Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
142-A/2002.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
AUSÊNCIA DE RENDIMENTOS DO PROGENITOR OBRIGADO
FIXAÇÃO
Nº do Documento: RP20121211142-A/2002.P2
Data do Acordão: 12/11/2012
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não deve ser fixada pensão de alimentos a menor quando o progenitor obrigado não aufere quaisquer rendimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 142-A/2002.P2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
Nos autos de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente à menor B…, na parte em que concerne aos alimentos, a progenitora veio requerer que o tribunal a alteração do poder paternal, contra o requerido progenitor, C…, no que à prestação alimentar respeita, solicitando que seja fixada uma prestação de alimentos a favor da filha de ambos B…, nascida a 10/06/2000, em montante não inferior nunca inferior a 50,00€, alegando que a criança tem direito a uma prestação de alimentos , e que caso o requerido a não pague requerer também a posterior intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Citado para alegar, nos termos do artigo 182º, n.º 3, da OTM, o requerido nada respondeu.
Foi designado dia para a realização da conferência a que alude o art.º 175º da OTM, a que só a requerente compareceu.
Foram solicitados os inquéritos sociais referentes à requerente, criança e requerido, e ainda informações do ISS sobre as remunerações do trabalho, subsídios ou pensões do requerido, ou outros rendimentos (cf. fls.71, 76) de onde se retira que o mesmo não aufere qualquer remuneração quer de trabalho quer a titulo de subsídio, pensão ou renda e ainda à entidade policial que informou que o mesmo vive em casa da mãe, sendo sustentado por esta.
O Ministério Publico emitiu o parecer.
Foi proferida sentença julgando a acção improcedente.
Inconformada, recorreu a requerente, apresentando as seguintes conclusões:
«1) O presente recurso é interposto da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância que considerou improcedente o pedido formulado pela requerente/progenitora e omitiu a fixação de uma prestação alimentícia a cargo do progenitor;
2) Entendemos que nos casos em que não é possível avaliar as actuais condições económicas do progenitor e nos casos em que o obrigado não disponha de qualquer possibilidade económica de suportar uma pensão de alimentos, ainda assim o Tribunal pode e deve fixar uma prestação alimentícia a favor da menor, quer porque a situação do alimentando assim o reclama, quer porque não se encontra sequer definitivamente apurado que o requerido não aufira de facto qualquer rendimento.
3) No sentido da fixação obrigatória de prestação de alimentos mesmo quando o obrigado não disponha de qualquer possibilidade económica de a suportar ou por desconhecimento da sua situação económica, com vista à intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, pode ver-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/06/2007, Processo n.º 5797/2007-7, de 28/06/2007, Processo n.º 4572/2007-8, e de 9/11/2010, Processo º 6140/07.8TBAMD.L1-1; os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 27/6/2011, Processo n.º 1574/09.6TMPRT.P1, de 21/6/2011, Processo n.º 1438/08.0TMPRT.P1; os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/6/2008, Processo nº 230/07, de 28/4/2010, Processo nº 1810/05, de 4/5/2010, Processo nº 1014/08, de 21/6/2011, Processo n.º 11/09.0TBFZZ.C1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/3/2011, Processo n.º 4481/09.9TBGMR.G1 todos disponíveis em www.dgsi.pt; Vide ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2011, Processo n.º 4231/09.0TBGMR.G1.S1 e de 27/9/2011, Processo 4393/08.3TBAMD.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.
4) O mesmo entendimento parece ser sufragado pelo Professor Remédio Marques (Algumas Notas Sobre Alimentos ( Devidos a Menores), 2ª ed., pág. 72 ), para quem “os direitos- deveres dos progenitores para com os menores são sempre devidos, independentemente dos seus recursos económicos e dos estado de carência económica dos filhos, posto que se trata de direitos cujo exercício é obrigatório e prioritário em atenção á pessoa e aos interesses do menor, Na nossa opinião, não tem aplicação, nestas eventualidades, o disposto no art. 2004.º/1 do CC, de harmonia com o qual, e ao derredor do princípio da proporcionalidade se deve entender às possibilidades e económicas do devedor, para o efeito de fixar a obrigação de alimentos. Donde, faz mister fixar-se sempre uma prestação de alimentos a cargo de um ou de ambos os progenitores, mesmo que estejam desempregados e não tenham meios de subsistência ”.
5) - Recaindo tal obrigação em primeira linha sobre os progenitores - uma vez que a menor não tem quaisquer possibilidades de prover por si ao seu próprio sustento e satisfação das suas necessidades básicas - e tendo o menor sido confiado aos cuidados da mãe, deveria o Tribunal ter fixado uma prestação alimentícia a cargo do outro progenitor enquanto decorrência mínima das relações de filiação estabelecidas;
6) - O requerido foi citado neste processo, e, ao invés de comparecer neste Tribunal ou fazer--se representar, "desapareceu" para parte incerta, o que denota bem o seu propósito de se eximir ao pagamento da prestação alimentícia devida à filha;
7) O requerido nada alegou nem compareceu à conferência de progenitores a que alude o artigo 175.º da OTM. O requerido faltou também ás convocatórias para a realização dos relatórios Sociais, foi a mãe do requerido que informou as técnicas que este teria retomado os hábitos psicotrópicos e que vivia às suas custas…
8) - A fixação de uma pensão "mínima" ao progenitor não constitui uma "presunção" insuportável para o progenitor, na medida em que o mesmo sempre poderá requerer a Alteração da Regulação do Exercício do Poder Paternal, tratando-se, como se trata, de um processo de jurisdição voluntária;
9) Por outro lado, mesmo em caso de Incumprimento, ou o devedor possui meios suscetíveis de tornar efetiva a prestação de alimentos (caso em que se poderá lançar mão do expediente previsto no art.º189° da Organização Tutelar de Menores ou obter o pagamento das prestações vencidas através da Execução de Alimentos, ao abrigo do disposto no art.º 1118° do Código de Processo Civil) ou, não possuindo bens nem emprego, restará aos menores pugnar pela fixação de uma prestação substitutiva a pagar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos, nos termos conjuntos dos art°s 1°, 2° e 3°, da Lei n.° 75/98 de 19/11 e 1°, 2°, 3° e 4° do Decreto-Lei n.° 164/99, de 13/5;
10) A seguir-se a tese da douta decisão recorrida estaria o menor inibido de recorrer à prestação substitutiva do Fundo de Garantia de Alimentos, uma vez que a Lei n.° 75/98 faz depender a intervenção do Fundo da prévia fixação de uma prestação alimentícia insuscetível de execução;
11) - Tal entendimento contraria frontalmente a filosofia que presidiu à criação do Fundo e constituiria uma gritante violação ao princípio da igualdade perante a lei estabelecido no art.º 13° da Constituição da República Portuguesa, já que potenciaria uma tratamento diferenciado entre menores em idêntica situação de carência, consoante se lograsse ou não averiguar a situação do alimentante.
12) O facto constitutivo essencial do direito a obter alimentos do pai é integrado pela relação de filiação e pela situação de menoridade (..) "cabendo"ao autor o ónus de provar o estado de necessidade e também a relação que vincula o réu a tal prestação. Por outro lado, cabe ao réu o de provar que os meios de que dispõe não permitem realizá-la integral ou mesmo parcialmente.
13) Ou seja, no caso, era sempre sobre o progenitor que, segundo as regras de distribuição do ónus da prova, recaía o dever de provar que estava em condições de beneficiar da dispensa de prestar alimentos (art.° 2009.º n. ° 3 do CC) e, manifestamente, tal prova não foi feita.
14) Exige-se que o progenitor reúna as condições necessárias a acautelar a sobrevivência dos descendentes, sendo essa, aliás, uma das obrigações inerentes ao exercício do poder paternal (art.º 1878° do Código Civil);
15) Ao não prescrever uma pensão alimentícia devida ao menor por parte do progenitor, a douta decisão recorrida violou o estatuído nos art.°s 1878.°, n.° 1, 1905.º e 2004.º, n.° 1, todos do Código Civil, normas essas que deverão ser interpretadas no sentido da obrigatoriedade da fixação de uma pensão alimentícia ao progenitor não guardião, mesmo nas situações em que se desconhece as condições de vida do alimentante, por este se ter ausentado para parte incerta, mesmo nas situações em que se apura que não tem meios económicos.
PELO QUE REQUER A VOSSAS EXCELÊNCIAS A SUBSTITUIÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA POR OUTRA QUE IMPONHA AO PROGENITOR O PAGAMENTO DE UMA PRESTAÇÃO ALIMENTÍCIA RELATIVAMENTE À FILHA MENOR, EM MONTANTE NUNCA INFERIOR A 50,00 €, ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!»
Não houve contra-alegações.
2. Fundamentos de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. Por sentença de 07.10.2003, proferida nos autos de Regulação do Poder Paternal, de que estes são apenso, sentença essa devidamente transitada em julgado, a menor B…, ficou confiada à guarda e cuidados da requerida, sua mãe, que exercerá o poder paternal; e o pai da menor não contribuirá para já com qualquer prestação de alimentos para a menor.

2. Não foi fixada pensão alimentícia ao progenitor pelo facto de se desconhecer em absoluto as suas condições de vida.
3. Os progenitores da menor, foram casados durante cerca de 9 anos, tendo o divórcio sido decretado em 2004.
4. Segundo a requerente a ruptura da relação deveu-se ao facto de o requerido ser toxicodependente.
5. O agregado familiar da progenitora é constituído por esta e pela criança e residem numa habitação própria de tipologia t2.
6. A requerente exerce a profissão de empregada de balcão na firma "D…, onde aufere mensalmente a quantia de 482,38€.
7. A titulo de prestação familiar da menor recebe mensalmente a quantia de €35,19.
8. Este agregado apresenta as despesas mensais relativas ao crédito da habitação de 251,13€; consumo de electricidade de 35,00€, 9,00 e de consumo de água e 84,02€ de seguro da casa;
9. A menor, actualmente com 11 anos de idade, frequenta o 6.º ano de escolaridade na Escola …, encontrando-se bem integrada na comunidade escolar.
10. Frequenta a sala de estudo nos períodos em que não tem actividades lectivas.
11. O progenitor consta com último desconto como trabalhador por conta de outrem em 09/2002.
12.O mesmo reside em casa da progenitora, não trabalha, nem aufere qualquer prestação, vivendo da ajuda mãe.
13. Continua a ser toxicodependente.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684.º, n.º 3, e
685.º A, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 660.º, n.º 2, in fine, e 684.º, n.º 4, CPC), consubstancia-se em saber se deve ser fixada pensão de alimentos a menor quando o progenitor obrigado não aufere quaisquer rendimentos.

A sentença recorrida entendeu que não, contra o que se insurge a apelante.

Trata-se de questão controvertida na jurisprudência, justificadora de uma intervenção uniformizadora do STJ.

A questão apenas assume relevo por o incumprimento da prestação de alimentos habilitar a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos devidos a menor.

Apreciando:
Estabelece o artigo 36º, nº 5, da Constituição, que os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos, o que significa que, tal como dispõe o artigo 1878º, nº 1, CC, compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros e administrar os seus bens.
O dever de sustento, consubstanciado em tudo o que é indispensável ao sustento, habitação, vestuário, instrução e educação do menor (cfr. artigo 2003º CC), mantém--se mesmo se o progenitor for inibido do exercício do poder paternal (artigo 1917º
CC).
Havendo desacordo dos pais quanto ao exercício do poder paternal, designadamente no que a alimentos concerne, cabe ao tribunal decidir de acordo com o interesse do menor (artigo 1905º, nº 2, CC), critério constante também do artigo 180º OTM, e que constitui um pilar fundamental do direito dos menores.
Por seu turno, o artigo 2004º, nº 1, CC, epigrafado «medida dos alimentos», estabelece -que estes serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los.
A este quadro legal há que acrescentar o artigo 1º da Lei 75/98, de 19.11 (Garantia dos Alimentos devidos a menores), que determina que
«quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º do Decreto-Lei 314/78, de 27.10, e ao alimentando não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início efectivo do cumprimento da obrigação».
Com efeito, os acórdãos favoráveis à fixação de alimentos em caso de impossibilidade do obrigado, e mesmo perante o desconhecimento do paradeiro e situação económica do obrigado, fazem apelo a este diploma, argumentando com a necessidade de viabilizar o recurso ao Fundo de Garantia de Alimentos.
Refiram-se a este propósito os acórdãos da Relação de Lisboa, de 07.07.05, Manuel Gonçalves; de 05.10.13, Ferreira Lopes; de 03.10.23, Pereira Rodrigues; e as decisões nos termos do artigo 705º CPC, de 07.12.20, Granja da Fonseca; de 07.06.26, Abrantes Geraldes; e de 06.11.29, Pimentel Marcos, em www.dgsi.pt.jtrl, proc. 4586/2007-6, 6890/2005-6, 7695/2003-6, 10.780/2007-6, 5797/2007-7, 10.079/2006-7, respectivamente. E da Relação do Porto, de 04.04.22, Oliveira Vasconcelos, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0432181; da Relação de Coimbra, de 08.06.17,
Jaime Ferreira, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 230/07.
Diz–se que o interesse do menor demanda que na equação do 2004º CC seja dada maior relevância às necessidades do menor alimentando do que às possibilidades do progenitor obrigado.
O artigo 2004º, nº 1, CC, estabelece uma correlação entra as necessidades e as possibilidades, pressupondo o conhecimento dos dois termos da equação: necessidades do alimentando e possibilidades do obrigado. Da mesma forma que não há fixação de alimentos sem necessidade do alimentando, também não pode haver em caso de falta de possibilidades do obrigado.
Neste sentido se pronunciaram os acórdãos da Relação do Porto, de 03.10.28, Cândido Lemos, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0324797; da Relação de Évora, de 90.12.18, Matos Canas, BMJ 402/690; e da Relação de Lisboa, de 07.01.18, Ana Paula Boularot, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 10081/2007-2.
Como se refere neste último acórdão,
«inexistindo matéria factual que nos permita concluir, quer pelas necessidades do alimentando, quer pelas possibilidades do obrigado, não se pode fixar qualquer quantia a titulo de alimentos e, acrescentamos, fazê-lo seria, não só uma temeridade como, também, um verdadeiro atentado às regras básicas enformadoras do nosso sistema jurídico- -processual, que não permitem, em caso algum, que o Tribunal decida sem uma base sólida no que tange à factualidade consubstanciadora do direito a tutelar: fixar-se uma prestação de alimentos na quantia de € 150 (ou de outra qualquer quantia nestas circunstâncias precisas), como propugnou o Apelante em sede de conferência, sem qualquer suporte factual, constituiria uma decisão completamente aleatória violadora, além do mais, do disposto nos artigos 664º e 1410º do CPCivil, pois não obstante neste tipo de decisões o Tribunal não esteja sujeito a critérios de legalidade, mas antes de conveniência e oportunidade, isso não quer dizer que lhe seja permitido decidir sem factos e que ignore em absoluto as normas em vigor».
O acórdão da Relação de Lisboa, de 07.06.26, Abrantes Geraldes, defende, numa situação idêntica à dos autos, que a não fixação da pensão deixa o menor desprotegido. E ao obstáculo que o artigo 2004º CC representa responde com uma pergunta: «que indivíduo, não afectado por qualquer incapacidade grave, tendo sobre si o encargo de suportar uma parte dos alimentos de uma filha de tenra idade, não está em condições de dispor, pelo seu trabalho, daquela quantia, se necessário, fazendo um esforço suplementar?».
E continua:
«Ainda que estivesse apurado - e não está - que o requerido não aufere qualquer rendimento, tal não contenderia com aquela obrigação, já que é inerente à relação de paternidade a necessidade de realizar esforços e de ajustar a vivência por forma a que se consigam obter rendimentos que, além do mais, possam servir para prover às necessidades de quem, como o filho menor, não tem possibilidades de sobrevivência autónoma».
Este acórdão cita ainda Clara Sottomayor, que, numa situação de desemprego deliberado por parte do obrigado, defende a utilização de critérios de imputação de rendimentos a pais desempregados de acordo com a sua capacidade laboral para que possa ser fixada a pensão.
Estes argumentos não deixam de impressionar. No entanto, não parece que possam ser aplicados numa situação em que o obrigado é toxicodependente, afastado do mercado de trabalho, a que é cada vez mais difícil de aceder, com o desemprego a atingir níveis preocupantes.
Nesta situação afigura-se abusivo tecer conjecturas ou apelar a regras de experiência comum, designadamente recorrer a critérios de imputação, pois, como refere J. Remédio Marques, Algumas Notas sobe alimentos devidos a menores, Coimbra Editora, pg. 200,
«os factos que justificam ou autorizam a imputação de rendimentos serão todos aqueles factos voluntários ou controláveis pelo devedor, que o colocam numa situação económica mais desvantajosa relativamente àquela que, doutro modo, poderia usufruir (v.g., colocação voluntária em situação de desemprego, emprego a tempo parcial ou sub-emprego, escolha de uma actividade profissional menos lucrativa, tendo em vista a respectiva formação e /ou experiência profissional)».
Independentemente da posição que se assuma relativamente à problemática da toxicodependência, a verdade é que neste momento o obrigado não tem qualquer capacidade laboral.
E, contrariamente ao que muitas vezes se afirma, não se vislumbra em que medida a não fixação de alimentos possa obrigar o progenitor relapso a assumir as suas responsabilidades parentais, nem que a não fixação surja como um prémio para o progenitor relapso, porquanto logo que lhe sejam conhecidos meios procede-se à fixação dos alimentos.
O principal argumento a favor da fixação de alimentos mesmo em caso de desconhecimento total do paradeiro e situação do obrigado é de natureza pragmática: é necessária a fixação prévia de alimentos para, face ao (altamente previsível) incumprimento, ser possível recorrer ao Fundo de Garantia dos Alimentos.
Nos termos do artigo 1º da Lei 75/98, de 19.11, o dever de prestar do Estado depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- existência de sentença que fixe alimentos ao menor («pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos»);
- residência do devedor em território nacional (cfr. Remédio Marques, op. cit., pg. 234, e acórdão da Relação de Coimbra, de 08.02.12, Isaías Pádua, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 886/06);
- que o não beneficie na mesma quantidade de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
- falta de pagamento total ou parcial, por parte do devedor, das quantias em dívida através de uma das formas previstas no artigo 189º OTM.
Não se afigura, porém, que o entendimento que tem sido maioritariamente acolhido
pela jurisprudência seja o mais adequado, por introduzir distorções no regime estabelecido pelo artigo 2004º CC..
Este regime é perfeitamente equilibrado, e conforme o princípio da proporcionalidade, e não se vê que a Lei 75/98, de 19.11, tenha pretendido alterá-lo.
O problema está no figurino restritivo do regime estabelecido pela Lei 75/98, de apenas abranger, pelo menos na sua letra, os casos em que é possível proceder à fixação de alimentos por se ter conhecimento da situação económica do obrigado.
Eventualmente o legislador terá dito menos do que pretendia, como sugere o preâmbulo do diploma regulamentar (o Decreto- Lei 164/99, de 13.05), ao referir que «De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais».
Com efeito, não se vislumbra razão válida para discriminar as situações em que a impossibilidade é superveniente (aparentemente só esta está contemplada no diploma) daquelas, porventura mais graves, em que a impossibilidade se verifica já no momento da fixação da pensão.
A Relação do Porto, através de acórdãos recentes, ensaiou um novo caminho, que passa por responsabilizar o Fundo de Garantia de Alimentos naquelas situações em que não se fixou pensão de alimentos por impossibilidade do obrigado.
Como exemplo desta tendência refira-se o acórdão de 06.02.23, Ana Paula Lobo, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 0630817, onde se lê:
«A nova prestação social referida no DL 164/99 de 13 de Maio assente, como já demonstrado em algumas ficções, não pode deixar de fora exactamente as crianças mais desprotegidas e mais carecidas dessa prestação social que são aquelas em que os seus progenitores são tão pobres que nem mesmo num momento inicial puderam, nos termos da lei, ser condenados a pagar uma prestação de alimentos concreta.
Sob pena da prática de actos inúteis e da aplicação da lei conduzir a um resultado injusto e que em concreto desmente a finalidade para que foi criada a Garantia de pagamento pelo Estado dos alimentos devidos a menores, na presente situação terá que entender-se que o Fundo poderá ser obrigado a pagar uma prestação de alimentos cujo montante não foi concretamente fixado relativamente às pessoas a quem incumbe prestar alimentos aos menores, por falta de meios do devedor para o efeito».
No mesmo registo, o acórdão dessa Relação, de 06.10.02, Abílio Costa, www.dgsi,pt.jtrp, proc. 0653974, defende que a não fixação de alimentos por impossibilidade do obrigado cabe no espírito da lei, ou por interpretação extensiva, sob pena de violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
O acórdão da Relação de Coimbra, de 08.02.12, Isaías Pádua, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 886/06-5, embora entenda que deve ser fixada pensão de alimentos mesmo em caso de impossibilidade do obrigado, defende que, por razões de economia processual, deve impor-se logo na sentença de regulação do exercício do poder paternal a prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos em situações de desconhecimento do paradeiro e situação económica do obrigado.
Esta jurisprudência tem o mérito de destacar as insuficiências do regime do Fundo de Garantia de Alimentos: o problema não está no artigo 2004º CC, mas sim na concepção restritiva da intervenção do Fundo, reflectida no artigo 1º da Lei 75/98, de 19.11.
J. Remédio Marques, op, cit., pg. 236-7, prefere a solução da fixação de uma pensão através da quantificação da capacidade laboral e apuramento, pelo baixo, de uma quantia a título de pensão de alimentos, subtraída a quantia equivalente ao mínimo de subsistência do devedor. No entanto, e para as situações de inactividade voluntária, defende que deverão ser demandados os restantes obrigados legais (cfr. artigo
2009º CC).
E terá também de ser essa a solução para os casos de desconhecimento do paradeiro e situação económica do obrigado, ou de comprovada ausência de meios.
Assim, em caso de desconhecimento do paradeiro e situação económica do obrigado, ou de comprovada insuficiência de meios, não é possível proceder à fixação de alimentos a menor que deles careça, devendo ser accionados os demais obrigados nos termos do artigo 2009º CC..
E poderão ser accionados outros mecanismos de protecção de menores a nível da Segurança Social.
4. Decisão
Termos em que se decide julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Porto, 11 de Dezembro de 2012
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos (com declaração de voto em anexo)
Francisco José Rodrigues de Matos
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Sumário
Não deve ser fixada pensão de alimentos a menor quando o progenitor obrigado não aufere quaisquer rendimentos.

Márcia Portela
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Declaração de voto:
Voto a decisão, embora não acompanhe a douta fundamentação em que a mesma se estriba.
Quanto aos fundamentos e conforme sustentei no acórdão de 21/06/2011, proferido no processo no 1438/08.0TMPRT.P1, deste mesma secção, de que fui relator (publicado in www.dgsi.pt/jstj), entendo que o progenitor de um menor só pode ser dispensado do pagamento da prestação de alimentos ao filho se provar que está impossibilitado de os prestar - cabendo-lhe a ele esse ónus probatório (e não ao menor, ou a quem o representa no processo, o ónus de provar as possibilidades económicas daquele) - e que em casos de ausência do mesmo ou de desconhecimento da sua situação económica deve ser condenado a prestar alimentos ao filho menor (excepto se este possuir rendimentos que tomem dispensáveis os alimentos do progenitor; isto porque cabe ao menor, ou a quem o represente na acção, a prova da necessidade destes).
Subscrevo, contudo, a decisão ora perfilhada, por estarmos perante um incidente de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais e não face a um processo de regulação destas responsabilidades.
Este incidente, regulado no art. 182 da OTM, pode ser deduzido por qualquer dos progenitores ou pelo curador de menores quando o acordo ou a decisão final não sejam cumpridos pelos pais, ou quando circunstâncias supervenientes tomem necessário alterar o que estiver estabelecido.
No caso, está em equação esta segunda alternativa (o requerido, na regulação inicial, não ficou obrigado à prestação de alimentos à sua filha menor, devido à situação de toxicodependência em que se encontrava e ao desconhecimento da sua situação económica), pelo que a alteração do regime inicial só poderia ser levada a cabo caso se demonstrasse ter havido uma alteração superveniente das circunstâncias que estiveram na base do regime que foi fixado no processo inicial. Sem a verificação deste pressuposto não há lugar à alteração do regime fixado (correcta ou incorrectamente) no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, pois o presente incidente não serve para corrigir/rectificar lacunas ou erros interpretativos ou de aplicação de normas legais que deveriam ter sido tidos ali em conta e que não o tenham sido (o incidente do art. 182° não é um meio de censurar ou por em causa o que se decidiu no processo de que é dependência, não podendo servir, por ex., para, através dele, se fixar uma obrigação de alimentos que devia ter sido fixada naquele e que não o foi).
Relativamente ao requerido, a exigida alteração superveniente das circunstâncias passava, necessariamente, pelo apuramento de uma situação económica, pessoal e profissional diversa da que se verificava no momento em que foi fixado o regime de exercício das responsabilidades parentais no dito processo inicial/principal.
Porém, o que os autos evidenciam, ante o que consta dos n°s 2, 4, 11, 12 e 13 dos factos provados, é que a situação económica, pessoal e profissional do requerido se mantém inalterada, não tendo superado a sua toxicodependência, continua sem trabalhar, sem auferir rendimentos e sobrevive à custa da mãe, em casa da qual reside.
Surge, assim, cristalino que não houve a exigida alteração de circunstâncias, pelo que, por aqui e só por aqui, é de manter a douta decisão recorrida que não acolheu a pretensão da recorrente, no sentido de se fixar uma pensão de alimentos a cargo do requerido e a favor da filha menor identificada nos autos.
Com este esclarecimento, subscrevo o presente douto acórdão.

Manuel Pinto dos Santos