Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
830/19.0PBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: CRIME DE FURTO
VALOR DOS OBJETOS SUBTRAÍDOS
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
REGRAS DA EXPERIÊNCIA
ERRO NOTÓRIO
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP20240221830/19.0PBMAI.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para que o agente possa ser condenado por um crime de furto qualificado (no caso pela circunstância constante da al. e) do n.º 2) é não só necessário que se demonstrem os factos que integram a previsão da respetiva circunstância qualificativa, mas, também, que dos mesmos resulte que o valor dos objetos furtados é superior à UC.
II - As regras da experiência não são meios de prova. São raciocínios, hipóteses, assentes na experiência comum, alcançáveis a qualquer pessoa com um nível de formação geral e que são independentes dos casos individuais, permitindo ao julgador, pela sua constante verificação, aplicá-las ao caso concreto onde, por afirmação de um princípio de normalidade, necessariamente também ali serão válidas.
III - Afirmando-se o julgador em dúvida - porque confessadamente desprovido de qualquer meio de prova conducente a um valor concreto a atribuir aos objetos - a superação daquele estado de incerteza por recurso a uma putativa regra da experiência determinativa de um valor venal, constitui, na sobrepassagem da dúvida, uma violação do princípio in dubio pro reo.
IV - O valor a conferir a determinado bem, quando é circunstância relevante, não pode alicerçar-se em indemonstrada regra de experiência ou confundido com a noção de facto notório, com maior premência quando não foram apuradas circunstâncias que permitam uma quantificação aproximada e segura que respeite o princípio da legalidade penal. Decidindo-se o contrário, aquela afirmação do valor resulta in pejus dos interesses do arguido e é refratária da relevância material a atribuir ao sobredito princípio.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 830/19.0PBMAI.P1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
I.1
Nos autos de processo comum n.º 830/19.0PBMAI, que correu termos no Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 16.09.2023, decidiu-se, além do mais:
“a) Absolver o arguido AA da prática, em coautoria material e na forma consumada, do crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal, de que vinha acusado;
b) Condenar o arguido AA pela prática, em coautoria material, na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 a 3, 73.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;
c) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, acompanhada de regime de prova; (…)”.
*
I.2
Não se conformando com o decidido veio o arguido AA interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 36997148) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
I – Por sentença proferida foi o arguido AA, absolvido do crime de furto qualificado, por impossibilidade de se apurar o valor da quantia furtada e consequentemente, operou-se a desqualificação deste crime, para o crime de furto simples;
II- Inexistindo queixa crime, o MP não tinha legitimidade pra o imputar ao arguido este crime, o que motivou a sua absolvição;
III- Posteriormente, no decurso da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, foi o arguido notificado de despacho de alteração não substancial dos factos descritos na acusação, passando a imputar-lhe a prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22 nºs 1 e 2, 23º nºs 1 a 3, 73º nºs 1 e 2, 203º nº 1 e 204º nº 2, al.e) por referência ao art. 202º al d) CP., pela tentativa do furto de 2LCD.
IV- O arguido opôs-se à alteração não substancial, com os fundamentos supra transcritos para o qual nos remetemos, a qual não foi procedente, acabando o arguido por ser condenado na pena de prisão de 1 ano e 2 meses, suspensa pelo mesmo período, sujeita a regime de prova, pela prática de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22 nºs 1 e 2, 23º nºs 1 a 3, 73º nºs 1 e 2, 203º nº 1 e 204º nº 2, al.e) por referência ao art. 202º al d) CP.
V- É, portanto, no que respeita à condenação pelo crime de furto qualificado na forma tentada, e a respetiva medida aplicada que o arguido não se pode conformar, razão pela qual apresenta o presente recurso.
VI- Desde logo porque não foi realizada prova cabal que permitisse a este tribunal concluir pelo elevado valor dos bens e, por consequência, a qualificação do crime;
VII-Pois não resulta qualquer elemento documental e nem tão pouco testemunhal que atestasse o valor atual dos LCD, se estavam em pleno funcionamento ou se estariam até avariados, se os mesmos eram recentes ou pelo contrário, eram já antigos e portanto, de pouco ou nenhum valor venal.
VIII- O arguido sendo consumidor de estupefacientes, tinha como objeto imediato, o apuro das caixas, por ser dessa forma que conseguiria mais rapidamente produto estupefaciente.
XIX-Não se tendo apurado o real valor dos bens que tentaram furtar, deveria a sentença que ora se recorre, decidir no sentido do valor diminuto do bens a furtar, caindo por consequência, na imputação de um crime de tentativa de furto simples – neste mesmo sentido vide ac. Tribunal da Relação de Coimbra, P. nº 393/12.1GCTND.C1.
X-E perante a dúvida, o Tribunal “a quo” deveria ter feito funcionar o principio «ln dubio pro reo», ou seja, perante a dúvida sobre o valor dos bens, que o autor da tentativa de furto tinha intenção de furtar e se esse valor seria ou não diminuto, a decisão não poderia ter condenado pelo tipo de crime qualificado.
XI-Pelo que entende o recorrente que a apreciação que fez da prova produzida em Audiência Discussão e Julgamento, contra o arguido, violou o disposto no artigo 127º do Código Processo Penal, a qual enferma de erro notório na apreciação da prova e insuficiência na prova produzida, uma vez que os elementos probatórios conduzem á não verificação de todos os elementos típicos do crime previsto e punido pelo artigo 203 n° 1 e 204 n° 2 al e) do Código Penal.
XII- Com todo o respeito pelo princípio da livre convicção do Juiz, face á prova produzida em Audiência e Discussão conjugada com as regras da experiência comum, deveria o arguido ser absolvido o crime que lhe foi posteriormente imputado e pelo qual foi condenado.
XIII- Sendo este o entendimento maioritário dos nossos tribunais superiores, ao quais entendem que na impossibilidade de se apurar o valor da coisa furtada, tem de considerar-se, para o efeito previsto no n.º 4 do art.º 204º do Código Penal, que esse valor é diminuto – cfr., v.g., ac. T.R.P., 29/4/2009, Proc. 89/06.9PAVCD.P1, www.dgsi.pt.” – Ac. RC de 22/1/2014, Proc. 973/12.0PBLRA.C1 [1].
XIV- É pois, o que sucede no presente caso, em que se desconhece qual o valor real dos LDC tentados furtar e sobre o qual o tribunal não procedeu a uma eventual avaliação dos bens, o que podia ter feito, nos termos do disposto do art. 171º CP, e não fez!
XV-Consequentemente, mostra-se desqualificado o crime de furto tentado em causa e, por consequência, face à inexistência de queixa e falta de legitimidade do MP para o procedimento criminal, deve também o arguido ser absolvido por este crime tentativa de furto qualificado, o que se requer.
XVI- Por fim e por mero dever de patrocínio, caso assim o não entendam e considerem improcedente o entendimento do ora recorrente, sempre se deverá considerar excessiva a pena aplicada, devendo ser atenuada mediante a aplicação do regime especial para jovens delinquentes, resultando assim vantagens para a sua reinserção social.
XVII-O arguido encontra-se familiar, social e profissionalmente integrado e foi pai recentemente.
XVIII- Abstendo-se de consumos aditivos e de companhias e comportamentos desviantes, pautando-se por uma vida de acordo ao direito, trabalhando e garantindo as necessidades do seu agregado familiar, acompanhando de forma exemplar o crescimento do seu filho de tenra idade.
XIX- O arguido tinha 20 anos à data da prática dos factos, tendo sido dado como facto provado que em 2019, havia passado por um período e consumo de estupefacientes, hoje (2023), ultrapassado.
XX-O arguido não beneficiou do regime especial para jovens delinquentes e ainda, viu ser-lhe aplicada uma pena de prisão, suspensa na sua execução, vendo também desta forma ser-lhe vedada a possibilidade de beneficiar do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, de 2 e Agosto.
XXI-Foi violado o disposto nos artigos 71 n° 2 e 70 do Código Penal que consagra a preferência pela pena não privativa da liberdade.
XXII-Conforme art. 70º do CP, o tribunal deve dar preferência à pena não detentiva sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
XXIII-Sendo que o recorrente coloca em crise a aplicação de pena detentiva, ainda que suspensa na sua execução, entendendo como suficiente e acertada, a pena de multa.
XXIX- Pelo que nos parece, salvo o devido respeito, foi aplicada ao arguido, uma pena desproporcional e desajustada, com desconsideração da prova produzida e com nítido desrespeito pelo disposto nos preceitos legais supra citados e aos quais o Tribunal deveria dar cumprimento, sendo no entendimento do recorrente suficiente a aplicação de uma pena de multa.
XXX- O que face à aplicação de eventual pena de multa, permitiria assim a aplicação da lei da Amnistia, podendo o arguido beneficiar do perdão previsto pela Lei nº 38-A/2023, de 2 Agosto, o que em alternativa se requer.
Termos em que, com douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência, ser o arguido absolvido do crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22 nºs 1 e 2, 23º nºs 1 a 3, 73º nºs 1 e 2, 203º nº 1 e 204º nº 2, al.e) por referência ao art. 202º al d) CP, ou caso assim não se entenda que seja a pena aplicada ao arguido, pena suspensa na sua execução substituída por pena de multa, aplicando-se o perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.
*
I.3
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, veio o Ministério Público apresentar articulado de resposta (Ref.ª 37450658), pugnando pela subsistência do decidido alegando, em conclusão, que:
1- AA, arguido nestes autos foi absolvido da prática, em coautoria material e na forma consumada, do crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal, de que vinha acusado, mas foi condenado pela prática, em coautoria material, na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 a 3, 73.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, a qual foi suspensa a sua execução pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, acompanhada de regime de prova.
2- O arguido não se conformando com a sentença proferida nos presentes autos, vem interpor recurso alegando, em resumo e no essencial:
- do erro na apreciação da prova e insuficiência da prova produzida, uma vez que os elementos probatórios conduzem à não verificação de todos os elementos típicos do crime p. e p. pelo art. 203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) do C. Penal, pelo que requer a absolvição do arguido, ou caso assim não se entenda requer a condenação em pena de prisão suspensa na sua execução substituída por pena de multa, aplicando-se o regime especial para jovens delinquentes e o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.
3- Em nossa opinião, não assiste qualquer razão ao recorrente, entendendo tal recurso apenas por ser um direito de qualquer condenado.
4- Pouco há a acrescentar para além do que consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto e de direito da sentença proferida, uma vez que a Sra. Juíza fundamentou a sua convicção de uma forma clara, concreta e precisa, baseada na prova documental junta aos autos, que incluem, o auto de noticia, a reportagem fotográfica do local dos factos e do interior do estabelecimento comercial onde se visualizam os dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede de fls. 10 a 15, o relatório de exame ao local do crime efetuado pela unidade de policia técnica da PSP de fls. 9 e v.º, o CRC do arguido, na prova pericial de fls. 19 a 23 – relatório de exame pericial na sequência da recolha de vestígios datiloscópicos no local, e ainda nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de julgamento, a saber, BB, CC, DD e EE, e ainda nas declarações do arguido, que confessou os factos mas não o valor das quantias subtraídas, sendo que quanto à sua situação económica e familiar foram tidas em conta as suas próprias declarações, tudo analisado à luz das regras da experiência, já que há que ter em conta quer o principio da livre apreciação da prova de que o julgador dispõe, quer o principio da imediação que só a audiência de julgamento proporciona.
5- A participação do arguido na prática do crime está bem concretizada e fundamentada na referida sentença, quer a nível da fundamentação de facto, quer a nível da fundamentação de direito, atentos os factos dados como provados, estando também devidamente fundamentado o elenco das várias circunstâncias que relevaram, in casu, para efeitos da escolha e da medida concreta da pena (veja-se a este propósito a motivação da matéria de facto de fls. 117 a 118, a motivação da matéria de direito de fls. 118 a 119 v.º, e a motivação da escolha e determinação da medida da pena de fls. 119 v.º a 122 que inclui a apreciação do regime especial para jovens adultos e o perdão de penas decorrente do disposto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, cujo teor se dá aqui por reproduzido por uma questão de economia processual).
6- Invoca o arguido o erro na apreciação da prova e insuficiência da prova produzida, considerando que os elementos probatórios conduzem à não verificação de todos os elementos típicos do crime p. e p. pelo art.203º, n.º 1 e 204º, n.º 2, al. e) do C. Penal, pelo que requer a absolvição do arguido, ou caso assim não se entenda requer a condenação em pena de prisão suspensa na sua execução substituída por pena de multa, aplicando-se o regime especial para jovens delinquentes e o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, mas entendemos que não lhe assiste razão.
7- Recorde-se que na sessão do julgamento do dia 13.07.2023 foi comunicada uma alteração não substancial dos factos nos termos e para os efeitos do previsto no n.º 1 do art. 358º do C. P. Penal, tendo também sido comunicado que incorreria este coarguido na prática, não de um crime de furto na forma consumada, mas sim na prática de um crime de furto na forma tentada, resultando assim também uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação publica, até menos gravosa atenta a moldura penal aplicável, tudo nos termos do disposto no art. 358º, n.º 3 do C. P. Penal.
8- Não obstante ter o agora recorrente pedido prazo para defesa, não requereu a produção de qualquer prova testemunhal ou documental ou pericial, apenas tendo junto um requerimento onde se insurgiu quanto a tais alterações.
9- Compulsado o recurso pode ler-se que o arguido não nega a prática dos factos, até porque foi através das suas impressões digitais que o mesmo foi identificado, alega sim, pelo menos na parte mais relevante do alegado, que como não foi determinado concretamente o valor dos dois televisores LCD que existiam no estabelecimento em causa, não poderá afirmar-se que o respetivo valor excedia a unidade de conta.
10- Esquece-se, por um lado, que há que juntar o valor monetário que o arguido confessou ter subtraído (80 ou 90 euros juntamente com as duas gavetas do sistema de faturação POS), aos dois televisores em causa e que até se visualizam nas fotografias, que estavam em bom estado de conservação, sendo que um deles chegou mesmo a ser retirado do seu suporte tendo sido abandonado no chão do pavimento, pelo que o valor tem de ser sempre superior a uma unidade de conta, e não pode esquecer-se o modo como o arguido teve acesso ao interior do estabelecimento (após partir o vidro da porta de entrada com um paralelo).
11- Não vislumbramos, pois, a existência de erro na apreciação da prova e insuficiência da prova produzida, estando verificados todos os elementos probatórios que conduzem à verificação de todos os elementos típicos do crime pelo qual o recorrente foi condenado, pelo que não pode ser absolvido.
12- Verifica-se que quanto à determinação da medida da pena, ela foi efetuada dentro dos limites definidos pela lei e em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, e de acordo com o disposto no art. 71º do Código Penal.
13- Assim, quanto à escolha da pena (de prisão suspensa na sua execução com regime de prova), verifica-se que foi a mesma valorada nos termos do disposto no art. 71º do Código Penal, pelo que não foi violado o disposto nos arts. 70º e 71º, ambos do Código Penal, tendo sido tido em consideração o disposto no art. 50º, n.º 1 do C. Penal, razão pela qual a pena de prisão aplicada foi suspensa na sua execução com regime de prova, tudo melhor fundamentado a fls. 119v.º a 121.
14- Por outro lado, está bem justificada na sentença a razão pela qual não foi aplicado a este arguido o regime penal especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, uma vez que o mesmo tinha antecedentes criminais revelantes (condenado pela prática de um crime de furto qualificado, de dois crimes de condução sem habilitação legal, de um crime de furto simples e de um crime de atentado à segurança e transporte rodoviário), tudo melhor descrito no seu CRC e a fls. 121 e v.º.
15- Também se encontra bem justificada na sentença a razão pela qual não lhe pode ser aplicado o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, uma vez que nos presentes autos o arguido foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, com regime de prova, situação que pelo disposto no art. 3º, n.º 2, al. d) da referida Lei afasta a sua aplicação.
16- Consideramos que a pena em que este coarguido foi condenado não é excessiva, desajustada, desproporcional nem injusta, tendo sido tidas em consideração as suas condições pessoais e sócio económicas, bem como o seu enquadramento familiar e a sua idade, que militaram a seu favor, tendo militado em desfavor, o grau de ilicitude dos factos que foi considerado mediano, a sua culpa, e os seus antecedentes criminais que incluem a prática de crimes contra o património.
17- Consideramos que a pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período, com regime de prova, é uma pena justa e adequada ao caso concreto.
18- Nenhuma crítica pode ser efetuada à sentença aqui posta em crise, quer a nível da fundamentação de facto quer a nível da fundamentação de direito, atentos os factos dados como provados, estando devidamente fundamentado o elenco das várias circunstâncias que relevaram, in casu, para efeitos da escolha e da medida concreta da pena que foi aplicada ao
arguido AA.
19- O decidido é justo e equitativo.
20- A sentença recorrida não violou qualquer preceito legal ou constitucional, antes tendo efetuado uma correta aplicação do direito aos factos.
Nestes termos e face todo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida, assim se fazendo inteira JUSTIÇA.
*
I.4
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17611740) referindo, além do mais, que a sentença recorrida padece de nulidade por insuficiência de fundamentação, quanto ao facto constante de 2, porquanto, lida a respetiva motivação, não se alcançam os fundamentos para a atribuição de um valor de, pelo menos, € 102,00, para os televisores LCD.
Mais se refere no parecer em análise que a sentença enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, considerando, por um lado, a insuficiente descrição dos televisores LCD e, por outro, a redação do ponto 2 dos factos provados, equivoca mas que seria possível concretizar por forma a que, apuradas as caraterísticas dos televisores LCD e o respetivo valor, se pudesse aquilatar do valor global do furto.
No mais aponta-se a correção do decidido.
*
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência e influência preclusiva:
a) Da nulidade da sentença
b) Dos vícios decisórios
c) Do erro de julgamento
d) Da adequação da escolha e da medida da pena
(i) – a aplicação do regime dos jovens delinquentes
(ii) – a aplicação do perdão
*
III.
Apreciando.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se, por um lado, o teor do despacho proferido na sessão da audiência de julgamento de 13.07.2023 e que procedeu à comunicação de alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica destes e, por outro, o teor da sentença recorrida no que concerne à respetiva fundamentação de facto:
(…)

DESPACHO
Nos presentes autos, o arguido AA foi acusado da prática, em co-autoria material com indivíduo cuja identidade não se conseguiu apurar, na forma consumada e com dolo direto, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal.
Da prova produzida em audiência de julgamento, fundamentalmente do depoimento prestado pela testemunha DD, em conjugação com as declarações prestadas pelo arguido, poderá resultar, eventualmente, indiciada a concretização fáctica de factos que já se encontravam descritos na acusação pública, nos seguintes termos:
(…)
2.º
Uma vez nesse local, o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham quantia concretamente não apurada, mas não superior a 100,00 euros em dinheiro, e tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede – estes dois televisores de valor não concretamente determinado, mas seguramente superior a 102,00 euros – não o tendo conseguido fazer.
(…).
O supra exposto não configura alteração substancial aos factos que se encontravam já descritos na acusação pública, mas mera concretização de alguns desses factos. Tais concretizações, por si só, não têm por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (art. 1.º, alínea f), a contrario, do Código de Processo Penal).
Pelo exposto, comunico a referida alteração não substancial dos factos descritos na acusação nos termos e para os efeitos do n.º1 do art. 358.º do Código de Processo Penal.
*
Da leitura dos factos assim descritos na acusação pública, remetendo-se, a este propósito, para a aludida peça processual, para a qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzida, poderá resultar eventualmente que o arguido incorrerá na prática, em co-autoria material com indivíduo cuja identidade não se conseguiu apurar, na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 a 3, 73.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal.
Resulta, assim, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública.
Em face do exposto, comunico a referida alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 3 do art. 358.º do Código de Processo Penal.
Notifique.
*
Do despacho que antecede foram todos os presentes notificados.
*
(…)
II. Fundamentação da Facto:
2.1. Factos Provados:
Discutida a causa e com relevância para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1) Entre a 1h00 e a 1h20 do dia 26 de outubro de 2019, o arguido, em comunhão de esforços e vontades com uma pessoa cuja identidade não foi possível apurar, dirigiu-se ao estabelecimento comercial “A...”, sito na Rua ..., em ..., Maia, e, aí chegado, após partir o vidro da porta de entrada com um paralelo, acedeu ao respetivo interior.
2) Uma vez nesse local, o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham quantia concretamente não apurada, mas não superior a 100,00 euros em dinheiro, e tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede – estes dois televisores de valor não concretamente determinado, mas seguramente superior a 102,00 euros – não o tendo conseguido fazer.
3) Ao agir da forma supra descrita, o arguido e o indivíduo que o acompanhou atuaram segundo plano comum previamente traçado, de modo livre e consciente, com o propósito de fazerem seus os bens de valor que naquele estabelecimento se encontrassem, não obstante bem saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que estavam a agir contra a vontade do respetivo proprietário.
4) Sabiam igualmente que não estavam autorizados a forçar a abertura da porta e a aceder ao interior do estabelecimento comercial, o que não os impediu de atuar como o descrito.
5) O arguido tinha ainda a plena consciência que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
6) Por sentença proferida em 11.04.2019, transitada em julgado em 21.05.2019, no proc. n.º 719/16.4PBVLG, o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo art. 204.º do Código Penal, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 6,50€, perfazendo o total de 910,00€ - por factos praticados em 08.12.2016. A referida pena de multa foi declarada extinta, pelo pagamento, em 15.09.2021.
7) Por sentença proferida em 07.01.2021, transitada em julgado em 27.05.2022, no proc. n.º 596/20.0GAMAI, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, perfazendo o total de 600,00€ - por factos praticados em 21.06.2020.
8) Por sentença proferida em 24.05.2021, transitada em julgado em 28.03.2022, no proc. n.º 50/20.0PDMAI, o arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art. 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, perfazendo o total de 500,00€ - por factos praticados em 18.07.2020. A referida pena foi declarada extinta em 16.09.2022, pelo pagamento.
9) Por sentença proferida em 01.10.2021, transitada em julgado em 02.11.2021, no proc. n.º 1244/19.7GAMAI, o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203.º, n.º 1, do Código Penal, e pela prática de um crime de atentado à segurança de transporte rodoviário, previsto e punido pelo art. 290.º, n.º1, alínea d), do Código Penal, na pena única de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, perfazendo o total de 1.080,00€ - por factos praticados em 17.11.2017.
10) O arguido vive com a companheira e com o filho com menos de 1 ano de idade. Contribui com cerca de 150,00€ para as despesas domésticas.
11) O arguido trabalha na construção civil auferindo o salário mínimo nacional.
12) Não tem quaisquer bens.
13) O arguido tem, como habilitações literárias, o 6.º ano de escolaridade.
14) O arguido é pessoa de modesta condição social e económica, respeitadora e respeitada, quer profissionalmente, quer no meio onde está inserido, tendo ultrapassado, em 2019, período difícil de consumo de drogas.
*
2.2. Factos Não Provados:
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer factos para além dos que, nessa qualidade, se descreveram acima e/ou que os factos tiveram outras consequências ou motivações para além das supra descritas.
*
2.3. Motivação:
Em termos gerais, a prova produzida foi apreciada à luz do disposto no art. 127.º do Código de Processo Penal, ou seja, segundo as regras de experiência e da lógica comum e a nossa livre convicção.
Em audiência de julgamento, com exceção da quantia monetária subtraída descrita em 2), o arguido AA confessou/admitiu as condutas que adotou e assim se mostram descritas em 1) a 5), referindo tratar-se de um período de tempo muito difícil associado ao consumo de haxixe e cocaína e que afirma ter terminado no ano de 2019.
Nas sessões de audiência de julgamento que tiveram lugar nestes autos, este Tribunal procurou apurar concretamente o valor das quantias e objetos descritos na acusação pública. Das declarações prestadas pelo arguido apenas foi possível extrair que este tem convicção (não confundida com a certeza) de que terá ficado com metade da quantia monetária subtraída, que acredita ser, no total, de 80,00€. Questionado sobre se o outro indivíduo que o acompanhou terá ficado com metade desse valor, não logrou afiançar com total certeza que assim tenha sucedido.
Os depoimentos prestados pelas testemunhas BB e CC não revelaram conhecimento da quantia monetária subtraída.
Somente a testemunha DD conseguiu esclarecer que seria essa quantia não superior a 100,00€, o que assim se considera demonstrado no aludido ponto 2).
Estando ainda demonstrado que o arguido e um outro individuo tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede, não o tendo conseguido fazer; a análise desse facto conjugadamente com as mais elementares regras de experiência comum, impõe que se conclua que estes dois televisores de valor não concretamente determinado, teriam, à data da prática dos factos, valor seguramente superior a 102,00 euros.
As condenações averbadas no certificado de registo criminal do arguido foram transcritas para a factualidade considerada demonstrada, nos pontos 6) a 9); assim como foram dadas como provadas, relativamente à situação pessoal e socioeconómica do arguido, as circunstâncias descritas nos pontos 10) a 14), mercê das declarações que o arguido pronta e espontaneamente prestou a esse propósito em audiência de julgamento, inexistindo razões para que se duvide da veracidade das mesmas, conjugadas com o depoimento prestado pela testemunha EE, tia da companheira do arguido.
Dos autos não constam quaisquer documentos que, por si só ou complementados com os depoimentos prestados, permitam responder de forma diferente à matéria de facto em causa e nenhum elemento probatório foi colhido nos autos que lograsse afastar ou infirmar a convicção assim criada.
(…)

III.2
Da nulidade da sentença
III.2.1
Natureza da comunicação efetuada ao arguido e da completude da fundamentação da decisão de facto:
Refere o Digno Procurador-Geral Adjunto, no seu Parecer, que a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação.
Embora a existência do vício apontado não faça parte do objeto do recurso, da forma como o recorrente o definiu, o certo é que, ante a posição do Exmo. Procurador e o entendimento, por nós sufragado, de que aquelas nulidades são de conhecimento oficioso, passamos a conhecer da questão.
Não obstante e prévia a esta, outra questão se coloca também (não versada expressamente nas conclusões mas aí aflorada, por remissão para o corpo da motivação - conclusões III a IV e alegação 6 a 9) e cuja abordagem servirá para estabilizar conceitos e enquadrar a apreciação global da sentença posta em crise.
Em concreto, falamos da natureza da alteração não substancial comunicada ao arguido.
Em pormenor.
Lida a sentença recorrida, no seu ponto III (Enquadramento Jurídico-Penal dos Factos) ali se exarou, na parte relevante para a questão a abordar:
(…)
Ao arguido vem imputada a prática, em coautoria material com indivíduo de identidade não apurada, na forma consumada, com dolo direto, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203.º, n.º1 e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), do Código Penal. (…).
Com efeito, no caso concreto, dando-se aqui por integralmente reproduzidos os factos provados através da presente sentença, estes apenas podem consubstanciar a prática do crime de furto qualificado, mas somente na sua forma tentada (cf., a este propósito, despacho através do qual se procedeu a comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública), pelos motivos que a seguir se expõem. (…).
De facto, resultou demonstrado que o arguido, em comunhão de esforços e vontades com uma pessoa cuja identidade não foi possível apurar, dirigiu-se ao estabelecimento comercial “A...” e, aí chegado, após partir o vidro da porta de entrada com um paralelo, acedeu ao respetivo interior.
Uma vez nesse local, o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham quantia concretamente não apurada, mas não superior a 100,00 euros em dinheiro, e tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede – estes dois televisores de valor não concretamente determinado, mas seguramente superior a 102,00 euros – não o tendo conseguido fazer.
Como acima já se referiu, de acordo com o disposto no n.º 4 do mesmo art. 204.º do Código Penal, “Não há lugar à qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor”, ou seja, aquele que não exceder 1 UC (102,00€) – cf. art. 202.º, alínea c), do Código Penal e, no caso concreto, o arguido e o indivíduo que o acompanhava retiraram e levaram duas gavetas que continham quantia não superior a 100,00 euros em dinheiro.
Este segmento fáctico conduziria, eventualmente, à imputação ao arguido de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203.º, n.º1, do Código Penal, por não haver lugar à qualificação nos termos do n.º 4 do mesmo art. 204.º do Código Penal em razão do diminuto valor.
Contudo, nos termos do n.º 3 do art. 203.º do Código Penal, “O procedimento criminal depende de queixa”.
Inexiste queixa.
Por conseguinte, sem necessidade de maiores considerações, impõe-se a absolvição do arguido AA relativamente à prática, em coautoria material com indivíduo de identidade não apurada, na forma consumada, com dolo direto, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203.º, n.º1 e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), do Código Penal.
*
Reabrindo a audiência de julgamento, este Tribunal proferiu despacho, entendendo que “Da leitura dos factos assim descritos na acusação pública, remetendo-se, a este propósito, para a aludida peça processual, para a qual se remete e que aqui se dá por integralmente reproduzida, poderá resultar eventualmente que o arguido incorrerá na prática, em coautoria material com indivíduo cuja identidade não se conseguiu apurar, na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 a 3, 73.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal”.
Apesar da discordância manifestada de modo expresso pela defesa do arguido através do requerimento que antecede, o decidido pelo referido despacho foi mantido.
Com efeito, resulta demonstrado nestes autos que o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede – estes dois televisores de valor não concretamente determinado, mas seguramente superior a 102,00 euros – não o tendo conseguido fazer. Ao agir da forma supra descrita, o arguido e o indivíduo que o acompanhou atuaram segundo plano comum previamente traçado, de modo livre e consciente, com o propósito de fazerem seus os bens de valor que naquele estabelecimento se encontrassem, não obstante bem saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que estavam a agir contra a vontade do respetivo proprietário. Sabiam igualmente que não estavam autorizados a forçar a abertura da porta e a aceder ao interior do estabelecimento comercial, o que não os impediu de atuar como o descrito. O arguido tinha ainda a plena consciência que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
Verificam-se assim preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos do tipo incriminador sob análise, inexistindo quaisquer de exclusão da ilicitude e/ou de justificação.
Resulta, assim, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública.
Assim, arguido AA é condenado pela prática, em coautoria material com indivíduo cuja identidade não se conseguiu apurar, na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 a 3, 73.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal.
(…)
Ante as alterações efetuadas quanto à redação dos factos que constavam da acusação e quanto à qualificação jurídica dos mesmos, com defluência importante no resultado líquido do julgamento (a não ter sido efetuada a alteração o arguido seria absolvido, ante a “desqualificação” do crime de furto por funcionamento do contratipo do valor diminuto) importa ter presente que um dos princípios constitucionais estruturantes do nosso sistema processual penal é o da acusação (art.º 32.º, n.º 5 da C.R.P.) considerando-se, na sua génese, que a imparcialidade e objetividade, conjuntamente com a independência próprias da função de julgar, só poderão estar asseguradas se a entidade que julga e decide for distinta daquela que, a montante, exerceu funções de investigação preliminar e acusação, distinguindo-se desta e liberta para julgar dentro dos limites pré-definidos por aquela [cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1988, pág. 99].
Como decorrência e implicação do sobredito princípio, a acusação (ou a pronúncia) define e fixa, perante o Tribunal de julgamento, o objeto do processo, o núcleo factual sobre o qual incidirá a produção de prova, colocando as devidas estremas nos poderes de cognição do Tribunal. A este efeito, denominado vinculação temática, se agregam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e o da consunção que, em efeito útil, se traduzem na afirmação de que o objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ou equivalente pronúncia até ao trânsito em julgado da sentença e deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (de forma unitária e indivisível) e, quando o não tenha sido, deve considerar-se decidido [cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1968, pág. 199 e Eduardo Correia, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, pág. 29].
A matriz acusatória e a vinculação temática associadas à identificação da amplitude e extensão dos poderes de cognição do Tribunal de julgamento são, também elas, o garante da estabilização do feito introduzido em juízo (e que mais adiante se entroncam nos limites do caso julgado e na proibição do ne bis in idem) e conferem conteúdo útil aos direitos de defesa do arguido na execução do exercício pleno e eficaz do contraditório. Perante a imputação de determinados factos com relevância criminal, carece o arguido de conhecê-los (bem como a qualificação jurídica proposta) por forma a organizar convenientemente a sua defesa, na certeza de que não será surpreendido com a imputação de factos distintos.
Em síntese e como referem Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto [Direito Processual Penal I, Objeto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado (texto introdutório), F.D.L. 2001, pág. 17] “(…) A estabilidade, identidade, indivisibilidade e consunção do objeto do processo são condições essenciais para garantir o direito de defesa, o princípio da acusação e a estrutura acusatória do processo penal. Desses aspetos depende ainda a efetivação do contraditório, o respeito pelo caso julgado e a aferição da litispendência, bem como o respeito pela proibição da dupla condenação pelo mesmo crime. (…)”.
Reafirmando-se a ideia de que, definido o objeto do processo, o Tribunal não deve, em regra, poder considerar quaisquer outros factos ou circunstâncias que possam fazer perigar a defesa que o arguido estruturou, esta mesma manifestação do princípio do acusatório não se transmuta numa completa impossibilidade de alteração do objeto do processo. Na verdade, a conformação prática dessa garantia pode envolver, em contraponto, razões ponderosas de eficácia do processo penal, de descoberta da verdade e, até, de estabilização da paz do arguido perturbada com a sujeição a procedimento de natureza criminal e, eventualmente, a um estatuto coativo limitador (com natural interesse na finalização do procedimento) que potenciem e venham a permitir a modificabilidade daquele objeto que, assim, não se constitui numa realidade imutável. As garantias de defesa não se esboroam se o pedaço de vida sujeito a julgamento puder sofrer adaptações, desde que se processem no seio de um processo justo e equitativo que garanta um efetivo direito ao contraditório, na concretização das variações que da apontada plasticidade possam advir e que, a final, se proíba o ne bis in idem.
Decompondo e exemplificando.
Se, por princípio, é desejável que os factos que delimitam o objeto do processo, no caso plasmados no despacho de acusação, se mantenham nuclearmente inalterados e, a final, provados ou não provados de acordo com a prova produzida e prontos para a subsunção ao Direito, nem sempre tal é possível ou sequer desejável.
Por um lado, não sendo o nosso sistema processual penal de estrutura acusatória pura, embora com caraterísticas de subsidiariedade, vigora também intrassistematicamente o princípio da investigação ou da verdade material, com concretizações nos art.ºs 154.º, n.º 1, 164.º, n.º 2, 174.º, n.º 3, 288.º, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, 340.º, 348.º, n.º 5 e 354.º do C.P.P., nos termos do qual o Tribunal (ainda que sob a égide do objeto do processo) investiga o facto sujeito a julgamento ou elementos conexos relevantes, independentemente dos contributos da acusação ou da defesa e na prossecução da verdade material. Nesta medida e com este fito, os factos efetivamente apurados podem diferir daqueles que, com virtudes estáticas, constavam da peça processual delimitadora do objeto do processo.
Por outro lado e sendo a recolha de informação indiciária - e sua qualificação como violadora de normas merecedoras de tutela jurídico-penal, enformada na delimitação do objeto do processo – coligida em fases preliminares do processo, mediante a produção de prova que terá de ser reproduzida e valorada em audiência, não raras vezes, por ação do processo de degradação da memória própria dos processos mnemónicos, pela recusa legítima em depor, pela indisponibilidade, em audiência, de determinado meio de prova ou por ação do princípio do contraditório pleno que vigora nesta fase, o processo de relato e reconstrução da verdade, a afirmação do efetivamente acontecido, pode não reproduzir, ipsis verbis, o que constava da acusação ou equivalente e, assim sendo, esta realidade inevitável não pode constituir escolho ou regra inultrapassável (como parece defender o recorrente) que, no limite, paralise a eficácia do processo penal, os interesses públicos que prossegue ou a consecução de uma efetiva descoberta da verdade.
Os factos desconformes à lei penal que, no relato do pedaço de vida, irão subsumir-se aos elementos típicos podem, no decurso do processo, sofrer alteração, quer por não demonstração parcial ou total, quer por ação contraditória, quer pela aquisição de novos conhecimentos não disponíveis (por inépcia ou sem culpa) nas fases preliminares que, a final, irão defluir numa realidade reconstruída do sucedido, com a eventual emergência de novos factos não constantes da acusação. Não sendo nada de raro ou novo, a própria lei acomoda a possibilidade (ou impossibilidade) desses novos factos poderem ser considerados pelo Tribunal, tematicamente vinculado como vimos, e agregados na sentença. Essa nova realidade ou o alcance da diferença (por referência ao que configurava o objeto do processo), pode constituir alteração substancial (art.º 1.º, al. f) do C.P.P.), seguindo o regime do art.º 359.º do C.P.P., ou não substancial, neste caso com observância do estatuído no art.º 358.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.
Mesmo quando não haja qualquer alteração factual, não sendo a qualificação jurídica dos factos vinculativa para o Tribunal de julgamento, mas entendendo-se que aquela constitui um dos tópicos para a organização e estruturação da defesa, aplicar-se-á o regime da alteração não substancial no caso de alteração daquela qualificação, conforme expressamente prevê o n.º 3 do art.º 358.º do C.P.P..
Aqui chegados entramos, ainda que forma perfunctória, na temática da identidade do facto para - considerado o que a montante constava da acusação e o que, a jusante, resultou da prova produzida em julgamento - poder aferir da existência de uma alteração e da sua substancialidade. Assim e consoante a posição que se adote sobre a identidade do objeto do processo, a sua eventual transformação poderá assumir um valor distinto na equação.
Assim, dependendo do sufrágio da tese naturalística, (com expoente na doutrina nacional personificado pelo Prof. Cavaleiro Ferreira), da corrente normativista, (defendida, entre outros, pelo Prof. Eduardo Correia) ou da corrente da valoração social do comportamento, da imagem social deste, (maioritária e aqui sufragada, com expressão doutrinária no Prof. Figueiredo Dias, o facto é componente de um determinado pedaço de vida que corporiza o objeto do processo), o resultado é diverso, sendo que, à luz deste último critério, a identidade ou diversidade do crime é aferida de acordo com valoração social daquele evento.
Ainda assim e aqui chegados, além das variáveis assinaladas, importa reter que na exposição dos factos a constar da acusação ou da pronúncia, apenas se exige uma narração sintética dos que fundamentam a aplicação, ao arguido, de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (art.ºs 283.º n.º 3, al. b) e 308.º, n.º 2, do C.P.P.). Ora, este preceito não exclui que, no decurso do julgamento e até por ação da defesa, aqueles factos se completem, pormenorizem ou se degradem em termos de riqueza de pormenor e individualização, ação que, nem sempre, defluirá na constatação da existência de crime diverso – pois podemos falar no mesmo pedaço de vida – ou numa alteração (não substancial) de factos, podendo, inclusivamente e numa terceira via, a plasticidade que a realidade comporta acomodar alterações de pormenor que não impliquem prejuízo para o arguido ou a necessidade de mobilização do regime previsto no art.º 358.º do C.P.P.. A resposta pode, efetivamente, ser casuística.
Exemplificando.
Se, num caso de homicídio, da acusação (ou equivalente) constar um critério largo que afirme que o arguido praticou o facto determinante da morte no dia x, entre as horas z e y e, da prova produzida em audiência resultar que o facto ocorreu nesse mesmo dia x e à hora h (em concretização daquela indefinição ou critério largo), estamos a falar do mesmo pedaço de vida, a cogitar na base da existência do mesmo crime (sendo que, como todos os ofendidos neste tipo de crime, só se morre uma vez) com o mesmo agente. Para o arguido, se a sua defesa assentar na negação absoluta e na afirmação da impossibilidade de comissão do crime porquanto, no dia x indicado, não se encontrava em território nacional e, por isso, com a natural impossibilidade de execução do evento, a concretização assinalada poderá ser irrelevante em termos de tutela dos direitos de defesa. Se, por hipótese, a defesa se estrutura na circunstância de entre as horas z e y, não se encontrar em condições de poder praticar o facto mas, à hora h, agora determinada, não dispor de alibi, então aquela concretização, nascida da produção de prova em audiência, já poderá ser relevante para a defesa, com a necessidade de concessão de prazo para o exercício do contraditório.
É importante, pois, percecionar se se tratam, efetivamente, de factos novos e, na afirmativa, se importam numa alteração substancial relativamente ao constante da pronúncia, com a imputação de crime diverso ou o agravamento das sanções aplicáveis, ou não substancial, com o exercício do contraditório ou, ainda, se se trata do recondicionamento da redação originária perante a concretização de imprecisões, pormenorização ou a não prova de elementos do pedaço de vida em causa, sem necessidade de comunicação. Neste sentido pode ler-se no acórdão desta Relação de 12.01.2011 [proc. n.º 208/07.8TACDR.P1, Rel. Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt] “(…) há uma razão lógica e substantiva para o legislador impor a comunicação da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia e a alteração da qualificação jurídica dos mesmos: está em causa, fundamentalmente, assegurar elementares direitos de defesa do arguido, evitando que ele seja surpreendido com uma condenação por factos que não constavam da acusação (ou pronúncia) ou suportada por uma qualificação jurídica distinta da que nela constava. A própria Lei ressalva que a comunicação só tem lugar se a alteração tiver “relevo para a decisão da causa” e se não tiver “derivado de factos alegados pela defesa” [n.º 1 e 2 do citado art.]. Compreende-se: tanto num caso como no outro, a alteração (dos factos ou da sua qualificação jurídica) não tem uma repercussão negativa na estratégia de defesa do arguido”.
No mesmo sentido pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.11.2021 [proc. n.º 509/16.4GCVIS.C1, Rel. Paulo Guerra, acedido em www.dgsi.pt] “(…) É esse interesse de salvaguarda dos direitos de defesa do arguido que justifica a imposição da comunicação, não sendo algo de formal ou automático. Como já alguém rezou, «na constante procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal – mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos – e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa vinga a leitura atenta e racional da Lei que dê sentido útil à afirmação dos direitos consagrados e eficácia ao sistema processual implantado». Deste modo, há que ser razoável na leitura dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal - como se concluiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/99: “(…) erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa (...)”. (…) Tem-se, de facto, entendido, com alguma margem de consenso, que a comunicação do artigo 358º/3 do CPP, apenas se efectuará quando se tratar de uma modificação relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa [Ac. T. C. n.º 330/97 (DR II 1997/Jul./03), 387/2005, (DR II 2005/Out./19); Ac. STJ de 1991/Abr./03, 1992/Nov./11, 1995/Out./16, 2006/Abr./06 (BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt, CJ II(S), 161).”.
Retendo todo o exposto não parece insofismável que, por força do princípio do acusatório, a sentença esteja vinculada a dar como provados ou não provados os factos talqualmente constavam do despacho de acusação, numa incontornável rigidez, sob pena de nulidade.
Dito isto, não podemos perder de vista que a realidade e todos os fatores que condicionam e influenciam a produção de prova não podem obstaculizar - antes devem viabilizar - soluções jurídicas que não frustrem inexoravelmente a reposição da paz jurídica afetada pela comissão de um crime, ou impossibilitem o exercício do jus puniendi do Estado [cfr. Marques Ferreira, Da Alteração dos Factos Objecto do Processo, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I, abril-junho 1991, pág. 224] ou que ignorem as expectativas das vítimas, criando-se compromissos que, em conformação de direitos, mantenham concomitantemente as garantias de defesa do arguido em níveis compatíveis com a existência de um processo justo e equitativo. Por isso e em tese, a alteração de factos é possível. Deve é obedecer a regras e só no caso de novos factos não autonomizáveis, que impliquem a imputação de crime diverso, ou a agravação dos limites máximos das sanções abstratamente aplicáveis é que, na falta de acordo, ficará definitivamente arredada a possibilidade de consideração dos mesmos, contra o arguido, no mesmo ou noutro processo a instaurar.
Revertendo ao caso em apreço.
Dispõe o art.º 379.º, n.º 1, al. b) do C.P.P. que é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos art.ºs 358.º e 359.º.
A acusação, na sua versão originária, continha o seguinte facto, sob o n.º 2:
“Uma vez nesse local, o arguido e o indivíduo que o acompanhava, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham cerca de 200,00€ em dinheiro e tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede, não o tendo conseguido fazer.”.
Na sentença, mercê da comunicação previamente efetuada, passou a constar o seguinte, também sob o n.º 2 dos factos provados:
“Uma vez nesse local, o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham quantia concretamente não apurada, mas não superior a 100,00 euros em dinheiro, e tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede – estes dois televisores de valor não concretamente determinado, mas seguramente superior a 102,00 euros – não o tendo conseguido fazer.”.
Entre as duas redações temos, pois, um elemento concretizador da identidade do comparticipante mas insuficiente para a sua cabal identificação - “conhecido pela alcunha de FF” – a degradação, por não prova, do montante subtraído – “quantia concretamente não apurada, mas não superior a 100,00 euros” – e a afirmação originária de um valor a atribuir aos televisores LCD – “de valor não concretamente determinado, nas seguramente superior a 102,00 euros”.
Do confronto efetuado é para nós pacífico que não estamos perante factos que, para efeitos do art.º 1.º, al. f) do C.P.P. impliquem a imputação de crime diverso ou o aumento do limite máximo das sanções abstratamente aplicáveis (a alteração não substancial de factos define-se por exclusão de partes sendo, portanto, aquela que não tiver por efeito os acabados de referir e em que subsista a relevância para a decisão da causa).
Diferentemente entenderá o recorrente afirmando que em audiência lhe foi imputado um “novo crime” com a correspondente qualificação jurídica e cumulativamente ao previamente imputado e pelo qual foi absolvido. Porém, salvo o devido respeito, assim não sucede, decorrendo o afirmado, certamente, a partir de equívoco que possa ter sido gerado pela redação da peça decisória na compartimentação das “duas” imputações e que, a final, pode ter causado a impressão no destinatário de que se tratariam de dois crimes ou realidades diversas ou autónomas.
Explicitando.
No caso, temos uma mesma perceção social do facto, um mesmo pedaço de vida. Apenas se verificou um assalto cometido no estabelecimento comercial “A...”, sito na Rua ..., ocorrido entre a 1h00 e a 1h20 do dia 26 de outubro de 2019, perpetrado pelo arguido e por comparticipante, em união de esforços e intenções, com intrusão no espaço através do arremesso de um paralelo, pretendendo aqueles agentes fazerem seus os objetos que se encontrassem naquele estabelecimento, sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que estavam a agir contra a vontade do respetivo proprietário.
Para além da já firmada conexão espácio-temporal das realizações típicas em que se materializaram a subtração e a tentativa de subtrair (esta frustrada, não por arrependimento ou desistência mas por facto contrário à vontade: - o não terem conseguido trazer os televisores que estavam fixados na parede), temos uma unidade resolutiva e um único sentido de desvalor do ilícito. Temos, a final, um só crime. A ação desenvolvida correspondeu à materialização de uma só vontade e com incidência na violação de um mesmo bem jurídico – o furto de bens existentes no estabelecimento – pese embora e naturalisticamente a concretização do evento passe pela interação com os vários objetos disponíveis, inexistindo tantos furtos quantos os bens concretamente objeto de apropriação.
No caso vertente, porém, o desenvolvimento da ação produziu dois resultados distintos: – um crime de furto qualificado pelo arrombamento e desqualificado pelo diminuto valor, consumado, atinente aos valores monetários e um crime de furto qualificado pelo arrombamento, não desqualificado e não consumado, tendo por objeto dois televisores LCD. Quando assim sucede temos, em tese, uma relação de concurso aparente sendo que, tratando-se de um dos casos típicos de subsidiariedade implícita, a punição se faria tendo em conta o crime consumado e desconsiderando estádios intermédios ou embrionários do mesmo crime, como a tentativa [cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2.ª Ed., pág. 999].
Porém, no sentido de prevenir disfunções, no caso de a pena aplicável ao crime consumado (em regra prevalente) ser inferior à do crime tentado (que seria em princípio de desconsiderar nos sobreditos termos), como também sucede nos casos de consumpção impura, seria aqui de reter a moldura mais grave da tentativa de furto qualificado e a conduta seria punida tendo por referência o crime qualificado tentado, em manifestação de uma relação de alternatividade [na expressão de Muñoz Conde/Mercedes Garcia Arán, Derecho Penal – Parte General, 4.ª Ed, Tirant lo Blanch, Valencia 2000, pág. 541].
No caso em apreço e em manifestação da hipótese supra referida, a (re)qualificação dos factos não tem, na sua base, alteração dos factos mas, tão só, a mudança do elemento definidor relevante, recentrando-se na ação tentada que já constava da acusação. Também a concretização e acrescento ao valor dos LCD não configura a imputação de um “novo” crime em cumulação e concurso efetivo com o anterior, caso em que haveria alteração e duplamente substancial, quer pela imputação de novo e diverso crime, quer pelo agravamento das sanções aplicáveis. O que sucedeu, no caso, foi que a ação originária atribuída ao arguido contemplava a imputação de um crime de furto qualificado consumado, tendo por referência a subtração de dinheiro em valor superior a € 200,00, referindo-se, também, na descrição da ação completa, que o arguido havia tentado subtrair os dois televisores existentes, não tendo conseguido, sendo esta conduta desprezada enquanto realidade relevante ante a consumação do furto. Porém, porque os objetos efetivamente subtraídos (cuja consumação “consumira” a tentativa de subtração) eram de valor diminuto, desqualificando o furto, então deveria considerar-se a moldura aplicável à conduta desconsiderada na qualificação jurídica (mas narrada factualmente na acusação) da tentativa, porquanto o respetivo objeto não sendo, na ótica do Tribunal, de valor diminuto, deveria reorientar a qualificação jurídica operante para o mesmo “pedaço de vida”.
Assim sucedeu nos autos sem que a sua concretização traduza, reforça-se, uma alteração substancial dos factos e cuja consideração implique a nulidade da sentença nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. b) do C.P.P.
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Aqui chegados e retomando a possibilidade da existência de nulidade por falta de fundamentação.
Dispõe o art.º 379.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., que “É nula a sentença: (a) que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374º (…).
Por sua vez e visto o preceito destinatário da remissão operada, sob a epígrafe Requisitos da sentença, verifica-se que a fundamentação de facto daquela peça se divide em duas componentes: (i) a enumeração dos factos provados e não provados, e a (ii) exposição concisa dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Decompondo este inciso legal, a peça decisória deve expor o porquê da opção tomada na matéria em apreço, dando a conhecer as razões pelas quais foram valoradas ou não valoradas as provas, a forma como foram interpretadas, explicando os motivos que levaram o julgador a considerar uns meios de prova credíveis e outros nem tanto, numa exposição lógica e fundamentada dos critérios utilizados na apreciação que efetuou.
Porquê?
Dispõe o art.º 205.º da C.R.P. que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei cumprindo-se, por esta via e em regra, duas funções [cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 55/85, disponível em www. tribunalconstitucional.pt]: - Uma, de ordem endoprocessual, que visa impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da sua própria decisão, permitindo ulteriormente às partes – face à decisão assim proferida - exercitar o direito ao recurso, designadamente no questionamento do raciocínio expresso pelo julgador e facilitando, ao Tribunal de recurso, na sua atividade sindicante, a construção de um juízo concordante ou divergente.
A outra função, já de ordem extraprocessual, possibilita o controlo externo e geral sobre a fundamentação lógica e jurídica da decisão visando, nas palavras de Michele Taruffo, garantir a transparência do processo e da decisão [vd. Note sulla garantizia constituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV (1979), pág. 29 e ss.].
Também o art.º 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, ao proclamar que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo pressupõe, quanto à equitatividade, um efetivo direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição da discriminação e a obrigação de diferenciação que o princípio da igualdade, decorrente dos art.ºs 13.º da C.R.P. e 14.º da C.E.D.H. também impõem.
A jurisprudência do T.E.D.H. valoriza o direito à motivação, como decorrência do direito a um processo justo e equitativo que o art.º 6.º da C.E.D.H. afirma, transportando para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a função estadual punitiva, com natural efeito na concordância prática a operar quanto aos interesses em confronto, já que a liberdade pessoal é um valor supremo que apenas poderá ser comprimido como consequência da prática de um facto com relevância criminal, cujo substrato demonstrativo se sedimentou, mediante um procedimento contraditório e garantístico, em resultado do qual se erigiu a verdade processual, desejavelmente próxima da verdade ontológica.
Nesta sequência, a descoberta da verdade não é um valor absoluto, porquanto aquela verdade terá que ser objetivável e motivada, obtida a coberto de uma noção de fair trail compatível com a preservação da integridade constitucional de um Estado que se funda sob o axioma ético da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.
O dever de fundamentação é, assim, uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático e um instrumento, pela sua probidade, de legitimação da decisão judicial e potenciador de um efetivo direito ao recurso.
Em poucas palavras e trabalhando sobre a ideia expressa por André Teixeira dos Santos [A imparcialidade do juiz de julgamento, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2021-I] o juiz, depois de convencido, terá, por via da fundamentação, que convencer os destinatários próximos e a comunidade e se estiver em causa – como no caso sucede – uma sentença condenatória, não podem sobejar dúvidas sobre as razões de facto e de direito pelas quais se condena e em que medida se condena.
Revertendo ao caso em apreço.
Os valores e princípios que acabamos de expor e os requisitos expressos no art.º 374.º, n.º 2, do C.P.P., - conferindo substância ao constitucionalmente exigido dever de fundamentação e à correspetiva possibilidade de sindicância através do recurso – deverão fazer com que o destinatário da obrigação de motivação – o julgador - através da análise decomposta, combinada e crítica dos meios de prova que considerou, dê a conhecer o seu processo interno de valoração e de formação da convicção, a vulgarmente denominada “análise crítica da prova”, permitindo, na sua concretização, que o arguido conheça o critério e método seguidos e a razão pela qual determinados factos se provaram e outros não. Numa palavra, a forma como foi percecionada e interpretada a prova que deu arrimo à realidade reconstruída na sentença.
Quanto a nós e adiantando a resposta, esse desiderato foi minimamente conseguido e o resultado apresentado é percetível e habilitante desse desvendar do iter interno, acomodando a efetivação do direito ao recurso.
A demonstração do cumprimento do proclamado dever de fundamentação está na circunstanciada discussão, glosa e afirmações de contundente dissídio que o recorrente dirige ao critério do julgador, não porque o não tenha percebido, mas, tão só, porque não se conforma com o (critério) adotado, com as razões que foram elencadas para afirmar a realidade de um facto, desconsiderando outros possíveis argumentos de sinal contrário. O arguido, na motivação do seu recurso, questiona, essencialmente, o critério adotado para a atribuição de valor aos televisores LCD, não porque aquela justificação tenha sido omitida, mas, antes, porque não a considera válida, correta ou suficiente. Só que tudo isto transporta-nos para outro plano – da impugnação da matéria de facto – a analisar ulteriormente infra.
Relativamente à suscetibilidade de determinada afirmação ou critério aferidor poder (no caso considerou-se o facto de o arguido ter desenvolvido esforços para arrancar da parede e levar consigo os dois televisores, no sentido do apelo exercido por esses objetos indicadores que teriam valor venal e, ainda, a invocação das regras da experiência comum para situar o valor desses objetos num patamar superior a € 102,00) ou não sustentar ou concorrer para a comprovação de factos ou núcleos factuais são questões que podem ser contestadas pelo destinatário. Só que isso é o património da impugnação da matéria de facto e pressupõe, logicamente, o cumprimento a montante, pelo menos num patamar mínimo, do dever de fundamentação.
Questão diversa é a de saber se tal fundamentação, excluindo as hipóteses prevenidas no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., é suficiente, coerente, se faz sentido ou se a valoração se legitima de acordo com o conteúdo concreto das provas produzidas e concordante com as regras da lógica e da experiência. Contudo, aqui entramos noutro fundamento do recurso – erro de julgamento – a apreciar infra. Isto é, se o julgador, na sua atuação legítima de livre apreciação e face aos elementos de prova existentes, teve razões para assim decidir é questão que não se prende com a ausência de motivação, mas, antes, com o mérito e qualidade de tal motivação.
Em resumo.
Nos termos dos art.ºs 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2 do C.P.P. o acórdão seria nulo se não contivesse, inter alia, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos que fundamentaram a decisão de facto, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.
Ora, a sentença recorrida contém os sobreditos elementos não sendo, com o fundamento invocado, nula. Se o resultado extraído da valoração da prova é correto, incorreto ou se foram valorados elementos que deveriam ter sido desconsiderados, subvalorizados ou sobrevalorizados outros, é questão diversa da propalada nulidade da sentença por falta ou insuficiência de fundamentação. Só a evidente falta de fundamentação – e não uma fundamentação incompleta, insuficiente, questionável, mas ainda assim percetível – constitui nulidade.
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III.3
Dos vícios decisórios
Alega o recorrente a existência de erro na apreciação da prova dada a inexistência de prova quanto ao valor dos LCD existentes no estabelecimento.
Também o Sr. Procurador neste Tribunal ad quem convoca a existência de vícios decisórios, em concreto a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, al. a) do C.P.P.).
Vejamos da existência dos repontados vícios considerando que o escrutínio da sua eventual existência é oficioso.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado, simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, no caso revertendo ao crivo referencial de um jurista médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
De igual sorte, aponta-se a ocorrência de erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pág. 61 e ss.].
Trata-se, no caso, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág. 74], não se verificando se a discordância resulta apenas da forma como o tribunal aprecia a prova produzida, por desconforme àquela que, na ótica do recorrente, deveria ter sucedido.
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Revertendo ao caso em apreço e começando pela questão da insuficiência sugerida e apontada pelo Sr. Procurador e que oficiosamente compete apreciar.
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
Não obstante, tal vício ocorrerá, não só quando se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito - seja quanto ao preenchimento de qualquer tipo legal, circunstância qualificativa ou outra relevante na escolha e medida da pena, com necessário déficit na matéria de facto fixada para sustento da decisão – mas, também, quando o tribunal recorrido, podendo e devendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante e que fazia parte do objeto do processo definido pela acusação, defluindo na constatação de que a matéria dada por assente não permite, por insuficiente, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação.
Revertendo ao caso vertente e tendo por objeto a acusação, o Tribunal apreciou todos os factos dela constantes e, analisado o teor da decisão, da mesma constam os factos necessários à aplicação do Direito ao caso, designadamente o valor encontrado para os televisores LCD que o arguido terá tentado subtrair. Nesta medida não podemos afirmar, lido o texto da decisão, que da mesma não constam factos essenciais necessários à ulterior subsunção.
O que nos parece poder existir – e salvo melhor opinião e o necessário respeito - transportar-nos-á para a avaliação das provas que sustentam a decisão de facto, que é coisa diversa. Existe uma convicção, manifestada nos reparos assinalados de que o Tribunal, na sua atividade de compromisso com a descoberta da verdade, deveria ter ido mais além, deveria ter esgotado outros meios de prova disponíveis para sustentar aquela mesma decisão, ao nível do exaurimento de diligências probatórias que poderiam ser úteis para um cabal esclarecimento da verdade. Contudo, e sem questionar essa necessidade, não nos parece que a apontada falta corresponda ao vício da insuficiência da matéria de facto. A matéria de é suficiente para a decisão de Direito tomada. O que se pretendia era que ela “existisse” de outra forma, mais sustentada. No fundo aponta-se o equivalente à preterição de diligências úteis para a descoberta de “outra verdade” ou a construção de uma fundamentação de facto mais sólida ou completa.
No entanto os factos dados por provados são, em si mesmo, os necessários para a decisão de direito e, neste conspecto, não padece a decisão do vício decisório da insuficiência. Questão diversa é se a prova efetivamente produzida é suficiente para a comprovação desses mesmos factos e tal questão remete-nos para a qualidade da fundamentação, para a apreciação do mérito do decidido, campo em que estamos delimitados pelo objeto do recurso e não pelas virtualidades que reconhecemos ao douto parecer.
Dito de outra forma.
Se a redação originária da acusação – onde nem constava o valor a atribuir aos LCD – foi suficiente para o preenchimento dos requisitos a que alude o art.º 283.º, n.º 3 do C.P.P., também os factos constantes da sentença (aos quais foi encontrado o valor que a julgadora, de acordo com a livre apreciação que fez da prova produzida, acrescentou àqueles bens) dotam-na da suficiência necessária ao afastamento do vício decisório proclamado.
Outras diligências que fossem reputadas de úteis ou essenciais poderiam ter sido desenvolvidas, oficiosamente ou a requerimento dos sujeitos processuais, incluindo o Ministério Público, ao abrigo do estatuído no art.º 340.º do C.P.P., mas no momento próprio da produção de prova e antes do encerramento da audiência. Aliás a descrição e avaliação dos objetos poderia, inclusivamente, ter sido efetuada em sede de Inquérito, porventura o momento ideal para o efeito.
A não se entender assim e sempre que questionada a suficiência e adequação da produção e valoração da prova produzida em julgamento, em sede de impugnação alargada, pondo em causa a consistência e verosimilhança do critério do julgador e a consistência das provas valoradas para o arrimo dos factos assentes, seria possível afirmar-se, a montante, o putativo vício da insuficiência. A decisão que fixou os factos poderia ter sido distinta se, a montante, o Tribunal tivesse produzido outras provas, colocado outras questões às testemunhas, convocado outras para depor. Só que aqui questiona-se, não a suficiência dos factos provados para sustentar a decisão de direito mas, antes, a “qualidade” das provas e a sua suficiência para a decisão de facto firmada, não se contestando, em contraponto (como seria essencial para o vício decisório em causa) a suficiência dos factos assentes e alinhados para a decisão de direito. No fundo o que está em causa é o mérito e a qualidade da atividade valorativa e do julgamento e a consistência da fundamentação, o que se prende, já, com o erro de julgamento. De outra forma e a coberto do vício da insuficiência, permitir-se-ia a diluição do momento do encerramento da discussão e a realização de “novos” julgamentos parcelares para a devida (na ótica do interessado) comprovação ou exaurimento de provas atinentes a factos que já constavam, na primitiva decisão, do elenco dos factos julgados provados e não provados (e daí a não verificação do vício da insuficiência).
Não queremos dizer com isto que não fosse correto ou desejável que da sentença (e, muito antes, da acusação) não devesse constar, se possível, uma identificação mais consistente dos aparelhos de LCD (marca, modelo, medida de ecrã, estado de conservação e funcionamento). Contudo e para o preenchimento do tipo e para a suficiência da decisão não se trata de elementos descritivos essenciais cuja falta produza o vício da insuficiência. O que o Ministério Público do Tribunal ad quem defende é que deveriam ter sido desenvolvidas diligências para melhor aquilatar e fundamentar o valor atribuído aos bens. Só que aqui, reitera-se, questiona-se, antes, a (in)suficiência das provas para a demonstração de um facto e não a ausência ou insuficiência do facto em si.
Quanto à al. b), lido o texto da decisão, também não são evidentes quaisquer contradições que deem suporte à existência de vício decisório.
Resta então o vício prevenido na al. c).
No caso sub judice, embora o recorrente faça referência a erro na apreciação da prova de forma algo genérica, adjetival e defluente do que, grosso modo, considera incorretamente julgado, ou seja, não isola qualquer passagem concreta da decisão de onde resulte evidente, do texto da mesma, a existência de vício e retendo que a questão da existência (ou não) de erro enquanto vício decisório não se assume ante mera discordância quanto à opção tomada pelo Tribunal recorrido sobre a prova produzida, importa olhar em pormenor o texto da decisão.
Sabemos que erro notório na apreciação da prova é a classificação a dispensar a falha ostensiva na análise da prova, que não passa despercebida ao comum dos observadores com habilitação, que não necessita de explicação para se notar existente.
Sabemos, também, que o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…) valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação e afirmar-se-á a correção do decidido.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar - o Tribunal – porque descomprometido com o interesse dos sujeitos processuais.
Aqui chegados, afirmou-se na decisão recorrida, neste particular, em sustento da prova do facto “de valor não concretamente determinado, mas seguramente superior a 102,00 euros” que: - “Estando ainda demonstrado que o arguido e um outro individuo tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede, não o tendo conseguido fazer; a análise desse facto conjugadamente com as mais elementares regras de experiência comum, impõe que se conclua que estes dois televisores de valor não concretamente determinado, teriam, à data da prática dos factos, valor seguramente superior a 102,00 euros.”, acrescentando-se, a final, que “Dos autos não constam quaisquer documentos que, por si só ou complementados com os depoimentos prestados, permitam responder de forma diferente à matéria de facto em causa e nenhum elemento probatório foi colhido nos autos que lograsse afastar ou infirmar a convicção assim criada”.
Começando pela última referência transcrita, dos autos não consta qualquer exame ou avaliação dos bens em causa (televisores LCD), por forma a aferir das suas caraterísticas concretas (sendo que, no momento, dado o tempo decorrido e a sua entrega ao proprietário, dificilmente se possibilitaria um exame com caraterísticas de fidedignidade e com a certeza de que se tratariam, indiscutivelmente, dos mesmos bens a avaliar e por forma a reconstituir do seu valor concreto à data dos eventos). O próprio responsável pelo estabelecimento, convocado ao abrigo do estatuído no art.º 340.º do C.P.P., não conseguiu atribuir valor nem identificar o quantitativo subtraído da caixa.
Assim e retomando, o único elemento alinhado para a atribuição de valor aos aparelhos (além da evidencia de que o arguido e acompanhante tentaram retirá-los do espaço) funda-se na invocação, pela julgadora, das “mais elementares regras da experiência comum”.
Ora, quanto a nós, salvo o devido respeito, não há nenhuma regra da experiência comum que permita concluir, com certeza, que dois aparelhos LCD tenham um valor superior a € 102,00. Desconhece-se qual a largura de ecrã, se estavam em condições de funcionamento, qual a marca, idade, estado de conservação, sendo o LCD uma tecnologia já ultrapassada (pelo menos pelo LED, que se generalizou). Poderiam ter um valor bem superior ao afirmado, como poderiam ter um valor venal insignificante.
As regras da experiência não são meios de prova. São, na verdade, raciocínios, hipóteses, assentes na experiência comum, alcançáveis a qualquer pessoa com um nível de formação geral e que são independentes dos casos individuais, permitindo ao julgador, pela sua constante verificação, aplicá-las ao caso concreto onde, por afirmação de um princípio de normalidade, necessariamente também nesse caso serão válidas. Permite-se, assim, ao julgador, fundar presunções naturais, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes a uma realidade que, por ser reiterada e de verificação frequente, se tornou regra e padrão seguro de que, também no caso concreto, também assim se ocorrerá.
Retendo este conceito e por aquilo que se disse, não haverá uma tal regra que permita concluir que todos os LCD, independentemente do seu estado, modelo, tipo, condições de funcionamento, têm determinado valor mínimo para se concluir, como no caso sucedeu, que aqueles em particular, específica e concretamente, valeriam mais de € 102,00.
Destarte não poderia considerar-se tal valor como demonstrado já que, quanto a nós, as provas disponíveis não o permitiam, sendo esse uso erróneo de uma putativa regra de experiência extraível do texto da decisão recorrida.
Paralelamente, afirmando-se o julgador em dúvida, porque confessadamente desprovido de qualquer meio de prova existente nos autos conducente a um valor concreto, a superação daquele estado de incerteza por recurso a uma putativa regra da experiência não demonstrável constitui, na sobrepassagem da dúvida, uma violação do princípio in dubio pro reo (princípio que nos escusamos de caraterizar dada a sua pacificação), concluindo por valor que permite, em prejuízo do arguido, a manutenção da qualificativa do furto tentado. O valor a atribuir a determinado bem não pode alicerçar-se em indemonstrada regra de experiência ou confundido com a noção de facto notório, com maior premência e relevância quando não foram apuradas circunstâncias que permitam uma quantificação aproximada e segura que respeite o princípio da legalidade penal. Decidindo-se o contrário, aquela afirmação do valor resulta in pejus dos interesses do arguido e refratária da relevância material do sobredito princípio.
Estamos perante um princípio geral do processo penal relativo à prova da questão de facto. Na ausência de prova segura quanto ao valor dos bens, não pode a decisão de facto assumida desfavorecer a posição do arguido. Como refere o Professor Figueiredo Dias [in Direito Processual Penal, volume I, pág. 213] "um non liquet na questão da prova - não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão - tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo".
Conforme se exarou e decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.06.2020 [proc. n.º 658/17.1PZLSB.L1.S1, Rel. Clemente Lima, disponível em www.dgsi.pt] “No plano em que o princípio in dubio pro reo se reflecte sobre o julgamento da matéria de facto levado nas instâncias, o STJ (enquanto tribunal de revista) só pode censurar o julgado (i) quando, a partir do texto da decisão (por si ou em conjugação com as regras da experiência comum), seguindo o iter decisório no cotejo da motivação da convicção (art. 374.° n.º 2, do CPP), conclua que, diante de um estado de dúvida (aquém da razoável) sobre a culpabilidade do arguido, o Tribunal recorrido decidiu em desfavor deste, ou (ii) quando a conclusão probatória levada pelo Tribunal recorrido se materializa numa decisão contra o arguido, insuficientemente suportada (de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido) pelos elementos probatórios em que (explicita e pontualmente) assentou a convicção.…” (destaque nosso)
Ora e quanto a nós foi precisamente isso que sucedeu. O Tribunal assentiu quanto à existência de indeterminação (dúvida) quanto ao valor dos objetos sobre os quais incidiram os atos de execução da furto. Afirmou a existência de elementos corroborantes, existentes nos autos, para a sobrepassagem desse estado de incerteza. Decidiu invocando “regra de experiência” não demonstrável e, consequentemente, inexistente, defluindo na existência de erro, no caso notório e determinado a partir dos próprios argumentos alinhados no corpo da decisão recorrida.
A existência de erro notório só determina o reenvio se não for possível decidir da causa, ainda que com modificação da matéria de facto (art.º 426.º, n.º 1 e 431, al. a) do C.P.P.). Ora, quanto a nós, é possível a este Tribunal ad quem decidir.
Fazendo-o, a desconsideração do valor, incorretamente determinado, por força do disposto no n.º 4, do art.º 204.º do C.P., deflui em que não possa haver lugar à qualificação do ilícito, devendo ser considerado, por defeito, o conceito de diminuto valor [cfr., neste sentido, acórdãos desta Relação de 15.04.2009, proc. 081758, Rel. Manuel Braz e de 29.04.2009, proc. 89/06.9PAVCD.P1, Rel. Ernesto Nascimento, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.06.2012, proc. 330/10.3GDPTM.E1, Rel. João Amaro, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.06.2010, proc. 246/09.6GBLLE.S1, Rel. Henriques Gaspar].
Efetivamente, a norma do n.º 4 do art.º 204.º do C.P. consubstancia, nas palavras de José Faria Costa [Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra 1999, pág. 87] um contratipo, um pressuposto negativo da aplicação da norma incriminadora. Se o valor da coisa furtada não exceder o da unidade de conta “não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
Assim, para que alguém possa ser condenado por um crime de furto qualificado (no caso pela circunstância constante da al. e) do n.º 2) é não só necessário que se demonstrem os factos que integram a previsão da respetiva circunstância qualificativa, mas também que dos mesmos resulte que o valor dos objetos furtados é superior à UC.
Destarte e afirmado o vício decisório que afeta o segmento do ponto 2 dos factos provados atinente ao valor dos televisores este, em concordância com os argumentos por nós alinhados, deverá transitar para os factos não provados e, como defluência lógica, impossibilitando a subsistência do segmento decisório que condenou o arguido pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 203º, nºs 1 e 2, 204.º, n.º 2 al. e), 22º, 23º, nº 2, e 73º, nº 1, als. a) e b), do C.P., por ilegitimidade do MP para exercer a acção penal, ante a ausência de queixa e como já fora decidido pelo Tribunal a quo na parte consumada do furto.
A esta conclusão não obsta a argumentação desenvolvida pelo Ministério Público na resposta ao recurso e reforçada no parecer apresentado neste Tribunal de que, ao valor dos televisores somar-se-ia o da importância monetária subtraída excedendo, assim, o valor da UC.
Na verdade, provou-se em 2 que o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham “quantia concretamente não apurada, mas não superior a € 100,00 euros”. Só que “quantia concretamente não apurada, mas não superior a € 100,00 euros”, como nota o Sr. Procurador, é qualquer importância indeterminada que se situe entre € 0,01 e € 100,00, mantendo-nos no estado de dúvida quanto ao valor global do furto, consumado ou tentado aqui acrescentando que – como resulta da motivação da decisão de facto – o arguido não confessou ter subtraído, pelo menos, € 80,00. Afirma a julgadora que esse valor foi avançado por convicção mas “não confundida com certeza” pelo que não pôde assumir esse patamar mínimo na decisão de facto.
Assim e em síntese, deixa de fazer sentido a punição, após requalificação jurídica, em concurso aparente, do furto consumado com o tentado. Este último, por reporte ao furto simples, seria “consumido” pelo furto perfetibilizado e sem possibilidade de punição autónoma por força da subsidiariedade já analisada supra e, quanto àquele, já o Tribunal a quo se pronunciou, considerando que o Ministério Público, por ausência de queixa, não teria legitimidade para o exercício da ação penal, o que conduziu a uma decisão de mérito de absolvição.
Vejamos.
Nos termos do art.º 48.º do C.P.P. o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art.ºs 49.º a 52.º do mesmo diploma.
Consagra a referida norma o princípio da oficialidade segundo o qual a iniciativa de investigar a prática de uma infração e a decisão de a submeter a julgamento cabe a uma entidade pública, estadual [Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 60] que, nos termos do art.º 219.º, n.º 1 da C.R.P. corresponde ao Ministério Público a quem compete, então, por indicação constitucional, o exercício da ação penal.
Não obstante a consagração de tal princípio, a sobredita norma constitucional não atribui o exclusivo da ação penal ao M.P. ou, dito de outra forma, não exclui a existência de crimes semipúblicos ou particulares (art.ºs 113.º e 117.º do C.P.) em que a sua legitimidade está condicionada à apresentação de queixa e, no último caso, de dedução de acusação.
Do exposto resulta que, relativamente aos crimes de natureza pública, cabe ao M.P. promover o processo penal (art.ºs 48.º, 53.º, n.º 2, al. a) e 276.º, n.º 1 do C.P.P.).
Já quanto aos crimes de natureza semipública (cujo procedimento criminal depende de queixa) o princípio da oficialidade sofre desvios, sendo necessário que o titular do interesse que a lei quis proteger por via da incriminação se queixe (tempestivamente), ou seja, exige-se, numa manifestação do princípio da oportunidade, que o titular daquele interesse dê conhecimento ao M.P. (ou a qualquer entidade que tenha o dever legal de o transmitir) da intenção (inequívoca) de que seja instaurado procedimento criminal para que possa promover o processo (art.º 49.º do C.P.P.). “Sem esse impulso processual adicional, a mera notícia do crime será irrelevante, não podendo o M.P. per si exercer a ação penal. O Estado outorga ao titular daquele interesse o poder de decidir se o facto deve ou não ser apreciado (…)” [João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Coimbra, 2019, pág. 513].
Ora, no caso, quer se trate de crime de furto (simples), consumado ou tentado, a verdade é que assume natureza semi-pública (art.º 203.º, n.º 3 do C.P.P), dependendo a legitimidade do Ministério Público de queixa que, no caso, inexistiu.
Por todo o exposto, quer porque, tratando-se de tentativa de furto simples, a ação perde autonomia no âmbito da imputação do crime consumado para cujo procedimento inexistiu queixa e se absolveu, no Tribunal a quo, o arguido quer porque, a considerar-se a nova qualificação proposta e comunicada em primeira instância o crime (na forma tentada) se tem por desqualificado, transmutando-se em crime de furto simples na forma tentada (sem preexistência de queixa que legitime o procedimento), a condenação do recorrente não pode persistir.
Ficam natural e logicamente prejudicada a apreciação dos restantes argumentos recursórios.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do arguido AA e, em consequência, decidem:
(i) alterar a matéria de facto constante de 2 dos factos provados, que passará a ter a seguinte redação: - “Uma vez nesse local, o arguido e o indivíduo que o acompanhava, conhecido pela alcunha de “FF”, retiraram e levaram duas gavetas do sistema de faturação POS, que continham quantia concretamente não apurada, mas não superior a 100,00 euros em dinheiro, e tentaram ainda arrancar e levar dois televisores LCD que se encontravam fixados na parede – estes dois televisores de valor não concretamente determinado – não o tendo conseguido fazer.”
(ii) aditar aos factos não provados o seguinte facto: - “A) Os televisores referidos em 2 tinham um valor superior a € 102,00”;
(iii) revogar a sentença recorrida na parte, constante do respetivo dispositivo sob as alíneas b), c) e d) em que condenou o recorrente pela prática, em coautoria material, na forma tentada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo disposto nos arts. 22.º, n.ºs 1 e 2, 23.º, n.ºs 1 a 3, 73.º, n.ºs 1 e 2, 203.º, n.º1, e 204.º, n.º2, alínea e), por referência ao art. 202.º, alínea d), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano e 2 (dois) meses, acompanhada de regime de prova e, bem assim, a condenação daquele no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça devida em 3 (três) UC.
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Sem tributação (art.º 513.º, n.º 1 do C.P.P.)
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Porto, 21 de fevereiro de 2024
José Quaresma
Paula Guerreiro
Lígia Figueiredo