Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9085/09.3TBVNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP00044147
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
EMPRESA
EMPRESÁRIO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
SÓCIO
Nº do Documento: RP201006299085/09.3TBVNG-C.P1
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 2º, 18º, 238º DO CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
Sumário: I - A definição de “empresa” é lateral à declaração de insolvência, da qual podem ser objecto, não as empresas, como tal consideradas, mas as entidades referenciadas no art° 2° n°1 CIRE, isto é, v.g., quaisquer pessoas singulares ou colectivas ou as sociedades comerciais, entre outras.
II - Os devedores pessoas singulares que podem ser declarados insolventes podem, também, na economia do Código, ser, ou não ser, titulares de empresas — art° 18° nos 2 e 3 — tal como o CIRE engloba “não empresários” e “titulares de pequenas empresas” na insolvência das pessoas singulares.
III - A exoneração do passivo restante não é meio de protecção dos consumidores contra a sua insolvência, na medida em que está aberta a todas as pessoas singulares, dela se excluindo pessoas colectivas ou sociedades; desta forma, os sócios de uma empresa que lhe prestaram avales em livranças não se encontram sujeitos ao dever de apresentação à insolvência, conforme art° 18º n°2 CIRE, e por isso, em matéria de indeferimento liminar, quanto à exoneração do passivo restante, encontram-se sujeitos ao disposto na 2ª parte da al. d) do n°1 do art° 238° CIRE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec.9085-09.3TBVNG-C.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Mª das Dores Eiró e Des. Proença Costa.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial incidental para Exoneração do Passivo Restante nº9085/09.3TBVNG-C, do 5º Juízo Cível da comarca de Vª Nª de Gaia.
Apelante/Requerente – B………., S.A.
Apelados/Insolventes – C………. e mulher D………. .

Em 24/9/09, C………. e mulher D………. apresentaram-se á insolvência, formulando, na petição inicial, o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos dos artºs 235ºss. CIRE.
Foi declarada, por sentença proferida nos autos, a peticionada insolvência.
O crédito reclamado nos autos pelo Recorrente, e reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência, ascende a € 157.730,30.
Grande parte do citado crédito decorre de avales prestados pelos Insolventes em processos de financiamento, concedidos pelo Banco à sociedade E………, Ldª.
O devedor C………. era sócio da sociedade comercial E………., com sede na Rua ………., …, Porto, NIPC – ……….
A sociedade foi decretada insolvente por sentença de 14/4/09, no pº nº 125/09.7TYVNG, do 1º Juízo do Tribunal de Comércio de Vª Nª de Gaia.
A insolvência da citada sociedade foi decretada com carácter limitado, uma vez que o seu património não era suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, não existindo qualquer garantia.
O Banco Recorrente, ao intervir no processo, opôs-se á exoneração do passivo pedida pelos ora Apelados; no entendimento do Recorrente, os devedores não tinham cumprido os requisitos exigidos por lei para que pudessem beneficiar da exoneração do passivo restante, designadamente o disposto no artº 238º nº1 al.d) CIRE.
Todavia, o despacho recorrido pronunciou-se no sentido de que “ao abrigo do disposto no artº 239º nº1 CIRE, admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes, sendo concedida a exoneração caso sejam observadas pelos insolventes as condições previstas no artº 239º, durante os cinco anos posteriores ao encerramento da insolvência (…)”.

Conclusões do Recurso de Apelação (resenha):
1 – A decisão deve ser revogada e substituída por outra que indefira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante do insolvente/recorrido.
2 – O artº 238º nº1 CIRE estabelece nas suas sucessivas alíneas os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, fixando, designadamente, a obrigatoriedade de cumprimento do dever de apresentação à insolvência nos termos do artº 18º CIRE.
3 – No que concerne o prazo para se apresentar à insolvência, o Insolvente absteve-se de se apresentar no momento legalmente consagrado, contrariamente ao que resulta da douta decisão em apreço, porquanto, não obstante o insolvente ser pessoa singular, tinha o dever de se apresentar à insolvência no prazo de 60 dias após o conhecimento da situação de insolvência (nºs 2 “a contrario” e 3 do artº 18º CIRE); tal dever mantém-se mesmo sendo o Insolvente titular de uma empresa.
4 – O despacho do tribunal “a quo” assenta a sua decisão numa premissa errada, qual seja a inexistência da obrigação do Insolvente se apresentar à Insolvência no prazo de 60 dias.
5 – O devedor/insolvente, face ao elevado passivo de que era devedor, também não podia ignorar a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhorar a sua situação económica, de tal forma que lhe permitisse amortizar, ainda que lenta e fraccionadamente, as dívidas reclamadas, tomando em conta a ponderação do homem médio.
6 – Esta omissão causou prejuízo ao Recorrente/credor, que viu os seus créditos aumentar, designadamente através da contínua contagem de juros moratórios das obrigações vencidas e incumpridas, cuja recuperação se vai tornando mais difícil.
7 – O incumprimento do prazo legalmente consignado para apresentação à insolvência deveria ter conduzido ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
8 – Foram violadas as disposições legais dos artºs 238º nº1 al.a) e 18º CIRE.

Não foram apresentadas contra-alegações pelos Insolventes.

Factos Provados
Encontram-se provados os factos relativos à tramitação processual e à fundamentação e teor do despacho judicial impugnado, supra resumidamente descritos.
Mais se encontra demonstrada que o Recorrente é credor dos Insolventes pelas seguintes importâncias:
- de ambos os Insolventes, pelo montante de € 233,29, por via de responsabilidades, com origem em cartão de crédito, não liquidadas ao Recorrente;
- de ambos os Insolventes por ser dono e portador de duas livranças vencidas em 4/5/2009, no montante de, respectivamente, € 35 901,66 e € 9.797,47, subscritas pela sociedade E………., Ldª, e avalizadas à subscritora por ambos os Insolventes; tal crédito encontra-se accionado no pº nº 3485/09.6YYPRT, do 2º Juízo e 2ª Secção dos Juízos de Execução do Porto;
- no supra dito processo, o crédito do aqui Recorrente ascende a € 46.802,82, sendo a quantia de € 45 699, 13 a título de capital e a quantia de € 1.103,69 a título de juros de mora e imposto de selo;
- o Banco Reclamante e Recorrente é também portador de uma livrança, vencida em 4/5/2009, subscrita pela sociedade E………. e avalizada à subscritora pelo Insolvente C………., no valor de € 108 083,84, accionado no processo judicial que corre termos no 2º Juízo e 1ª Secção dos Juízos de Execução do Porto, sob o nº 3487/09.2YYPRT;
- nesse processo, o Banco é credor da quantia global de € 110.694,19, sendo a quantia de € 108 083, 84 a título de capital e € 2 610,35, a título de juros de mora e imposto de selo.

Fundamentos
A pretensão resultante do presente recurso de apelação consiste em saber se existe fundamento para o indeferimento liminar da pretensão dos Insolventes de exoneração do passivo restante, ao contrário daquilo que foi decidido no douto despacho recorrido.
Vejamos pois.
I
Em causa encontra-se, para o Recorrente, a boa aplicação ao caso do disposto no artº 238º nº1 al.d) CIRE; à primeira vista, porém, a razão encontra-se com a Mmª juiz “a quo”.
Diz a norma em causa: “O pedido de exoneração do passivo restante é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Entendeu-se assim, no douto despacho recorrido, que o devedor não se encontrava obrigado a se apresentar à insolvência, tendo-o feito, porém, nos seis meses seguintes ao conhecimento dessa situação.
E, na verdade, os factos parecem não desmentir a situação figurada – o crédito da Recorrente é sobre o mais proveniente de livranças das quais consta o aval ao subscritor, livranças essas todas elas vencidas no dia 4 de Maio de 2009 (já a insolvência da sociedade de que o insolvente marido era sócio havia sido decretada), e os devedores dos avales apresentaram-se à insolvência em 24 de Setembro de 2009, ou seja, antes de decorrido o prazo de seis meses figurado na lei para o caso consistente em que quem peça a exoneração do passivo não se encontre obrigado a se apresentar à insolvência.
E quem são os sujeitos que se não encontram obrigados a se apresentar à insolvência?
Responde o artº 18º nº2 CIRE – “as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que ocorram em situação de insolvência”.
Por empresa entende o CIRE “toda a organização de capital e de trabalho destinada ao exercício de qualquer actividade económica” (artº 5º). Meneses Leitão, Código Anotado, 2004, artº 5º, entende que a dilatação do universo dos sujeitos passivos que podem ser objecto de processo de insolvência torna de menor utilidade esta definição[1] (embora útil, como seguimos, para definir quem é, ou quem não é, “titular de empresa”, para efeitos do artº 18º nº2).
Não se exige assim, para a definição da unidade económica, nem a comercialidade, nem o profissionalismo, nem o seu carácter continuado, nem finalmente o seu intuito lucrativo (Pedro Albuquerque, Declaração da Situação de Insolvência, O Direito, 137º/515).
A definição de “empresa” é, porém, lateral à declaração de insolvência, das quais podem ser objecto, não as empresas, como tal consideradas, mas as entidades referenciadas no artº 2º nº1 CIRE, isto é, quaisquer pessoas singulares ou colectivas, a herança jacente, as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais, as sociedades civis, as sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial até à data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, as cooperativas (antes do registo da sua constituição), o estabelecimento individual de responsabilidade limitada e quaisquer outros patrimónios autónomos.
Não releva a “empresa” para efeito de declaração de insolvência.
Mas já releva o conceito, por exemplo, nos termos do artº 18º nº3 CIRE – “quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações (…)”.
Ou seja, a declaração de insolvência aplica-se a “devedores”, consoante o disposto no artº 3º nº1 CIRE, que podem, em geral, ser quaisquer pessoas singulares ou colectivas (cf. Meneses Cordeiro, Introdução ao Direito da Insolvência, O Direito, 137º/495 e 496).
Os devedores podem, também, na economia do Código, ser, ou não ser, titulares de empresas – artº 18º nºs 2 e 3 CIRE.
Todavia, ser “titular de uma empresa” não se aplica ao “órgão social que a representa” ou aos seus “administradores” – únicos onerados pelo dever de apresentação à insolvência, conforme artº 19º CIRE.
Por outro lado, note-se igualmente que o CIRE engloba “não empresários” e “titulares de pequenas empresas” na insolvência das pessoas singulares, conforme o capítulo II, do título XII, do CIRE.
Este acervo de razões permite a autores como Meneses Leitão (Direito da Insolvência, 2ª ed., pg. 308) afirmar que qualquer pessoa singular pode pedir a exoneração do passivo restante – “os requerentes poderão assim ser consumidores, mas também comerciantes ou profissionais independentes, como médicos, advogados, arquitectos, etc.; a qualquer destas pessoas, dado que a sua responsabilidade se mantém até à prescrição das suas obrigações, a ordem jurídica visa conceder a possibilidade de um novo começo (fresh start) sem o peso da insolvência anterior; já as pessoas colectivas não podem beneficiar da exoneração do passivo restante, nem sequer dela efectivamente necessitam, na medida em que se dissolvem com a declaração de insolvência e vêem a sua personalidade jurídica definitivamente extinta com o registo do encerramento da liquidação”.
E ainda: “a exoneração do passivo restante não é meio de protecção dos consumidores contra a sua insolvência, na medida em que está aberta a todas as pessoas singulares” (nota de rodapé nº 361). Exactamente no mesmo sentido, embora salientando a inspiração no processo alemão de insolvência do consumidor, Meneses Cordeiro, op. cit., pg. 504.
Tudo isto para salientar que os sócios de uma empresa não se encontram sujeitos ao dever de apresentação à insolvência, conforme artº 18º nº2 CIRE.
É o que tem afirmado a jurisprudência desta 2ª Secção da Relação do Porto, salientando-se os Ac.R.P. 6/10/09 Col.IV/184 (relatora: Sílvia Pires) e Ac.R.P. 20/4/10 in www.dgsi.pt, pº nº 1617/09.3TBPVZ-C.P1 (relator: Pinto dos Santos).
II
A argumentação que expendemos sustenta o bem fundado do despacho recorrido, na parte impugnada.
Também não existem nos autos, designadamente por força da matéria de facto provada, elementos que permitam integrar a conduta do devedor, v.g., no disposto no artº 238º nº1 al.g) CIRE.
Isto posto, obviamente que nos afastamos da doutrina exarada no douto Ac.R.G. 30/4/09 in www.dgsi.pt, pº nº 2598/08.6TBGMR-G.G1 (relatora: Raquel Rego), quando aí se entende que em sede de recuperação de empresas e de insolvência, para o legislador, “empresa” e “pessoa colectiva” são totalmente equiparáveis e que, na sequência desta opção legislativa de visão pragmática da empresa e tendo em vista o seu espírito, também se deve concluir que por titular de empresa deve ser considerado o sócio da respectiva sociedade;
“se para o legislador “empresa” é a pessoa colectiva (sociedade), não pode colher a tese de que titular da empresa é a própria sociedade”.
Não apenas, como vimos, na economia do Código, a expressão empresa, pese embora o seu valor difuso, não é equiparável a pessoa colectiva, mas antes a qualquer unidade produtiva, esteja ou não assente em pessoa colectiva, como também nos parece relevar de um salto lógico, salvo o devido respeito, equiparar o “sócio” à sociedade comercial, apenas porque a pragmática o aconselhe.
Por todo o exposto, face às doutas conclusões exaradas no recurso do credor B………., S.A., somos de entendimento que o despacho recorrido é de confirmar.

Resumindo a fundamentação:
I – A definição de “empresa” é lateral à declaração de insolvência, da qual podem ser objecto, não as empresas, como tal consideradas, mas as entidades referenciadas no artº 2º nº1 CIRE, isto é, v.g., quaisquer pessoas singulares ou colectivas ou as sociedades comerciais, entre outras.
II – Os devedores pessoas singulares que podem ser declarados insolventes podem, também, na economia do Código, ser, ou não ser, titulares de empresas – artº 18º nºs 2 e 3 – tal como o CIRE engloba “não empresários” e “titulares de pequenas empresas” na insolvência das pessoas singulares.
III – A exoneração do passivo restante não é meio de protecção dos consumidores contra a sua insolvência, na medida em que está aberta a todas as pessoas singulares, dela se excluindo pessoas colectivas ou sociedades; desta forma, os sócios de uma empresa que lhe prestaram avales em livranças não se encontram sujeitos ao dever de apresentação à insolvência, conforme artº 18º nº2 CIRE, e por isso, em matéria de indeferimento liminar, quanto à exoneração do passivo restante, encontram-se sujeitos ao disposto na 2ª parte da al.d) do nº1 do artº 238º CIRE.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Na integral improcedência do recurso, confirmar o despacho recorrida.
Custas pelo Apelante.

Porto, 29/VI/10
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
João Carlos Proença de Oliveira Costa


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[1] De sua natureza polissémica – veja-se a extensa recensão doutrinal, para a definição de empresa, constante de Pedro Albuquerque, Declaração da Situação de Insolvência, O Direito, 137º/514.