Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4640/17.0T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ACÇÃO DE DÍVIDA
CÔNJUGES
DESISTÊNCIA DO PEDIDO
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RP201906134640/17.0T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO COMUM
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 176, FLS 2-14)
Área Temática: .
Sumário: I - A desistência do pedido da ação, regularmente homologada por sentença que transitou em julgado, obsta à instauração de uma nova ação em que se verifica a tríplice identidade da primeira (as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido). Não obstante o tribunal não ter chegado a apreciar o mérito da primeira ação, por causa da desistência do autor, nem por isso deixa de se colocar a possibilidade de confirmar ou contradizer a decisão anterior que é de extinção da instância com absolvição do pedido e extinção do direito que o autor ali pretendia fazer valer.
II - As dívidas dos cônjuges são próprias ou comuns por força da lei (art.º 1691º a 1694º do Código Civil), não cabendo ao credor (ou ao exequente) escolher a sua classificação e demandar ou executar uma dívida segundo tal escolha.
III - A ação destinada a obter a responsabilização dos bens comuns e dos bens próprios dos cônjuges deve ser proposta contra ambos os cônjuges.
IV - A desistência do pedido representa o reconhecimento pelo autor de que a situação jurídica alegada não existe ou se extinguiu, arrastando consigo a extinção da situação jurídica que pretendia tutelar (artigo 295º, nº 1, do Código de Processo Civil), ou constitui a situação que o autor negava.
V - Tendo o A. desistido do pedido de condenação que deduziu na ação em que demandou apenas o R. marido, não pode vir, por via de uma nova ação, deduzir o mesmo pedido, com a mesma causa de pedir, agora contra ambos os cônjuges, sob pena de violação da autoridade do caso julgado formado na ação anterior.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4640/17.0T8AVR.Pl (apelação)
Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Aveiro – J2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, NIF ………, residente na Rua …, …, …, …-… Vagos, instaurou ação declarativa contra C…, NIF ………, residente na Rua …, Lote ., ….-… Aveiro, e D…, NIF ………, residente na Rua …, Lote ., ….-… Aveiro, alegando essencialmente que, no exercício da sua atividade de construção civil, a pedido do R., prestou-lhe diversos serviços que deram origem a duas faturas que os RR. não pagaram, não obstante a sua interpelação na sequência do vencimento das quantias nelas tituladas, no valor global de € 22.352,29 de capital, a que acrescem juros de mora comerciais já vencidos no valor de € 4.494,95.
Os serviços foram executados na moradia dos RR., tendo ambos retirado proveitos da obra que o A. ali executou, sem a qual não seria por eles habitada.
Ao não pagarem o que devem --- alega ainda o A. --- os RR. estão a enriquecer sem causa, e formulam o seguinte pedido:
«NESTES TERMOS E NOS MELHORES EM DIREITO PERMITIDOS, DEVE A PRESENTE ACÇÃO SER JULGADA PROVADA E PROCEDENTE, CONDENANDO-SE OS RÉUS A PAGAR AO AUTOR A QUANTIA DE 22.352,29€, ACRESCIDA DOS RESPECTIVOS JUROS DE MORA LEGAIS CONTADOS DESDE A DATA DA EMISSÃO DA FACTURA E QUE ATÉ À PRESENTE DATA PERFAZEM A QUANTIA DE 4.494,95€ E BEM COMO OS VICENDOS ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO, POR VIA DO INSTITUTO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.» (sic)
Citados, os RR. deduziram contestação defendendo-se por exceção e por impugnação.
Em matéria de exceção, alegaram que correu termos na Comarca e Tribunal de Aveiro (Juízo Local Civil- J1, Proc. nº 3094/17.6T8AVR), uma ação idêntica à presente quanto ao pedido, à causa de pedir e mesmo quanto aos sujeitos. Não obstante aquela ação ter sido dirigida apenas contra o aqui R. marido, logo o A. se apercebeu do que considerou ser um lapso, pedindo que fosse corrigido e se admitisse que constasse ali também como ré a aqui contestante D….
Como o A. desistiu do pedido naquela ação, desistência que ali foi homologada por sentença já transitada em julgado, ocorre a exceção dilatória do caso julgado, o que implica a absolvição dos RR. da instância.
Acrescentaram que, com a desistência do pedido, o direito que o A. pretendia fazer valer se extinguiu, o que configura uma exceção perentória conducente à absolvição dos RR. do pedido da ação.
No exercício do contraditório relativamente à matéria de exceção, alegou o A. que, naquela ação, nunca pretendeu desistir do pedido, mas da instância, solicitando que se relevasse tal lapso. Na negativa, defendeu a prossecução da ação quanto à R. D…, por não ter sido parte na referida ação anterior.
Teve lugar a audiência prévia, onde se proferiu despacho saneador que conheceu da invocada exceção do caso julgado, concluindo assim, ipsis verbis:
«Pelo exposto, julgo verificada a exceção de caso julgado quanto ao réu C…, e, consequentemente, determino a respetiva absolvição da instância.
Os autos prosseguirão, assim, apenas quanto à ré D….»
*
Inconformada com a decisão proferida no despacho saneador, a R. mulher dela apelou, com as seguintes CONCLUSÕES:
«a)- Nos presentes autos repete-se, quanto aos sujeitos, ao pedido e a causa de pedir a ação que correu termos na Comarca de Aveiro- Juízo Local Cível de Aveiro, J1, sob o número 3094/17.6T8AVR, conforme certidão da petição inicial junto com a contestação sob o doc. nº 1 e requerimento retificativo também junto com aquele articulado, através de certidão, sob o documento nº 2.
b)- O aqui Demandante/Recorrido desistiu do pedido naqueles autos por requerimento ajuizado em 06-11-2017, com a referência CITIUS 27247705, conforme certidão do requerimento junto com a contestação, sob o doc. nº 3;
c)- A desistência do pedido implica a extinção do direito que se pretendia fazer valer, ex vi artº 286º do C.P.C.
d)- Face à desistência do pedido o aqui Demandante/Recorrido estava impedido de propor a mesma ação contra os aqui demandados e, tendo-o feito, e porque estamos perante a Exceção Dilatória - Caso Julgado - teriam que ser ambos absolvidos da instância, ex vi artºs 576º nºs 1 e 2 e 577º al. i) do C.P.C., o que se requer.
e)- Deve assim ser reconhecida a exceção de caso Julgado relativamente à Demandada D…, porquanto no litisconsórcio necessário o pedido é indivisível, artº 35º do C.P.C. sendo também indivisível a decisão que aos autos couber.
e)- O Demandante propôs a presente ação contra C… e mulher, D…, quando os putativos documentos justificativos dos serviços prestados, documentos nºs 1 e 2 juntos com a p.i., vulgo faturas, estão emitidos apenas em nome do Demandado C…;
f)- No caso dos autos estamos perante a figura do litisconsórcio necessário, artº 33º nºs 1 e artº º 34º nºs 1 e 3 do C.P.C., pelo que, g)- a absolvição da instância de um dos litisconsortes Implica a absolvição do outro no caso, a Demandada D…, aqui Recorrente, sob pena de esta ser julgada parte ilegítima, artº 33º nº1 do C.P.C. e em consequência ser absolvida da Instância, ex vi artºs 576º nº 1 e 2 e artº 577º al. e) do C.P.C., o que expressamente se invoca.» (sic)
Manifestou pretender a revogação do despacho saneador na parte que ordenou o prosseguimento dos presentes autos apenas contra a recorrente, devendo ser absolvida da instância.

O A. respondeu em contra-alegações e --- a pedido de esclarecimento do tribunal --- informou que o seu requerimento inclui um recurso subordinado, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. A decisão referida proferida pela instância anterior não é passível de qualquer censurabilidade ou crítica.
2. Por conseguinte, o douto despacho está absolutamente correcto, ao ordenar o prosseguimento dos autos contra a Ré D… atendendo que a excepção admitindo a mesma apenas se verifica relativamente ao Réu C….
3. Da análise das alegações apresentadas resulta que: - entendem os recorrentes que se verifica a excepção do caso julgado, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea i) e 580.º, n.º 1, 581.º e 619.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil; procedendo a excepção do caso julgado relativamente ao Réu C…, verifica-se a excepção dilatória de ilegitimidade da Ré D…, ao abrigo do disposto no artigo 33.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
4. Dispõe o artigo n.º 1 do artigo 580.º do Código de Processo Civil que “as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar a litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado”.
5. Ambas as excepções (segundo o n.º 2 daquele normativo legal) têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
6. Para se verificar a excepção da litispendência ou do caso julgado é necessário que exista uma repetição da causa, isto é, que exista uma identidade entre as acções quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir – vide artigo 481.º do Código de Processo Civil.
7. Ora, entende o Recorrido que não se verifica a excepção do caso julgado, conforme foi decidido no douto despacho saneador devendo esse douto Tribunal substituir aquela decisão e ordenar o prosseguimento dos autos contra o Réu C….
8. Pois, conforme resulta dos autos, não existe identidade de sujeitos processuais entre a acção interposta anteriormente e a presente acção;
9. Por outro lado, considerando os fundamentos subjacentes ao principio da excepção do caso julgado – evitar que a formação de decisões contraditórias entre si – não pode ser considerada verificada a excepção do caso julgado nos presentes autos.
10. Porquanto, na acção judicial n.º 3094/17.6T8AVR não existiu qualquer decisão tomada pelo Tribunal quanto à matéria que foi alegada na petição inicial ali apresentada.
11. Pois, a acção judicial terminou com a desistência do Autor, desistência esta que, conforme foi exposto nos presentes autos, seria apenas da instância, sendo que apenas com a apresentação da contestação no âmbito dos presentes autos é que o Autor tomou conhecimento do lapso ocorrido aquando do envio da peça processual através do sistema Citius.
12. Não podendo decorridos vários meses requerer a rectificação do mesmo face ao trânsito em julgado entretanto decorrido da decisão ali proferida.
13. Pelo que deviam os presentes autos ter considerado que a desistência tinha decorrido apenas quanto à instância, não ocorrendo a extinção do direito que o Autor – aqui Recorrido – pretende fazer valer quanto ao Réu C…, prosseguindo os autos contra o mesmo face aos fundamentos deduzidos nos autos e aos requerimentos juntos.
14. Improcedendo a excepção do caso julgado invocada pelos Recorrentes não deverão ser apreciados os demais fundamentos invocados no recurso apresentado do douto despacho.
15. No entanto, absolvido o Réu C… da instância, a Ré D… é parte legítima nos autos, devendo os mesmos prosseguir os seus termos conforme determinado no douto despacho proferido.
16. O artigo 34.º do Código de Processo Civil (nomeadamente o seu n.º 3) não tem aplicação nos presentes autos.
17. Resulta da petição inicial que o Autor procedeu à execução de diversos serviços de construção civil a pedido dos Réus, trabalhos estes que resultaram na emissão da factura cujo pagamento se reclama nos presentes autos.
18. Em momento algum é alegado pelo Autor – ou pelos Réus na sua contestação (momento de apresentação de toda a defesa conforme dispõe o artigo 573.º do Código de Processo Civil) – que os serviços executados dizem respeito à casa de morada de família.
19. Não bastando – agora em sede de recurso – alegar que existe uma excepção de ilegitimidade por preterição do litisconsórcio necessário, prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Código de Processo Civil.
20. Agindo os Recorrentes em violação dos princípios da boa fé processual na invocação da excepção de ilegitimidade.
21. Senão vejamos, conforme resulta da citação efectuada nos autos, o Réu C… e a Ré D… divorciaram-se e portanto têm moradas distintas (o Réu C… reside na Figueira da Foz).
22. Não podendo portanto considerar-se que a acção interposta pelo Autor se encontra compreendida nas acções previstas no artigo 34.º, n.º 1 do Código de Processo Civil aplicável por força do n.º 3 daquele normativo.
23. Assim, a decisão proferida deve ser alterada e proferida outra que ordene o prosseguimento dos autos contra o Réu C…, mantendo-se o demais decidido pelo Tribunal ad quo.» (sic)
Terminou no sentido de que os autos prossigam também contra o R. C…, mantendo-se o demais decidido pelo tribunal a quo.

Não foi oferecida resposta ao recurso subordinado.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da R., acima transcritas e do recurso subordinado do A. (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil[1]).
Com efeito, importa decidir:
A. Quanto à apelação (da R.), se o caso julgado formado na ação nº 3094/17.6T8AVR opera também quanto à aqui R. --- ali não demandada --- por haver litisconsórcio necessário dos cônjuges.
B. No que concerne ao recurso subordinado (do A.), se não se verifica a exceção do caso julgado relativamente ao R. marido, devendo os autos prosseguir os seus termos também contra ele.
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III.
Na decisão recorrida, foram fixados os seguintes factos processuais:[2]
- O autor intentou contra o aqui réu a ação que correu termos neste Juízo Local Cível- J1, sob o n.º 3094/17.6T8AVR;
- Tal ação tinha como causa de pedir as faturas objeto dos presentes autos, sendo o pedido exatamente o mesmo;
- Nessa ação, por requerimento apresentado a 06.11.2017, o autor veio desistir do pedido, tendo chegado a acordo com o réu quanto às custas de parte;
- Tal desistência do pedido foi homologada por sentença proferida a 08.11.2017, já transitada em julgado.
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IV.
Razões de precedência lógica exigem que se conheça em primeiro lugar do recurso subordinado (art.º 608º, nº 2, primeira parte).

Do recurso subordinado
Não se verifica a exceção do caso julgado relativamente ao R., devendo os autos prosseguir os seus termos também contra ele?
Argumenta o A. que:
a) Não existe identidade de sujeitos processuais nesta e na ação n.º 3094/17.6T8AVR;
b) O desiderato do caso julgado é evitar a contradição de julgados e, tendo havido desistência na primeira ação, nunca a decisão a proferir nesta ação poderá contradizer a decisão proferida no proc. nº 3094/17.6T8AVR;
c) Deveria ter-se entendido nos presentes autos que a desistência operada na ação anterior foi uma desistência da instância, assim, sem extinção do direito do A.
Pois bem.
Tal como a litispendência --- e como alega o A. recorrente --- o caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de se contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art.º 581º, nº 1).
Os limites dentro dos quais opera a força do caso julgado material são traçados pelos elementos identificadores da ação em que foi proferida a sentença: as partes, o pedido e a causa de pedir (art.ºs 580º e 581º, nº 1) e só na exata correspondência do seu comando.
Ainda de acordo com o art.º 581º:
- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (nº 2).
- Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (nº 3).
- Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico (nº 4, primeira parte).
A recorrente não discute (ninguém discute mesmo) a identidade do pedido e de causa de pedir, ou seja, que numa e noutra ação são os mesmos.
É a identidade de sujeitos que se debate.
Na definição da identidade das partes, há que atender à qualidade jurídica em que autor e réu intervêm.
As partes são as mesmas sob o aspeto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial. Daí resulta que as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que as mesmas assumam em ambos os processos.
Na primeira ação, que correu termos apenas entre o aqui A. e o aqui R. marido, foi proferida a seguinte sentença homologatória, na sequência de um requerimento do A. em que declarou desistir do pedido apresentado naqueles autos:
«Requerimentos apresentados a 6 de Novembro de 2017 (…):
Nesta acção declarativa, sob a forma de processo comum, intentada por B… contra C…, dada a qualidade dos intervenientes e a disponibilidade do objecto da presente causa, julgo válida a transacção, inserta no documento apresentado a 6 de Novembro de 2017 (folhas 40), complementado com a declaração electrónica de adesão que foi apresentada a 6 de Novembro de 2017 (folhas 42-43), cujo teor se dá aqui por reproduzido, que homologo, por sentença, ao abrigo dos artigos 283°, n.º 2; 284°; 289°, n.° 1; e 290°, n.°s l e 3 do Código de Processo Civil, na redacção dada pela Lei n.° 41/2013, de 26 de Junho, condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos e, consequentemente, declaro extinta a presente instância, nos termos do artigo 277°, al. d) do mesmo diploma legal.
(…).»
Por conseguinte, foi homologada por sentença uma transação em cujo âmbito o autor desistiu do pedido que deduziu contra o réu naquela ação nº 3094/17.6T8AVR. Essa sentença transitou em julgado.
O art.º 619º, nº 1, dispõe que “transitada julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702.°.
Segundo o subsequente art.º 621º, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.
O caso julgado confere à decisão caráter definitivo. Uma vez transitada em julgado, a decisão não pode, em princípio[3], ser alterada; antes adquire estabilidade, deixando de ser lícito a parte vencida provocar a sua alteração mediante o uso dos recursos ordinários. E sendo de caso julgado material, relativo ao mérito da causa, que falamos, a estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo, e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo. Apenas com a restrição excecional do recurso de revisão, uma vez passada em julgado, a sentença define de modo irrefragável a relação jurídica sobre que recaiu. Se situações há em que pode ser difícil resolver o problema de identidade de ações, elas assim se devem considerar se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira.
Desde logo do ponto de vista físico, mas também da qualidade processual das partes, os aqui A. e R. são os mesmos autor e réu da ação 3094/17.6T8AVR. O aqui A. demanda ali o aqui R. com vista a obter a sua condenação no pagamento de uma quantia pecuniária que é a mesma que pede nesta ação (pedido), com base num conjunto de factos que também se repetem nas duas ações e que consubstanciam o preço dos mesmos serviços de construção de uma moradia que o demandante prestou ao demandado no cumprimento de um mesmo contrato (causa de pedir).
Estamos, assim, perante uma ação anterior que absolveu o aqui R. do pedido da ação, com trânsito em julgado. Admitir, nesta segunda ação, que, de novo, o mesmo autor demande o mesmo réu, com o mesmo fundamento fático e o mesmo pedido da ação anterior, violaria, obviamente, o caso julgado formado na ação anterior.
Não se diga que, por ter havido desistência na primeira ação, não existe o risco do tribunal se contradizer neste segundo processo. Na verdade, o efeito da desistência do pedido é a extinção do direito que o autor pretendia fazer valer (art.º 285º, nº 1); para além disso, o tribunal, ao homologar a desistência do pedido nesses precisos termos, está a absolver o réu do pedido.
Ora, se admitirmos a discussão do mesmo direito entre as partes primitivas, reabrindo a possibilidade do reconhecimento da sua existência e a condenação do R. nesta segunda ação, estamos a contrariar o efeito do caso julgado anterior, afirmando um direito (ou correndo o risco de o afirmar) já dado como extinto e indiscutivelmente negado ao autor na 1ª ação por força de uma decisão judicial transitada em julgado. Independentemente dos factos-fundamento não terem sido discutidos e apreciados na primeira ação e de se pretender que o sejam nesta segunda ação, o risco de o tribunal se contradizer existe realmente. O caso julgado respeita à decisão e só excecionalmente também ao algum dos seus fundamentos. Em princípio, estes não são mais do que elementos interpretativos e definidores do pensamento do julgador e do alcance da parte dispositiva da decisão. Para além disso, o problema do caso julgado sobre os motivos só se coloca quanto a pontos que poderiam ser objeto de processo autónomo, no qual sobre eles se formaria o caso julgado nos termos normais e nas situações em que a motivação considera questões que constituem um antecedente lógico e indispensável da decisão.
Tendo o caso julgado material eficácia interna e externa e impondo-se ele nesta segunda ação, não se compreende como seja possível defender que na ação anterior ocorreu uma desistência do pedido, mas que nesta segunda ação aquela desistência deve ser entendida como uma desistência da instância. Desistência só houve uma; se o caso julgado releva como desistência do pedido, assim acontece naquela, nesta ou em qualquer outra ação em que a questão seja colocada.
Se houve lapso no texto do requerimento da desistência, era na respetiva ação que devia ter sido invocado, nas condições legais estabelecidas para o efeito. Não se destina esta ação a corrigir lapsos da primeira, menos ainda decisões transitadas em julgado, por isso absolutamente respeitáveis.
A ação não pode prosseguir contra o R. marido, (único) demandado e absolvido na ação nº 3094/17.6T8AVR.
Do exposto decorre, com evidência, a improcedência do recurso subordinado, apresentado pelo A.
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Da apelação da R. D…
O caso julgado formado na ação nº 3094/17.6T8AVR opera também quanto à aqui R. --- ali não demandada --- por haver litisconsórcio necessário dos cônjuges?
Diz-nos a recorrente que a desistência do pedido relativamente ao seu corréu fez extinguir o direito do A. e a possibilidade da demanda da recorrente por não ser possível a formação do litisconsórcio necessário.
O A. argumenta que os autos devem prosseguir contra a apelante, que também está a violar o princípio da boa fé ao invocar a sua ilegitimidade passiva.
Vejamos.
Na ação nº 3094/17.6T8AVR não há qualquer referência factual à aqui R. e recorrente D… nem ao seu casamento com o R. C…. Ali, a causa de pedir está substanciada em factos pelos quais foi celebrado um contrato de prestação de serviços entre autor e réu, havendo, da parte deste, incumprimento pelo não pagamento do preço a que estava obrigado quanto aos serviços contratados e efetivamente prestados pelo autor. Não há tampouco alusão alguma a qualquer vantagem resultante para a aqui R. da celebração daquele negócio.
O mesmo não acontece nesta segunda ação, em que a petição inicial[4] está configurada de modo diferente no que respeita aos sujeitos passivos, apresentando, além do réu C…, a sua mulher, D…, aquele como parte contratante e a última como seu cônjuge e, por isso, também beneficiária, mais concretamente, por as obras terem sido realizadas na casa de habitação do casal de RR., sem o que a mesma não estaria apta a ser habitada.
Dispõe o art.º 30º:
«1 – O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer.
2 – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 – Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.»
É pacífico que desde a reforma processual introduzida pelo Decreto-lei nº 180/96, de 25 de setembro, que alterou a redação do referido nº 3 do art.º 26º, o legislador tomou posição na antiga querela jurídico-processual que se desenvolve desde o tempo em que foi debatida entre os Prof.s Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães. Fê-lo no sentido da tese deste último professor que, aliás, vinha sendo amplamente defendida na doutrina e na jurisprudência.
A legitimidade processual representa sempre uma posição da parte em relação a certo processo em concreto --- melhor, em relação a certo objeto do processo, à matéria que nesse processo se trata, à questão de que esse processo se ocupa. É uma posição de autor e réu, em relação ao objeto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto. A legitimidade é de determinação casuística, portanto.[5]
Na perspetiva da tese agora acolhida na lei, a legitimidade das partes deve ser aferida pela posição que cada uma delas ocupa no litígio, tal como este é configurado na petição inicial pelo autor (nº 3 do art.º 30º). Mas não pode afastar-se do interesse direto em demandar ou do interesse direto em contradizer a que se refere o nº 1 do mesmo artigo. Temos assim que são considerados titulares dos interesses relevantes para efeitos de legitimidade, na falta de indicação da lei em contrário, os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo demandante, atendendo fundamentalmente à substância do pedido formulado e à concretização da causa pedir. Como se refere no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.2.1997[6], “a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou da improcedência) da ação pode advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e à posição que as mesmas, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor”.
O autor e o réu têm que ter um interesse directo a defender no processo. Só excecionalmente a lei permite que venha prosseguir certo interesse em Juízo o titular de outros interesses, indiretos, ou meramente conexos com o primeiro[7].
A questão de saber se a relação material controvertida existe ou não validamente, se o dever jurídico correlativo se extinguiu ou não, interessa ao mérito da questão. Ao problema da legitimidade importa apenas saber quem são os sujeitos dessa relação --- pressupondo que ela exista --- quais as pessoas a quem a relação realmente diz respeito ou a quem ela interessa de modo direto. É este o sentido seguido na jurisprudência, de que é exemplo ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2004[8], segundo o qual “a legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efetivamente seu titular”.
A legitimidade dos cônjuges parte das referidas regras, mas tem, no Código de Processo, Civil caraterísticas especiais.
Qualquer que seja o regime de bens que vigore entre os cônjuges, cada um deles tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro (art.º 1690º, n.º 1, do Código Civil). Questão diferente da legitimidade é a de saber se a dívida contraída por um dos cônjuges responsabiliza apenas o cônjuge em causa ou ambos os cônjuges e, consequentemente, quais os bens que por ela respondem, matérias reguladas nos art.ºs 1691º a 1694º e nos art.ºs 1695º e 1696º, todos do Código Civil, respetivamente.
Analisando os factos alegados pelo A. na petição inicial relativamente à R. mulher, como sendo vantagens por ela obtidas com a administração do R. na contratação e prestação dos serviços do A., à luz do art.º 1691º, nº 1, al. c), do Código Civil, há de concluir-se que a R. tem legitimidade para a ação, já que, segundo aquele normativo, são da responsabilidade de ambos os cônjuges as dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração. Esta alínea c) aplica-se a todos os regimes de bens e refere-se às dívidas contraídas pelo cônjuge administrador cujos poderes resultam do artigo 1678º do Código Civil. No conceito dos poderes de administração do cônjuge cabem, em síntese, todos os atos que o cônjuge administrador pode praticar sem intervenção ou consentimento do outro cônjuge.
Na verificação do proveito comum releva o fim ou a intenção com que a dívida foi contraída, depende da alegação de factos demonstrativos de que a destinação da dívida em causa foi a satisfação de interesses comuns do casal. Se, esse fim foi o interesse do casal, a dívida considera-se aplicada em proveito comum dos cônjuges, mesmo que dessa aplicação tenham resultado prejuízos. Tais factos foram suficientemente alegados pelo A. nesta ação.
A questão é saber se há litisconsórcio necessário passivo, ou seja, se a R. mulher tinha necessariamente de ser demandada juntamente com o seu marido e vice-versa, ou se, diferentemente, há litisconsórcio voluntário.
Dispõe o art.º 33º, no seu nº 1, que “se, (…), a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade” e, o seu nº 2, que “é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o efeito útil normal”. Segundo o respetivo nº 3, “a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
As dívidas dos cônjuges são próprias ou comuns por força da lei (art.º 1691º a 1694º do Código Civil), não cabendo ao credor (ou ao exequente) escolher a sua classificação e demandar ou executar uma dívida segundo tal escolha.
Ora, qualquer ação destinada a obter a responsabilização dos bens comuns e dos bens próprios dos cônjuges deve ser proposta contra ambos os cônjuges. Como se extrai do art.º 34º, nº 3, devem ser intentadas contra o marido e a mulher as ações emergentes de facto praticado por um dos cônjuges mas em que o credor pretenda obter decisão suscetível de ser executada sobre os bens próprios do outro.
Se a dívida é comum, o credor tem interesse em demandar processualmente ambos os cônjuges, pois só assim conseguirá, na falta de bens comuns ou tratando-se do regime de separação, responsabilizar os bens próprios do cônjuge que não contraiu a dívida. Se apenas demandar o cônjuge devedor, e tratando-se de dívida comum, só poderá obter o pagamento mediante os bens próprios daquele e os bens comuns que ele administre e possa dispor por si. Portanto, o credor demandará ambos os cônjuges tentando demonstrar que a dívida é comum e, assim, responsabilizar os bens comuns e ambos os cônjuges nos termos da lei substantiva. Só assim a ação declarativa processual se articula com o regime substantivo, isto é, o facto de um só cônjuge assumir uma dívida não significa que ela seja própria desse cônjuge. Como afirmámos já, resulta do art.º 1691º do Código Civil que qualquer dos cônjuges pode contrair dívidas que responsabilizam o património comum (art.º 1695.º do Código Civil). Uma vez obtida a sentença contra os cônjuges pode o credor executar a mesma, penhorando bens comuns e os próprios dos cônjuges. O mesmo se diga se o credor tiver título executivo contra ambos os cônjuges.
A propósito, refere M. Teixeira de Sousa[9] que o art.º 28º-A do Código de Processo Civil (relevando agora o atual art.º 34º do Código de Processo Civil de 2013), ao impor um litisconsórcio necessário entre os cônjuges quando esteja em causa uma dívida comum, transpõe para o plano processual o regime da responsabilidade patrimonial pela satisfação dessas dívidas. Acrescenta o mesmo Professor que, apesar de o preceito só definir o litisconsórcio no caso de se pretender uma decisão que seja suscetível de ser executada sobre bens próprios do cônjuge não devedor, não está na disponibilidade do autor demandar só o seu devedor ou também o seu cônjuge no caso de a dívida ser comum. Havendo litisconsórcio este não é voluntário mas necessário.[10]
Parece divergir desta posição o Prof. Lebre de Freitas[11], defendendo o litisconsórcio voluntário por causa de situações em que o credor desconhece o casamento, o regime de bens ou a utilização do bem, ente outras, desconhecendo factos de que resulte a comunicabilidade da dívida e não lhe sendo exigível que a conheça. Não explica, porém, como admitir a demanda ou as prossecução exclusiva da ação contra o cônjuge não administrador, ou seja, aquele que não praticou o ato e para o qual, alegadamente, se comunicou a dívida.
No caso concreto, o A. demandou ambos os cônjuges, visando obter a sua condenação conjunta, certamente para cobrar do património comum e dos bens próprios de cada um deles, até onde fosse possível, o valor do seu crédito. Se o A. conhece a comunicabilidade da dívida e instaura a ação em função dela, naturalmente para obter a condenação de ambos os cônjuges e contra eles dirigir a oportuna execução, tem de instaurar a ação contra os dois, como efetivamente fez.
A ação, construída com o fim de obter a condenação dos dois cônjuges no pagamento de uma dívida comunicável e, por isso, instaurada contra ambos, não pode prosseguir apenas contra a R. Pressupõe a própria comunicabilidade da dívida contraída pelo R. marido (casados à data do contrato de prestação de serviços). Estamos, a nosso ver, perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo. Da sua preterição resulta ilegitimidade passiva (art.ºs 34º, nº 3), do conhecimento oficioso[12] (art.º 578º) que não pode ser suprida, por força do caso julgado formado na ação anterior relativamente ao D…, marido da R.
Há fundamento válido para a absolvição da R. da instância (art.ºs 278º, nº 1, al. d), 576º, nºs 1 e 2, e 577º, al. e)).

Diz-nos a R. recorrente que o A., ao desistir do pedido na primeira ação, se extinguiu o direito que pretendia fazer valer, não podendo, por isso, exercê-lo de nova, desta feita relativamente à apelante.
É verdade o que afirma. Resulta do art.º 285º que a desistência do pedido “extingue direito que se pretendia fazer valer” e que a desistência da instância, diferentemente, “apenas faz cessar o processo que se instaurara” (nºs 1 e 2).
Enquanto a desistência da instância não obsta a que seja instaurada outra causa em tudo semelhante à primeira, designadamente com o mesmo objeto e os mesmos sujeitos, ao invés, a desistência do pedido não produz efeitos apenas e tão só no estrito âmbito daquele processo, antes o ultrapassa e o extravasa. É muito claro aquele artigo ao prescrever que a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer, pelo que os efeitos preclusivos do caso julgado material impedem o autor de fazer emergir novamente um pedido indemnizatório, atribuindo-lhe um diferente valor ou mesma uma diferente construção jurídica. A desistência do pedido traduz um ato positivo da parte que afeta o direito de quem a produz na justa medida em que implica a solução do litígio. Digamos que, tal como na transação, as partes compõem o litígio sem se preocuparem com o regime jurídico aplicável e sem a intervenção ativa do juiz; só com a sentença de mérito o juiz compõe a lide em conformidade com as determinações do direito objetivo.
Miguel Teixeira de Sousa[13] escreve que a desistência do pedido é o negócio unilateral através do qual o autor reconhece a falta de fundamento do pedido formulado.
Com efeito, a desistência do pedido representa o reconhecimento pelo autor de que a situação jurídica alegada não existe ou se extinguiu, arrastando consigo a extinção da situação jurídica que pretendia tutelar (artigo 295º, nº 1), ou constitui a situação que o autor negava.
Como acentua Lebre de Freitas[14], a homologação da desistência do pedido constitui caso julgado material.
O mesmo Professor deixa claro, a propósito da ação executiva que “a desistência do pedido, tendo na acção executiva a mesma natureza de negócio de direito privado que tem na acção declarativa, não pode ser entendida como renúncia ao direito de executar o crédito (…), mas como renúncia ao próprio crédito exequendo. (…)”.
No acórdão da Relação de Évora de 30.11.2016[15] escreveu-se: “Como é sabido, na acção declarativa, tais efeitos resultam directamente dos preceitos legais que regem a matéria, pelo que, desde que não verse sobre direitos indisponíveis, enquanto a desistência do pedido é livre e extingue o direito material que através da acção o autor pretendia fazer valer, implicando, portanto, a absolvição do Réu do pedido, nos termos dos artigos 285.º, nº 1, 286.º, nº 2, e 289.º, nº 1, do CPC, já a desistência da instância só é livre antes do oferecimento da contestação, dependendo da aceitação do Réu quando requerida depois desse momento (artigos 286.º, nº 1, CPC), e limita-se a fazer cessar o processo que se instaurara (artigo 285.º, nº 2, CPC), não importando, em princípio, extinção do direito material que se pretendia fazer valer.
Importa esclarecer que, se, por um lado, a desistência do pedido extingue o direito que o autor pretendia fazer valer por via da ação, significando que abdica desse direito, por outro lado, não é menos exato afirmar que essa extinção opera, em princípio, no âmbito da relação processual estabelecida na ação, constituindo caso julgado entre as partes intervenientes; tem o âmbito do litígio e do próprio pedido, que é dirigido contra determinada ou determinadas pessoas. Ao desistir do pedido na primeira ação, com homologação judicial e posterior trânsito em julgado, o A. criou unilateralmente uma situação de caso julgado em qualquer ação posterior em que esteja reunida a tríplice identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido.
No caso sub juditio, a R. não era parte na primeira ação, não foi sujeito da relação material controvertida, pelo que o caso julgado ali formado não a abrangeu enquanto exceção, ou seja, na sua formulação negativa. Ao ter desistido do pedido ali manifestado apenas contra o cônjuge da recorrente, foi apenas na sua relação litigiosa que com ele mantinha que se assentou na extinção do seu direito. O caso julgado daquela decisão não obsta, em princípio, à discussão de um direito que o A. possa ter sobre a recorrente. De nada o A. desistiu relativamente a ela.
Mas é indispensável notar que está em causa o mesmo direito do A.: um determinado direito de crédito que agora pretende que seja reconhecido novamente, desta feita também contra a R. mulher, alegando e defendendo que é da responsabilidade de ambos os cônjuges, não obstante ter desistido do pedido relativamente ao R. marido.
Assim, para além da ilegitimidade da R. por preterição do litisconsórcio necessário, sempre se deverá colocar a questão da autoridade do caso julgado.
Já atrás, aquando da apreciação do recurso subordinado, nos debruçámos sobre os pressupostos do caso julgado, enquanto exceção, tendo concluído pela verificação do mesmo relativamente ao R. marido, dada a tríplice identidade, de sujeitos, causa de pedir e pedido.
Não será apenas a ilegitimidade passiva da R. mulher, por preterição do litisconsórcio necessário, a obstar ao prosseguimento normal da ação.
Uma vez passada em julgado, a sentença define de modo irrefragável a relação jurídica sobre que recaiu. Se situações há em que pode ser difícil resolver o problema de identidade de ações, elas assim se devem considerar se a decisão da segunda fizer correr ao tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira.
Algo diferente da exceção do caso julgado é a autoridade própria do caso julgado que se impõe mesmo onde não há identidade objetiva. Como defende Teixeira de Sousa, a autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa ação anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, enquanto questão prejudicial, constituindo, assim, uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior: “quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado”[16].
A autoridade do caso julgado realça a impossibilidade da discussão em nova ação de questão que se considera definitivamente resolvida naquela (art.ºs 580º, nº 2 e 621º).
Assim, a decisão de mérito produzida num determinado processo, confirmando ou constituindo uma situação jurídica, pode, em variados casos, ser vinculativa noutros processos onde se vise a apreciação ou constituição de outras situações jurídicas com ela conflituantes. Para isso, releva a existência de uma relação entre o objeto de uma e o objeto da outra que implique a possibilidade de confirmação ou de divergência ou contradição da decisão anterior com a decisão a proferir na ação posterior, seja ela de identidade (ocorre nas situações de exceção de caso julgado), seja ela de prejudicialidade ou de concurso (casos de autoridade do caso julgado).
É ainda importante salientar a tendência jurisprudencial na defesa de que uma questão essencial num primeiro processo vincula a decisão do outro tribunal que julga a segunda ação. Com a autoridade do caso julgado, os tribunais ficam vinculados às decisões uns dos outros, quanto a questões essenciais. Se a decisão em causa foi decisiva para a procedência ou improcedência da ação, impõe-se aquela autoridade, não podendo o tribunal da segunda ação julgá-la em contrário, mesmo que a causa de pedir seja diferente.[17]
As questões essenciais são as que respeitam aos factos judiciais, os factos concretos que são determinados e separados de todos os outros pela norma aplicável e foram tornados certos através da decisão que sobre eles recaiu após transitar em julgado e estando perante as mesmas partes.
Nesta perspetiva, só as questões essenciais poderão ter a autoridade de caso julgado, o que significa que só a terão as decisões sobre questões relativas à causa de pedir da ação transitada. Mas, mesmo que a sua causa de pedir seja diferente, aquela autoridade deve impor-se na segunda ação.
Quer na sua função positiva de autoridade, quer na função negativa que impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal (exceção de caso julgado)[18], é a necessidade de certeza do direito e da segurança das relações jurídicas que se acautela. Como ensina ainda Alberto dos Reis[19], “desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação, da anarquia. …A força e a autoridade derivam … da necessidade superior de certeza e segurança jurídica”. Vale este raciocínio também em sentido inverso: não pode uma sentença posterior reconhecer um direito que uma sentença anterior negou com trânsito em julgado.
A força do caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas, pressupondo a existência de uma conexão que impeça que a primeira decisão, transitada em julgado, seja contraditada pela segunda.
Refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.2.2012[20], citando e traduzindo De la Oliva dos Santos, Andrés[21]: “Estas exigências necessitam de um vínculo que impeça: 1) que uma controvérsia se prolongue até ao infinito; 2) que se torne a instaurar uma segunda causa sobre uma matéria já decidida em via definitiva num órgão judicial; 3) que se produzam decisões e sentenças contraditórias ou se verifique uma injusta e irracional reiteração de sentença de conteúdo idêntico no confronto das mesmas partes”.
A propósito, o sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 18.4.2013[22] é lapidar:
1. O princípio da eventualidade ou da preclusão consubstanciado no nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil, que implica que toda a defesa deva ser deduzida na contestação, radica em razões de lealdade na condução da lide e razões de segurança e de certeza jurídica que impedem que os efeitos de uma sentença transitada em julgado sejam postergados, com base em novos argumentos que nessa acção poderiam ter sido invocados, e o não foram.
2. A autoridade de caso julgado de sentença transitada e a excepção de caso julgado constituem efeitos distintos da mesma realidade jurídica. Enquanto esta tem em vista obstar à repetição de causas e implica a tríplice identidade - de sujeitos, de pedido e de causa de pedir - aquela implica a proibição de novamente ser apreciada certa questão, podendo actuar independentemente da mencionada tríplice identidade.”[23]
Ora, como vimos, com o trânsito em julgado da sentença homologatória da desistência do pedido na primeira ação formou-se a autoridade do caso julgado material. Como escreve Lebre de Freitas[24], “a sentença homologatória da desistência do pedido, que é um negócio jurídico de direito substantivo, produz caso julgado, tal como a sentença que aplica o direito aos factos provados”.
O poder judicial não pode ser colocado numa posição de decidir algo que já foi decidido e que, a acrescentar a isso, ainda transitou em julgado, com a consciência de estabilidade e de inimpugnabilidade que se forma, ou deve formar, nas partes. Seja pela própria possibilidade de tal vir a resultar em diferente sentença e se incorrer em contradição, pondo em causa a sua coesão e a justiça, seja pelo próprio efeito de incerteza que tal provoca na comunidade em geral e, em concreto nas partes.
O caso julgado é preexistente à nova e duplicada ação, transmitindo desde logo segurança jurídica. Por isso, desde logo funciona como autoridade, ainda antes de se manifestar como exceção. Ele é efeito da sentença transitada. O segundo tribunal está vinculado à decisão anterior, seja ela idêntica ou não sobre o prisma do pedido, da causa de pedir e das partes.
Observámos já que, do ponto de vista substantivo, nesta ação e na ação anterior, está em causa o mesmo direito do A.; um direito de crédito com a mesma origem, fundamento, e até com o mesmo valor[25], exatamente o mesmo.
Dispondo o art.º 285º, nº 1, que “a desistência do pedido extingue o direito que se pretendia fazer valer”, tudo se passa como se o A. tivesse renunciado àquele direito material ou esse direito lhe tivesse sido negado.
A segunda ação não respeita sequer a um direito semelhante ou a um direito paralelo do A. sobre a R. mulher, mas ao mesmo direito, ao único direito relativamente ao qual desistiu, provocando a sua extinção. É do mesmo direito e questão essencial que tratam ambas as ações. Por isso, ainda que no lugar do primitivo R. (na ação anterior) surjam agora, nesta ação, ele próprio e o seu cônjuge como sujeitos passivos, impõe-se a autoridade do caso julgado formado na ação anterior que ditou a extinção do direito.
Não é razoável nem aceitável que, depois de ter provocado a extinção de um direito material que era a questão essencial numa ação instaurada apenas contra um dos cônjuges obrigados, o autor o venha tentar exercer de novo, em ação posterior que dirige contra o mesmo réu da ação anterior e o seu cônjuge. Tal conduta é contrária ao efeito da ação anterior, à estabilidade por ela criada. Da discussão do direito em causa poderia resultar a afirmação do direito, o que contraria frontalmente a autoridade do caso julgado anterior.
Não excluímos a possibilidade, ou mesmo a probabilidade de ter ocorrido, da parte do A., um erro na declaração pela qual desistiu do pedido (querendo desistir da instância) na primeira ação. Todavia, não é questão que possa integrar o objeto deste processo e, menos ainda, deste recurso.

Concluindo, procede a apelação e improcede o recurso subordinado.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)[26]
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e o recurso subordinado improcedente e, em consequência, por ilegitimidade passiva dos RR. e também por força da autoridade do caso julgado, nos termos dos art.ºs 34º, 278º, nº 1, al. d), 576º, nºs 1 e 2 e 577º, al.s a) e i) e 578º, do Código de Processo Civil:
1. Revoga-se a sentença na parte em que determinou o prosseguimento da ação relativamente à R. D…, absolvendo-se agora a mesma da instância; e
2. Confirma-se a sentença na parte em que decidiu haver caso julgado relativamente ao R. C… e o absolveu da instância.
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Por neles ter decaído, as custas da apelação e do recurso subordinado são da responsabilidade do A. (art.º 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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Porto, 13 de junho de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[3] Poderá ser modificada através de recurso extraordinário, mas dele não temos de cuidar aqui.
[4] Completada por informação posterior.
[5] Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1980, pág. 153.
[6] BMJ 464/545.
[7] Como ocorre no caso da ação sub-rogatória, por exemplo, em que o sub-rogado tem um mero interesse indireto (art.º 606º, nº 1 do Código Civil): legitimidade indireta ou substituição processual.
[8] Proc. nº 04B2212, in www.dgsi.pt.
[9] As Dívidas dos Cônjuges em Processo Civil, in AAVV, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pág.s 344 e 345.
[10] Na senda de Alberto dos Reis, Processo de Execução, T. I, pág.s 280 a 282 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL 1980, pág.s 230 e 231.
[11] Código de Processo Civil anotado, Coimbra, 1999, Vol. 1º, pág. 61 (anot. ao art.º 28º-A). Também A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, rev. e atualizada, Coimbra, pág.s 55 e 56.
[12] No caso, também invocada.
[13] Estudos sobre o Novo Processo Civil, págs. 205 e 206.
[14] Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais, pág. 125.
[15] Proc. 3443/14.9T8STB.E1, in www.dgsi.pt.
[16] O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ nº 325, pág. 171.
[17] Silva Carvalho, O CASO JULGADO Na Jurisdição Contenciosa (como excepção e como autoridade
– limites objectivos) e na Jurisdição Voluntária (haverá caso julgado?)”, in http://www.search.ask.com/web?l=dis&q=Silva+Carvalho%2C+O+CASO+JULGADO+Na+Jurisdi%C3%A7%C3%A3o+Contenciosa+%28como+excep%C3%A7%C3%A3o+e+como+autoridade+%E2%80%93+limites+objectivos%29+e+na+Jurisdi%C3%A7%C3%A3o+Volunt%C3%A1ria+%28haver%C3%A1+caso+julgado%3F%29&o=APN10644A&apn_dtid=^BND101^YY^PT&shad=s_0047&gct=hp&apn_ptnrs=AG5&lang=pt&atb=sysid%3D101%3Auid%3D01d1d3bfb415bb15%3Auc%3D1364843619%3Asrc%3Dhmp%3Ao%3DAPN10644A.
[18] A que aqui nos interessa.
[19] Código de Processo Civil anotado, vol. III, pág.s 94 e 95.
[20] Proc. 5182/06.5TBMTS-B.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[21] Oggetto del Processo Civile e Cosa Giudicata”, Giuffrè Editore, Milão, 2009,116-118.
[22] Proc. 2204/10.9TBTVD.L1-2, in www.dgsi.pt.
[23] Não olvidamos que existe alguma jurisprudência na defesa da necessidade de verificação da tríplice identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido também na autoridade do caso julgado (cf. i.a. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.9.2009, proc. nº 2258/07.5TBSTS.S1, in www.dgsi.pt. No sentido por nós defendido, de que a verificação da tríplice identidade se impõe apenas na formulação negativa do caso julgado (exceção do caso julgado), cf. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2007, proc. 07A3739, publicado na mesma base de dados.
[24] Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, pág. 790.
[25] O que até seria dispensável.
[26] Da exclusiva responsabilidade do relator.