Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1169/13.0TMPRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP2024021169/13.0TMPRT-C.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Cabendo ao juiz fazer observar o princípio do contraditório (ao longo de todo o processo), não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa, também se impõe ao julgador o respeito por tal princípio (sendo que com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, se pretendeu assegurar uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, intensificando-se a colaboração e o contributo das partes para a satisfação dos seus próprios interesses, com vista à justa composição dos litígios).
II - O dever de audição prévia existe sempre que estejam em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de, como é o caso, virem a integrar a base de decisão.
III - Constitui decisão-surpresa o, inopinado, conhecimento de exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal deduzida por uma parte sem respeito pelo direito de pronúncia da parte contrária sobre os factos e razões de direito invocados, na procedência da exceção.
IV - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual (art. 195º, do CPC) sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo de anular a decisão quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que de questão adjetiva se trate.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1169/13.0TMPRT-C.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Família e Menores de Paredes - Juiz 3


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
2º Adjunto: Des. Ana Olívia Loureiro




Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: BB

AA propôs ação contra BB, a pretender alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais relativas ao filho menor de ambos, CC.

Alegou, para tanto e em síntese, que a progenitora, junto de quem está fixada a residência da criança, se mudou para França, em setembro de 2022, levando a criança consigo, sem consentimento do requerente, circunstância que justifica a redefinição do regime de visitas e contactos do progenitor não residente.

Citada a progenitora, veio a mesma, em 17/6/2023, apresentar alegações a invocar, designadamente, a exceção dilatória da incompetência internacional deste Tribunal, por a residência da criança estar fixada em França desde setembro de 2022.

O Ministério Público, com vista dos autos, em 20/6/2023, promoveu:

“A progenitora vem invocar a incompetência internacional dos tribunais portugueses por via da aplicação do art. 8º, nº1 do Regulamento Bruxelas II-A.

No entanto, do articulado do progenitor resulta, para além do mais, que

Em Setembro de 2022, a Requerida mudou-se para França, levando consigo o menor CC,

3. A Requerida deslocou-se com o filho menor para o estrangeiro, nomeadamente para França, sem consentimento prévio do pai ou do Tribunal.

Ou seja, o requerente alega que a alteração de país de residência foi feita de forma ilícita, pelo que nos termos do disposto no art. 10º do Regulamento os tribunais portugueses manteriam competência, em, face ao que é alegado.

Por outro lado, sempre se poderá concluir que o menor tem uma ligação particular a Portugal, país onde viveu 12 anos, sendo nacional português, bem como os pais, ao que acresce o facto do progenitor manter residência em Portugal, pelo que nos termos do art. 12º, nº 3 a) do mesmo diploma os tribunais portugueses, também por aqui, mantêm competência.

Assim, promovo se julgue improcedente a invocada excepção de incompetência internacional.

No mais, p, se cumpra o contraditório, após o que nos pronunciaremos” (negrito nosso).


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Foi, em 23/6/2023, proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:

“Nestes termos, decide-se julgar verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infração das regras de incompetência internacional, e, em consequência, absolve-se a requerida da instância.

Custas a cargo do requerente, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

Valor processual: € 30 000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), de acordo com o disposto no artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.


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Apresentou o progenitor Requerente recurso de apelação, pugnando por que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, seja alterada a decisão recorrida, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

“1. Ao não permitir ao Requerente/Apelante pronunciar-se sobre a excepção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infracção das regras de competência internacional, cometeu a sentença de Nulidade por preterição do exercício do contraditório,

2. Pois que aquando da prolação da sentença recorrida ainda se encontrava a decorrer o prazo de contraditório e para se pronunciar do sobre o documento junto nas Alegações apresentadas pela Requerida, violando assim princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, nº 3 do CPC.

3. O Requerente deu entrada em 23 de maio de 2023 de uma Alteração da Regulação das Responsabilidade Parentais,

4. A Requerida apresentou Alegações em 17 de junho de 2023, onde invocou excepção dilatória de incompetência internacional e juntou documento, na mesma data notificou a mandataria do Requerente,

5. O prazo de dez dias para exercer o contraditório, terminaria em 3 de julho, com a possibilidade de o Recorrente exercer o contraditório, com multa, nos dias 4,5 ou 6 de julho.

6. O Requerente exerceu o contraditório e pronunciou-se sobre o documento junto, em 26 de junho de 2023, antes do término do prazo concedido.

7. A douta sentença recorrida foi proferida em 23 de junho de 2023, dois dias após o início do prazo de contraditório e sem que o mesmo tivesse sido exercido,

8. O tribunal a quo aniquilou o direito de defesa do Recorrente, violando o princípio do contraditório, pelo que está a douta sentença irremediavelmente ferida de nulidade

9. A decisão recorrida foi proferida a 23-06-2023, não permitiu, o decurso integral do prazo para exercício do contraditório pelo Requerente sobre a invocada exceção dilatória de incompetência absoluta decorrente das regras de competência internacional, nos termos legalmente previstos, nem a pronúncia sobre o documento junto.

10. A decisão recorrida omitiu ato ou formalidade que a lei prescreve, ao não viabilizar o contraditório legalmente previsto quanto a exceção invocada.

11. Ao assim não atuar, a Exma. Juíza a quo violou o aludido artigo 3.º, nº 3 do C.P.C., cometendo, por omissão, uma nulidade processual, a qual influiu no exame e decisão da causa.

12. E, assim, tornando a própria sentença final nula – artigo 195.º, no 1 e 2 do CPC.

13. A douta decisão “sub judice” que julgou procedente a excepção de incompetência internacional do Tribunal Português e absolveu a ora Requerida da instância deve ser alterada.

14. O menor CC foi levado em setembro de 2022, para a França pela Requerida, sem consentimento prévio do pai ou do Tribunal.

15. A regulação das responsabilidades parentais tinha fixado que “Todas as decisões de maior relevo para a vida do menor serão tomadas conjuntamente pelo pai e pela mãe, ressalvados os casos de urgência manifesta, em que qualquer deles poderá agir sozinho, prestando contas ao outro logo que possível.”

16. A residência habitual do menor CC situava-se em território nacional, o menor, tem nacionalidade portuguesa, nasceu neste país e aqui residiu até aos 12 anos, fala a língua portuguesa, a sua família alargada materna e paterna reside neste país, estava perfeitamente integrado no meio escolar, não tendo na França, para além da sua progenitora, qualquer outro familiar e não tendo qualquer ligação afectiva, linguística ou cultural com aquele país.

17. Conforme decorre do alegado pelo Requerente, no seu requerimento de 26.06.2023, consubstanciado no documento junto pela Requerente, não foi dada qualquer autorização implícita para residir em França, nem tal declaração consubstancia qualquer aceitação na ida do menor para França, mas sim minimizar o malefício já feito pela Requerida, tal declaração destinava-se a não inviabilizar a ida do menor para a escola,

18. A deslocação do menor CC foi ilegal, não sendo de aplicar o artigo 8.º, quanto ao Prolongamento da competência quanto ao direito de visita.

19. É de aplicar ao presente processo o Regulamento Bruxelas II-B) - Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças,

20. No artigo 9.º do referido regulamento, estabelece que “… em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro…”

21. De acordo com a definição de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança» (art. 2.º, n.º 11, do Regulamento (CE) n.º 2019/1111, e artigo 3.º da Convenção de Haia de 1980), a legalidade de uma deslocação ou retenção é apreciada em função dos direitos de guarda atribuídos nos termos do direito do Estado-Membro da residência habitual da criança antes da sua deslocação ou retenção.

22. Nos presentes autos, de acordo com o direito português, que corresponde ao direito do Estado-membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação, a transferência da residência do menor dependia do consentimento expresso ou tácito dos seus dois progenitores, salvo se houvesse decisão judicial que autorizasse a progenitora a deslocar o menor.

23. Concluindo-se que a deslocação do menor CC para França foi uma deslocação ilícita, é aplicável o disposto no artigo 9º do Regulamento n.º 2019/1111, de acordo com o qual os tribunais do Estado-Membro, onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro.

24. Assim, segundo a interpretação dos artigos. 7.º e 9.º do Regulamento n.º 2019/1111, e ainda que se entendesse, por aplicação da regra geral constante do artigo 7.º, n.º 1, que o menor tinha adquirido uma nova residência habitual em França, os tribunais portugueses apenas poderiam declarar-se internacionalmente competentes se uma das condições alternativas enunciadas neste artigo 9.º, alíneas a) ou b) estivesse igualmente preenchida, o que não sucede no caso dos autos.

25. Mal esteve, portanto, o Tribunal “a quo” ao decidir que o Tribunal Português era incompetente para julgar a acção, absolvendo a Recorrida da instância, tendo a douta decisão recorrida violado as normas jurídicas invocadas, nomeadamente o artigo 9.º - Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019”.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

- Se a decisão recorrida - “decisão surpresa” - viola o princípio do contraditório e consequências dessa inobservância.

- Da responsabilidade tributária.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

            1. FACTOS PROVADOS

Os factos provados com relevância para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório que antecede.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da violação do contraditório: decisão surpresa

Sustentando ter o menor CC sido levado, em setembro de 2022, para França, pela Requerida, sem consentimento prévio do pai ou do Tribunal, insurge-se o apelante contra a decisão recorrida que, sem observância do contraditório, julgou verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infração das regras de incompetência internacional, e, em consequência, absolveu a requerida da instância.  

Conclui o Apelante que o tribunal a quo aniquilou o seu direito de defesa, pois que proferiu decisão sem aguardar o prazo, ainda em curso, de 10 dias, tendo desrespeitado o contraditório legalmente previsto quanto a exceção invocada, assim violando o artigo 3.º, nº 3, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, cometendo uma nulidade processual dado a omissão verificada influir no exame e decisão da causa, tornando a própria decisão final nula – artigo 195.º, no 1 e 2 do CPC.
Vejamos se procede a arguida nulidade, por inobservância do contraditório.
O referido nº 3, do artigo 3º, indicado como violado, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”. Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas, mesmo que, apenas, de direito - já há muito vinha a ser afirmado pela jurisprudência constitucional.
A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas[1] para o processo civil, traduz a materialização de um direito das partes à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[2]. Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas e influenciadas pelas partes.
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Como vimos, e como refere o ilustre professor Lebre de Freitas, cuja lição seguimos, o princípio do contraditório materializa-se, em todas as fases do processo, tendo as partes, em todas elas, o direito a influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição. Assim, tal princípio tem de ser observado mesmo ao nível do direito, impondo, a este nível, que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar decisões surpresa[3]. A proibição de decisão surpresa, decisão baseada em fundamento não previamente configurado pelas partes, sem que estas tenham obrigação de a prever, é uma decorrência do princípio do contraditório.
A proibição da decisão surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes, mas oficiosamente levantadas por si, ex novo, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade. Com este princípio quis-se impedir que as partes pudessem ser surpreendidas com soluções não discutidas no processo. Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem de subsumir e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.
A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”[4].
Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis, pedidas ou não, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada a priori possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.
Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.
Consagrada está uma garantia de discussão dialética entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, o direito a exprimir posição para influenciar a decisão, seja esta a pensada pelo julgador ex novo seja a pedida pela parte contrária.


Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influir ativamente na decisão.[5]. A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.
Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem[6].
O dever de audição prévia só existe, contudo, quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão. São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava a contar, sendo que na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração[7].
Destarte, em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade, devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[8].
Ora, ao caso foi conferida uma solução jurídica sem que tenha sido facultada ao requerente da ação a possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão bem podendo o mesmo, com os seus argumentos, fácticos e jurídicos, influenciar a decisão, no exercício de um direito que a lei lhe atribui.   
Existia o dever de observar o contraditório, e, em causa estão, mesmo, para além de questões de direito, factos, suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
Conclui-se, assim, pela efetiva violação do princípio do contraditório, mal tendo andado o Tribunal a quo ao decidir sem a sua observância.


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Consequência da inobservância do contraditório.

A não observância do contraditório, no sentido de se não conceder a possibilidade de pronúncia sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que consagra, no seu nº1, “… a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, nulidade essa que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º[9].
Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisámos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa a julgar a exceção procedente, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, bem podendo factos aportados e razões de direito invocadas influenciar a decisão, não pode deixar de se entender ocorrer nulidade que afeta a decisão.
Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades, sendo que, nos termos do nº2, do art. 195º “Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente”. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1 ), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso[10]. A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso[11].
Assim, analisada a lei e vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos, que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir da incompetência do Tribunal, questão suscita por uma das partes, de ouvir os argumentos da outra parte, para no, ponderado, confronto da posição de todos os interessados, decidir.
Neste conspecto, sendo a infração das regras de competência internacional uma exceção dilatória, podendo ser suscitada pelas partes e conhecida oficiosamente pelo Tribunal, tinha, contudo, a outra parte, previamente à decisão, de ser ouvida para, após, no confronto, também, da sua posição, ser, então, a questão decidida e, não o tendo sido, a nulidade cometida acarreta a invalidação da decisão surpresa.
Assiste, deste modo, razão ao apelante, ao concluir pela violação do contraditório, elevado, na verdade, até, à categoria de princípio constitucional
Deste modo, procedendo a apelação por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, não pode a decisão ser mantida, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões da apelação.


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- Da responsabilidade tributária.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente dado a parte contrária não ter apresentado resposta ao mesmo, tirando o recorrente, ao ver a decisão contra que se insurge anulada, proveito do recurso (artigo 527º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida para que seja observado o contraditório prévio.


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Custas pelo apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.



Porto, 19 de fevereiro de 2024
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes
Ana Olívia Loureiro
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[1] FREITAS, Lebre de (1992), Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38.
[2] FREITAS, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999), Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 8.
[3] Freitas, 2006:115 a 118.
[4] REGO, Carlos Lopes do (2004). Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra: Almedina, pág 32.
[5] cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057, in dgsi.net.
[6] cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, proc. 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, proc. 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, proc. 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac da RP de 10/01/2008, proc. 0736877, todos in dgsi.net.
[7] Ac. RC de 13/11/2012, proc. 572/11.4TBCND.C1, in dgsi.net.
[8] Ac. RC de 20/9/2016, proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net
[9] Cfr. Acs STJ de 13/1/2005, proc. 04B4031, de 11/12/95, proc. 96A483, de 03/12/96, proc. 97A232, de 06/05/97, proc. 97A232 e de 22/01/98, proc. 98A448, Ac. RE de 1/4/2004, proc. 2737/03-2 e Ac. RP de 10/01/2008, proc. nº 0736877, todos in www.dgsi.pt
[10] Acs. STJ. de 13/01/2005, Proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, Proc. 0733086, in dgsi.net.
[11] Ac. RL de 9/10/2014, proc. 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net.