Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2629/22.7T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
CONSEQUÊNCIAS
Nº do Documento: RP202301182629/22.7T8VFR.P1
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – A cassação de título de condução ocorre como efeito automático e necessário da perda total de pontos.
II – Não constitui uma nova condenação pela prática dos mesmos factos - crimes de condução em estado de embriaguez -, pelo que não se mostra violado o princípio ne bis in idem.
III – Não sendo uma pena, mas uma mera decisão administrativa, não é possível a sua suspensão, atenuação ou substituição, que carecem de suporte legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2629/22.7T8VFR.P1


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I. RELATÓRIO
Nos presentes autos o arguido AA deduziu impugnação judicial da decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) que determinou a cassação de licença de condução de que é titular.
Realizada audiência de julgamento foi proferida decisão que julgou improcedente a impugnação e manteve a decisão da autoridade administrativa.
Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso.
Termina com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Tendo o arguido cumprido já as penas acessórias a que foi judicialmente condenado de inibição de conduzir, pelo período total de 9 meses, está a ser-lhe aplicada, com base na mesma factualidade, uma dupla penalização, ou seja, a cassação agora comunicada ao arguido, e a proibição de conduzir que já havia cumprido, e ainda a proibição de conduzir, agora, por um período de mais dois anos, o que é legalmente inadmissível;
2. A aplicação da medida de segurança de cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, também prevista no artigo 101º. do Código Penal não pode ser aplicada cumulativamente com a sanção acessória de inibição de conduzir a que o arguido foi já sujeito, conforme resulta expressamente da lei, sendo que tal proibição resulta, de forma expressa, do nº. 7 do art. 69.º do Código Penal, e estamos perante um concurso aparente ou concurso de normas;
3. Neste caso, o que acontece é que a norma prevista no art.º 69 do C.P. vê a sua aplicação condicionada pela não aplicabilidade de outra norma (101.º do CP), só se aplicando a norma subsidiária quando a outra não se aplique;
4. Se já foi aplicada a norma do artigo 69º. do Código Penal, não pode agora o arguido se objeto de cassação do título de condução e interdição da concessão do título de condução, que na prática tem o mesmo conteúdo da pena prevista no artigo 101º. do C.P., sendo que ambas impõem o mesmo comportamento ao arguido – a proibição de conduzir -, afetando os seus direitos de circulação rodoviária, pelo que ambas têm o mesmo conteúdo pragmático/funcional.
5. No caso em apreço o arguido já cumpriu 11 meses de inibição de conduzir e agora, na prática, pretende-se aplicar mais 24 meses da mesma pena (já que não poderá obter novo título por esse período), retirando-lhe o título de condução, pelo que terá de se concluir que a decisão de cassação do título de condução e o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos, e cumulativamente a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor que já lhe foi aplicada, prevista no art. 69º do mesmo diploma, viola a norma prevista no nº. 7 do referido artigo 69.º do Código Penal.
6. Caso assim não se entenda – o que apenas se admite por hipótese de raciocínio - sempre se mostram verificados os pressupostos para que seja decretada uma redução do período para obter novo título de condução, ou então, um desconto do período já cumprido anteriormente pelo Arguido (11 meses).
7. Tendo como pressuposto que às contra-ordenações se aplicam subsidiariamente as normas do Código Penal, na verdade, na prática a aplicação agora ao arguido da decisão de cassação da carta e do impedimento de obter novo título pelo período de dois anos configura uma nova aplicação da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de dois anos (a somar à pena que já cumpriu de 11 meses), exatamente pelos mesmos factos, o que configura claramente uma violação do princípio ne bis inidem;
8. A interpretação do artigo 148º. nº. 2 do C.E. (que estabelece que “A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.), aplicado juntamente com a alínea c) do nº. 4 do mesmo artigo (que estabelece que “A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.”), juntamente com o nº. 10 do mesmo artigo (que estabelece que “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”), e ainda com o nº. 11 do mesmo artigo (que estabelece que “A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação”.), no sentido de que pode ocorrer aquela “cassação automática do título de condução” e inibição de poder conduzir durante dois anos, quando o arguido tenha cometido dois crimes rodoviários (tendo sido já sancionado e cumprido por cada um dos crimes, a inibição de conduzir em que foi condenado, e sem que àquele período de dois anos seja descontado pelo menos o período já cumprido de inibição de conduzir ínsito nas condenações penais), é inconstitucional por violação do nº. 5 do artigo 29º. da C.R.P. (que estabelece que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”) e por violação do nº. 4 do artigo 30º. da C.R.P. (que estabelece que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos) e do artigo 18º. nº. 2 da C.R.P. que estabelece que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
9. Na prática o que se verifica é que as penas aplicadas ao arguido nos processos criminais - em que foi condenado em multas e na sanção acessória de inibição de conduzir, que cumpriu já integralmente -vieram a envolver como efeito necessário a perda do seu direito civil de conduzir veículos automóveis pelo menos por dois anos e a perda do seu título de condução, o que não é admissível.
10. Um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo do crime aqui em causa, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do CP, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no CE se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta;
11. O artº 134º nº 1 do C.E., sob a epígrafe “concurso de infrações”, estatui que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação, e tal como já foi referido em vários acórdãos da Relação de Coimbra, nomeadamente, no rec. 232/13.1GBTCS.C1 de 8/01/2017 a disposição do n.º 1 do artigo 134.º do Código da Estrada não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção.
12. Há situações em que o mesmo facto constitui simultaneamente crime e contraordenação, por violação de regras de condução e normas que definem o respetivo quadro legal mas, perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo de crime, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da sanção acessória de inibição de conduzir prevista no Código da Estrada se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta (ac. cit).
13. É exatamente o que se verifica no caso em apreço, pois que o arguido já cumpriu a pena da sanção acessória de proibição de conduzir prevista na Lei Penal e a ser-lhe agora aplicada a sanção de não poder obter novo título de condução pelo período de dois anos, na prática estamos a falar da sanção acessória de inibição de conduzir por esse período, o que constitui violação daquele princípio ne bis in idem.
14. A nossa Constituição proíbe determinantemente no art.º 30.º, n.º4 que o cidadão perca direitos, seja qual for a sua natureza, como efeito necessário de uma pena. E o efeito necessário da pena é a perda definitiva e automática do título de condução e o impedimento de conduzir veículos durante dois anos, levando o arguido a perder o seu emprego, como se explicará.
15. A proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de 2 anos, o que igualmente contradiz um dos principais princípios do direito, assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator, e o que acontece aqui é pura e simplesmente aplicar-se, sem exceção, a mesma pena para todos, sem qualquer graduação, o que não poderá ser admissível e fere os mais elementares princípios de Justiça e de Direito.
16. A inibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º. nº. 1 do Código Penal e constante da norma do artigo 148º. nº. 11 do C.E., bem como a cassação do título de condução, assume a natureza de uma verdadeira pena e está associada à prática de um crime. e não obstante acessória, está, nessa qualidade, sujeita ao regime geral aplicável a qualquer pena, ou seja, pode ser suspensa na sua execução, ser substituída por pena alternativa ou ser especialmente atenuada ou agravada, como decorre do estabelecido no artigo 73°, nº. 2 do Código Penal, ou seja, é-lhe aplicável o regime estabelecido nos artigos 41 ° a 60°., e não poderia ser de outra forma, visando as penas a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - artigo 400, nº 1 do Código Penal - e na escolha da medida da pena deve ser tomada em consideração aquela que, em concreto, realizar de forma adequada e suficiente a finalidade da punição - artigo 70° do mesmo Código -devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime depuserem a favor do agente.
17. A aplicação da pena de cassação do título de condução e impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos pode, à semelhança da pena aplicável ao próprio crime, ser suspensa na execução, especialmente atenuada ou agravada e ainda ser substituída por medidas alternativas, designadamente de trabalho a favor da comunidade, o que sempre teria de ser determinado.
18. O arguido é uma pessoa séria, honesta e idónea e um trabalhador incansável, sendo encarregado de obras e responsável geral de uma empresa de construção e durante a semana realiza centenas de quilómetros, em deslocações de índole profissional para os vários locais onde se encontram as obras pertencentes à sua entidade patronal, para além das deslocações de sua casa para o emprego, fazendo uso da rede rodoviária em toda a sua extensão por força das suas obrigações profissionais, tendo de percorrer tais deslocações em viatura automóvel, sendo por todos conhecido como um condutor experiente e cauteloso, tendo carta de condução há muitos anos;
19. Quando ficou inibido de conduzir por um período de onze meses, o arguido atravessava um período muito difícil da sua vida pessoal, que lhe causavam fortes perturbações, o que, felizmente, está já ultrapassado, e quando lhe foi aplicada aquela inibição, o arguido esteve mesmo em risco de perder o seu emprego, pois que, na prática, as suas funções na empresa ficaram muito reduzidas, já que não se podia deslocar para as várias obras em curso e, para poder fazer aquelas deslocações, tinha de ser conduzido por outro funcionário da empresa, o que não era concebível nem suportável para a sua entidade patronal e daí que quando comunicou à sua entidade patronal a decisão de lhe ser cassado o título de condução e de ficar inibido para conduzir durante pelo menos dois anos, foi imediatamente informado de que, a vir a ser aplicada tal (nova) sanção, a empresa iria proceder ao seu despedimento, por não ter outro serviço para o arguido.
20. O arguido é o sustento da casa e tem a seu encargo a sua companheira, que está desempregada, e uma filha da mesma, de tenra idade, para além de uma filha de um seu anterior casamento, que é estudante e depende em exclusivo do auxílio financeiro do arguido, pelo que a manter-se a aplicada a cassação do título de condução e a impossibilidade de obtenção de novo título pelo período de dois anos, o arguido perderá o seu emprego e ficará sem qualquer fonte de subsistência, bem como o seu agregado familiar, que depende do arguido.
21. A reintegração do arguido, ou a sua socialização – enquanto finalidade da pena acessória como assinala o artigo 40.º, n.º 1, do CP -, se, por um lado, visa o respeito e a aceitação por parte do arguido das normas jurídico-penais a fim de evitar o cometimento de novos crimes no futuro – prevenção geral positiva -, por outro, a pena aplicada logrará atingir esse objetivo tanto mais quanto mantenha o arguido inserido num quadro pessoal, familiar e profissional que promova o respeito pela generalidade das normas penais e, sobretudo, dos bens jurídicos que aquelas visam proteger.
22. A decisão de cassação do título de condução e a impossibilidade de obtenção de novo título pelo período de dois anos, ainda que pudesse defender-se que assegura de forma plena os fins de prevenção geral (o que também se não concede), viola, por excessiva, desproporcional e desigual os fins de prevenção especial de reintegração do arguido na sociedade, pois o arguido necessita da carta de condução para o exercício da sua profissão e a sua perda levará a que perca o seu emprego e fique completamente sem fonte de subsistência, não sendo salvaguardada a reintegração do arguido na sociedade, como determinam os artigos 71.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
23. Ao ficar impedido de conduzir durante pelo menos dois anos, a decisão sob recurso está a retirar ao arguido o seu trabalho e o seu salário, o que terá inevitavelmente um efeito “dessocializador” - a nível profissional, familiar e pessoal -, fim repelido pelo nosso legislador penal (artigo 40.º e 71.º, n.º 1, ambos do CP).
24. Apelando novamente ao artigo 18.º. n.º 2 da C.R.P., por força dos princípios da proporcionalidade e da necessidade, a restrição de direitos deve limitar-se ao “estritamente necessário” para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo ainda a restrição ser apta para o efeito.
25. Estando em causa o direito ao trabalho do arguido - bem jurídico lesado pela aplicação da sanção comunicada ao arguido -, a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria irá implicar necessariamente um prejuízo real e irreversível para o arguido, tendo em conta que ficará impedido de exercer as suas obrigações para com a entidade patronal, ficando mesmo impedido de exercer as suas funções para as quais foi contratado, o que levará ao seu despedimento, sujeitando-se a uma pena maior, mais injusta e indesejada às finalidades das punições pelas quais foi já condenado, a do despedimento,
26. Pode ser decretada a suspensão da sanção acessória, nomeadamente de inibição de conduzir, isto porque, para além dos interesses que são sacrificados, pela aplicação da sanção acessória ao arguido, interesses esses mais importantes que aqueles que a sanção quer proteger, atendendo ao caso concreto, mais não seja, para além do risco profissional, o vexame causado perante a família, amigos e colegas de profissão, e nunca será demais referir, que qualquer sanção, ou pena, não pode envolver como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou até políticos, cfr. artigo 30º. nº 4 da Constituição da República Portuguesa e artigo 65º. nº. 1 do Código Penal.
27. A cassação do título de condução e o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos, tem como efeito imediato a perda de emprego por parte do arguido, pois, para exercício da sua profissão é imprescindível a carta de condução e, assim sendo, para além da perda do emprego, tal reflexamente repercute-se naqueles que dele dependem, o que desde logo extravasa por completo as finalidades de prevenção da perigosidade do agente inerente àquela sanção, sendo que, mesmo que algum impedimento de conduzir fosse de aplicar ao arguido, poderia cingir-se ao seu exercício durante os fins de semana, mas já não aos dias úteis, em que tem premente necessidade da carta de condução.
28. A decisão sob recurso, ao proibir o arguido de conduzir durante um período de pelo menos dois anos, impossibilita o arguido de trabalhar, pelo que é manifestamente desnecessária e desproporcional, e como tal inapta, pois elimina um outro direito fundamental, o do trabalho (do arguido), assegurado constitucionalmente nos termos dos artigos 58.º, n.º 1 e 53.º da CRP e, por isso, a interpretação daquelas disposições do C.E. referidos no artigo 24º. antecedente, quando interpretadas no sentido de que a aplicação das sanções previstas naquelas normas não são sujeitas a suspensão, redução ou substituição, mesmo quando ponham em causa o direito ao trabalho do arguido, é inconstitucional, por violação dos artigos 58º. nº. 1 e 53º. da C.R.P..
29. Deste modo, aquela decisão comunicada ao arguido sempre teria de ser revogada, ou em alternativa sempre teria de ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a um regime de prova do arguido, ou a sua aplicação reduzida apenas para os dias não úteis de trabalho, sempre descontando os dias de inibição de condução que o arguido já cumpriu, ou mesmo substituída por trabalho a favor da comunidade, a prestar aos fins de semana pelo arguido, o que já cumpre plenamente as finalidades da punição.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO DEVERÁ V.EXCIA DECLARAR O PRESENTE RECURSO POR PROCEDENTE POR PROVADA E POR CONSEGUINTE DEVERÁ DETERMINAR O ARQUIVAMENTO DA DECISAO DE CASSAÇAO DO TITULO DE CONDUÇAO.
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O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta, pugnando no sentido de que deve negar-se provimento ao recurso.
Termina com as seguintes conclusões [transcrição]:
I. A cassação administrativa do título de condução não é uma medida de segurança, mas uma sanção administrativa;
II. Ao contrário do preconizado pelo arguido não lhe foi aplicada a medida de segurança de cassação do título de condução prevista no art.º 101º do C.P. e, por isso, não é aplicável o disposto no art.º 69º, n.º 7 do C.P.;
III. Os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu n.º 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contraordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações; tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação e, por isso, não há violação do princípio ne bis in dem;
IV. Por se tratarem de institutos com natureza diversa (cassação administrativa do título de condução vs. pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor ou medida de segurança de cassação do título de condução), também não é possível qualquer redução do período de dois anos de cassação do título de condução, na medida em que na sua determinação não tem o Presidente da ANSR qualquer poder discricionário, trata-se antes de uma decisão vinculada, sendo certo que a lei também não prevê essa possibilidade;
V. Não é possível a suspensão de execução da cassação da carta de condução, a redução aos dias não úteis de trabalho ou substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade, porque a lei não o prevê;
VI. O art.º 148º do C.E. não é inconstitucional em nenhuma das suas possíveis dimensões, porque o direito de conduzir não é absoluto, o sistema de perda de pontos é gradual e progressivo permitindo a recuperação dos pontos ao longo do tempo desde que não ocorram novas infrações, a cassação da carta depende exclusivamente do comportamento estradal que o condutor assume e sopesando os valores em confronto (direito à circulação automóvel e direito à vida e integridade física) o normativo em causa não viola o princípio da proporcionalidade, nem os subprincípios da adequação e da necessidade;
VII. Por fim, admitindo-se que com a cassação do título de condução possa haver restrições ao desenvolvimento de uma concreta atividade profissional, já não se percebe como pode ser sustentada a afirmação de que o direito ao trabalho se mostra violado porque o recorrente não fica impedido de exercer uma atividade profissional, de socorrer-se a outros meios de transporte para o exercício da sua profissão ou de outra, existem interesses também constitucionalmente protegidos de valor superior a acautelar e a cassação da carta de condução vigora apenas por um determinado lapso temporal decorrido o qual o arguido sempre poderá voltar a obter novo título de condução;
VIII. Em suma, o Tribunal “a quo” não violou o disposto nos art.ºs 40º, 50º, 58º, 65º, 69º, 70º, 71º, 73º e 101º do C.P. nem o art.º 141º do Código da Estrada e o art.º 148º, n.ºs 2, 4, al. c), 10 e 11 do Código da Estada não é inconstitucional por violação dos art.ºs 18º, n.º 2, 29º, n.º 5, 30º, n.º 4, 53º e 58º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, deve o recurso interposto pela ora recorrente ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida.
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O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer.
Em síntese, aderindo à resposta apresentada na Primeira Instância, pronuncia-se no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.
Cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:

A) Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, coloca-se a questão de saber se a cassação do título de condução imposta ao recorrente deve ser afastada em face das circunstâncias concretas do caso e por violação do princípio da proporcionalidade.
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Decisão recorrida:
O recorrente invocou, em síntese, que a decisão de cassação do título de condução com o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos e, cumulativamente, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor que lhe foi aplicada nos termos do art. 69.º do Código Penal (CP), viola o disposto no art. 69.º, n.º 7 do CP. Destarte, ainda que assim não se entenda, sempre estão verificados os pressupostos para decretar uma redução do período para obter novo título de condução, ou então, o desconto do período já cumprido anteriormente pelo arguido.
Acresce que as penas acessórias aplicadas de inibição de conduzir pelo período de nove meses e a cassação da carta de condução, com uma nova inibição por dois anos, assentam nos mesmos factos, importando a violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5 da Constituinte da República Portuguesa (CRP).
No mais, a interpretação do art. 148.º do Código da Estrada (CE) no sentido de que pode ocorrer a cassação automática do título de condução e inibição de poder conduzir durante dois anos, quando o arguido tenha cometido dois crimes rodoviários, é inconstitucional por violação do art. 29.º, n.º 5, 30.º, n.º 4 e 18.º, n.º 2 da CRP.
E finalmente, a inibição de conduzir veículos com motor prevista no art. 69.º, n.º 1 do CP e no art. 148.º, n.º 11 do CE, bem como a cassação do título de condução, assume a natureza de uma verdadeira pena e está associada à prática de um crime. Assim, segundo entende, tal como qualquer pena, pode ser suspensa na sua execução, substituída por pena alternativa ou especialmente atenuada ou agravada, nos termos dos arts. 41.º a 60.º e 73.º, n.º 2 do CP. Por isso, atentas as circunstâncias do caso concreto que invoca, a sanção comunicada ao recorrente deve ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, ou a sua aplicação reduzida para dias não úteis de trabalho, ou substituída por trabalho a favor da comunidade.
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O recurso foi recebido, por legal e tempestivo, tendo o recorrente e o Ministério Público manifestado não se oporem à decisão por mero despacho.
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2 SANEAMENTO
O Tribunal é competente.
Não existem nulidades, exceções, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do objeto do processo.
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Não havendo oposição por parte da recorrente ou do Ministério Público, o Tribunal encontra-se habilitado a decidir por mero despacho.
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 Factos provados
Com interesse para a decisão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. AA é titular da carta de condução com o número ....
2. No processo n.º 489/18.1GCVFR do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2, por sentença proferida em 4 de janeiro de 2019 e transitada em julgado em 4 de fevereiro de 2019, o recorrente foi condenado pela prática, em 15 de dezembro de 2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.º, n.º 1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada pena acessória de proibição de conduzir por 3 meses.
3. No processo n.º 344/20.5GAVFR do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3, por sentença proferida em 14 de julho de 2020 e transitada em julgado em 29 de setembro de 2020, o recorrente foi condenado pela prática, em 28 de junho de 2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art. 292.º, n.º 1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada pena acessória de proibição de conduzir por 6 meses.
4. Cada uma das condenações referidas determinaram a subtração de 6 pontos na carta de condução do recorrente, no total de 12 pontos.
5. Por despacho proferido em 20 de janeiro de 2021, o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária determinou a instauração de processo de cassação de título de condução do recorrente, a que foi atribuído o n.º ....
6. Por despacho de 26 de janeiro de 2022, foi proferida decisão final a determinar a cassação do título de condução do recorrente, a qual lhe foi notificada.
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3.2 Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.
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3.3 Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova documental carreada para os autos, e de acordo com critérios de suficiência, coerência e razoabilidade.
O facto atinente à carta de condução do recorrente (facto provado em 1) ficou firmado no print da mesma e constante de fls. 4.
A identificação dos processos judiciais e as sentenças condenatórias em que foram aplicadas as penas acessórias de inibição de conduzir (factos provados em 2 e 3) ficaram sustentadas no teor de fls. 5 a 14.
O registo individual do condutor com indicação das infrações e consequências a nível de subtração de pontos na carta de condução (facto provado em 4) resultou do teor de fls. 1 a 2 dos autos.
E finalmente, quanto ao despacho que determinou a instauração do processo administrativo, a decisão da cassação do título de condução e a respetiva notificação ao recorrente (factos provados em 5 e 6) resultam do conteúdo de fls. 3, 37 a 41, 42 a 48 e 49 a 58.
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4 FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 ENQUADRAMENTO JURÍDICO
Face à matéria provada, importa proceder ao seu enquadramento jurídico.
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No Código da Estrada, desde as alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, vigora o sistema de carta de condução por pontos.
Conforme é consabido só pode conduzir veículo a motor na via pública ou equiparado quem tiver título habilitante (art. 121.º do CE).
No sistema vigente, inicialmente, “a cada condutor são atribuídos doze pontos”, podendo ocorrer circunstâncias que determinem o acréscimo ou subtração de pontos (arts. 121.º-A e 148.º do CE).
O art. 141.º do Código da Estrada, sob a epígrafe “sistema de pontos e cassação do título de condução”, no que para o caso releva, dispõe o seguinte:
“1 A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor. (…)
4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.(…)
10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.
12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações”.
Ora, a atribuição de carta de condução é conferida por entidade administrativa, “aos cidadãos que comprovem preencher os respetivos requisitos legais, sendo válidas para as categorias de veículos e pelos prazos legalmente estabelecidos” (art. 121.º, n.º 9 do CE).
Já quanto à manutenção do título de condução, o legislador optou por estimular certos comportamentos estradais mediante a atribuição de pontos; e desincentivar outros (em função da gravidade de certos ilícitos contraordenacionais ou penais) cominando-os com a subtração de pontos.
Na hipótese de serem subtraídos todos os pontos do condutor, o legislador fez cominar tal perda com a cassação da carta de condução (art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE), cuja decisão cabe a entidade administrativa, o Presidente da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária (ANSR).
Com o sistema de pontos instituído permitiu-se “à administração aferir se o titular da licença de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar dela” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-05-2018, processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, consultado em www.dgsi.pt).
Na verdade, o legislador introduziu “limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas atividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de atos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução; enquanto que a segunda (cassação) se traduz numa medida de segurança, também de caráter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorização/habilitação para conduzir, mas cujas condutas (…) vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09-05-2018, processo n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, consultado em www.dgsi.pt).
Daqui decorre, portanto, que o legislador fez atribuir um juízo ineptidão do condutor a quem seja subtraída a totalidade de pontos atribuídos, e por isso, determinou a cassação do título de condução respetivo.
Tecidas tais considerações, versemos sobre os concretos argumentos invocados na impugnação judicial da decisão administrativa.
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O recorrente alega que a decisão de cassação do título de condução com o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos e, cumulativamente, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor que lhe foi aplicada nos termos do art. 69.º do CP, viola o disposto no art. 69.º, n.º 7 do CP
Ora, no âmbito do direito penal, ocorrendo condenação por crimes relacionados com a condução de veículos, como seja o de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto no art. 292.º do CP, o arguido é condenado numa pena acessória de proibição de conduzir (art. 69.º, n.º 1 do CP). Esta pena acessória não é, no entanto, aplicável quando “tiver lugar a aplicação da cassação ou de interdição da concessão do título de condução nos termos do art. 101.º” (art. 69.º, n.º 7 do CP).
Por seu turno, o art. 101.º do CP, inserto na secção dedicada a “medidas de segurança não privativas de liberdade”, estatui que “em caso de condenação por crime praticado na condução de veículo com motor ou com ela relacionado, ou com grosseira violação dos deveres que a um condutor incumbe, ou absolvição só por falta de imputabilidade, o tribunal decreta a cassação do título de condução quando, em face do facto praticado e da personalidade do agente: a) houver fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie; ou b) dever ser considerado inapto para a condução de veículo com motor”.
Temos assim que, nos termos conjugados dos arts. 69.º, n.º 1 e 7 e 101.º do CP, pela prática de um crime relacionado com a condução de veículo, o arguido é condenado em pena acessória de inibição de conduzir, salvo quando o Tribunal entenda estarem antes preenchidos os pressupostos para decretar a cassação do título de condução e interdição de concessão do título de condução, mas enquanto medida de segurança.
Ou seja, com a condenação por tais crimes ou absolvição por falta de inimputabilidade, será aplicada pena acessória de inibição de conduzir ou a medida de segurança de cassação do título de condução (em face, além do mais, da perigosidade do agente).
Coisa diversa é a cassação do título de condução pela subtração da totalidade de pontos atribuídos a um condutor habilitado com título de condução.
Com efeito, a cassação determinada por tais motivos, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE, «não é uma medida de segurança penal, cuja aplicação dependa da verificação, em concreto, de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, para a condução, conforme previsto no artigo 101.º do Código Penal, mas uma medida administrativa que se “prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infração cometida” e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas contraordenacionais ou criminais, rodoviárias, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores um tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a Segurança Rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estradas» (acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20/10/2020, processo n.º 218/20.T8TMR.E1, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, a cassação do título de condução por perda dos pontos é uma consequência de natureza administrativa decretada pela entidade administrativa, cujo fundamento se prende com o juízo do legislador de que, nessas condições, a pessoa a quem havia sido atribuída carta de condução, se revelou inapta para ser detentora de tal título.
Em face das considerações vertidas teremos sempre de concluir que no âmbito de crimes rodoviários é aplicável pena acessória de inibição de conduzir ou medida de segurança de cassação ou de interdição da concessão do título de condução, é esta a ressalva a que alude o art. 69.º, n.º 7 do CP. Coisa diversa é cassação do título de condução decidida pela entidade administrativa, em virtude da perda de pontos, com a inerente proibição de obter novo título pelo período de dois anos, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) e 11 do CE, medida de natureza administrativa, e não pena acessória associada à prática de qualquer crime, mas à subtração da totalidade de pontos do condutor, razão pela qual não integra o âmbito de aplicação do art. 69.º, n.º 7 do CP.
Do mesmo modo, inexiste fundamento legal para a dedução do período de 9 meses em que o arguido esteve inibido de conduzir, no período em que está impedido de tirar novo título de condução por força da cassação, por força do disposto no art. 148.º, n.º 11 do CE.
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O recorrente alega ainda que lhe foram aplicadas as penas acessórias de inibição de conduzir pelo período total de 9 meses, sustentando que a cassação da carta de condução com nova inibição por 2 anos, exatamente pelos mesmos factos, viola o princípio ne bis in idem consagrado no art. 29.º, n.º 5 da CRP.
Mais alega que a interpretação do art. 148.º do C.E. no sentido de que pode ocorrer a cassação automática do título de condução e inibição de poder conduzir durante dois anos, quando o arguido tenha cometido dois crimes rodoviários, é inconstitucional por violação dos arts. 29.º, n.º 5, 30.º, n.º 4 e 18.º, n.º 2 da CRP.
Ora, o art. 29.º, n.º 5 da CRP estatui que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, dando consagração constitucional ao princípio ne bis in idem. Igualmente tem assento em mecanismos internacionais vinculativos do Estado Português, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art. 14.º, n.º 7), o Protocolo n.º 7 à Convenção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (art. 4.º) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 50.º).
O princípio ne bis in idem encerra um direito fundamental de defesa dos cidadãos contra o ius puniendi do Estado, compreendendo uma dupla vertente: a proibição da dupla punição sobre os mesmo factos e a proibição do duplo julgamento sobre os mesmos factos. “O que se proíbe é que um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare possa fundar um segundo processo penal, independentemente do nomen iuris que lhe tenha sido atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado” (acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10/06/2013, processo n.º 130/10.0GAMTR.P1, disponível em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, ficou provado que:
- No processo n.º 489/18.1GCVFR, o aqui recorrente foi condenado pela prática, em 15/12/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir por 3 meses.
- No processo n.º 344/20.5GAVFR, o aqui recorrente foi condenado pela prática, em 28/06/2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido condenado na pena acessória de proibição de conduzir por 6 meses.
- Cada condenação referida determinou a subtração de 6 pontos na carta de condução do recorrente, no total de 12 pontos subtraídos.
- Posteriormente foi instaurado o processo n.º 20/2021 de cassação de título de condução e, por despacho proferido em 26/01/2022, proferida decisão final a determinar a cassação do título de condução do recorrente.
Assim, do que ficou demonstrado decorre inequivocamente que os factos apurados nos Processos n.º 489/18.1GCVFR e 344/20.5GAVFR são constitutivos de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, que justificaram a condenação do recorrente nas penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 e de 6 meses, respetivamente.
Por outro lado, o processo administrativo n.º 20/2021 de cassação de título de condução teve em vista analisar o registo de infrações do condutor, a fim de contabilizar a perda de pontos decorrente da prática de contraordenações e/ou crimes rodoviários, nos termos do art. 148.º, n.º 10 do CE. E a decisão de cassação do título de condução do recorrente é uma consequência da perda de pontos, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) do C.E. (vide o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 2/02/2022, processo n.º 209/21.3T9MGR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Ou seja, não há coincidência entre os factos objeto de ambos os processos, sendo nos processos crimes, a condução de veículo com taxa de álcool superior ao legalmente admissível, em estado de embriaguez; e no processo administrativo, os factos são a perda de pontos na carta de condução. Em consequência, não ocorre um novo julgamento que incida sobre os mesmos factos, pelo que não ocorre a invocada violação do princípio ne bis in idem, previsto no art. 29.º, n.º 5 da CRP.
Muito menos a cassação da carta de condução é uma pena automática decorrente de dois crimes rodoviários, pelos mesmos factos. É antes uma consequência automática da perda da totalidade pontos da carta de condução, porquanto traduz a ineptidão do agente para manter o título de habilitação de condução, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE Aliás, se o condutor tiver mais de 12 pontos, a condenação por dois crimes rodoviários com pena acessória de inibição de conduzir e a inerente perda de seis pontos por cada, não acarreta a cassação da carta de condução por o condutor não perder a totalidade dos pontos.
Termos pelos quais, face ao expendido, não se julga inconstitucional o art. 148.º do CE por violação do art. 29.º, n.º 5 da CRP, quando interpretado no sentido de que, após o cometimento de dois crimes rodoviários, acompanhados de pena acessória de proibição de conduzir e o condutor perde a totalidade dos pontos, é cassado o título de condução e o agente fica impossibilitado de o obter pelo período de dois anos.
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Dispõe ao art. 30.º, n.º 4 da CRP que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
A este respeito conforme se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, “a atribuição de título – licença ou carta – de condução e o inerente direito de conduzir do respetivo titular, não é um direito absoluto, definitivo e incondicional, sendo, por isso, legítimo que o legislador estabeleça requisitos positivos e negativos para a atribuição do título da condução e uma vez atribuído, para a sua manutenção” (proferido em 27/04/2021, processo n.º 1377/20.7T8TMR.E1, disponível em www.dgsi.pt)..
Como é consabido e já acima referimos, a atribuição de título de condução depende da comprovação de certos requisitos (art. 121.º do CE).
E com o sistema de carta por pontos, o legislador estabeleceu um requisito para manutenção do título de condução no art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE, designadamente, “a de o condutor não praticar infrações rodoviárias por que venha a ser condenado (e especificamente as contraordenações graves e muito graves, referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º do CE ou os crimes enunciados no nº 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção da proibição de conduzir), e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos” (acórdão supra citado).
Compreende-se a opção legislativa, na medida em que a atribuição do título de condução depende da comprovação de certas aptidões, tal como se compreende que pressuponha a manutenção da aptidão do condutor. Não se esqueça que a atividade de conduzir envolve riscos, incluindo para bens jurídicos fundamentais como a integridade física e a vida, quer do próprio condutor, quer de terceiros.
É certo que o legislador previu que a perda da totalidade de pontos acarreta, de forma automática, a cassação do título de condução, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE. Contudo, «não estamos (…) perante a perda de um direito adquirido, mas perante a verificação de uma condição de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. No fundo, com o sistema de “carta por pontos” nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao “bom comportamento rodoviário» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23/10/2019, processo n.º 83/19.0T8OHP.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Ademais, a prática de uma única infração não acarreta a cassação do título de condução. Antes a perda de pontos encontra-se escalonada em função da gravidade do comportamento do condutor, designadamente, a prática de contraordenação grave, implica a subtração de três pontos; a prática de contraordenação muito grave, implica a subtração de cinco pontos; a condenação em pena acessória de proibição de conduzir ou no âmbito de aplicação do instituto de suspensão provisória do processo que dê lugar ao arquivamento de inquérito, implica a subtração de seis pontos (art. 148.º, n.º 1 e 2 do CE). Ou seja, a cassação do título de condução, enquanto consequência da perda total de pontos pelo condutor, advém da verificação de sucessivos comportamentos do condutor graduados em função da sua gravidade.
Por outro lado, conforme refere Damião da Cunha «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violado um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstrato, como em concreto» (citado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora acime referido).
No caso dos autos, o recorrente foi condenado no processo n.º 489/18.1GCVFR e no processo n.º 344/20.5GAVFR, em penas acessórias de proibição de conduzir. Cada uma delas determinou a perda de 6 pontos no título de condução, 12 na totalidade. Portanto, foi da prática pelo recorrente de dois crimes rodoviários que resultou a perda da totalidade de pontos e daí a decisão de cassação da carta de condução, por força do disposto no art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE.
Dito isto, o direito de conduzir não é um direito absoluto, está dependente da verificação de certos requisitos; além de que a perda de pontos advém de comportamentos sucessivos do condutor, cuja gravidade definida pelo legislador corresponde à perda de certa quantidade de pontos e, no caso, deu lugar à perda total de pontos com a consequente cassação da carta de condução
Assim, e em face das considerações tecidas, não se julga inconstitucional o art. 148.º do C.E. por violação do art. 30.º, n.º 4 da CRP, quando interpretado no sentido de que, após o cometimento de dois crimes rodoviários, acompanhados de pena acessória de proibição de conduzir e o condutor perde a totalidade dos pontos, é cassado o título de condução e o agente fica impossibilitado de o obter pelo período de dois anos (no mesmo sentido veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27/04/2021, processo n.º 1377/20.7T8TMR.E1 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23/10/2019, processo n.º 83/19.0T8OHP.C1, disponíveis em www.dgsi.pt).
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Quanto à alegada inconstitucionalidade do art. 148.º do CE na interpretação acima referida, por violação do art. 18.º, n.º 2 da CRP, atentemos às referidas normas.
Os direitos, liberdades e garantias encontram-se enunciados no título II do texto da Constituição, tal como são integrados por outros direitos fundamentais que assumam natureza análoga (art. 17.º da CRP). Sendo que, nos termos do disposto no art. 18.º, n.º 2 da CRP “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
A primeira conclusão a extrair-se prende-se com o facto de nenhum direito ser absoluto.
No que concerne aos direitos liberdades e garantias, a sua restrição apenas é admissível para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo a restrição limitar-se aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade.
In casu, resulta dos factos provados que, por despacho de 26 de janeiro de 2022, foi proferida decisão final a determinar a cassação do título de condução do recorrente. Ou seja, está em causa o direito do recorrente manter o título de condução e conduzir.
Sobre o direito em causa pronunciou-se o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 472/2007, ali se dizendo que “o direito a conduzir decorre de uma licença (…) e que está dependente da verificação de um conjunto de condições de perícia e de comportamento psicológico; apenas existe um direito generalizado a obter um licença se certas condições se verificarem, mas não existe, obviamente, um direito absoluto de conduzir fora desse condicionamento” (proferido a propósito da caducidade do título provisório de condução, mas cuja argumentação vale para o caso dos autos).
Por outro lado, sobre a análise do art. 148.º do CE em perspetiva do regime estatuído no art. 18.º, n.º 2 da CRP pronunciou-se o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 260/2020, cujo entendimento sufragamos.
Assim, “de acordo com o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, tais restrições devem «limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos». É à luz deste preceito que terá lugar a aplicação dos três subprincípios em que se desdobra o princípio da proporcionalidade: idoneidade (ou adequação), necessidade (ou indispensabilidade) e justa medida (ou proporcionalidade em sentido estrito). O ponto de partida da análise é, portanto, a identificação do bem jurídico afetado pela restrição, para aferir se este se encontra protegido por um direito fundamental. Todavia, no caso da norma em análise (art. 148º CE), não se identifica nenhum direito fundamental que seja restringido. Não existe, com efeito, um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e está depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador. Não existindo uma restrição de um direito fundamental, não existe razão para mobilizar o princípio da proporcionalidade com este fundamento” (proferido em 13/05/2020, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, aderindo à fundamentação transcrita, sem necessidade de mais considerações, não se julga inconstitucional o art. 148.º do CE por violação do art. 18.º, n.º 2 da CRP, quando interpretado no sentido de que, após o cometimento de dois crimes rodoviários, acompanhados de pena acessória de proibição de conduzir e o condutor perde a totalidade dos pontos, é cassado o título de condução e o agente fica impossibilitado de o obter pelo período de dois anos.
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Finalmente, o recorrente alega que a cassação do título de condução, com a inibição de conduzir veículos a motor durante dois anos, prevista no art. 148.º do CE, tal como a inibição do conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1 do CP, assume a natureza de uma verdadeira pena associada à prática de um crime. Nessa aceção sustenta que pode ser suspensa na sua execução, substituída por pena alternativa ou especialmente atenuada ou agravada, como qualquer pena e ao abrigo do disposto nos arts. 41.º a 60.º e 73.º, n.º 2 do CP. E por isso, atentas as circunstâncias do caso concreto que invoca, entende que a sanção comunicada ao recorrente deve ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, ou a sua aplicação reduzida para dias não úteis de trabalho, ou substituída por trabalho a favor da comunidade.
Face ao invocado, vejamos a letra da lei.
Decorre do art. 148.º, n.º 4, al. c) e 10 do CE que a subtração de pontos ao condutor tem como efeitos a cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos na sua totalidade, e sendo ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos.
Acrescenta o n.º 11 do mesmo normativo que “a quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação”.
Já foi sobejamente referido que a cassação da carta de condução consubstancia uma consequência legalmente prevista da perda total de pontos. Trata-se de uma consequência administrativa e não de uma pena acessória ou medida de segurança (no mesmo sentido veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/2022 disponível em www.dgsi.pt).
Cassada que seja a carta de condução, “não é concedido novo título de condução” antes de decorridos dois anos, nos termos do art. 148.º, n.º 11 do CE.
Ou seja, a cassação traduz-se no facto de uma pessoa anteriormente habilitada deixar de ser titular de título de condução.
Não há aqui a aplicação de qualquer inibição de conduzir. Findo o período de dois anos o agente não pode retomar, tão-só, a atividade de conduzir, antes para tanto sempre terá de se submeter a novas provas para obtenção de carta de condução.
Em suma, o período de dois anos não consiste numa inibição de conduzir, consiste na inibição de lhe ser concedido novo título de condução, do visado tirar nova carta de condução e, naturalmente, fica impedido de conduzir enquanto não obtiver novo título.
Ou seja, estamos perante uma medida de natureza administrativa associada à obtenção de título e não perante uma pena acessória de inibição de conduzir.
Nos termos do art. 148.º, n.º 4 al. c) do CE a cassação é uma consequência automática da perda da totalidade de pontos. A decisão é proferida pela entidade administrativa, o Presidente da ANSR, num ato vinculado, sem qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto.
Note-se que não se tratando de uma pena, inexiste fundamento legal para lhe aplicar o regime dos arts. 40.º e seguintes do Código Penal, e em concreto, desde a invocada suspensão da execução da pena ou substituição por trabalho a favor da comunidade.
No mais, mesmo no âmbito do Código da Estrada, o legislador não previu norma idêntica ao art. 141.º do CE, que permita a suspensão da cassação da carta de condução.
Pelo contrario, no caso dos autos mostra-se provado que o recorrente perdeu os 12 pontos da carta de condução, ficando sem pontos. Em consequência, dali decorre a determinação da cassação da carta de condução, inexistindo margem de ponderação das circunstâncias concretas, por falta de fundamento legal, nem existe fundamento para aplicar à cassação da carta de condução o regime das penas substitutivas em direito penal, conforme resulta do art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE (no mesmo sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27/05/2020, processo n.º 1294/19.3Y2VNG.P1, consultado em www.dgsi.pt).
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Dito isto, improcedendo os argumentos aduzidos, resulta da factualidade provada que, no processo n.º 489/18.1GCVFR e no processo n.º 344/20.5GAVFR, o aqui recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo-lhe sido aplicadas penas acessórias de proibição de conduzir, em cada processo.
Cada uma das condenações referidas determinaram a subtração de 6 pontos na carta de condução do recorrente, no total de 12 pontos.
Em consequência, o recorrente perdeu a totalidade de pontos da carta de condução, mostrando-se preenchidos os pressupostos legais para a cassação da carta, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE. A cassação da carta de condução trata-se, na verdade, de uma consequência necessária da perda de pontos, inexistindo qualquer margem de discricionariedade na sua determinação, sendo independente das circunstâncias concretas atinentes ao recorrente.
Face ao exposto, porquanto se verificam os requisitos legais, nos termos do art. 148.º, n.º 4, al. c) do CE, mantém-se a decisão de cassação do título de condução determinada pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.
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5 DECISÃO
Face exposto, julga-se o presente recurso contraordenacional apresentado por AA improcedente, por não provado, e em consequência mantém-se a decisão administrativa de ..., nos seus precisos termos.
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Decidindo a questão objeto do recurso
O sistema da carta por pontos foi introduzido no nosso Ordenamento pelo DL n.º 116/2015, de 28.08, que procedeu à alteração ao C. Estrada, aditando o art.º 121.º-A e alterando a redação do art.º 148.º. Tal sistema assenta na atribuição de um certo número de pontos a cada condutor titular de um determinado título de condução, os quais variam consoante o condutor cometa ou abstenha-se de cometer, em certo período, determinados ilícitos de mera ordenação social ou de natureza criminal[1]. Como resulta do referido art.º 121.º-A do C. Estrada, a cada condutor são atribuídos doze pontos, a que podem acrescer três, até ao limite máximo de quinze, nas situações previstas no n.º 5 do art.º 148.º. Aos referidos pontos pode ainda acrescer um ponto, até ao limite máximo de dezasseis, nas situações previstas no n.º 7 do art.º 148.º. Dispõe o n.º 1 deste artigo que a prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;
b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.
Por sua vez, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.
O regime dos efeitos da subtração de pontos mostra-se regulado no n.º 4 do citado art.º 148.º do C. Estrada. Quando o condutor ficar com apenas 5 pontos, ou menos, terá que frequentar ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c). Quando ficar com 3 pontos, ou menos, terá que realizar a prova teórica do exame de condução, também de acordo com as regras fixadas em regulamento. Quando se encontrem subtraídos todos os pontos, haverá lugar à cassação do título de condução, que será ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução[2].
No caso concreto, o recorrente sofreu duas condenações sucessivas pela prática do crime de condução em estado de embriaguez, o primeiro praticado em 15.12.2018 (sentença proferida em 4 de janeiro de 2019 e transitada em julgado em 4 de fevereiro de 2019), o segundo em 28.06.2020 (sentença proferida em 14 de julho de 2020 e transitada em julgado em 29 de setembro de 2020), tendo-lhe sido impostas, além das penas principais, penas acessórias de proibição de conduzir por 3 (meses) e de 6 (seis) meses, respetivamente. Tendo perdido seis pontos em cada uma dessas condenações, ficou com zero pontos após a última perda. Em consequência da perda da totalidade de pontos, foi instaurado processo de cassação de título de condução do recorrente e determinada, por despacho de 26.01.2022, a cassação da sua licença de condução, nos termos do disposto no art.º 148.º, n.º 4, al. c), do C.Estrada.
Inconformado, alega o recorrente que tendo já cumprido as penas acessórias de inibição de conduzir, pelo período total de 11 meses, se vê agora surpreendido com a decisão de cassação do seu título de condução, que na prática constitui uma nova sanção de inibição de conduzir, pelos mesmos factos. Argumenta que lhe foi aplicada, com base na mesma factualidade, uma dupla penalização, ou seja, a cassação da carta de condução e a proibição de conduzir que já havia cumprido, e ainda a proibição de conduzir, agora, por um período de mais dois anos. Remata que a cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, também prevista no art.º 101.º do C.Penal não pode ser aplicada cumulativamente com a sanção acessória de inibição de conduzir a que foi já sujeito.
Vejamos
A decisão de cassação de título de condução ocorre como efeito automático e necessário da perda total de pontos, não traduzindo uma nova condenação pela prática dos mesmos factos (e crimes atinentes) que determinaram a condenação na pena acessória da proibição de conduzir veículos[3]. Como assinala o Ac. TRC de 6.11.2019[4], constituindo embora uma reacção automática – ocorre como efeito da(s) infracção(ões) cometidas, sem que, por si mesmo, assuma natureza sancionatória. (…) consubstancia, em relação às condenações determinantes da perda de pontos, um novo sancionamento, axiologicamente motivado pela inidoneidade entretanto revelada pelo condutor e, em última ratio, por imperativos de segurança rodoviária. Não se trata, como refere o Ac. TRP de 10.11.2021[5], de perda de um direito adquirido, mas de verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito. Também não se trata da mesma cassação a que alude o art.º 101.º do C.Penal, cuja aplicação, cabendo ao Tribunal, antes constitui uma medida de segurança (…) tem uma natureza administrativa e funda-se, nos termos legais acima consignados, na perda de pontos, por sua vez resultantes da prática das infracções que a fundamentam[6].
Em suma, contrariamente ao alegado pelo recorrente, a cassação do seu título de condução não constituiu uma nova sanção de inibição de conduzir, pelos mesmos factos, nem uma dupla penalização.
Improcede, pois, o recurso quanto a esta primeira questão.
O recorrente invoca também a violação do princípio ne bis in idem, consagrado no art.º 29.º, n.º 5, da CRP. Porém, constituindo, como vimos, a decisão de cassação da licença de condução efeito automático da perda total de pontos, é evidente que não traduz uma nova condenação pela prática dos mesmos factos (e crimes atinentes) que determinaram as condenações na pena acessória da proibição de conduzir veículos, como bem decidiu o Ac. TRE de 26.04.2022, entre muitos outros, aliás.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta questão, designadamente no referido Ac. n.º 154/2022[7], citado no referido aresto da Relação de Évora, nos seguintes termos: Apreciemos agora a segunda questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente, que consiste em saber se a determinação da cassação do título de condução constitui uma segunda condenação do respetivo titular, violando a proibição do non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
A argumentação do recorrente supõe que a determinação da cassação do título de condução corresponde a uma «dupla condenação», dado que o visado já teria sido condenado anteriormente em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor pelos mesmos factos que deram origem à perda de pontos. No seu entender, o princípio do non bis in idem tem por finalidade assegurar a paz jurídica do visado e limitar o poder punitivo do Estado, impedindo que o mesmo facto − ou o mesmo «pedaço de vida» − seja valorado duas vezes, em processos distintos, com vista a uma dupla sanção.
A proibição de duplo julgamento ou valoração de factos com relevância penal não se confunde com a proibição de valorar multiplamente factos em sentido naturalístico, deles retirando uma pluralidade de consequências jurídicas. Basta, para o demonstrar, considerar a responsabilidade civil conexa com a criminal ou, mesmo no plano puramente penal, a admissibilidade do concurso ideal de crimes. O que o n.º 5 do artigo 25.º proíbe, como se salientou no recente Acórdão n.º 298/2021, é tanto a aplicação ao mesmo agente de uma dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes, como a respetiva sujeição a um segundo julgamento por factos penalmente relevantes relativamente aos quais haja sido já definitivamente julgado.
Não é esse o alcance da norma sob apreciação.
Em primeiro lugar, importa salientar que, ainda que no caso vertente os factos que conduziram à perda dos pontos do aqui recorrente e, por isso, à cassação da sua carta de condução, tenham sido condenações pela prática de crimes, essa é uma circunstância puramente acidental e que não se projecta na norma em apreciação.
Em segundo lugar, os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu n.º 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contraordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações. Tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação.
Em terceiro lugar, a cassação do título de condução não se traduz numa dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes. Com efeito, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do “ius puniendi”, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.
É certo que a condenação pela prática de crimes punidos com a pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constitui um facto gerador de perda de pontos. Contudo, essa conexão é meramente reflexa, não só porque nenhuma condenação criminal, por si só, desencadeia a cassação prevista no artigo 148.º do Código da Estrada – nem o recorrente integrou tal questão no objeto do recurso –, como porque os critérios relevantes para essa cassação não se extraem dos factos que tipificam ilícitos criminais, mas sim da reiteração das condenações criminais ou contraordenacionais e da forma como elas revelam a incapacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária.
Em suma, a norma sindicada não implica, nem que o condutor seja julgado novamente pelos mesmo factos, nem que por eles seja duplamente punido, pelo que não ocorre violação alguma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
Temos, pois, secundando o referido aresto da Relação de Évora, que da cassação não decorre de qualquer dupla valoração dos factos já considerados nas condenações anteriores, baseando-se em diferentes pressupostos, pelo que inexiste qualquer violação do dito princípio ou das normas constitucionais de onde se deduz. Assenta sim num juízo de perigosidade acrescida daquele concreto condutor no exercício da condução, decorrente da sucessiva prática de crimes ou contraordenações suscetíveis de colocar em risco valores jurídicos considerados mais elevados, a sua génese não reside na prática dos factos anteriormente julgados, mas antes no juízo, baseado em regras fixadas, de que as penas acessórias aplicadas foram insuficientes para sensibilizar o infrator "no sentido de adequar aquela atividade perigosa, em que se traduz a condução, às normas"[8].
Assim, a cassação automática da carta de condução decorrente da perda de pontos não constitui uma nova condenação pela prática dos mesmos factos - crimes de condução em estado de embriaguez, pelo que não se mostra violado o princípio ne bis in idem.
Improcede, pois, o recurso também quanto a esta questão.
Alega ainda o recorrente que a proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de 2 anos, o que igualmente contradiz um dos principais princípios do direito, assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator. Mais alega que a inibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69º. nº. 1 do Código Penal e constante da norma do artigo 148º. nº. 11 do C.E., bem como a cassação do título de condução, assume a natureza de uma verdadeira pena e está associada à prática de um crime. Sustentando que a cassação do título de condução e o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos pode, à semelhança da pena aplicável ao próprio crime, ser suspensa na execução, especialmente atenuada ou agravada e ainda ser substituída por medidas alternativas, designadamente de trabalho a favor da comunidade, o que sempre teria de ser determinado, pede que tal seja determinado.
Considerando o referido supra no que concerne à natureza da decisão de cassação de título de condução, não sendo uma pena, mas uma mera decisão administrativa, carecem de sentido os argumentos invocados pelo recorrente e, consequentemente, todas as pretensões formuladas (v.g. suspensão, atenuação, substituição), que, aliás, carecem de suporte legal.
No que diz respeito às consequências da cassação para a vida pessoal e/ou profissional do recorrente, como refere o Ac. TR do Porto de 09.06.2021[9], cuja jurisprudência acompanhamos, não constituem fatores a atender para o efeito de decidir sobre a cassação da licença de condução, posto que inexiste a possibilidade de ponderar sobre a necessidade e adequação da medida em função do circunstancialismo concreto, mas antes, uma vez verificado o requisito indicado, isto é, a subtração de todos os pontos ao condutor, a cassação é inevitável, tendo subjacente a avaliação pelo legislador da respetiva adequação e necessidade em razão da natureza e gravidade do comportamento do condutor que deu origem à subtração de pontos. Depois, conforme é entendimento uniforme da jurisprudência[10], a cassação da licença de condução ao abrigo da norma legal em análise não viola o princípio da proporcionalidade, consagrado constitucionalmente no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, segundo o qual, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na realidade, não existe um direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor na via pública, por parte do titular de licença de condução, mas antes a manutenção desta faculdade está dependente da verificação de aptidão para conduzir, aferida por requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador, pelo que, não existindo uma restrição de um direito fundamental, não existe razão para mobilizar o princípio da proporcionalidade com este fundamento[11]. Ademais, a privação do título de condução decorrente da subtração total de pontos revela-se necessária e proporcional à salvaguarda de outros direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente o direito à vida e/ou à integridade física dos demais condutores e utentes da estrada, e encontra justificação no comportamento infrator do condutor, revelador de perigosidade, que o legislador avalia como demonstrativo de inaptidão para o exercício da condução[12].
Improcede, pois, o recurso também quanto à última questão.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.
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Porto, 18 de janeiro de 2023,

José António Rodrigues da Cunha
William Themudo Gilman
Liliana de Páris Dias
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[1] Ac. do Tribunal Constitucional n.º 154/2022, Processo n.º 532/2021, 3.ª Secção, relatado pelo Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro.
[2] Ac. TRE de 10.11.2020, relatado pelo Desembargador Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt.
[3] Ac. TRE de 26.04.2022, relatado pelo Desembargador Edgar Valente, in www.dgsi.pt.
[4] Relatado pela Desembargadora Maria José Nogueira, in www.dgsi.pt.
[5] Relatado pela Desembargadora Maria Dolores da Silva e Sousa, in www.dgsi.pt.
[6] Ac. TRE de 10.11.2020, referido supra.
[7] Processo n.º 532/2021, 3.ª Secção, relatado pelo Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro.
[8] Ac. TRC de 05.05.2021, relatado pela Desembargadora Ana Carolina Cardoso, in www.dgsi.pt.
[9] Proc. 3638/20.6T8OAZ.P1, relatado pela desembargadora Maria dos Prazeres Silva.
[10] Vd., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2021, proc. 118/20.3T9AGD.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Vd. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
[12] Cfr., entre outros, Acórdão Tribunal da Relação de Guimarães de 27-01-2020, proc. 2302/19.3T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt.