dos seus serviços, reclamando-lhe o pagamento de um valor total em dívida ascendente a 61.179,26 Euros (Factura ../2009, de 29.6.2009; Factura ../2009, de 29.6.2009; Factura ../2009, de 29.6.2009; Factura ../2009, de 29.8.2009; Factura ../2009, de 29.8.2009; Factura ../2009, de 29.11.2009; Factura ../2009, de 1.3.2011; Factura ../2009, de 1.3.2011; Factura ../2009, de 1.3.2011; Factura ../2009, de 1.3.2011; Factura ../2009, de 1.3.2011)
Em conformidade, a empresa J… S.A., no ínterim incorporada no grupo Construções K… S.A., pagou à chefe do consórcio todos os pecúnios devidos ao consórcio.
A empreiteira geral, ao que indiciam os autos, pagou à chefe do consórcio a totalidade do que era devido, contudo esta não liquidou para com a assistente o valor reclamado de 61.179,26 Euros.
Dos factos não indiciados:
A sociedade C… S.A., por via dos seus administradores legais, retiveram na sua esfera uma quantia que não lhes pertencia.
Por conseguinte, apropriaram-se ilegitimamente de uma coisa móvel, no caso dinheiro ou quantia pecuniária, o qual lhes foi entregue, na quota parte da consorte aqui assistente, por titulo não translativo do direito de propriedade.
Declaro encerrada a instrução
Decisão instrutória
Em face do supra exposto, e atento ao estatuído no artigo 308.º do CPP, decide-se pela não pronúncia dos arguidos G…, H… e I… pela prática de um crime de abuso de confiança, pº e pº, pelo artigo 205º, n.º1 e 4 do CP, nos termos requeridos pela assistente.
Estatuto processual
Em face do supra exposto, a medida de coacção dos arguidos extingue-se, nos termos da alínea b), do nº1 do artigo 204º do CPP.
Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos dos artigos 515º do CPP, do CPP e artigo 8º do RCP.
Notifique, registe, d.n.”.
2.2. Matéria de Direito - mérito do recurso
A assistente insurge-se contra a decisão instrutória de não pronúncia, por entender que, em suma, a prova indiciária resultante dos autos deveria ter levado à pronúncia dos arguidos, pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado.
A recorrente, "B…, Lda”, resume (na conclusão B)) a questão objecto da controvérsia e que representa o cerne do presente recurso. A questão em causa é a de saber se uma das sociedades membro de um consórcio que recebe quantias destinadas a pagar serviços prestados pelo outro membro e não o faz, comete ou não um crime de abuso de confiança.
Em termos muito sintéticos, a decisão de não pronúncia entendeu que se estava apenas perante uma situação de incumprimento de obrigações assumidas na âmbito de um contrato de consórcio, enquanto a recorrente entende, por seu turno, não se estar apenas perante uma situação de incumprimento, mas também de um crime de abuso de confiança.
Na resposta ao recurso, o MP entendeu também que, “no presente caso, as quantias recebidas pela “C…”, enquanto chefe do consórcio, no âmbito das facturas emitidas à empreitara geral “J…” são verbas licitamente recebidas, sustentadas e fundamentadas no próprio contrato” não havendo aí qualquer ilicitude.
Vejamos então.
A decisão recorrida entendeu (além do mais) não haver indícios suficientes relativamente aos seguintes factos:
A sociedade C… S.A. por via dos seus administradores legais, retiveram na sua esfera uma quantia que não lhes pertencia.
Por conseguinte, apropriaram-se ilegitimamente de uma coisa móvel, no caso dinheiro ou quantia pecuniária, o qual lhes foi entregue, na quota - parte da consorte aqui assistente, por título não translativo do direito de propriedade.”
Perante a falta de indícios dos referidos factos, decidiu não pronunciar os arguidos, administradores da sociedade “C…”, pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º, 1 e 4 do C. Penal.
A razão fundamental invocada no despacho de não pronúncia foi a de que a falta de entrega das quantias recebidas pelo chefe do consorte “… não podem ser entendidas como pertencendo a cada um dos consortes, mas importâncias fornecidas àquele nos termos e para os efeitos do art. 1167º, al. a) do C. Civil, ou seja, meios necessários à execução do mandato, ou seja, receitas próprias como se diz no n.º 1 da clausula 13º do contrato de consórcio. Não se trata, portanto, de um fundo comum (pois a lei proíbe),mas sim receitas do próprio consorte, razão pela qual não se pode entender que há inversão do título da posse, ao não haver pagamento do chefe do consórcio ao consorte aqui/aqui assistente”.
Ou seja, muito embora esteja assente que o chefe do consórcio recebeu do dono da obra determinadas quantias, reclamadas pela assistente e que correspondiam a trabalhos por si efectuados, a decisão recorrida entendeu que não houve inversão do título de posse dessas quantias.
Esta conclusão é, por seu turno, justificada com a transcrição do art. 20º, 2, do Dec. Lei n.º 231/81, de 28/7, segundo o qual “ (…) as importâncias entregues ao respectivo chefe ou retidas por este com autorização do interessado consideram-se fornecidas àquele nos termos e para os efeitos do art. 1167º,al. a) do Código Civil”. O art. 1167º, al. a) do C. Civil diz-nos, por seu turno, que “o mandante é obrigado a fornecer ao mandatário os meios necessários à execução do mandato, se outra coisa não for convencionada”.

Julgamos que das disposições legais transcritas, invocadas na decisão recorrida, não decorre a impossibilidade de estarmos, no caso, perante uma situação de inversão do título da posse.
Desde logo porque, como decorre do art. 1167º, al. a) do C. Civil, este regime é supletivo, isto é, só é aplicável se outra coisa não for convencionada. Ora, no presente caso, foi convencionado que as quantias recebidas pelo chefe do consórcio não eram destinadas à execução do mandato, mas antes para serem entregues ao outro parceiro do consórcio.
De resto, a decisão instrutória diz isso mesmo: “No presente caso, como claramente resulta do contrato de consórcio, as partes acordaram que quem receberia os valores devidos pela prestação de trabalho da empreiteira geral “J…” era a chefe do consórcio, sendo que só teria a obrigação de pagar à consorte “B… Lda. mediante a emissão e apresentação de facturação àquela “C…”.
Assim, podemos desde já concluir que as quantias recebidas pelo chefe do consórcio, no presente caso, não se consideram recebidas nos termos e para os efeitos do art. 1162º, a) do C. Civil; tais quantias foram recebidas nos termos contratuais, para pagamento dos serviços prestados e para serem e entregues ao outro consorte, mediante a apresentação das respectivas facturas.
Nestas condições, o chefe do consórcio recebeu as quantias relativas a trabalhos prestados pela assistente, por título não translativo de propriedade e para serem entregues à assistente (pagamento dos serviços prestados). Dito de outro modo, as quantias recebidas pelo chefe do consórcio não eram para si, mas sim para serem entregues à sociedade que realizou trabalhos, a quem tinha de pagar; ao não ter entregado as referidas quantias ao titular das mesmas (a ora assistente), na data convencionada, isto é, mediante a apresentação das respectivas factura, inverteu o título da posse.
Com efeito, o chefe do consórcio recebeu quantias que devia entregar e não o fez. Agiu desse modo, como se as quantias fossem suas e, portanto, apropriou-se delas ilegitimamente.
Deste modo, a decisão recorrida não pode manter-se, pois negou o óbvio: a existência de inversão do título. O seu argumento de que estamos perante um incumprimento é verdadeiro, mas inconcludente. Houve incumprimento, na medida em que o chefe do consórcio não cumpriu o acordo que consistia em entregar à assistente as quantias devidas pelo trabalho por si realizado, mediante a apresentação da factura respectiva. Mas esse incumprimento foi levado a cabo através da apropriação das quantias que lhe tinham sido entregues com essa finalidade. Ao frustrar esta finalidade e ao dar a essas quantias o destino que muito bem quis, portou-se como dono e, portanto, apropriou-se das mesmas. Houve sim incumprimento, mas através de uma acção tipificada na lei como penalmente ilícita.
Note-se que, como referiu a decisão instrutória, no âmbito da oposição apresentada pela C…, no processo 8528/12.3YIPRT, a mesma reconhece algumas das facturas “e em que €26.246,64 corresponderiam à retenção dos 10% da facturação e que ainda se encontraria por pagar €8.446,00”. É pois certo e seguro que o chefe do consórcio admite que algumas das facturas correspondem efectivamente a serviços prestados pela assistente e que não as pagou, apesar de ter recebido do dono da obra as quantias respeitantes a tais serviços. Assim, é evidente que, relativamente às quantias destinadas a pagar os serviços prestados pela assistente que o chefe do consórcio recebeu, com a finalidade de as entregar a quem pertenciam e não o fez, houve apropriação ilícita: não as entregou porque agiu como se o dinheiro recebido fosse seu.
A referida inversão do título verifica-se claramente relativamente às quantias que excedem os alegados 10% retidos por força das necessárias garantias.
Quanto às demais quantias, a assistente não tem razão.
Vejamos porquê.
Relativamente às quantias retidas, alegadamente a título de garantias para execução da obra e relativas a facturas não reconhecidas, não se mostra suficientemente indiciada a inversão do título.
Quanto às facturas não reconhecidas a questão é mais simples, pois não foi recolhida prova suficiente que permita concluir que, efectivamente, os respectivos trabalhos foram efectuados. Portanto, quanto a este ponto, e havendo litígio sobre a realização dos trabalhos ou sobre a regularidade das facturas, não está de modo algum indiciada a inversão do título. Só existe essa inversão quando aquele que recebeu a quantia a fez sua, sabendo que o não era.
Quanto à retenção alegadamente a título de garantia, a questão é menos óbvia mas, em boa verdade, também não está indiciada a apropriação, pois estamos perante a afectação das quantias a uma finalidade contratualmente prevista, ou seja, a prestação de garantias junto do “empreiteiro geral”.
Ainda que o chefe do consórcio tenha agido em erro nesta parte, a verdade é que estava convencido de que poderia reter 10% da facturação, erro esse que afasta a inversão do título. Nos termos do contrato, os consorciados deviam emitir, em conjunto, ao Empreiteiro Geral, as garantias necessárias à execução da obra (a clausula contratual vem transcrita no art. 38 da motivação do recurso). Ora, se a assistente não tinha prestado qualquer garantia bancária (e não alega tê-lo feito), a retenção de quantias, a título de garantia da execução da obra, pode ser controversa, mas não é seguramente uma apropriação.
Assim, e em suma, da actuação referida resulta claro que os arguidos, enquanto representantes da chefe do consórcio, agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei, relativamente à referida quantia de €8,446,00.
Tal implica que, para além dos factos já considerados indiciados na decisão recorrida, se considere ainda suficientemente indiciado que:
A sociedade C… SA reteve na sua esfera uma quantia que não lhe pertencia, pelo menos no valor de €8.446,00.
Por conseguinte apropriaram-se ilegitimamente dessa quantia que lhe fora entregue para pagamento de serviços prestados pela aqui assistente”.
Os arguidos agiram deliberada e livremente com a consciência de que estavam a apropriar-se ilegitimamente da referida quantia, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
Deste modo, a decisão instrutória de não pronúncia deve ser revogada e substituída por outra que considere indiciada toda a matéria constante da decisão recorrida e a resultante do presente acórdão e, se nada mais obstar, pronuncie os arguidos de acordo com os factos indiciados.
4. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso, modificar a matéria de facto indiciada, nos termos acima expostos e consequentemente revogar a decisão de não pronúncia, a qual deverá ser substituída por outra que, se nada mais obstar, pronuncie os arguidos de acordo com os factos indiciados relativamente a cada um deles.
Sem custas.

Porto, 10/01/2018
Élia São Pedro
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