Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13003/18.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
ACIDENTE COM EMPILHADOR
UTILIZAÇÃO APENAS PARA FINS INDUSTRIAIS
OBRIGAÇÃO DE CELEBRAÇÃO DE CONTRATO DE SEGURO
Nº do Documento: RP2020092413003/18.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A utilização de um empilhador para a deslocação de cargas por uma via utilizada por diferentes categorias de utentes preenche o conceito de circulação de veículo. Essa utilização transcende a sua natureza de máquina industrial com aplicações específicas e implica a sua sujeição a um seguro de responsabilidade civil automóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 13.003/18.0T8PRT.P1
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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 3
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REL. N.º 581
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Anabela Tenreiro
Lina Castro Baptista
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO (onde se transcreve o relatório constante da decisão recorrida, que de forma completa e exacta descreve a evolução do processo até ao despacho saneador)

B… propôs a presente acção declarativa, que segue a forma de processo comum, contra a “C…, Lda.” e a “D… – Companhia de Seguros, S.A.”, pedindo a condenação solidária das rés no pagamento à autora da quantia de 29.272,29€, acrescida de juros calculados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, ter sofrido danos por ter sido atropelada num arruamento do E… por um empilhador, propriedade da primeira ré e conduzido por um funcionário desta. Mais alegou que a primeira ré tinha transferido a responsabilidade civil emergente do exercício da sua actividade para a segunda ré.
A “D… – Companhia de Seguros, S.A.” contestou. Defendeu-se por excepção, invocando que com o recebimento das quantias entretanto pagas à autora esta se considerou ressarcida, bem como que, o sinistro sofrido deverá qualificar-se como acidente de trabalho, do que só teve conhecimento em momento posterior às averiguações, devendo, por isso, a responsabilidade estar excluída porque foi convencionado entre as partes que a apólice não abrangia os danos que devessem estar cobertos por um seguro obrigatório.
A “C…, Lda.” contestou. Defendeu-se por excepção, invocando a ineptidão da petição inicial, e por impugnação, apresentando uma diferente versão do sinistro.
Concluiu pedindo que a acção seja julgada improcedente e que, caso assim não se entenda, se reconheça o direito de regresso sobre a segunda ré, uma vez que havia transferido para esta a responsabilidade pelos factos descritos nos autos.
A autora exerceu o contraditório quanto aos fundamentos da defesa por excepção apresentados por ambas as rés.
Foi designada data para a realização da audiência prévia.
Nessa diligência foi concedido prazo, a requerimento da parte, para a “D… - Companhia de Seguros, S.A.” vir arguir a excepção da ilegitimidade processual.
A ré seguradora veio apresentar requerimento pelo qual veio suscitar a excepção da falta de legitimidade passiva. Sustentou que o sinistro se inclui no âmbito do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel na medida em que o empilhador deve ser considerado um veículo, de tal forma que a acção deveria correr termos contra a seguradora automóvel.
A “C…, Lda.” exerceu o contraditório, sustentando ser a segunda ré seguradora parte legítima na medida em que o sinistro não deve ser qualificado como acidente de viação porque o empilhador é uma máquina industrial.
A autora também respondeu, tomando a mesma posição e sustentando ainda que a posição da ré seguradora redunda num abuso do direito porque antes já havia reconhecido o direito da autora a ser indemnizada.
Foi proferido despacho mediante o qual foi a autora convidada a suscitar o incidente de intervenção provocada de terceiro, com fundamento no disposto no art. 39.º do nCPC, bem como a concretizar o alegado no art. 4.º da petição inicial quanto à utilização que se encontrava a ser dada à máquina em causa.
A autora respondeu ao convite concretizando o alegado no art. 4.º da petição inicial. Deduziu o incidente de intervenção principal provocada da “Companhia de Seguros F…, S.A.”, invocando trabalhar para a entidade patronal que identificou e esta ter transferido para a chamada a responsabilidade emergente da ocorrência de acidentes de trabalho.
Foi proferido despacho pelo qual foi ordenado o cumprimento do contraditório.
A “Companhia de Seguros F…, S.A.” foi citada.
Apresentou contestação. Defendeu-se por excepção, invocando que o sinistro lhe foi participado fora do prazo contratualmente estabelecido, invocou, a se entender estar perante um acidente de trabalho, a incompetência material deste Tribunal para a apreciação do litígio, invocou a caducidade do direito da autora por ter sido demandada mais de um ano após a alta definitiva e que não recai sobre si a obrigação de indemnizar quando já foi nesta acção demandado o responsável civil. No mais, defendeu-se por impugnação.
A autora e a “Companhia de Seguros F…, S.A.” exerceram o contraditório.
Ordenada a citação da Segurança Social, veio deduzir pedido de reembolso do valor suportado a título de subsídio de doença contra ambas as rés, pedindo a condenação da “D… – Companhia de Seguros, S.A.” no pagamento da quantia de 562,14€.
A ré “D… – Companhia de Seguros, S.A.” exerceu o contraditório. Defendeu-se por excepção, invocando a falta de legitimidade passiva, e, no mais, defendeu-se por impugnação.
A ré “C…, Lda.” também respondeu. Defendeu-se por excepção, invocando a falta de legitimidade passiva pelo facto de não ser a entidade patronal da autora, e, no mais, por impugnação.
Tendo, para tanto, sido notificada, a primeira ré veio aos autos declarar que o veículo não dispõe de seguro de responsabilidade civil por acidentes de viação.
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No despacho saneador, a Sra. Juiz decidiu diversas excepções e, na parte relevante para o presente recurso, afirmou a legitimidade da ré D…. Por inadmissibilidade da coligação sucessiva à luz da qual havia sido chamada a seguradora F… S.A., absolveu a mesma da instância. Sucessivamente, entendo estar o processo dotado dos elementos necessários à decisão parcial do pedido, passou a apreciar a responsabilidade da ré D…, acabando por concluir, em suma, que devendo qualificar-se o empilhador, nas circunstâncias do acidente, como um veículo de circulação terrestre, a responsabilidade pelos danos por ele causados, que aqui se pretende efectivar, está excluída das coberturas do contrato de seguro invocado na causa de pedir. Por isso, decretou a respectiva absolvição dos pedidos que contra essa ré vinham formulados.
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É contra esta sentença que a co-Ré C… deduz o presente recurso, por entender que a actividade do empilhador, consubstanciando a manobra de uma máquina industrial, é alvo da cobertura do contrato de seguro que celebrara com a ré D…, não se justificando a sua absolvição do pedido.
Concluiu o seu recurso formulando as seguintes conclusões:
“a. Por Despacho Saneador, notificação expedida via Citius, em 27/04/2020 (no decurso da suspensão dos prazos judiciais, prevista no nº. 1 do artº. 7º. da Lei 1-A/2020), decidiu-se parcialmente do mérito da causa, tendo-se, além do mais, qualificado o acidente dos autos como acidente de viação.
b. Por via disso, absolveu-se a Ré “D… – Companhia de Seguros S.A.”, do pedido contra si formulado, considerando-se que os danos em causa estão excluídos do Contrato de Seguro celebrado com a aqui Recorrente, por força do previsto na cláusula 3.1 alínea g) das condições gerais.
c. Não pode, no entanto, a ora Recorrente, conformar-se com o Despacho recorrido, na parte em que qualifica o acidente dos autos como de viação, e, com as consequências que daí decorrerem, designadamente, as enunciadas na alínea precedente. Vejamos:
d. Pelo menos no entender da Recorrente, o Despacho recorrido extraiu uma errada conclusão quanto à funcionalidade principal do empilhador, ao sustentar que “o empilhador, apesar de ser uma máquina industrial, tem inerente à sua utilização, o risco da circulação” e “apesar de ser uma máquina industrial, estava sujeita a seguro obrigatório”.
e. Com efeito, o Tribunal a quo extraiu tais conclusões sem tomar em devida consideração as concretas circunstâncias em que ocorreu o sinistro.
f. Acontece que o acidente sucedeu quando o empilhador, enquanto máquina industrial, tal como definido no nº. 2 do artº. 109º. do Código da Estrada, exercia as funções para que foi concebido.
g. Veja-se que, segundo Fernando Nunes, in “Manual de Segurança e Higiene do Trabalho”, 1º. Edição, 2006, designam-se por empilhadores ou carros automotores de movimentação e de elevação de cargas, todas as máquinas que se deslocam no solo, possuindo tração motorizada, e que, são capazes de levantar, baixar, transportar e empurrar cargas.
h. Por conseguinte, deve concluir-se, sem qualquer margem para dúvidas, não obstante o devido respeito por interpretação diversa, que a movimentação das máquinas empilhadoras – ou a sua circulação – tem um objetivo estritamente determinado – transportar, carregar e descarregar mercadorias.
i. Logo, se o acidente envolver um empilhador, no decurso do seu objetivo determinado, terá de ser relacionado aos riscos próprios do seu funcionamento, na qualidade de máquina industrial, e, não, com os riscos inerentes à sua circulação, como se fosse um veículo automóvel.
j. Ora, o acidente em referência ocorreu, exatamente, enquanto o empilhador, propriedade da Recorrente, se movimentava, numa via própria da actividade do Mercado E… e no âmbito do transporte, carga e descarga de mercadorias, designadamente paletes de melancias.
k. Em conformidade, é inelutável que, no momento do sinistro, o empilhador executava as funções para que foi criado, enquanto máquina industrial – atuava no exercício de apoio à actividade comercial desenvolvida pela aqui Recorrente – movimentação no transporte, cargas e descargas de mercadorias.
l. Ademais, o empilhador, aquando da produção do acidente, movimentava-se em local próprio daquela actividade, não aberto ao trânsito automóvel, e nem de peões, mas reservado aos veículos autorizados a circular no Mercado E…, no âmbito da função comercial que aí se desenvolve.
m. Acresce que, a Autora, não foi atropelada por ser um normal peão ou transeunte, que circulasse naquela via do Mercado a que se vem fazendo menção.
n. Pelo contrário, a Autora foi atropelada porque também trabalha naquele espaço comercial, tendo ficado exposta em virtude e por causa da movimentação de mercadorias – operação de carga e de descarga de paletes de melancias, levada a cabo pelo empilhador, enquanto máquina industrial – e não em virtude da sua utilização como um veículo de circulação rodoviária.
o. Espaço, esse, ao qual só acedem os utentes (vendedores, compradores, transportadores ao serviço dos utentes, empilhadores, entre outros) e não quaisquer peões.
p. E no qual funcionam, consecutivamente, dezenas de empilhadores, no âmbito de operações de carga e descarga e transporte de mercadorias, entre os diversos postos de venda e entre estes e os veículos de transporte de mercadorias.
q. Em boa verdade, tais máquinas são essenciais ao desenvolvimento do circuito comercial do Mercado E… e dos diversos operadores, e, nessa medida, são os únicos veículos autorizados a permanecer, ininterruptamente, no mesmo – vide nº. 7 do artº. 31º. do Regulamento do Mercado, junto com o requerimento da Autora, com a referência 31856348.
r. Tal como acontece com os demais operadores do Mercado, o empilhador é pedra basilar para o desenvolvimento da atividade da Recorrente e apenas opera enquanto mero auxiliar da mesma e nas respectivas funções específicas.
s. Ora, considerando, pois, o concreto circunstancialismo espacial, funcional e o âmbito subjetivo dos intervenientes no acidente, não podem subsistir quaisquer dúvidas que, este, se relaciona de modo direto com os riscos próprios da actividade da Recorrente e inerentes ao funcionamento da máquina industrial, e, não, com os riscos de circulação do empilhador, enquanto veículo automóvel.
t. Atento o antedito, deve concluir-se, inequivocamente, não obstante o devido respeito, que os riscos próprios da atividade de um empilhador, enquanto máquina industrial, como é o caso dos autos, estão excluídos da cobertura dos riscos de circulação automóvel.
u. Como preconiza ou determina o nº. 4 do artº. 4 do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, preceito que a decisão sob recurso violou.
v. Pelo que, contrariamente ao defendido no segmento decisório em crise, não deve o acidente ser abrangido pelo seguro obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, mas, apenas e tão só, pelo Seguro de Responsabilidade Civil, decorrente da atividade da Recorrente.
w. De resto, importa ter em devida conta que, o próprio Mercado E…, exige que cada vendedor, como é o caso da empresa, Ldª., possua um Seguro de Responsabilidade Civil que cubra precisamente os riscos da Atividade, mas nunca exigiu prova da Apólice de Responsabilidade Civil Automóvel, inerente ao empilhador.
x. Em suma, por todo o supra exposto, o despacho recorrido merece censura, pois, faz uma interpretação não correta dos factos, que lhe foram apresentados, e viola de modo ostensivo o nº. 4 do artº. 4º. do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, tudo nos termos sobreditos.
y. E, por isso, deve o segmento decisório posto em crise ser revogado, e, consequentemente, alterado por outro, que qualifique o acidente dos autos como decorrente do funcionamento da máquina industrial em referência, e, consequentemente, determine o prosseguimento da ação, para apuramento dos factos, contra a Recorrente e contra a Ré “D… - Companhia de Seguros, S.A.”.
Termos em que deve, o presente recurso, ser julgado procedente e provado, e, o Despacho Saneador, na parte posta em crise, ser revogado e substituído por outra decisão, que, quanto à qualificação do acidente, determine a sua qualificação como acidente inerente ao funcionamento da máquina industrial - empilhador – ou seja, decorrente da actividade da Recorrente, e, consequentemente, determine o prosseguimento da Ação para apuramento dos factos contra a Recorrente e contra a Ré “D… - Companhia de Seguros, S.A.”, na medida em que a Responsabilidade pelos danos emergentes do exercício da atividade da Recorrente lhe foi transferida. Como é de inteira Justiça!”
A ré D…, recorrida, apresentou resposta ao recurso, defendendo a confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo.
Foi recebido nesta Relação, onde cabe decidi-lo.
2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso, delimitado, no caso, pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º do CPC), traduz-se na qualificação da actividade do empilhador causador dos danos alegados pela autora como um acto de circulação terrestre de um veículo ou como uma operação específica de uma máquina industrial no âmbito da actividade da ré C…. Assim se poderá aferir da necessidade da sua sujeição a um seguro de circulação automóvel ou o seu enquadramento nas coberturas de um seguro multi-riscos que a C… havia celebrado com a ré D….
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Na solução desta questão, importa ter presente a decisão sobre a matéria de facto constante da decisão recorrida, que não é alvo de impugnação e se passa a transcrever:
1) No dia 19 de Junho de 2017, no pavilhão …, lugar .., do interior do Mercado E…, a autora foi atropelada por um empilhador propriedade da primeira ré.
2) A autora estava a caminhar.
3) E o empilhador circulava numa via no interior do Mercado E….
4) O condutor do empilhador é funcionário da primeira ré.
5) A primeira ré celebrou com a segunda ré um contrato, titulado pela apólice n.º………….., mediante o qual transferiu para esta a responsabilidade civil pelos danos resultantes da exploração da sua actividade.
6) Ficou convencionado que estariam excluídos do âmbito de cobertura do contrato os danos que devessem ser garantidos por um seguro obrigatório (cláusula 3.1, al. g), das condições particulares do contrato).
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Tal como vem claramente explicado na decisão recorrida, em termos que não assumem qualquer controvérsia, ficou estipulado entre a C… e a seguradora D…, no contrato de seguro por efeito do qual aquela transferiu para esta a responsabilidade civil pelos danos resultantes da exploração da sua actividade, que estariam excluídos do âmbito de cobertura do contrato os danos que devessem ser garantidos por um seguro obrigatório (cláusula 3.1, al. g), das condições particulares do contrato).
Foi, então, por concluir que o empilhador se encontrava a circular como se de um veículo de transporte se tratasse, que o tribunal recorrido entendeu que tal actividade estava sujeita à cobertura de seguro automóvel, de natureza obrigatória, o que determinava a exclusão dos danos decorrentes dessa actividade do âmbito de cobertura do seguro referente à actividade geral da C….
Pelo contrário, esta ré, ora apelante, entende que, nas concretas circunstâncias funcionais, o acidente ocorrido consubstanciou a concretização de um risco próprio da sua actividade, inerente ao funcionamento de um seu empilhador, com a natureza de uma máquina industrial, e, não próprio da circulação de um veículo automóvel, categoria a que tal empilhador não pode subsumir-se. E, bem assim, “que os riscos próprios da atividade de um empilhador, enquanto máquina industrial, (…) estão excluídos da cobertura dos riscos de circulação automóvel.”
Como se sabe, o nº 1 do art. 4º, do DL. 291/07 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) dispõe que “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.” Por sua vez, o nº 4 desta norma dispõe que essa obrigação não é imposta nas situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.
No caso sub judice, não estão em discussão as características nem as aptidões funcionais do empilhador da ré. Trata-se de uma máquina motorizada adequada ao transporte, carga e descarga de mercadorias.
Por outro lado, essa máquina, no momento do acidente, movimentava-se numa via própria do Mercado E…, executando o transporte de paletes de melancias. Em tal via, o empilhador abalroou a autora, que por ali caminhava.
Além da factualidade constante do elenco de factos provados, é a própria apelante que o refere, nas suas alegações de recurso, entendendo que a qualidade reservada da via e a natureza da operação - que apesar de não se limitar à elevação ou deposição de cargas se inseria na movimentação de mercadorias do seu comércio - impõem a conclusão de que o empilhador não era um veículo em circulação, mas antes uma máquina industrial em operação.
Resulta à evidência, no entanto, que a via por onde circulavam o empilhador e a autora (sinistrada) não era um espaço privado da C…, afecto em exclusivo às suas operações. Pelo contrário, era um espaço onde a circulação era partilhada por diferentes agentes, o que é inerente ao facto já referido de por ali se deslocarem quer o empilhador da ré, quer a autora, que nada tinha a ver com esta. De resto, dúvidas não há sobre a natureza dessa via, pois a própria apelante o atesta nas conclusões do seu recurso (“ - o. Espaço, esse, ao qual só acedem os utentes (vendedores, compradores, transportadores ao serviço dos utentes, empilhadores, entre outros) e não quaisquer peões. - p. E no qual funcionam, consecutivamente, dezenas de empilhadores, no âmbito de operações de carga e descarga e transporte de mercadorias, entre os diversos postos de venda e entre estes e os veículos de transporte de mercadorias.”).
Assim sendo, enquanto veículo motorizado, tal empilhador só podia ali ser conduzido por pessoa com habilitação específica para o efeito (cfr. art. 121º, nº 1 do C.E., aplicável por efeito do disposto nos arts. 1º, al v) e 2º, nº 2 do mesmo código).
Por consequência, nos termos do nº 1 do art. 4º, do DL. 291/97, citado supra, a sua utilização subsume-se à obrigatoriedade de um seguro de responsabilidade civil.
Assim só não seria se aquele empilhador fosse usado em funções meramente industriais, como se refere no nº 4 da mesma norma, também acima citado.
Porém, como já se evidencia do que se vem expondo, a utilização do empilhador nos concretos termos em que estava a ser efectivada nas circunstâncias do acidente, não coincidia com uma tal função meramente industrial.
Pelo contrário, na utilização habitual daquele veículo compreendia-se – como nas circunstâncias do acidente - a deslocação de mercadorias, de um espaço para outro, numa via utilizada por uma diversidade de outros utentes, como era o caso da autora. O mesmo é dizer-se, o empilhador em questão não se limitava a elevar e a descer mercadorias de um local para outro, em operações de manipulação de cargas em armazém, ou a elevá-las para um veículo de transporte e a descê-las desde aí, numa área de operação privativa da sua proprietária; antes assegurava ele próprio e pelos seus próprios meios motorizados a movimentação de mercadorias entre locais diferentes, através de uma via frequentada por uma diversidade de utilizadores.
Ora como exemplarmente se analisa e conclui no acórdão do STJ de 17/12/2015, citado na decisão recorrida (proc. n.º312/11.8TBRGR; relat. Abrantes Geraldes, em dgsi.pt), à luz da jurisprudência do TJUE deve admitir-se “(…) a inclusão no regime do seguro obrigatório não apenas dos acidentes com intervenção dos veículos automóveis a que é dada a comum utilização rodoviária, mas ainda de outros veículos com capacidade de circulação terrestre autónoma, designadamente tractores agrícolas ou industriais, retroescavadoras, bulldozers, cilindros de compactação, empilhadores, dumpers ou outras máquinas, desde que, como se previne no nº 4 do art. 4º do Dec. Lei nº 291/07, não sejam utilizados em “funções meramente agrícolas ou industriais”.
Tem sido regularmente assumido por este Supremo Tribunal que os acidentes relevantes para o efeito não são apenas os típicos acidentes de circulação rodoviária, mas todos os derivados da utilização de veículos automóveis na sua função habitual, ou seja, como meios de transporte ou de locomoção autónomos.
Esta noção foi muito bem explicitada no Ac. do STJ, de 3-5-01, CJSTJ, tomo II, pág. 43, onde se afirmou que para efeitos de inclusão no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel relevam acidentes que “podem ocorrer tanto nas vias públicas como nas particulares e, até, em locais não destinados à circulação e que não é o facto de o veículo se encontrar parado que impede que como tal se considerem”, para logo acrescentar, no entanto, que se exige que “o veículo tenha sido causa directa ou indirecta do evento”, isto é, que o acidente tenha relação com os perigos que a sua utilização efectivamente comporte”.
Não menos esclarecedor é o Ac. do TRC. de 10/3/2015 (proc. nº 1533/12.1TBGRD.C1; relat. Teles Pereira, também disponível em dgsi.pt) onde, sob apelo à mesma jurisprudência europeia (Acórdão do Tribunal de Justiça, de 04/09/2014, no processo C – 162/13 (reenvio prejudicial por um Tribunal esloveno) conhecido por “Acórdão Vnuk”), se conclui “IV - A exclusão do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel de máquinas utilizadas em funções meramente industriais (ou agrícolas), exclusão decorrente do artigo 4º, nº 4 do DL 291/2007, correspondendo essa máquina ao conceito de veículo para o efeito do artigo 1º, nº 1 da Directiva 72/166/CEE, significa que essa exclusão constante da Lei nacional só subtrai ao sistema de seguro obrigatório automóvel as utilizações daquelas máquinas ‘apenas’ (meramente) ligadas ao próprio uso industrial (ou agrícola), em si mesmo, que não apresentem qualquer margem de sobreposição com utilizações próprias da circulação de viaturas que gerassem a obrigação de segurar no quadro do seguro automóvel. V – Isso sucede (a sujeição ao regime do seguro automóvel), por juntar a utilização industrial da máquina à circulação do veículo, com o atropelamento de um peão, em local considerado via pública, na sequência de uma manobra de marcha-atrás.”
Ora, tal como afirmado na decisão em crise e em linha com a jurisprudência citada, incluindo com a jurisprudência comunitária que, para o caso em apreço, redunda numa solução incontornável e inequívoca, entendemos ser inevitável concluir que, nas circunstâncias do acidente em questão e em plena consonância com a utilização habitual do empilhador da ré C…, esta utilização compreendia uma actividade de circulação terrestre e não apenas a sua manobra em operações industriais. Com efeito, a utilização do empilhador, tal como aconteceu nas circunstâncias do acidente, incluía a já descrita deslocação de cargas por uma via do Mercado E… que, ainda para mais, não se destinava exclusivamente ao exercício da actividade da ré C…, mas também à circulação de uma diversidade de utentes, tal como a autora.
Para além, disso, irrelevante se nos afigura a alegação da apelante segundo a qual a entidade Mercado E… não exige a cobertura dos riscos de utilização de empilhadores por seguros de responsabilidade civil automóvel, bastando-se com a demonstração de um seguro referente à actividade desenvolvida pelos operadores no mercado.
Com efeito, pelas razões já descritas, a obrigação de segurar os riscos inerentes à utilização de um empilhador, desde que nesta se compreenda a respectiva circulação e não a sua mera operação industrial – como aconteceu no caso em apreço – através de um seguro de responsabilidade civil automóvel resulta do disposto no nº 1 do art. 4º, do DL. 291/07, e não de qualquer disposição regulamentar ou da prática daquela entidade.
Por todo o exposto, só pode confirmar-se a solução decretada na decisão recorrida, ao referir “… que o risco de circulação do empilhador interveniente no sinistro em causa nos autos está abrangido pela obrigação de segurar e que o sinistro ocorreu quando este estava a ser utilizado enquanto veículo, isto é, com a utilização habitual de circular numa via…” o que tem por consequência “… afastar a responsabilidade da ré seguradora na medida em que os danos estão excluídos pelo âmbito do contrato de seguro atento o estipulado na cláusula 3.1, al. g), das condições particulares do contrato.”
Subsequentemente, na improcedência das razões da apelante e perante a ausência de outras questões a apreciar, caberá confirmar a decisão recorrida.
Sumariando:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, em razão do que, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Porto, 24/9/2020
Rui Moreira
Anabela Tenreiro
Lina Baptista