Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3053/14.0TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDENAÇÃO SUPERIOR AO PEDIDO
ATROPELAMENTO
CULPA DO CONDUTOR
CULPA DO LESADO
REPARTIÇÃO DE CULPA
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
COMPENSAÇÃO PELA PERDA DO DIREITO À VIDA E OUTROS DANOS DA VÍTIMA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS DOS FILHOS
CONTAGEM DOS JUROS DE MORA
Nº do Documento: RP201605163053/14.0TBVMG.P1
Data do Acordão: 05/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 625, FLS.321-345)
Área Temática: .
Sumário: I - Em virtude da culpa do lesado constituir matéria de conhecimento oficioso, não constitui nulidade de sentença por condenação além do pedido, a circunstância do tribunal concluir pela culpa exclusiva do lesante, não obstante os sucessores do lesado hajam afirmado na petição inicial que o seu antecessor teve um contributo de 30% para a eclosão do sinistro, desde que a condenação proferida na decisão final se contenha dentro do pedido global formulado pelos autores.
II - A maioridade de um descendente de beneficiário da segurança social, só por si, não obsta a que lhe seja paga pensão de sobrevivência pela Segurança Social.
III - A culpa do lesado não é um dos fatores que deva ser relevado na fixação da compensação pela perda do direito à vida nos termos conjugados do nº 4 do artigo 496º do Código Civil com o artigo 494º, do mesmo diploma legal, mas sim a culpa do agente.
IV - A sede própria de valoração da conduta do lesado é no quadro do disposto no nº 1, do artigo 570º do Código Civil, operando depois de fixada a compensação devida.
V - Sempre que a indemnização é fixada através da equidade, como sucede na fixação da compensação por danos não patrimoniais, não havendo constrangimentos na sua fixação decorrentes do montante global dos pedidos formulados, deve considerar-se que tal valor é actualizado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. N.º 3053/14.0TBVNG.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 3053/14.0TBVNG.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Em virtude da culpa do lesado constituir matéria de conhecimento oficioso, não constitui nulidade de sentença por condenação além do pedido, a circunstância do tribunal concluir pela culpa exclusiva do lesante, não obstante os sucessores do lesado hajam afirmado na petição inicial que o seu antecessor teve um contributo de 30% para a eclosão do sinistro, desde que a condenação proferida na decisão final se contenha dentro do pedido global formulado pelos autores.
2. A maioridade de um descendente de beneficiário da segurança social, só por si, não obsta a que lhe seja paga pensão de sobrevivência pela Segurança Social.
3. A culpa do lesado não é um dos fatores que deva ser relevado na fixação da compensação pela perda do direito à vida nos termos conjugados do nº 4 do artigo 496º do Código Civil com o artigo 494º, do mesmo diploma legal, mas sim a culpa do agente.
4. A sede própria de valoração da conduta do lesado é no quadro do disposto no nº 1, do artigo 570º do Código Civil, operando depois de fixada a compensação devida.
5. Sempre que a indemnização é fixada através da equidade, como sucede na fixação da compensação por danos não patrimoniais, não havendo constrangimentos na sua fixação decorrentes do montante global dos pedidos formulados, deve considerar-se que tal valor é actualizado.
***
*
***
Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 09 de maio de 2014, nas Varas de Competência Mista, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, B… e C… instauraram ação declarativa comum contra a Companhia de Seguros D… S.A. pedindo a condenação desta ao pagamento da quantia de € 110.194,00, acrescida de juros legal a partir da citação e até efetivo e integral pagamento.
Para sustentarem as suas pretensões, os autores alegaram, em síntese, que no dia 20 de fevereiro de 2013, aliás 18 de fevereiro, cerca das 19h30, ao km. …. da E.N. …, em …, Vila Nova de Gaia, numa reta com visibilidade em mais de trezentos metros e com iluminação pública, E…, pai dos dois autores, efetuava o atravessamento da via da esquerda para a direita, atento o sentido …/…, sob influência do álcool, enquanto F… conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-ES-.., no sentido …/…, a velocidade superior a cinquenta quilómetros por hora, já após a placa indicadora da localidade de …, indo colidir com a frente direita esquerda do seu veículo no peão, quando este tinha já atravessado a metade esquerda da faixa de rodagem e os primeiros metros da faixa da direita, atento o sentido de marcha do veículo ES, daí resultando a morte do peão, no dia 19 de Fevereiro de 2013, pelas 6h30, bem como todos os danos cuja reparação os autores pretendem ver ressarcidos pela seguradora de responsabilidade civil do veículo ES, a ré Companhia D…, SA.
Efetuada a citação da ré, a mesma veio contestar arguindo a ilegitimidade ativa dos autores por não oferecerem escritura de habilitação de herdeiros, imputando a ocorrência do sinistro exclusivamente à conduta do falecido peão sob influência do álcool e impugnando, por desconhecimento, a restante factualidade alegada pelos autores, concluindo pela sua absolvição da instância, ou se assim não se entender, pela total improcedência da ação.
A convite do tribunal, os autores indicaram o número de beneficiário da Segurança Social do falecido E…, sendo o Instituto de Segurança Social, IP citado para os efeitos do decreto-lei nº 59/99, de 22 de fevereiro.
O Instituto de Segurança Social, IP, aderindo à descrição do acidente na petição inicial dos autores, deduziu pedido de reembolso contra a Companhia de Seguros D…, SA, pedindo a condenação da seguradora ao pagamento da quantia de € 2.314,82, acrescida de juros de mora contados à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Notificada do pedido de reembolso, a Companhia de Seguros D…, SA reiterou a sua versão do acidente e impugnou a generalidade da factualidade alegada pelo Instituto de Segurança Social, IP, pugnando pela total improcedência desta pretensão.
A audiência prévia foi dispensada, fixou-se o valor da causa no montante de € 117.279,77, proferiu-se despacho saneador em que se julgou improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade suscitada pela ré, identificou-se o objeto do litígio, fixaram-se os temas de prova, admitiram-se as provas oferecidas pelas partes e designou-se dia para realização da audiência final.
Realizou-se a audiência final numa sessão.
Em 23 de outubro de 2015, foi proferida sentença[1] que julgou a ação parcialmente procedente por provada, condenando a ré a pagar aos autores a quantia global de € 101.420,00, acrescida de juros legais contados desde a citação até efetivo e integral pagamento e julgando totalmente procedente o pedido de reembolso à Segurança Social condenando a ré a pagar o montante de € 2.314,82 acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Em 13 de Novembro de 2015, inconformada com a sentença, Companhia de Seguros D…, SA interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1. O Autor interpõem recurso da Douta Sentença por não concordar, face à prova produzida nos autos, em particular em Audiência de Julgamento, que o I. Tribunal tenha dado como provada a matéria constante das alíneas h), i), j), o), w), x), y), z), ee), ff), gg), hh), ii), lll) e mmm) do ponto “1. da Fundamentação de Facto” da Sentença, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.
2. Não concorda igualmente com a matéria que foi dada como não provada nas alíneas a), c), d), e) e f) do “ponto 2 – Factos Não Provados”, que aqui se dão igualmente por reproduzidos para todos os efeitos legais.
3. Ao assim decidir, incorreu o Tribunal a quo em erro de julgamento, pois decidiu em contradição com a prova produzida nos autos, além de ter valorado mal o depoimento da testemunha F…, condutor do veículo ES, ao não atribuir-lhe qualquer credibilidade sobre a dinâmica do acidente, apesar das declarações desta testemunha, nomeadamente, quanto a velocidade a que conduzia, visibilidade da via, posição (cambaleante) da vítima na via, serem confirmados pela prova documental, como o relatório de investigação criminal, e testemunhal que o Tribunal julgou credível, o que só por si e pela análise crítica da prova seria bastante para dar credibilidade ao depoimento do condutor.
4. Não podemos concordar com as conclusões retiradas pelo I. Tribunal quanto à prova produzida e à imputação, em exclusivo, da culpa do acidente ao condutor do ES, as quais aliás estão em contradição com os factos alegados e como tal confessados pelos próprios Autores, que em sede de PI, e tal como configuraram a causa de pedir que fundamentou a sua pretensão indemnizatória, confessaram que “não podem os autores deixar de assinalar que entendem que o peão, seu pai, igualmente contribuiu para o acidente ao atravessar a faixa de rodagem em local que lhe era proibido e por ter ingerido bebidas alcoólicas”(artº. 27 da PI).
5. O I. Tribunal, na alínea h) dos factos provados, refere que o ES (veículo seguro na Recorrente) circulava “a uma velocidade superior a 50 Km/h”.
Esta conclusão está em total contradição com toda a prova testemunhal produzida nos autos, bem como com a prova documental, não se vislumbrando onde o Tribunal a quo estribou tal conclusão.
6. De facto, é o próprio Tribunal a quo que refere na sua fundamentação que atendeu ao relatório elaborado pelo núcleo de investigação criminal de acidente de viação de folhas 25 e seguintes, mais referindo que a testemunha G…, militar da GNR, pessoa que elaborou aquele relatório, reafirmou as conclusões que explana no relatório por si subscrito.
7. Ora, precisamente deste relatório, resulta que “o veículo circulava a uma velocidade superior a 40 km/h (para brisas partido), estipulando a velocidade permitida por lei – 50 Km/h (placa de localidade), porque não foi referenciado nenhum indício que indicasse uma velocidade superior” – fls.47, nosso sublinhado.
8. Em sede de audiência de julgamento, a testemunha G… dos 05:58 aos 09:40 minutos do seu depoimento, esclareceu ainda que chegou à conclusão da velocidade dos 40 km/h a que circulava o ES devido ao tipo de danos que o veículo apresentava, nomeadamente no para brisas.
9. Esclareceu ainda no mesmo trecho do seu depoimento que concluiu que o ES não podia circular a mais de 50 Km/h devido às lesões que a vítima apresentava e que se encontram descritas no relatório de autópsia que teve em conta e consta do seu relatório (fls. 38 e 39 dos autos).
Ou seja, se o veículo circulasse a mais de 50 Km/h a força do embate causaria lesões mais graves na vítima do que aquelas descritas na autópsia.
10. Estas conclusões do investigador da GNR, baseadas em factos concretos (extensão dos danos no veículo e gravidade das lesões sofridas pela vítima), corroboram o depoimento da testemunha F…, condutor do ES, à qual o Tribunal a quo não atribuiu credibilidade quanto à dinâmica do acidente, e que sobre esta matéria, na parte do seu depoimento gravado dos 01:40 aos 01:52 minutos, declarou que imprimia ao veículo uma velocidade de 50 Km/h, explicando que não ia a mais porque havia muito trânsito à hora do acidente.
11. Mais esclareceu que manteve sempre o domínio sobre o veículo, não entrando em despiste, e que depois do acidente, em marcha normal, parou o ES junto à paragem do autocarro, para não ficar parado na via e poder ir prestar auxílio à vítima, que tinha ficado imobilizada no pavimento.
12. Também a testemunha I…, guarda da PSP que elaborou a participação de acidente esclareceu que, ainda no local do acidente o condutor do ES declarou que não tinha imobilizado o veículo na faixa no local do acidente, porque circulava um veículo atrás do ES e por essa razão ele estacionou (palavra utilizada pela testemunha) na zona da paragem do autocarro, antes do poste que ali existe, a cerca de 10, 12 metros do local do embate (conforme depoimento desta testemunha dos 03:42 aos 05:12 minutos).
13. Assim, em harmonia com a prova documental e testemunhal produzida, a alínea h) do ponto “1. Factos Provados” deverá passar a ter a redacção parcial da alínea f) do ponto “2. Factos Não Provados”, sugerindo-se a seguinte: “H) O VEÍCULO ..-ES-.. CIRCULAVA A VELOCIDADE INFERIOR A 50 KM/H E SUPERIOR A 40 KM/H”.
14. Quanto á visibilidade do condutor do ES sobre a via no concreto momento do acidente, não se concorda com a matéria de facto dada como provada nas alíneas i), j), w), e x)do ponto “1. Factos Provados” da sentença, pois também aqui o Tribunal não teve em conta a prova produzida nos autos sobre a concreta visibilidade da via, a E.N…., à hora do acidente, de noite, cerca das 19H30, num mês de Inverno (20/02/2013).
15. Desde logo há que referir o depoimento da testemunha J…, a quem o Tribunal atribuiu credibilidade para formar a sua convicção (cfr. pág. 13 da sentença).
16. O depoimento desta testemunha, que conduzia um veículo no mesmo sentido e atrás do ES, é fundamental para se concluir sobre a concreta visibilidade que um condutor que circulasse na E.N…., no sentido …/…, tinha sobre a via no momento do acidente.
17. A testemunha J… circulava a cerca de 30/40 metros via o veículo ES a circular á sua frente, pois não vinha colada àquele veículo, mas circulava àquela distância (confirmando as declarações do condutor do ES ao agente da PSP de que não parou no local, mas estacionou à frente, porque se apercebeu de um carro que vinha a circular atrás, reforçando-se assim a credibilidade da testemunha F… e a atenção que imprimia à condução).
18. No momento em que a testemunha J… se apercebe de algo a acontecer à frente na via, viu que alguma coisa “foi pelo ar”, esclarecendo que a primeira impressão que teve foi que alguma “coisa” tinha caído da travessia superior e que, quando viu o condutor do ES a guinar a direcção para a direita pensou que estava a fugir daquele obstáculo que caía da ponte (tudo no seu depoimento gravado dos 07:12 aos 16:53).
19. Como resulta do depoimento desta testemunha que circulava no mesmo sentido e com as mesmas condições de visibilidade do condutor do ES, apenas teve visibilidade para ver um obstáculo que não conseguiu identificar como sendo uma pessoa, explicando que a vítima vestia roupa escura o que também contribuiu para tal efeito, pensando inicialmente que era “alguma coisa” que tinha caído da travessia aérea para peões e da qual o condutor do ES tentava desviar-se.
20. Ainda quanto à visibilidade da via, esta testemunha referiu que sendo certo que a E.N. tem iluminação, naquele momento ficou com a ideia que estava escuro e até mencionou tal facto ao agente a quem prestou depoimento sobre o acidente mais tarde no Porto, reforçando que aquela estrada está bem iluminada, mas tem ideia que na altura do acidente estava escuro – passagem do depoimento gravado dos 05:56 aos 06:40 minutos.
21. Por outro lado, há ainda a referir que o Tribunal dá como provado que no sentido de marcha do ES a via tinha postes de iluminação pública a cada 50 metros.
22. Ora, tal como resulta do auto de acidente da PSP e do relatório de investigação criminal, o poste de iluminação mais próximo do local do acidente estava depois deste (atento o sentido do ES) a cerca de 15,40 metros, junto á paragem dos transportes públicos (cfr. alínea B) do esboço de acidente da participação elaborada pela PSP).
23. Assim sendo, o poste de iluminação existente imediatamente antes do local estava a cerca de 34,60 metros (50 metros/distância entre postes – 15,40 metros/poste após local embate).
24. Sem esquecer que está provado na alínea iii), jjj) e lll), que “o peão vestia roupas escuras, tal como era o pêlo do cão, o que reduziu substancialmente a visibilidade do condutor do veículo seguro na qui Ré”.
25. Aqui chegados temos de trazer à colação as razões da discordância quanto aos factos julgados provados nas alíneas w) e x), as quais se alicerçam numa premissa retirada do relatório de investigação criminal que não pode ser dada como acertada.
26. A fls. 48 e 50 dos autos consta daquele relatório que “o veículo encontrava-se a 54 metros do local de embate, quando o peão inicia a travessia da faixa de rodagem” pelo que o condutor do ES “quando o peão iniciou a travessia e durante a deslocação que efectuou deveria ter-se apercebido da vítima mortal que se estava a aproximar”.
27. Para chegar a tal conclusão, o subscritor do relatório teve em conta que o peão, desde o início da travessia da via até chegar ao meio da mesma, percorreu de uma só vez, como os peões normalmente o fazem – depoimento de G… dos 10:31 aos 11:22 minutos – os 4,20 metros e que apresentando a taxa de 1,86 gr/l de álcool no sangue demoraria 3,98 segundos a percorrer aquela distância – fls.47 dos autos.
28. Mas, apenas está provado nos autos – alª. q) e r) Factos Provados – que “o peão atravessou a faixa de rodagem atento o sentido de marcha …/… da esquerda para a direita, a um ritmo lento”, com as capacidades psicomotoras, nomeadamente, domínio sobre a marcha, percepção e avaliação do perigo, visibilidade afectadas, tal como consta provado nas alíneas ccc) a fff) do ponto 1 e que aqui se são por integralmente reproduzidas.
29. Todavia, não ficou provada a forma como efectuou a travessia: se de uma só vez, se andando para trás e para a frente, se descrevendo um trajectória diagonal ou perpendicular ao eixo da via, detendo-se ou não perante carros que circulassem no sentido oposto ao do ES – …/ … – por cuja meia faixa a vítima teve primeiro que transpor até chegar ao meio da via.
30. Pelo que, não se pode concluir, como se faz no relatório de investigação do acidente, que o peão demorou 3,96 segundos a chegar ao eixo da via e que, à velocidade de 50 Km/h, o condutor do ES estava a 54 metros do local de embate e a essa distância podia ter visto o peão a iniciar a travessia do lado oposto da via, afecta ao sentido de marcha contrário.
31. Por essa razão o depoimento da testemunha J… se revela tão importante para se apurar as condições de visibilidade concreta da via, pois contraria os factos provados nas alíneas i), j) w) e x) dos factos provados, de onde se retira que a via tinha excelente visibilidade, nomeadamente em cerca de pelo menos 300 metros antes do local do acidente, atento ainda o sentido de marcha do ES, que este podia ter avistado a vítima a iniciar a travessia da via a pelo menos 55 metros, quando a testemunha não tinha visibilidade suficiente para distinguir uma “coisa” de um corpo humano, facto que só apurou quando se aproximou do local do embate.
32. Desta forma e da credibilidade atribuída ao depoimento da testemunha J…, resulta necessariamente a conclusão da credibilidade do depoimento do condutor do ES, H…, sobre as condições de visibilidade da via e o momento em que viu a vítima na via e tentou desviar-se dela.
33. A propósito, esta testemunha referiu que a recta de facto tem boa visibilidade mas, à hora do acidente, tinha pouca visibilidade porque havia carros a circularem no sentido contrário que, embora não encandeassem, prejudicavam a visão dos condutores que circulavam, como ele, no sentido …/… (depoimento dos 03:06 aos 04:26 minutos).
34. Na alínea o) do ponto “1. Factos Provados” o Tribunal deu como provado que “o peão circulava com 2 cães de pequena estatura pela trela” e no ponto “2. Factos Não Provados” o Tribunal entendeu que não foi feita prova de que a) “Existiam veículos que circulavam em sentido contrário ao do ES” e d) “foi por se encontrar embriagado daquela forma que o peão caminhava ligeiramente dobrado para a sua frente (cambaleando), aumentando as probabilidades de ser atingido sem que realizasse qualquer vigilância ao trânsito que pretendia cruzar”.
35. Não faz sentido que o Tribunal na alínea alª. o) dos Factos Provados tenha dado como provado que o peão circulava com dois cães pela trela, pois nenhuma prova foi feita neste sentido, já que:
a) do relatório de investigação criminal resulta apenas que o peão circulava acompanhado de dois cães, não se referindo a existência de trela.
b) Também o condutor do ES, F…, declarou que viu dois cães na via antes de avistar a vítima, nunca tendo referido que eram levados por uma trela (cfr. passagem do seu depoimento dos 06:24 aos 06:37 minutos).
c) Mas a testemunha I…, guarda da PSP que se deslocou logo ao local do acidente e elaborou a participação de acidente, foi peremptório em afirmar que viu uma cadela de tamanho médio mas sem trela, que depois do acidente entregou à mãe da vítima (passagem do seu depoimento dos 10:07 aos 10:26 minutos).
d) O próprio investigador G… referiu que no decurso das investigações apurou que os cães acompanhavam sempre a vítima e que andavam à solta – depoimento prestado aos 07:42 minutos.
36. Se os cães andavam pela via sem trela, a descrição do embate feita por F… ganha consistência e credibilidade de acordo com as regras da experiência comum, pois se fossem com a trela o normal seria situarem-se numa posição frontal ao dono, pelo que se podia perceber a dificuldade do Tribunal a quo em aceitar que o condutor do ES visse os cães primeiro e só depois de se desviar deles para a direita o peão.
37. Todavia, como os cães andavam soltos pela via, sem trela, acompanhando uma pessoa com dificuldades em manter a sua própria marcha em condições de normalidade (cambaleando), quanto mais capaz de dominar dois cães com a trela, é perfeitamente credível e de acordo com as regras da experiência comum, que os cães viessem atrás desta, e que quando o condutor do ES se apercebe dos cães a meio da via, tentando-se desviar deles – como acto reflexo e instintivo de um condutor atento à condução - efectuando “manobras evasivas (desvio da direcção e uma ligeira travagem que não deixou marcas) e nesse momento desvia-se novamente para a direita quando se apercebe do peão” – cfr. relatório fls.48 dos autos – vá embater no peão, que estaria na via em relação aos cães numa posição mais avançada e mais próxima da berma do lado direito (atento o sentido do ES) e que “vestia roupas escuras, tal como era o pelo do cão, o que reduziu e substancialmente a visibilidade do condutor do veículo seguro na Ré” – alªs. iii) a kkk) factos provados – razão pela qual o condutor depois de se desviar dos cães só avistou o peão a ½ metro, sem tempo de evitar embater-lhe com a parte lateral/frontal esquerda no lado direito da cabeça – alª hhh).
38. No ponto “2. Factos Não Provados” o Tribunal entendeu que não foi feita prova de que a) “Existiam veículos que circulavam em sentido contrário ao do ES”, não dando credibilidade ao condutor do ES, F… que, tal como já se referiu anteriormente, declarou que em sentido contrário ao seu circulavam veículos e que as suas luzes, embora não o encandeassem, dificultavam a sua visibilidade (em sentido contrário) sobre a via.
39. Mas se o Tribunal não atendeu às declarações da referida testemunha, sempre poderia atentar às declarações da testemunha J…, que sobre esta matéria declarou que quando circulava imediatamente atrás do ES, o trânsito naquela altura fluía normalmente, sem ser no “para arranca” e circulavam veículos nos dois sentidos (depoimento gravado dos 07:12 aos 07:28 minutos e dos 16:42 aos 16:53 minutos).
40. Na alínea d) do ponto 2) o Tribunal deu como não provado que “foi por se encontrar embriagado daquela forma que o peão caminhava ligeiramente dobrado para a sua frente (cambaleando), aumentando as probabilidades de ser atingido sem que realizasse qualquer vigilância ao trânsito que pretendia cruzar”.
41. Não faz sentido que o Tribunal a quo dê como provado que “o infeliz E… registou uma fractura na cabeça, do lado direito, onde foi embatido pelo veículo seguro pela aqui ré”, que lhe embateu com a parte frontal/lateral esquerda (alªs. t) e hhh), e depois dar como não provado que o peão e vítima mortal do acidente caminhava ligeiramente dobrado para a sua frente (cambaleando), justificando a sua convicção, mais uma vez, pela falta de credibilidade da testemunha F…, que prestou depoimento neste sentido, afirmando que quando se apercebe da vítima – depois de se desviar dos cães – a 1/2 metro, aquela pessoa vinha a cambalear.
42. Mais uma vez temos que realçar que as declarações prestadas pelo condutor do ES são confirmadas pelo relatório do investigador criminal, subscrito pela testemunha G…, a fls. 45 dos autos, onde conclui que as lesões sofridas no lado direito da cabeça“ indicam que o peão estaria, por algum motivo – no qual poderia ser o psicomotor estar alterado devido à ingestão de bebidas alcoólicas – ligeiramente dobrado para a sua frente, tendo sido atingido na cabeça do lado direito pelo veículo na parte lateral esquerda (para-brisas).”
43. Para que a vítima com 1,70 metros de altura – cfr. fls. 45 dos autos – fosse atingida no lado direito da cabeça pela parte frontal/lateral esquerda do ES – um ligeiro de passageiros, marca e modelo Smart, modelo …, como resulta a fls. 20 e 26 dos autos – atendendo à altura do veículo inferior aos 1,70 metros da vítima – o que é facto notório e do conhecimento comum – esta teria que estar a caminhar com o corpo dobrado para a frente e a cabeça ao nível da altura da parte lateral esquerda/frontal do veículo.
44. Assim, em harmonia com a prova documental e testemunhal produzida impunha-se decisão diferente quanto à matéria de facto provada nas alªs. i), j), o), w), x), y e z) a qual deverá passar para a matéria de facto “não provada” e dar como provados os factos que constam das alíneas a), c), d) e e) do ponto “2/Factos Não Provados”, passando a constar dos factos provados o seguinte:
i) O local do acidente configura uma recta com boa visibilidade diurna no sentido …/…, mas mais reduzida à noite, devido à ausência de luz natural e às luzes dos veículos que circulem em sentido contrário, pelo que o condutor do ES, a circular com velocidade de 40/50 Km/h e com atenção à condução, só avistou a cerca de 10, 20 metros os cães no meio da via e logo a seguir o peão, quando este já estava na meia faixa afecta ao sentido do ES.
o) O peão circulava com dois cães, um de tamanho médio, sem trela;
z) O condutor do ES conduzia de forma atenta e prudente, pois ainda tentou e conseguiu desviar-se do primeiro obstáculo com que se deparou na via, os cães que avistou de forma súbita e inesperada a meio da via, guinando a direcção do veículo para a direita;
za) De imediato surgiu-lhe a vítima em plena meia faixa de rodagem do sentido …/…, cortando a linha de marcha do ES, e por onde o peão caminhava ligeiramente dobrado para a frente, cambaleando, sem prestar atenção aos veículos que circulavam na via e sem se certificar se podia efectuar a travessia da via em segurança.
zb) Devido à forma súbita e inesperada como a vítima surgiu à sua frente na via, vestida com roupa escura, a cambalear, e já depois de se ter desviado com o veículo dos cães, o condutor do ES não conseguiu evitar embater-lhe no lado direito da cabeça com a parte lateral/frontal esquerda do ES.
45. O I. Tribunal nas alíneas ee), ff), gg), hh) e ii) deu como provado que a vítima após o embate “tinha dores incríveis pelo corpo todo, gemia, arfava, era visível o seu estado de pânico e sofrimento perante a aproximação da morte, tinha consciência da gravidade das lesões”.
46. Esta matéria dada como provada pelo Tribunal a quo faz sentido com o alegado pelos Autores, mas não faz sentido com a prova produzida, não sendo a sentença esclarecedora sobre os concretos meios de prova que levaram o Tribunal a quo a formar tal convicção.
47. Só neste ponto parece ter sido valorado o depoimento da testemunha F…, mas mal, pois esta testemunha declarou que depois de estacionar o ES junto à paragem, dirigiu-se logo à vítima para ver como estava, sendo a primeira pessoa a chegar junto dela, e num registo de sinceridade comum a todo o depoimento, declarou que o peão estava vivo: mas inconsciente (cfr. depoimento gravado dos 14:26 aos 15:10 minutos), o que se compreende atendendo à natureza das lesões que o vieram a vitimar (crânio-meningo-encefálicas, conforme relatório da autópsia mencionado no relatório de investigação do acidente a fls. 39 e seguintes dos autos).
48. Estando a vítima inconsciente e atenta a natureza das lesões, aliada à taxa de 1,89 gr/l de álcool no sangue que apresentou, não tinha as suas capacidades de cognição, sensitivas e percepção da realidade adequadas à tomada de consciência do acidente, sua gravidade e possíveis consequências, pelo que os factos referidos nas alíneas ee), ff), gg), hh) e ii) foram incorrectamente julgados e devem ser dados como não provados.
49. O Tribunal nas alíneas lll) e mmm) deu como provado que por causa do acidente dos autos foi requerida pelo A. C… pensão de sobrevivência que lhe foi deferida e assim foi pago a esse título pelo ISS I.P. a quantia de 1.057,16€, referente ao período de Março de 2013 a Agosto de 2014.
50. Para prova de tal facto o Tribunal atendeu apenas à certidão emitida pelo Instituto da Segurança Social, olvidando por completo o depoimento da testemunha K…, funcionária desta entidade.
51. Aos esclarecimentos pedidos sobre a atribuição e pagamento do valor a título de pensão de sobrevivência e sua relação com o acidente dos autos, esta testemunha esclareceu que esta prestação social foi atribuída ao Autor C… porque este era menor à data do falecimento do pai em consequência do acidente.
52. Confrontada com o facto de o Requerente ser maior de idade à data do acidente (como resulta da Habilitação de Herdeiros junta a fls….. dos autos para justificar a legitimidade dos Autores, filho do falecido, para a presente lide) e não preenchendo assim o requisito da menoridade que tinha justificado a atribuição daquela pensão, a testemunha não soube explicar a relação da atribuição da pensão de sobrevivência com o acidente, nem o pagamento até Agosto de 2014, e não antes ou após esta data, pelo que o Tribunal não se podia bastar com a prova decorrente da certidão de dívida junta aos autos para dar como provado que a quantia de 1.057,16€ foi paga em consequência do acidente – cfr. depoimento prestado dos 06:32 aos 11:02 minutos.
53. Assim a alínea lll) e mmm) devem ser alteradas e passar a constar numa alínea única que: “Com base no falecimento do beneficiário, e em consequência do acidente a que dizem respeito os autos, foi requerida pelo A. C… prestações por morte e que lhe foram pagas, no valor de 1.257,66€”.
54. Atenta a matéria de facto provada nos autos, já considerando a sua reapreciação nos termos supra expostos, não se pode concluir como fez o Tribunal a quo que o acidente dos autos que vitimou o pai dos Autores ocorreu por culpa única exclusiva do condutor do ES, seguro na Recorrente.
55. Pelo contrário, o acidente dos autos que vitimou o falecido E… ocorreu por culpa única e exclusiva deste, pois: decidiu iniciar a travessia da E.N…., para o que teria de percorrer a faixa de rodagem com 7,40 metros de largura, uma estrada movimentada, à noite, com veículos a circularem nos dois sentidos de marcha ali permitidos, num local onde era proibido efectuar esse atravessamento (alínea aa) factos provados), sem utilizar a passagem superior destinada à travessia dos peões que existe a 50 metros do local de embate (alínea ggg) dos factos provados), vestindo roupas escuras e acompanhado de dois cães de pelo escuro (alíneas iii) e jjj) dos Factos Provados), sem trela, o que reduziu e substancialmente a visibilidade do condutor do veículo seguro na ré (alínea kkk) dos factos provados).
56. A perigosidade desta travessia – além da ilicitude por estar a executá-la em local proibido – foi agravada pelo facto do peão ter ingerido bebidas alcoólicas e seguir com uma taxa de 1,86 l de álcool no sangue (alínea bbb) dos Factos Provados), o que causou os efeitos no comportamento, visão, equilíbrio melhor descritas nas alíneas ccc) a fff) dos Factos Provados, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
57. Tais efeitos, nomeadamente ao nível do equilíbrio da vítima, são confirmados pelo circunstancialismo concreto dos autos, em particular pelo facto de aquando do embate caminhar curvado para a frente, cambaleando na via, o que explica o facto de apesar de ter 1,70 metros de altura, ter sido atingido no lado direito da cabeça pela parte lateral/frontal do ES (alíneas hhh), s) e t) dos Factos Provados).
58. O peão E… foi o único causador do acidente que o veio a vitimar, tendo adoptado uma conduta enquanto utente da via – na qualidade de peão – temerária e ilícita, por violar várias disposições do Código da Estrada que se aplicam a todos os utentes da via, nomeadamente, os artigos 3º, nº2 (que impõe às pessoas em geral, utentes da via, o dever geral de cuidado de se “absterem de de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, visibilidade ou comodidade dos utilizadores da via.”), 99º, nº2, alª.a) (impondo aos peões prudência no atravessamento da via, sem causar prejuízo ao trânsito de veículos) e nºs.1, 2, 3 e 4 do artº. 101 todos daquele diploma em vigor.
59. Por outro, nenhuma culpa pela ocorrência do acidente pode ser imputada ao condutor do veículo ES, o qual circulava dentro dos limites de velocidade permitidos na via, prestando atenção e cuidado à condução, razão pela qual avistou os cães sem trela na via dentro da distância e visibilidade que tinha disponível, 10-20 metros, e dos quais se tentou desviar, acabando por embater na vítima após esta primeira manobra, que cambaleava pela via, sem se aperceber e avaliar prudentemente o perigo decorrente da aproximação dos veículos que nela circulavam, não tendo sido possível ao condutor reagir mais cedo devido ao facto de ter a visibilidade substancialmente reduzida pelo facto dos cães terem pelo escuro e a vítima vestir roupa escura, como o próprio Tribunal a quo reconhece nos factos provados.
60. A compreensão pela perda dos Autores/Recorridos não pode inquinar a avaliação do nexo causal do acidente, nem fazer-nos esquecer que tal como ocorre nos autos em apreço “o condutor de veículo não tem de contar com um peão que inicia a travessia da via, invadindo a faixa de rodagem, sem olhar para o lado de onde provém o veículo, de forma repentina, quando este se encontrava já a curta distância. Pois cada condutor supõe que as outras pessoas aceitam as regras de trânsito e os deveres gerais de prudência. Outro entendimento conduziria à paralisação do trânsito” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 14.07.2008, processo n.º 0834104, relator: Fernando Baptista).
61. Sem esquecer também que o peão iniciou a travessia da faixa de rodagem com 7,40 metros de largura a partir da faixa de rodagem afecta ao sentido de marcha oposto ao do ES – atravessou a via da esquerda para a direita – não sendo exigível a qualquer condutor, medianamente prudente e diligente, que deixe de prestar atenção ao trânsito de veículos e peões que se processa na meia faixa por onde circula, numa E.N. movimentada, com veículos a circularem à sua frente e atrás, para poder ver e prever que a 55 metros um peão vai iniciar uma travessia na faixa de rodagem contrária!
62. Assim e tal como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21/09/2015, no proc.2394/09.3TAGMR.G1 “Não pode ser assacada responsabilidade na produção de um acidente a um condutor ao qual surge um peão, embriagado, a atravessar em diagonal uma via, em local não destinado ao atravessamento de peões e que se precipita nesse atravessamento sem qualquer cuidado, o qual para mais reage da forma possível, travando e tentando contornar (evitar) o choque”.
63. Ao atribuir a culpa do acidente em exclusivo ao condutor do veículo ES o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por fundamentar a prova dos factos subjacentes à sua convicção em contradição com a prova produzida (documental e testemunhal), condenando em mais do que os próprios Autores/Recorridos pediram na sua PI – com honestidade processual que se enaltece e elogia – já que reconhecendo, e como tal devia ser dado como confessado, que “não podem os Autores deixar de assinalar que entendem que o peão, seu pai, igualmente contribuiu para o acidente ao atravessar a faixa de rodagem que lhe era proibido e por ter ingerido bebidas alcoólicas”, apenas pediram a condenação da Recorrente com base na repartição da culpa do acidente na proporção de 30% para o peão e 70% (não 100% como faz a sentença) para o condutor do ES, o que configura uma condenação além do pedido, susceptível de configurar uma violação do artº.661º do CPC.
64. Conclui-se assim com as palavras proferidas pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público no despacho de arquivamento dos autos de inquérito a fls. 135 e ss dos autos: “na verdade, de tudo parece resultar que a vítima mortal circulava junto da via sem tomar quaisquer precauções, tanto mais que se encontrava alcoolizado, tendo como companhia os dois canídeos que ali o rodeavam, sem uso de trela e o arguido F… ao tentar desviar-se daqueles canídeos deparou-se com o E… que não tomou os cuidados e a atenção devida para se certificar da distância que o separava do veículo conduzido pelo arguido, e assim abster-se de efectuar a travessia daquela via, inclusive para fazer uso da passagem superior de pessoas que ali se encontrava para o efeito”.
65. Assim, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que, em conformidade com a prova produzida nos autos, conclua que a culpa do acidente é de atribuir em exclusivo à infeliz vítima e pai dos Autores/Recorridos, assim julgando a acção improcedente e absolvendo a Recorrente.
66. E provada a culpa do lesado, sem que se tenha feito prova de qualquer facto que permita atribuir ao condutor do ES qualquer juízo de ilicitude ou culpa, excluída ficará também a obrigação da Recorrente indemnizar pelo risco do veículo, nos termos do artº.570º e 505 do Código Civil.
SEM PRESCINDIR e por mera cautela e dever de patrocínio,
67. julgada não provada a matéria das alíneas ee) a ii), o pedido de reparação dos danos morais da vítima devia sempre seria julgado improcedente, por não provado e, em consequência, a Recorrente absolvida do valor de 10.000,00€ fixado para esse dano.
68. Quanto ao dano morte, cuja reparação foi fixada pelo Tribunal a quo no valor de 70.000,00€, o mesmo afigura-se desajustado por elevado, face às circunstâncias do caso concreto.
69. De facto, quanto à reparação deste dano de onde resulta a violação do valor supremo da nossa ordem jurídica, que é a vida humana, “vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida – direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos – deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50 000 e os € 80 000” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.06.2015, disponível in www.dgsi.pt.
70. Considerando o que fica provado sobre o comportamento do peão na via, atenta a sua gravidade e negligência, nunca poderia ser fixado um valor para reparação deste dano.
71. Já quanto aos juros devidos sobre o valor fixado para reparação dos danos não patrimoniais, não se pode concordar com o início da sua contagem fixado na sentença recorrida desde a citação.
72. Resulta da sentença que o Tribunal a quo ao fixar os valores indemnizatórios procedeu à sua actualização seguindo o Ac. do STJ 13/96, de 15/10, segundo o qual “o tribunal não pode (…) quando condenar em dívida de valor, proceder à sua actualização em montante superior ao do valor do pedido do autor”, pelo que na sentença não se considerou as “quantias peticionadas relativas a cada um dos danos. específicos, apenas reportando esse limite à soma das quantias consignadas no pedido”.
73. Resulta desta fundamentação, que os valores que o Tribunal fixou para reparação dos danos não patrimoniais, sem atender às quantias específicas peticionadas, foram atualizados à data da sentença, apurando assim o Tribunal um valor indemnizatório mais adequado aos critérios jurisprudenciais em vigor à data da sentença, pelo que os juros sobre os valores fixados para reparação dos danos não patrimoniais só seriam devidos em caso de condenação, o que não se concede, desde a decisão proferida nos autos e não desde a citação.
74. Nestes termos, o erro de julgamento de que enferma a sentença recorrida deverá ser sanado, julgando-se procedente a reapreciação da matéria de facto nos termos supra expostos, que resulta da exigência da análise crítica e conjugada da prova (documental e testemunhal) produzida nos autos, substituindo-se aquela decisão por outra que fazendo a boa aplicação dos artigos 3º, nº2, 99º, nº2 e 101º, nºs 1 a 4 do Código da Estrada e 483º, 505º, 570º do Código Civil e 661º do CPC, conclua pela imputação em exclusivo da culpa do acidente dos autos à conduta ilícita, negligente e temerária do peão, não se apurando qualquer contribuição para a ocorrência do mesmo de qualquer acto culposo ou ilícito do condutor do ES, assim se julgando a presente acção totalmente improcedente e absolvendo a Recorrente dos pedidos formulados nos autos, por todas as razões de facto e direito supra expostos, com o que V.Exas. farão a aguardada e acostumada BOA JUSTIÇA!
B… e C… contra-alegaram, pugnando pela total improcedência do recurso interposto pela ré e simultaneamente interpuseram recurso subordinado, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1-O dano não patrimonial sofrido pelos Autores não se encontra fixado equitativamente;
2-A título de indemnização pelo dano não patrimonial sofrido pelos Autores deverá ser fixada a quantia de €90.000, distribuída em partes iguais por cada um deles.
Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso subordinado.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento dos objetos dos recursos, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta os objetos dos recursos delimitados pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da nulidade da sentença recorrida por ter condenado em quantidade superior à pedida (recurso principal);
2.2 Da reapreciação da matéria de facto provada nas alíneas nas alíneas h), i), j), o), w), x), y), z), ee), ff), gg), hh), ii), iii) e mmm) e nas alíneas a), c), d) e) e f), dos factos não provados (recurso principal);
2.3 Da culpa exclusiva do peão na eclosão do acidente e da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na pretensão da interveniente (recurso principal);
2.4 Do montante da compensação pela perda da vida e dos danos próprios da vítima (recurso principal);
2.5 Do montante da compensação dos danos não patrimoniais próprios dos autores em razão do sofrimento por causa da morte do progenitor (recurso subordinado);
2.6 Do termo inicial da contagem dos juros de mora sobre os danos não patrimoniais (recurso principal).
3. Fundamentos
3.1 Da nulidade da sentença recorrida por ter condenado em quantidade superior à pedida
A recorrente suscita a nulidade da sentença recorrida por condenação além do pedido, porquanto os autores pediram a repartição de responsabilidade no sinistro na proporção de 30% para o seu falecido pai e de 70% para o condutor do veículo e, não obstante, o tribunal a quo entendeu existir culpa exclusiva do condutor do veículo.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 615 do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Esta previsão visa assegurar uma conformidade quantitativa e qualitativa entre aquilo que é pedido pelas partes e aquilo que é decidido pelo tribunal. É uma decorrência necessária do princípio do pedido (artigo 3º, nº 1, do Código de Processo Civil), bem como do princípio do dispositivo, na vertente da conformação da sentença (artigo 609º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Embora no domínio da responsabilidade por facto ilícito, ressalvados os casos de culpa presumida, incumba ao lesado a prova da culpa do autor da lesão (artigo 487º, nº 1, do Código Civil), “[q]uando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída” (artigo 570º, nº 1, do Código Civil). Por outro lado, “[à]quele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada” (artigo 572º do Código Civil).
As previsões legais que se acabam de citar permitem-nos concluir que a questão da culpa do lesado é matéria de conhecimento oficioso do tribunal[2] e, assim sendo, o juízo que o próprio lesado ou os seus sucessores façam sobre a medida da sua contribuição para a eclosão do sinistro, não vincula o tribunal. Por isso, não obstante a afirmação dos autores de que o seu falecido progenitor contribuiu para a eclosão do sinistro numa proporção de 30%, isso não vincula o tribunal, pelo que a decisão que afasta toda e qualquer contribuição do falecido para a ocorrência do acidente não constitui qualquer violação às regras da conformação do objeto do processo, desde que a condenação final se contenha dentro do pedido global deduzido pelos lesados, como sucede no caso dos autos.
Pelo exposto, improcede a arguição de nulidade da sentença recorrida por violação por condenação além do pedido.
3.2 Da reapreciação da matéria de facto provada nas alíneas nas alíneas h), i), j), o), w), x), y), z), ee), ff), gg), hh), ii),lll) e mmm) e nas alíneas a), c), d) e) e f), dos factos não provados
A recorrente impugna a matéria dada como provada nas alíneas h), i), j), o), w), x), y), z), ee), ff), gg), hh), ii),lll) e mmm) e a matéria de facto dada como não provada nas alíneas a), c), d) e) e f), tudo dos fundamentos de facto da sentença recorrida.
A recorrente pugna por que seja dada como não provada a matéria vertida nas alíneas h), i), j), o), w), x), y) e z) e como provada a matéria constante das alíneas a), c), d) e e) dos factos não provados, pugnando por respostas restritivas à matéria vertida nas alíneas lll) e mmm) dos factos provados.
As razões invocadas para sustentar a pretensão de alteração da decisão da matéria de facto são as seguintes, relativamente à alínea h) dos factos provados:
- o depoimento da testemunha G…, agente da GNR e autor do relatório elaborado pelo núcleo de investigação criminal que apenas permitem concluir que o veículo segurado na ré circulava a velocidade superior a quarenta quilómetros por hora, por causa dos danos verificados no para-brisas do veículo e que a velocidade não seria superior a cinquenta quilómetros por hora, atentas as lesões que a vítima apresentava, depoimento que corrobora as declaração do condutor do veículo, quanto à sua velocidade de circulação;
- o depoimento da testemunha I… que referiu as declarações do condutor do veículo de que estacionou a cerca de dez, quinze metros do local do embate,
- a ausência de qualquer rasto de travagem no pavimento.
No que respeita às pretensões de alteração das alíneas i), j), w), x), y) e z) dos factos provados, as razões avançadas pela recorrente são as seguintes:
- o depoimento da testemunha J… que referiu que o veículo segurado seguia à sua frente, a trinta ou quarenta metros, a velocidade que não é capaz de precisar, até que de repente esse veículo que a precedia fugiu para a berma direita, não se apercebendo se chegou a travar ou se houve diminuição súbita da velocidade, vendo quando passava junto à placa de identificação da localidade de …, que alguma coisa foi pelo ar, não sabendo precisar a que altura; mais referiu que sendo certo que a via tem naquele local iluminação, naquele momento ficou com ideia que estava escuro;
- deve privilegiar-se o depoimento da testemunha J… que relatou o que percecionou no momento concreto do sinistro, em detrimento das considerações gerais e abstratas que constam do relatório de investigação criminal;
- o poste de iluminação mais próximo do local do embate e antes deste, face aos diversos dados de facto recolhidos, estaria a cerca de trinta e quatro metros e sessenta centímetros, estando provado também que o peão vestia roupas escuras, tal como era escuro o pelo do cão, tudo a influir nas condições concretas de visibilidade no local;
- as fotografias juntas aos autos com o relatório de investigação criminal não são fiáveis para aferir a visibilidade do local porque retratam o local de dia;
- não existe prova sobre a forma como o peão efetuou a travessia da via, mas apenas que o fez de forma lenta, com as capacidades psicomotoras reduzidas, por causa da influência do álcool;
- tendo em conta um tempo médio de reação de um condutor de 1,2 segundos e 3,96 segundos que o peão demoraria a chegar ao eixo da via, de acordo com o relatório de investigação criminal, não se pode concluir que o condutor do ES podia ter avistado o peão a cinquenta e cinco metros a iniciar a travessia da via;
- o depoimento da testemunha J…, quanto às condições de visibilidade credibiliza o depoimento prestado pelo condutor do veículo ES.
No que respeita às alíneas a) e d) dos factos não provados, as razões da discordância na valoração da prova são as seguintes:
- a descredibilização infundada do depoimento prestado pelo condutor do veículo ES;
- a total ausência de prova de que algum canídeo fosse conduzido na via com trela, o que credibiliza as declarações do referido condutor quanto às condições de aparecimento do peão na via;
- a localização das lesões no peão analisadas criticamente no relatório de investigação policial, conjugadas com as características do veículo e a estatura da vítima credibilizam a versão do condutor do veículo ES quanto à forma de aparecimento do peão na via.
Relativamente às alíneas ee), ff), gg), hh) e ii) dos factos provados, as razões de discordância são as seguintes:
- a única prova pessoal que sobre esta matéria foi produzida foi o depoimento do condutor do veículo ES que afirmou que o peão ainda estava vivo, mas inconsciente, o que se coaduna com as lesões sofridas pela vítima no crânio e o estado de influenciado pelo álcool do mesmo.
No que tange as alíneas lll) e mmm), as razões indicadas são as seguintes:
- não foi devidamente valorado o depoimento da testemunha K… que não soube explicar por que razão foi atribuída pensão de sobrevivência em função da menoridade do autor C… à data do falecimento do pai, quando resulta da escritura de habilitação de herdeiros que nessa altura era maior.
Cumpre apreciar e decidir já que a recorrente observou os ónus impostos a quem impugna a decisão da matéria de facto.
Os pontos de facto impugnados pela recorrente são os seguintes:
- “A uma velocidade superior a 50km/h” (alínea h) dos factos provados).
- “O local onde o acidente ocorre configura uma recta com excelente visibilidade em cerca de pelo menos 300 metros, antes do local do acidente, atento, ainda, o sentido de marcha do ES” (alínea i) dos factos provados).
- “Sem prejuízo de já ser noite a Estrada tinha excelente visibilidade pois existe iluminação pública no local onde o acidente ocorre em virtude da mesma estar dotada de postes eléctricos a cada 50 metros” (alínea j) dos factos provados).
- “O peão circulava com 2 cães de pequena estatura pela trela” (alínea o) dos factos provados).
- “O condutor do ES acaso circulasse a uma velocidade de 50km/h teria visto o peão a cerca de 55 metros do local do embate, pois seria esse, sensivelmente, o momento em que este iniciaria a travessia da faixa de rodagem” (alínea w) dos factos provados).
- “A iluminação existente no local permitia que condutor do ES conseguisse visionar o peão desde o início da travessia” (alínea x) dos factos provados).
- “Assim como os cães que com ele circulavam” (alínea y) dos factos provados).
- “Sucede que o condutor do ES não colocou a atenção que seria devida na condução, pois o acidente dá-se quando o peão já tinha circulado a berma da estrada, a hemifaixa esquerda de rodagem e parte da hemifaixa de direita de rodagem” (alínea z) dos factos provados).
- “Tinha dores horríveis por todo o corpo” (alínea ee) dos factos provados).
- “Gemia” (alínea ff) dos factos provados).
- “Arfava” (alínea gg) dos factos provados).
- “Era visível o seu estado de pânico e sofrimento perante a aproximação da morte” (alínea hh) dos factos provados).
- “Tinha consciência da gravidade das lesões” (alínea ii) dos factos provados).
- “Com base no falecimento do beneficiário, em consequência do acidente a que dizem respeito os autos, foram requeridas pelo autor C... prestações por morte e pensão de sobrevivência que foram deferidas” (alínea lll) dos factos provados).
- “Assim, foi pago ao autor C…: - subsídio por morte, no valor de 1.257,66 € (mil duzentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos); - pensões de sobrevivência, relativas ao período de Março de 2013 a agosto de 2014, no valor de 1.057,16 € (mil cinquenta e sete euros e dezasseis cêntimos). Tudo num total de 2.314,82 € (dois mil trezentos e catorze euros e oitenta e dois cêntimos)” (alínea mmm) dos factos provados).
- “Existiam veículos que circulavam em sentido contrário ao do ES” (alínea a) dos factos não provados).
- “Foi o comportamento da vítima E…, resultante da elevadíssima taxa de alcoolemia que tinha no sangue, que determinou a única e directa causa para o malogrado acidente” (alínea c) dos factos não provados).
- “Foi por se encontrar embriagado daquela forma que o peão caminhava ligeiramente dobrado para a sua frente (cambaleando), aumentando as probabilidades de ser atingido sem que realizasse qualquer vigilância ao trânsito que pretendia cruzar” (alínea d) dos factos não provados).
- “O condutor do veículo seguro pela ré D…, conduzia de forma atenta e prudente, pois ainda tentou, e por duas vezes, desviar -se do cão e do próprio peão, guinando para a direita” (alínea e) dos factos não provados).
- “O veículo ..-ES-.. circulava a velocidade inferior a 50 Km/h, talvez superior a 40 Km/h” (alínea f) dos factos não provados).
O tribunal a quo motivou a sua decisão da matéria de facto nos termos que seguem:
O tribunal alicerçou a sua convicção positiva dos factos a que respondeu, com base na prova documental , designadamente:
- Auto de participação de acidente de viação de folhas 14 e seguintes e fotos juntas ao mesmo.
- Relatório elaborado pelo núcleo de investigação criminal de acidente de viação de folhas 25 e seguintes.
- Assento de óbito de folhas 51.
- Assentos de nascimento de folhas 52 e seguintes.
- Factura e recibo de funerária de folhas 58/59.
- Escritura pública de habilitação de herdeiros de folhas 95 e seguintes.
- Requerimento de pedido de prestações por morte de folhas 106 e seguintes.
- Certidão emitida pelo Instituto de Segurança Social, IP, Centro Distrital do Porto de folhas 109.
- Certidão de despacho de arquivamento em inquérito criminal de folhas 135 e seguintes.
Por fim, foi valorada a prova testemunhal, ouvida em audiência de discussão e julgamento, do seguinte modo:
F…, condutor da viatura interveniente no acidente. Refere que seguia a uma velocidade de cerca de 50 Km/h, pois que o local embora seja em recta, o elevado trânsito não permite maior velocidade. Esclarece que sendo noite, seguiam carros em sentido contrário com as luzes ligadas. Lembra-se que abrandou quando se apercebeu dos animais a atravessar a estrada, a cerca de 20 metros, sendo que estes estavam no eixo da via. Abrandou a velocidade a que seguia (de cerca de 50 Km/h), tenta desviar -se para a direita, e depois embate na vítima. Diz que não conseguiu ver o peão. Que o peão estava a atravessar da sua esquerda para a direita, e que viria a cambalear, dizendo que viria com a cabeça par a a frente, ie, …… . Após embate ainda se apercebeu que a vítima ainda estaria viva. Que o peão ficou no chão, com a cabeça junto à linha contínua e com o resto do corpo para a sua hemi-faixa. Reafirma que havia muito transito em sentido contrário ao seu, no momento do embate. O peão estava vestido de roupa escura, J…, pessoa que seguia imediatamente atrás da viatura que atropelou a vítima. Viria a cerca de 30/40 metros, no local onde existe uma ponte. Apercebe-se que a viatura que seguia à sua frente de repente viria em direcção à berma. Não se apercebeu que a dita viatura tenha travado. Apercebeu-se que alguma coisa “foi pelo ar”, não sabendo precisar a que altura. Posteriormente, é que veio a ver que era uma pessoa. Que os cães seriam de médio porte. A vítima estava no chão na sua hemi-faixa, mais ou menos a meio desta, com a cabeça do lado do heixo da via e o resto do corpo virada para a berma (direita), atento o seu sentido de marcha. Apercebe-se do corpo no chão estaria a passar por baixo da passagem de peões aérea que existe no local (cerca de 40 metros).
I…, militar da Guarda Nacional Republicana que elaborou o auto de participação de acidente de viação na sequência do atropelamento descrito nos autos. Refere que a via é iluminada, existindo poste de iluminação junto à paragem de autocarro, que estava a funcionar no momento do acidente. Confirma que não existiam rastos de travagem. Que colocou o local provável de embate o situou junto a vestígios de sangue que havia na via. No local só constatou um único cão, de porte médio (de altura até ao joelho), sem trela.
G…, militar da Guarda Nacional Republicana, pessoa que elaborou o relatório de acidente junto aos autos. Reafirma as conclusões que explana no relatório por si subscrito.
L…, irmã da vítima/peão. Mantinha relacionamento próximo com o irmão. Que no dia do acidente sabe que o seu irmão estava apenas acompanhado por um cão, de pequeno porte, por ser novo, e que dava pelo meio da canela de um adulto. O seu irmão era uma pessoa normal para a sua idade. Mantinha bom relacionamento com os filhos. Que os seus sobrinhos, filhos da vítima, sofreram e sofrem com a morte do pai.
M…, não conheceu o falecido. Pessoa que conhece e se dá com os filhos do falecido e bem como a ex –mulher deste. Ambos os filhos sentiram a morte do pai, sendo que o C… sofreu mais, tendo sofrido consequências psíquicas com a morte do pai.
K…, pessoa que trabalha na interveniente Instituto de Segurança Social, IP, Centro Distrital do Porto e que veio confirmar que a mesma procedeu aos pagamentos mencionados nos autos e de outros entretanto feitos.
Quanto ao local do atropelamento atentou o Tribunal na prova documental, supra mencionada.
Quanto à dinâmica do acidente o Tribunal formou a sua convicção na prova documental supra mencionada, devidamente conjugada com a prova testemunhal, J…, que conduzia veículo imediatamente atrás do veículo interveniente no acidente, I… elemento da Guarda Nacional Republicana que se elaborou relatório junto aos autos, que foram determinantes para dizer que o acidente ocorrei tal como vem descrito nos factos provado. Por esta via, não se atribuiu credibilidade à testemunha F…, pessoa que era o condutor da viatura que atropelou a vítima, dado que o seu relato se mostrou desconforme com a realidade a normalidade. Tanto mais que não faz sentido afirmar, tal com o faz a testemunha, dizer que não atentou no peão mas que estava a prestar atenção aos canídeos que estavam a fazer a passagem da via. Não faz sentido que se note na passagem de dois cães, de cor escura, e depois se diga que não viu o peão. E que logo de imediato, depois de dizer que não viu o peão, venha dizer que este vinha a cambalear.
De toda a prova produzida, documental e testemunha, não se retira que tenha sido a infeliz vítima a provocar o embate e muito menos que tal se tenha ficado a dever ao teor de álcool que tinha no sangue. Será ou foi significativo, aquando da audição do condutor F… dizer que avistou os cães ou o cão, mas que não avistou o peão. Daqui se retira, smo, que foi unicamente a distracção do F… que provocou o embate e não o peão ou o teor de álcool que este tinha no sangue.
Quanto ao mais, danos atentou o Tribunal na prova testemunhal produzida nos autos, em sede de audiência final.
Quanto aos danos subsequentes ao acidente atentou -se à prova documental junta aos autos e bem como a prova testemunhal, designadamente, a F…, condutor da viatura, e L…, irmã da vítima, por terem demonstrado ter conhecimento directo dos factos.
Procedeu-se à audição de toda a prova pessoal produzida na audiência final, bem como ao exame da prova documental junta aos autos de folhas 14 a 21[3], 25 a 36[4], 37 a 41 e 45 a 50[5], 51[6], 52 a 54[7], 55 a 57[8], 58[9], 59[10], 95 a 98[11], 106 a 108[12], 109[13] e 136 a 141[14].
Apreciemos criticamente a prova produzida, debruçando-nos sobre cada um dos pontos impugnados, analisando a prova produzida e tentando não ficar refém dos enviusamentos cognitivos[15] a que o caso especialmente se presta: de um lado um enviusamento de favorecimento do peão, resultante de ser o elo mais fraco no sinistro, o chamado “pot de chair” contra o “pot de fer”, na expressão consagrada da doutrina e jurisprudência francesa; de outro lado, um enviusamento em desfavor do peão, em virtude de circular sob a influência do álcool e com uma taxa bastante elevada.
No que respeita a velocidade de circulação (alínea h) dos factos provados da sentença recorrida), o condutor do veículo ES declarou que não circularia a mais de cinquenta quilómetros por hora, até porque as condições do trânsito não permitiam velocidade superior.
J… condutora do veículo que circulava imediatamente atrás mas a uma distância ainda apreciável do veículo ES não foi capaz de precisar a velocidade de circulação do veículo ES[16].
I…, agente que tomou conta da ocorrência e elaborou a participação policial junta de folhas 14 a 21, referiu que o veículo ES estava imobilizado a cerca de dez a doze metros do local que lhe foi indicado como sendo o do embate, o que se coaduna com uma velocidade de circulação não muito elevada.
G…, agente da GNR autor do auto de exame direto ao local (folhas 25 a 28) e da respetiva reportagem fotográfica (folhas 29 a 36 e do relatório (folhas 37 a 41 e 45 a 50), com base nos danos verificados no veiculo e nas lesões no peão, pronunciou-se no sentido da velocidade de circulação do veículo ES não dever ser superior a cinquenta quilómetros por hora. Por um lado, referiu que os vidros dos para-brisas estão preparados para aguentar choques com corpos até uma velocidade de quarenta quilómetros por hora, só fraturando a velocidades superiores a essa e, por outro lado, afigura-se-lhe inviável que o peão ficasse vivo, após a colisão, se esta tivesse ocorrido a uma velocidade superior a cinquenta quilómetros por hora, porque as lesões sofridas pelo peão seriam de muito maior gravidade do que as que se verificaram.
Não foram detetados quaisquer vestígios de travagem no local[17], tendo o próprio condutor do veículo ES afirmado que não acionou os travões, tendo-se limitado a desacelerar. Não se pode olvidar que a via tem uma pendente ascendente (cerca de 3%), atento o sentido de marcha do veículo ES.
Não se averiguou se o veículo tinha ou não caixa de velocidades automática[18] e, na hipótese negativa, que mudança ia engrenada.
A condutora do veículo que seguia atrás do veículo ES não se recorda de ter visto o acionamento das luzes de travão do veículo que a precedia na via.
O depoimento produzido por G… deve ser avaliado criticamente à luz do que ele próprio exarou no relatório por si elaborado (veja-se a folha 45 destes autos), pois que, de acordo com o previsto no artigo 1º do Regulamento Relativo aos Vidros de Segurança e aos Materiais para Vidros de Automóveis e seus Reboques anexo ao decreto-lei nº 40/2003, de 11 de Março, os vidros dos para-brisas homologados estão preparados para quebrar, sem intrusão, no caso de choques com corpos a velocidades até quarenta quilómetros por hora e tendo ainda em atenção o que resulta da cópia da fotografia de folhas 19 (fratura do para-brisas, sem intrusão).
Assim, sopesando conjugadamente todos os elementos que se acabam de destacar, afigura-se-nos que numa avaliação prudente da prova (artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil), apenas se pode dar como provado que o veículo ES circulava a velocidade situada entre quarenta e cinquenta quilómetros por hora.
Apreciemos agora o bloco factual referente às condições de visibilidade na via (alíneas i), j), w), x) e y), dos factos provados da sentença recorrida).
Antes ainda de entrar diretamente na avaliação crítica das provas relativas a este conjunto fáctico, importa referir que no mesmo estão inseridos segmentos que não são susceptíveis de prova, pois constituem meros juízos de valor ou conclusivos, sem aptidão individualizadora, como é próprio dos factos.
Na verdade, dos factos ou enunciados de facto deve distinguir-se toda aquela operação que não consiste na perceção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno[19], mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual[20], as denominadas formulações conclusivas. Dentro desta matéria conclusiva, devem em nosso entender, distinguir-se os juízos de facto periciais[21], dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos[22] e pressuposta uma certa realidade concreta.
Esta distinção justifica-se, em nosso entender, porque pode ser objecto de prova pericial a apreciação de factos[23], quando para tanto sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuam, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial (artigo 388º do Código Civil).
Assim, não é facto a “excelente” visibilidade, tal como não são factos os juízos contidos nas alíneas w), x) e y) dos factos provados. Relativamente a estes juízos, o que importa é a fixação dos factos concretos que possibilitam a emissão do juízo, isto é, o alcance da iluminação pública, o momento, o trajecto e a velocidade no atravessamento da via, devendo o julgador depois, em sede de análise crítica da factualidade provada, formular os juízos que os factos concretos provados possibilitem. Além das condições gerais de visibilidade na via, importa sobretudo determinar as condições concretas que se verificavam no momento do sinistro, pois são estas que permitir aferir da correção ou incorreção das condutas dos diversos intervenientes.
Por isso, este Tribunal da Relação vai excluir dos fundamentos de facto esses segmentos conclusivos, por não serem passíveis de prova e não constituírem matéria de facto, reservando para momento próprio a valoração e emissão de juízos sobre a matéria de facto que vier a ser julgada provada.
Debrucemo-nos agora especificamente sobre a problemática das condições de visibilidade na via (alíneas i), j), w), x) e y), dos factos provados da sentença recorrida).
O condutor do veículo ES referiu que, embora sem ser encadeado, a visibilidade no local do acidente era prejudicada pelo trânsito que circulava em sentido oposto ao seu. Porém, reconheceu a existência de iluminação pública no local com postes de cinquenta em cinquenta metros e admitiu ter visto dois canídeos na via de que se desviou, guinando para a direita, deparando depois com o peão que veio a atropelar, a cambalear, voltando a guinar de novo para a direita, sem contudo conseguir evitar a colisão com o peão.
A testemunha J… referiu que na altura do sinistro havia veículos a circular em sentido oposto, embora sem congestionamento e que no local do sinistro estava escuro, não obstante a existência de iluminação pública na via. No entanto, afirmou ter visto canídeos na berma da via, já após o sinistro e a projeção de algo quando o veículo que a precedia se desviava para a direita (esta testemunha apenas se apercebe de um desvio para a direita da via, atento o seu sentido de marcha), vindo depois a verificar que se tratava do corpo de uma pessoa. Sem grande precisão e certeza, situou em cerca de quarenta metros a distância a que lobrigou a projeção daquilo que depois veio a identificar como o corpo do falecido peão, pois que inicialmente pensou que alguém estaria a lançar coisas de uma passagem superior existente antes do local do sinistro.
Quer o condutor do veículo ES, quer a testemunha J… referiram que no local do acidente a via se apresenta em reta, afirmação corroborada pelo verificado na participação policial a folhas 14 e nas cópias das fotografias de folhas 27, 30, 31, 32, 33 e 34, sendo possível extrair desta cópias, não obstante a sua fraca qualidade, que se tratará de uma reta com seguramente mais de cem metros de comprimento[24].
O veículo ES imobilizou-se depois do embate, antes ainda do poste de iluminação escolhido pelo participante como ponto fixo inalterável[25], situado, de acordo com as medidas tiradas pelo participante, a 15,40 metros do local de embate alegadamente indicado pelo condutor do veículo ES e que o participante pensa ter sido também identificado por uma mancha de sangue[26].
O acidente verificou-se de noite, por volta das 19h30, na fase de quarto crescente, mais precisamente no segundo dia desta fase da lua.
Na posse de todos os dados antes enunciados, pode avançar-se na reapreciação dos aludidos pontos de factos, nos termos que seguem:
- o local onde o acidente ocorreu é uma reta com seguramente mais de cem metros de comprimento, antes ainda do local do acidente, atento o sentido de marcha do ES (alínea i) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- no local onde o acidente ocorreu existia iluminação pública, com postes elétricos, a cada cinquenta metros, situando-se o mais próximo cerca de quinze metros depois do local do embate (alínea j) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
No que respeita os pontos w), x) e y), dos fundamentos de facto da sentença recorrida, porque constituem meros juízos conclusivos a emitir em ulterior momento em face dos concretos factos apurados, não se responderá aos mesmos[27], devendo ser retirados da factualidade provada.
Apreciemos agora a matéria da alínea o) dos fundamentos de facto da sentença recorrida.
No que respeita esta factualidade, o condutor do veículo ES referiu ter visto dois canídeos a atravessar a via, tal como a testemunha J… referiu ter visto na berma da via dois cães, mas já após o sinistro.
O participante, I… referiu ter capturado no local uma cadela, sem qualquer trela, identificada como pertença do peão atropelado e que foi entregar à mãe do sinistrado.
O depoimento de L…, irmã do falecido, no sentido de que apenas um jovem e pequeno cão acompanhava o falecido nesse dia, não merece credibilidade face ao grau de precisão e certeza do agente participante que expressamente referiu a entrega de uma cadela à mãe do falecido.
Não é crível que o participante confunda um cão jovem, um cachorro, com uma cadela, como referiu de forma inequívoca.
A razão de ciência da testemunha L…, fundada na afirmação de que a cadela não andava com o irmão, porque não largava a sua mãe e, ainda porque nesse dia, pelas 17h30 tinha ido à casa da mãe, numa altura em que o falecido tinha já saído com o cão jovem não é fiável porque, mesmo admitindo que não faltou à verdade, bem podia o falecido ter entretanto regressado à casa de sua mãe e voltado a sair de novo.
Assim, tudo sopesado, deve alterar-se o ponto o) dos fundamentos de facto, dando-se como provado apenas o seguinte:
- o peão circulava com dois cães de pequena estatura[28].
Reapreciemos agora a alínea z) dos fundamentos de facto da sentença recorrida.
No que respeita este ponto de facto, a sua primeira parte integra um juízo que não deve integrar a matéria de facto, apenas se devendo responder à sua segunda parte e sobre a qual a prova pessoal e real produzida é inequívoca e convergente, no sentido da sua confirmação.
Deste modo, a alínea z) passará a ter o seguinte conteúdo:
- o acidente deu-se quando o peão já tinha atravessado a berma da estrada do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do ES, a metade da faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o mesmo sentido e parte da metade direita da faixa de rodagem, atento sempre o mesmo sentido.
Apreciemos agora as alíneas ee), ff), gg), hh) e ii) dos fundamentos de facto da sentença recorrida.
No que respeita esta matéria, de relevante, apenas foi produzido o depoimento do condutor do veículo, já que o participante, quando chegou ao local, não se abeirou da vítima que já estava na ambulância[29], enquanto a testemunha J… não quis sequer olhar para a cara do falecido.
O condutor do ES referiu que quando se abeirou do peão e induzido pelo Sr. Advogado que o questionou, que o peão estava inconsciente (ouça-se o depoimento desta testemunha do minuto catorze e quinze segundos em diante), com a cara virada para baixo e que lhe virou a cara para o lado a fim de não abafar com o seu próprio sangue, pois que deitava “golfadas” de sangue pela boca, não tendo notado qualquer reação nos olhos do peão, tanto mais que estava escuro. Nada mais disse quanto ao estado do peão e reações do mesmo.
Atento o conteúdo do depoimento produzido pelo condutor do veículo ES, bem como a gravidade das lesões sofridas pelo peão a envolver a caixa craniana, por isso compatível com perda imediata de consciência[30], não existe base para com um mínimo de segurança infirmar o depoimento do condutor do veículo ES e muito menos qualquer prova que positivamente permita responder afirmativamente aos pontos ee) a ii) dos fundamentos de facto da sentença recorrida, matéria que por isso se julga não provada nesta instância.
Apreciemos agora as alíneas lll) e mmm) dos fundamentos de facto da sentença recorrida.
No que respeita esta matéria apenas foi produzida a prova documental junta de folhas 106 a 109 e o depoimento testemunhal de K…, autora da certidão de folhas 109, a qual, além de confirmar tal certidão, referiu a efetivação de pagamentos adicionais em dezembro de 2014. Porém, confrontada com o facto do requerente das prestações por morte ser já maior na data do acidente, foi incapaz de esclarecer a que título lhe foi paga uma pensão de sobrevivência, referindo que só a área processadora das prestações estaria em condições de responder a tal questão.
Porém, não obstante estas insuficiências do depoimento da testemunha K…, atendendo ao conteúdo das alíneas lll) e mmm) dos factos provados na sentença recorrida, afigura-se-nos que se devem manter as respostas dadas, com exceção do segmento em que se dá como provado o resultado de uma soma[31], pois que a questão de os pagamentos efetuados terem sido corretamente realizados é matéria de direito a apreciar em momento ulterior, em face do direito aplicável.
Apreciemos agora os factos não provados nas alíneas a), c), d), e) e f) dos factos não provados na sentença recorrida.
As alíneas c), d) e e) dos factos não provados da sentença recorrida, à semelhança do que se referiu a propósito das alíneas w), x), y) e z), dos factos provados da mesma peça, contêm juízos de valor que não devem integrar a matéria de facto, apenas devendo ser respondidas na medida em que contenham factos concretos passíveis de prova.
No que respeita a alínea a) dos factos não provados, os depoimentos do condutor do veículo ES e da testemunha J… foram convergentes no sentido de na altura do sinistro circularem veículos em sentido oposto, não havendo qualquer razão para os desconsiderar, pois é da experiência comum que mesmo com trânsito a processar-se, é possível efetuar o atravessamento da via, tudo dependendo da intensidade do trânsito, da velocidade de circulação dos veículos e do grau de risco que o peão está disposto a correr.
Por isso, a matéria vertida na alínea a), dos factos não provados deve julgar-se provada.
A alínea c) dos factos não provados não contém qualquer facto concreto passível de prova, constituindo um mero juízo baseado no estado de influenciado pelo álcool do falecido peão. Por isso, não deve responder-se a esta matéria.
No que respeita a alínea d), dos factos não provados, há um segmento claramente conclusivo e uma parte fáctica relativa ao modo de progressão do peão atropelado.
Relativamente à matéria passível de prova nesta alínea foi produzido o depoimento do condutor do veículo ES que afirmou que o peão surgiu na sua frente, cambaleando, depois de se ter deparado com dois canídeos na mesma via, guinando nas duas situações para a sua direita.
É difícil perceber que o condutor do ES não se tenha apercebido do peão logo que se apercebeu dos canídeos, mas não é de excluir que os animais circulassem mais à frente do peão e que por isso a atenção do condutor do ES se concentrasse nos animais. Recorde-se que os animais iam sem trela. Nessa circunstância, o condutor do veículo ES poderia aperceber-se do peão apenas a uma curta distância e ainda assim poderia percecionar a forma como se deslocava e que aliás se veio a concretizar na forma como ocorreu o embate, com a cabeça do peão mais para a frente do que o restante do corpo.
A testemunha G…, com base nas consequências físicas do embate no peão e nas zonas do veículo atingido opinou que o peão transitaria na via ligeiramente dobrado (veja-se folha 49 destes autos).
De facto, as lesões que o peão apresenta são localizadas na cabeça[32] e não há notícia nos autos de que tenha sofrido qualquer lesão nos membros inferiores, como é comum no atropelamento de qualquer peão que circule em condições normais[33].
Por outro lado, o veículo ES não tem quaisquer danos na sua parte frontal, apenas tendo o canto superior do para-brisas fraturado[34], do lado do condutor, mas sem intrusão e o retrovisor do lado esquerdo e o puxador da porta do mesmo lado danificados, danos apenas possíveis com o peão a circular com a cabeça mais para a frente do que o restante do corpo.
Deste modo, da alínea d) dos factos não provados, na parte respondível, deve julgar-se provado o seguinte:
- o peão caminhava dobrado para a sua frente, cambaleando.
Apreciemos agora a alínea e) dos factos não provados.
No que respeita esta matéria, tendo em conta os depoimentos do condutor ES, bem como da testemunha J…, já acima relevados nos segmentos que importam para a apreciação desta matéria, deve dar-se como provado, apenas, que o condutor do veículo ES se desviou por duas vezes para a sua direita, ao avistar dois cães na via e logo depois o peão.
A prova produzida não permite a determinação precisa da distância a que se deu o avistamento dos canídeos e do peão, embora tenha que ter sido necessariamente superior à que seria percorrida à velocidade de circulação no tempo de reação do condutor do ES, pois só assim seria possível ainda executar a manobra de desvio para a direita da via, atento o seu sentido de circulação[35].
A fim de evitar contradições na matéria de facto provada, ex vi artigo 662º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil), deve alterar-se a alínea jjj) dos factos provados que apenas se refere ao pelo de um cão, quando havia dois cães no local, ambos com pelo escuro, como resultou da prova produzida.
No que respeita a alínea f) dos factos não provados, face ao que já se decidiu relativamente à alínea h), dos factos provados, deve esta matéria retirar-se dos factos não provados, ficando apenas a subsistir aquela outra, pelas razões que a propósito foram indicadas.
Por tudo quanto precede conclui-se pela procedência parcial da impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente.
Ao abrigo do disposto 662º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, impõe-se reapreciar oficiosamente a alínea aa) dos factos provados, já que contém matéria de direito[36] e foi produzida prova clara com base no depoimento das testemunhas J… e G… e no Relatório de folhas 37 a 41 e 45 a 50, especialmente a folhas 39, no sentido de que existia uma passagem superior para peões a menos de cinquenta metros do local e antes do local onde ocorreu o embate, tal como, em parte, foi julgado provado na alínea ggg) dos factos provados da sentença recorrida, sem qualquer impugnação das partes.
Também a alínea kkk) dos factos provados da sentença recorrida, por conter um mero juízo conclusivo, de caráter comum, insusceptível de prova, deve extirpar-se dos fundamentos de facto.
3.3 Fundamentos de facto exarados na decisão sob censura, na parte em que se mantêm, bem como dos resultantes da reapreciação da decisão da matéria de facto que precede
3.3.1 Factos provados
3.3.1.1
No dia 18 de fevereiro de 2013, cerca das 19h, 30m, ao km …., da E. N. …, em …, Vila Nova de Gaia, ocorreu um acidente de viação (alínea a) dos factos provados da sentença recorrida).
3.3.1.2
Foi [Foram] interveniente[s] neste acidente: -O veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-ES-.., conduzido por F… e propriedade do mesmo; -o peão E… (alínea b) dos factos provados da sentença recorrida).
3.3.1.3
O pavimento da aludida estrada é em betuminoso, encontrando-se em bom estado de conservação (alíneas c) e d) dos factos provados da sentença recorrida).
3.3.1.4
O piso estava seco (alínea e) dos factos provados da sentença recorrida).
3.3.1.5
O ES circulava na aludida Estrada, sentido …/…, na hemifaixa direita de rodagem atento o seu sentido de marcha (alíneas f) e g) dos factos provados da sentença recorrida).
3.3.1.6
Existiam veículos que circulavam em sentido contrário ao do ES (facto não provado na alínea a) dos respetivos fundamentos da sentença recorrida, reapreciado e julgado provado por esta Relação).
3.3.1.7
O veículo ES circulava a velocidade situada entre quarenta e cinquenta quilómetros por hora (alínea h) dos factos provados da sentença recorrida reapreciada por esta Relação).
3.3.1.8
O local onde o acidente ocorreu é uma reta com seguramente mais de cem metros de comprimento, antes ainda do local do acidente, atento o sentido de marcha do ES (alínea i) dos fundamentos de facto da sentença recorrida reapreciada por esta Relação).
3.3.1.9
No local onde o acidente ocorreu existia iluminação pública, com postes elétricos, a cada cinquenta metros, situando-se o mais próximo cerca de quinze metros depois do local do embate (alínea j) dos fundamentos de facto da sentença recorrida reapreciada por esta Relação).
3.3.1.10
Alguns metros antes do local do acidente, atento o sentido de marcha do ES, existia uma placa com a indicação da localidade de … (alínea k) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.11
A largura da faixa de rodagem no local onde o acidente ocorre é de 7,40 metros (alínea l) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.12
Acresce ainda a berma esquerda, atento o sentido da viatura, cuja largura é de 2,60 metros (alínea m) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.13
Do referido acidente não resultaram rastos de travagem (alínea n) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.14
O peão circulava com 2 cães de pequena estatura (alínea o) dos fundamentos de facto da sentença recorrida reapreciada por esta Relação).
3.3.1.15
Esses cães tinham um pelo escuro (alínea p) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.16
O peão atravessou a faixa de rodagem atento o sentido de marcha …/… da esquerda para a direita, a um ritmo lento e caminhava dobrado para a sua frente, cambaleando (alíneas q) e r) dos fundamentos de facto da sentença recorrida e alínea d) dos factos não provados reapreciada por esta Relação e julgada parcialmente provada).
3.3.1.17
Quando já tinha atravessado a hemifaixa esquerda de rodagem atento o mesmo sentido de marcha atrás referido e os primeiros metros da hemifaixa direita de rodagem é embatido pelo ES, com a parte frontal/lateral esquerda da viatura (alíneas s) e t) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.18
O condutor do veículo ES desviou-se por duas vezes para a sua direita, ao avistar dois cães na via e logo depois o peão (alínea e) dos factos não provados, reapreciada e julgada parcialmente provada por esta Relação).
3.3.1.19
O acidente originou a fratura do para-brisas da viatura (alínea u) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.20
O condutor do ES circulava habitualmente na EN … (alínea v) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.21
O acidente deu-se quando o peão já tinha atravessado a berma da estrada do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do ES, a metade da faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o mesmo sentido e parte da metade direita da faixa de rodagem, atento sempre o mesmo sentido (alínea z) dos fundamentos de facto da sentença recorrida, reapreciada por esta Relação).
3.3.1.22
O peão atravessou a faixa de rodagem em local em que existia uma passagem superior para peões a menos de cinquenta metros antes do local onde ocorreu o embate (alínea aa) dos fundamentos de facto da sentença recorrida, reapreciada oficiosamente por esta Relação e alínea ggg) dos factos provados na sentença recorrida).
3.3.1.23
O peão ficou imobilizado no chão (alínea cc) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.24
Estava com o corpo todo ensanguentado vertendo-o também pela boca (alínea dd) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.25
Posteriormente chegou ao local uma equipa médica do INEM, que transportou o corpo para o Hospital, onde viria a falecer no dia 19 de Fevereiro de 2013 pelas 6h30m (alíneas jj), kk) e ll) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.26
A vítima E… tinha 45 anos de idade e era divorciado (alíneas mm) e nn) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.27
Os autores eram os seus únicos filhos (alínea oo) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.28
O aludido E… era uma pessoa saudável, dinâmica e cheia de alegria de viver (alínea pp) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.29
Orgulhava-se da estima e bom conceito que tinha nas suas relações pessoais (alínea qq) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.30
Apesar dos autores após o divórcio dos seus pais terem ficado a viver com a mãe, tinham uma boa relação com o pai, encontrando-se com alguma frequência mensal e usufruindo desse convívio com alegria (alíneas rr) e ss) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.31
Adorava os seus filhos e preocupava-se com o futuro dos mesmos (alínea tt) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.32
Devido à morte do E…, os autores padecem de grande sofrimento e forte abalo psíquico (alínea uu) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.33
Os autores amavam o seu pai e morte deste causou-lhes um enorme desgosto e tristeza (alínea vv) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.34
Encontram-se muito traumatizados (alínea ww) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.35
No dia a dia sentem a falta do pai e perderam alguma da alegria de viver (alíneas xx) e yy) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.36
O autor C… durante alguns meses após a morte do pai sofreu de insónias e pesadelos sendo frequente acordar durante a noite aos gritos (alínea zz) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.37
Os autores efectuaram o pagamento do funeral do seu pai, infeliz vítima do acidente dos autos, no que gastaram, a quantia de € 1.420,00 € (alínea aaa) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.38
(bbb) A vítima E… seguia com 1,86 g/l no sangue de etanol (alínea bbb) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.39
A taxa de 1,86 g/l de álcool no sangue, tem efeitos no comportamento, proporcionando um sentimento de euforia, de uma autoconfiança crescente, originando uma deterioração da percepção do risco, provocando, ainda, a nível do Córtex cerebral: 1. Cessação das inibições psíquicas. 2. Perda de autocontrole. 3. Diminuição da resistência contra influências psíquicas ambientais. 4. Euforia. 5. Engrandecimento. 6. Capacidade de entusiasmo exagerada. 7. Autoconfiança crescente. 8. Necessidade de expansões. 9. Generosidade. 10. Diminuição da capacidade de raciocínio. 11. Desejo de convívio. 12. Necessidade de falar excessiva. 13. Diminuição da atenção (alíneas ccc) e ddd) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.40
Por outro lado, a nível da visão provoca: 1.Transtornos da visão estereoscópica (de apreciação das distâncias, reconhecimento das formas, etc). 2. Diplopia e a nível do cerebelo: 1. Alterações do equilíbrio (alíneas eee) e fff) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.41
O infeliz E… registou uma fratura na cabeça, do lado direito, onde foi embatido pelo veículo seguro pela aqui ré (alínea hhh) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.42
O peão vestia roupas escuras, tal como o era o pelo dos cães (alíneas iii) e jjj) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.43
Com base no falecimento do beneficiário, em consequência do acidente a que dizem respeito os autos, foram requeridas pelo autor C… prestações por morte e pensão de sobrevivência que foram deferidas (alínea lll) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.44
Assim, foi pago ao autor C… - subsídio por morte, no valor de 1.257,66 € (mil duzentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos); - pensões de sobrevivência, relativas ao período de março de 2013 a agosto de 2014, no valor de 1.057,16 € (mil cinquenta e sete euros e dezasseis cêntimos) (alínea mmm) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.1.45
O proprietário do ..-ES-.. Smart à data do acidente havia transferido a responsabilidade do aludido veículo emergente de acidentes de viação causados pela circulação do mesmo para a ré através da apólice nº ………….. (alínea bb) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
3.3.2 Factos não provados
3.3.2.1
Por referência ao facto provado em (bb) e por ter ingerido bebidas alcoólicas[37] (alínea b) dos factos não provados).
3.3.2.2
Após o embate o peão tinha dores horríveis por todo o corpo, gemia, arfava, era visível o seu estado de pânico e sofrimento perante a aproximação da morte e tinha consciência da gravidade das lesões (alíneas ee) a ii) dos factos provados na sentença recorrida e que esta Relação, reapreciando, julgou não provadas).
4. Fundamentos de direito
4.1 Da culpa exclusiva do peão na eclosão do acidente e da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na pretensão dos autores e da interveniente (recurso principal)
A recorrente pugna pela revogação da sentença recorrida atenta a alteração da matéria de facto por que pugnou e da qual resulta demonstrada uma conduta ilícita e temerária do falecido peão determinante da verificação do sinistro, não se comprovando qualquer conduta culposa da parte do condutor do veículo ES, tudo a determinar a exclusão da obrigação de indemnizar não só com base em facto ilícito, mas também pelo risco.
Na decisão recorrida sustentou-se a responsabilidade da recorrente, no que respeita a ilicitude do facto e a culpa, com base nas seguintes considerações:
O condutor do veículo automóvel ES (F…) ao realizar a manobra descrita nos factos dados como provados, isto é, ao circular pela via com a velocidade que não lhe permitiu visionar quem pela via passava, de modo a poder parar ou evitar o embate , tendo em consequência embatido no peão por imperícia e ou distracção própria, provocando com tal condução o embate no infeliz peão.
Aos condutores é imposto pelo Código da Estrada um dever de diligência de modo a que não impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança dos utentes das vias.
De tal disposição legal, tida como princípio para toda e qualquer circulação nas vias, retira-se a seguinte conclusão: Aos condutores de veículos é de exigir o cumprimento estrito das normas legais que regulam o trânsito, de forma a que o mesmo se processe ordenadamente e sem perigo para os demais utilizadores das vias de comunicação, e a mais não são obrigados. Isto é, não se pode exigir aos condutores que devam prever um comportamento negligente, ou a falta de atenção ou de cuidado de outros condutores. Ou mais, não se pode fazer impender sobre os utilizadores das vias o especial dever de cuidado, em prever que os outros utilizadores infrinjam as normas de trânsito. A Jurisprudência e a doutrina, apelida a este conjunto de regras e de deveres, como a manifestação do princípio da confiança.
Assim e como manifestações de tal princípio estradal, temos as regras constantes dos artigos 3.º, n.º 1 e 2, 24.º, 25.º, n.º 1, alíneas c) e f) e 27.º do Código da Estrada – em vigor à data do acidente, sendo que a última alteração de tal diploma é o Decreto-Lei n.º 138/2012 de 05.07 e aplicável aos factos.
O referido condutor da dita viatura violou o disposto nos referidos artigos, pelo que em face da factualidade dada como provada, terá que se censurar condução do F… face às leis estradais.
Estes preceitos, como todos os que estabelecem regras ordenatórias do trânsito, destinam-se também a proteger a saúde e os bens daqueles que possam vir a ser afectados pela circulação rodoviária.
Nessa perspectiva, dir-se-á que a regra de trânsito, embora não concedendo direitos subjectivos, traduzidos no poder de exigir uma certa conduta (prestação), protege, ainda que indirectamente, interesses particulares.
Todavia, para que a ilicitude da infracção a essa regra se possa reportar ao direito do particular, será necessário que "... à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal...", que "... a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada..." e que "... o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar..." - A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. 1º, 4ª Ed., págs. 455 a 461.
Ora, a regra como a infringida pelo condutor supra referido foi instituída para que, dando-se ordem a um trânsito que, sem ela, seria caótico, se evitar, entre outros, prejuízos decorrentes do choque entre veículos.
Aí residindo a ilicitude do acto violador dessas normas – artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
Foi, pois, ilícita a actuação do condutor da dita viatura – condutor do ES, o dito F….
(…)
Há culpa sempre que a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito.
Trata-se de um juízo que assenta no nexo existente o facto e a vontade do agente, podendo revestir duas formas distintas: o dolo e a negligência (ou mera culpa).
No dolo, o juízo de censura funda-se na imputação do facto ilícito à vontade do agente.
Na negligência ou mera culpa, o juízo de censura funda -se na omissão de um dever de diligência ou de cuidado por parte do agente.
Quanto à culpa, o dito condutor, ao proceder à manobra descrita, infringindo sem razão válida regras que se lhe impunha, não agiu de acordo com os cânones pelos quais se deve pautar a conduta de um bonus pater familias – confrontar artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil.
Com efeito, as regras da circulação rodoviária foram instituídas para ordenar o tráfego, protegendo - indirectamente - a saúde e os bens daqueles que possam vir a ser afectados pela circulação
rodoviária.
Pelo que, identificada a regra da circulação rodoviária violada e feita a sua imputação ao agente, tem-se o culpado do acidente ocorrido.
No caso sub judice, a actuação do condutor da dita viatura ES, o dito F…, ao não proceder com os cuidados que são impostos pelas regras estradais, actuou de modo a se conclui por ser o único culpado na ocorrência do acidente descrito nos presentes autos. Nesta sede, tal como se aludiu em sede de motivação da resposta aos factos, a conduta do peão, vítima, não poderá ser censurada, pois que dos factos nada se retira de censura.
Cumpre apreciar e decidir.
O nascimento da obrigação de indemnizar a cargo da ré e ora recorrente depende da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao segurado ou legítimo detentor ou condutor do veículo ..-ES-.. (veja-se o artigo 15º do decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, donde resulta que o seguro pode abranger casos de detenção ilegítima do veículo).
O artigo 483º, nº 1, do Código Civil prescreve que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
Na classificação do Professor Antunes Varela os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito são:
a) o facto (facto humano controlável ou dominável pela vontade);
b) a ilicitude do facto (nas modalidades de violação de direitos subjectivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios);
c) o nexo de imputação do facto ao agente (que coenvolve a imputabilidade e a culpa);
d) o dano;
e) o nexo causal entre o facto e o dano.
A verificação do primeiro pressuposto é, face à factualidade provada, indubitável, pois a condução de um veículo motorizado por parte do condutor do veículo de matrícula ..-ES-.. constitui, sem dúvida, um facto humano dominável pela vontade.
No que respeita à ilicitude do facto, numa formulação clássica, ela pode identificar-se com a violação do direito à vida do falecido pai dos autores.
Esta versão clássica da ilicitude suscita porém algumas perplexidades, na medida em que, desinteressando-se da finalidade do agente ou do seu modo de atuação, relega para a culpa e para o nexo causal, situações que a teoria da acção final, resolve no quadro da ilicitude.
Além do mais, nesta formulação clássica, existe uma evidente confusão da ilicitude com o dano ou o resultado danoso.
No caso da sinistralidade automóvel, além da violação de direitos subjetivos que constitui a primeira modalidade de ilicitude do facto, pode também verificar-se a segunda modalidade de ilicitude por violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
O tribunal a quo enquadrou e qualificou de ilícito o comportamento do condutor do veículo ES, imputando-lhe a violação do disposto nos artigos 3º, nº 1 e 2, 24º, 25º, nº 1, alíneas c) e f) e 27º, todos do Código da Estrada.
Os factos provados relevantes para aferição da adoção de uma conduta ilícita por parte do condutor do veículo ES são os seguintes:
- O ES circulava na aludida Estrada, sentido …/…, na hemifaixa direita de rodagem atento o seu sentido de marcha (alíneas f) e g) dos factos provados da sentença recorrida);
- Existiam veículos que circulavam em sentido contrário ao do ES (facto não provado na alínea a) dos respetivos fundamentos da sentença recorrida, reapreciado e julgado provado por esta Relação);
- O veículo ES circulava a velocidade situada entre quarenta e cinquenta quilómetros por hora (alínea h) dos factos provados da sentença recorrida reapreciada por esta Relação);
- O local onde o acidente ocorreu é uma reta com seguramente mais de cem metros de comprimento, antes ainda do local do acidente, atento o sentido de marcha do ES (alínea i) dos fundamentos de facto da sentença recorrida reapreciada por esta Relação);
- No local onde o acidente ocorreu existia iluminação pública, com postes elétricos, a cada cinquenta metros, situando-se o mais próximo cerca de quinze metros depois do local do embate (alínea j) dos fundamentos de facto da sentença recorrida reapreciada por esta Relação);
- Alguns metros antes do local do acidente, atento o sentido de marcha do ES, existia uma placa com a indicação da localidade de … (alínea k) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- A largura da faixa de rodagem no local onde o acidente ocorre é de 7,40 metros (alínea l) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- Acresce ainda a berma esquerda, atento o sentido da viatura, cuja largura é de 2,60 metros (alínea m) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- Do referido acidente não resultaram rastos de travagem (alínea n) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O peão circulava com 2 cães de pequena estatura (alínea o) dos fundamentos de facto da sentença recorrida reapreciada por esta Relação);
- Esses cães tinham um pelo escuro (alínea p) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O peão atravessou a faixa de rodagem atento o sentido de marcha …/… da esquerda para a direita, a um ritmo lento e caminhava dobrado para a sua frente, cambaleando (alíneas q) e r) dos fundamentos de facto da sentença recorrida e alínea d) dos factos não provados reapreciada por esta Relação e julgada parcialmente provada);
- Quando já tinha atravessado a hemifaixa esquerda de rodagem atento o mesmo sentido de marcha atrás referido e os primeiros metros da hemifaixa direita de rodagem é embatido pelo ES, com a parte frontal/lateral esquerda da viatura (alíneas s) e t) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O condutor do veículo ES desviou-se por duas vezes para a sua direita, ao avistar dois cães na via e logo depois o peão (alínea e) dos factos não provados, reapreciada e julgada parcialmente provada por esta Relação);
- O acidente originou a fratura do para-brisas da viatura (alínea u) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O condutor do ES circulava habitualmente na EN … (alínea v) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O acidente deu-se quando o peão já tinha atravessado a berma da estrada do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do ES, a metade da faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o mesmo sentido e parte da metade direita da faixa de rodagem, atento sempre o mesmo sentido (alínea z) dos fundamentos de facto da sentença recorrida, reapreciada por esta Relação);
- O infeliz E… registou uma fratura na cabeça, do lado direito, onde foi embatido pelo veículo seguro pela aqui ré (alínea hhh) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O peão vestia roupas escuras, tal como o era o pelo dos cães (alíneas iii) e jjj) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
A factualidade provada que se acaba de rememorar não permite concluir que o condutor do veículo ES tenha praticado qualquer ato que impeça ou embarace o trânsito ou que comprometa a segurança ou a comodidade dos utentes da via, estando assim afastada a imputação da violação do disposto nos nºs 1 e 2, do artigo 3º do Código da Estrada.
Da mesma factualidade não resulta que o condutor circulasse a uma velocidade tal que não lhe permitisse parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. Só assim seria possível concluir se acaso tivesse ficado demonstrada a distância a que o condutor do ES percecionou o peão atropelado. A factualidade provada apenas permite concluir que o condutor do veículo ES viu o peão de modo a ainda poder reagir, o que, face à sua velocidade máxima de circulação e a um tempo de reação médio de três quartos de segundo, significa que o percecionou a pelo menos mais de dez metros e quarenta e um centímetros[38].
Não se pode esquecer que nenhum condutor tem que contar com uma redução imprevista do espaço livre e visível que tem à sua frente. Em circulação noturna, com os médios acesos, uma velocidade de circulação que se contém dentro do espaço de visibilidade facultado por tais luzes é perfeitamente adequada.
A velocidade de circulação do veículo ES era adequada ao trânsito no interior de uma localidade, pois circulava a velocidade compreendida entre quarenta quilómetros por hora e cinquenta quilómetros por hora.
Não resulta da factualidade provada que a via onde se verificou o sinistro esteja marginada por edificações ou que o local fosse de visibilidade reduzida[39].
Assim, por tudo quanto precede, conclui-se que a factualidade provada não permite a imputação ao condutor do veículo ES da violação do disposto nos artigos 24º, 25º, nº 1, alíneas c) e f) e 27º, todos do Código da Estrada, como concluiu o tribunal a quo.
Importa porém aferir se a mesma matéria permite concluir que o condutor do veículo ES, ao agir como agiu, violou o dever objetivo de cuidado que sobre si impendia.
Embora não se saiba precisamente a distância a que o condutor do veículo ES avistou o peão, existem dados de facto assentes que nos permitem concluir que o teria que ter avistado ainda quando se achava na via de trânsito oposta.
De facto, mesmo tendo em conta que em sentido oposto havia circulação, ela não podia ser tão densa que não permitisse o atravessamento a uma pessoa embriagada, acompanhada de dois canídeos, a cambalear e num ritmo lento. A execução da manobra de atravessamento da via por um peão em tais condições demora um certo tempo, necessariamente, na melhor das hipóteses, nunca menos de três a quatro segundos e, além disso, quer pelo estado de embriaguez do peão, quer pelo seu acompanhamento, é uma manobra que dá nas vistas.
O peão não é uma aparição vinda do céu, nem brota subitamente do subsolo, mas antes provém da via de trânsito da esquerda, atento o sentido de marcha do condutor do ES, depois de atravessar a berma e a via desse lado, num total de 6,3 metros e percorrendo ainda alguns metros na via de trânsito em que circulava o ES.
Não obstante o peão estar vestido de escuro e se fazer acompanhar de dois canídeos de pelo escuro, o local dispunha de iluminação pública, estando um poste de iluminação a cerca de quinze metros depois do local indicado como sendo o do embate, apresentando a via um traçado em reta.
Assim, tudo sopesado, ajuizando criticamente toda a factualidade provada, afigura-se-nos que o condutor do veículo ES tinha condições para se aperceber tempestivamente da presença do peão na via e de adotar uma condução defensiva adequada às circunstâncias do caso, pelo que, agindo como agiu, violou o dever geral objetivo de cuidado que devia e podia observar, atuando de forma ilícita.
Prosseguindo na análise dos restantes pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito, no que tange o nexo de imputação do facto ao agente e, mais especificamente, a imputabilidade, deve, em nosso entender, considerar-se demonstrada por presunção natural, pois, a regra e a normalidade das situações nos levam a concluir que, quem age, tem normalmente capacidade de querer e entender[40].
Por isso, deve considerar-se demonstrada por presunção natural a imputabilidade e enquanto não for feita contraprova que abale a referida presunção.
A culpa do agente afere-se pela conduta que um bom pai de família adotaria no caso concreto (ver artigo 487º, n.º 2, do Código Civil – a culpa é apreciada em abstracto, por referência a um padrão ideal de Homem).
A violação de preceitos estradais por parte do condutor de um veículo é suficiente para que a sua culpa se presuma, cabendo-lhe, deste modo, a contraprova dos factos que abalem tal presunção natural[41].
No caso concreto, concluiu-se pela ilicitude da conduta do condutor do veículo ES em virtude de ter violado um dever geral de diligência, não mantendo a concentração necessária para se precaver contra a invasão da sua via de trânsito por um peão embriagado, acompanhado por dois canídeos. Tal dever geral de diligência tem um especial grau de exigência quando estão em causa atividades com perigosidade, como sucede com a condução automóvel.
Aferindo o comportamento do condutor do veículo ES à luz da bitola do bom pai de família e tendo em atenção que os factos revelam uma deficiência na sua conduta, na falta de demonstração de quaisquer circunstâncias que o impossibilitassem de observar o cuidado devido, deve concluir-se que agiu com culpa, na forma de negligência.
O dano consiste, no caso dos autos, no que respeita aos autores, face à factualidade provada, na violação do direito à vida do peão e nos danos reflexos que a morte do peão causou nos seus filhos.
O nexo causal entre o facto e o dano no caso da responsabilidade por facto ilícito existe sempre que a conduta se não possa considerar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por causa de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (trata-se da chamada formulação negativa da causalidade adequada e que se reputa preferível no domínio da responsabilidade por facto ilícito[42]).
No caso dos autos, é manifesto que os danos antes enunciados resultaram de forma necessária da conduta do condutor do veículo ..-ES-...
Antes ainda de concluir pela reunião de todos os pressupostos necessários ao nascimento da obrigação da ré de indemnizar os autores, com base em facto ilícito, importa averiguar da existência de culpa do peão atropelado e dos reflexos de tal culpa, caso exista (artigo 570º do Código Civil).
Na decisão recorrida, com uma base fáctica distinta da que se formou nesta instância, concluiu-se que nada se podia censurar ao peão atropelado.
Da factualidade provada resulta que o peão efetuou o atravessamento da via fora do local a isso destinado, a menos de cinquenta metros de uma passagem superior para peões, embriagado (com uma alcoolemia de 1,89 gramas de álcool no sangue), cambaleando, em ritmo lento, na companhia de dois canídeos.
Agindo como agiu, o peão violou o disposto no artigo 101º, nº 3, do Código da Estrada, violação claramente causal do sinistro, pois que bastava que tivesse efetuado o atravessamento da via pela passagem superior existente a menos de cinquenta metros do local, para que o sinistro não tivesse ocorrido.
O estado de embriaguez do peão diminuiu-lhe a perceção do risco e dificultou-lhe a velocidade e a postura na locomoção, postura que também foi decisiva para a ocorrência do sinistro. O acompanhamento com canídeos é um fator de risco acrescido dada a imprevisibilidade das suas reações.
Não fora o estado de embriaguez do peão e certamente o mesmo teria percecionado a presença do veículo ES a circular numa trajetória que convergia com a sua pois, tendo a via traçado reto, teria que ter visto as luzes do veículo ES.
Tudo sopesado, afigura-se-nos claríssima a existência de culpa do lesado na ocorrência do sinistro e, além disso, em confronto com a culpa do condutor do veículo ES, entende-se que é muito mais grave a culpa do peão, mas não ao ponto de conduzir à exclusão da indemnização, reputando-se adequada a atribuição de 70% de responsabilidade ao peão e de 30% ao condutor do veículo ES.
Assim, por tudo quanto antecede, conclui-se que o recurso de apelação da seguradora procede no que respeita os danos próprios sofridos pela vítima antes do óbito, já que resultaram não provados e, em parte, no que respeita a culpa do lesado.
Por força da culpa do lesado, na proporção ora fixada, os valores fixados na sentença recorrida a favor dos autores, na parte em que não resultam improcedentes os danos subjacentes em face da factualidade provada e não provada, reduzem-se aos seguintes montantes:
- € 342,00, a título de despesas com o funeral;
- € 21.000,00, a título de perda da vida[43];
- € 3.000,00, a título de desgosto pela perda do pai.
Vejamos agora a questão dos danos indemnizáveis da interveniente Segurança Social.
A recorrente principal não questiona a indemnizabilidade do subsídio de morte, mas apenas da pensão de sobrevivência, em virtude de na data do sinistro ambos os autores não serem já menores, não reunindo as condições legais para beneficiarem de pensão de sobrevivência.
Salvo melhor opinião, esta posição da recorrente principal assenta num equívoco e que é o de que as pensões de sobrevivência a descendentes apenas são atribuídas em caso de menoridade.
Ora, não é assim, pois que como resulta do artigo 12º, nº 2, do decreto-lei nº 322/90, de 18 de outubro, no caso de os descendentes terem idade igual ou superior a 18 anos, as prestações apenas são concedidas se os mesmos não exercerem atividade determinante de enquadramento nos regimes de proteção social de inscrição obrigatória e satisfizerem as seguintes condições:
a) Dos 18 aos 25 anos, desde que estejam matriculados e frequentem qualquer curso de nível secundário, complementar ou médio e superior;
b) Até aos 27 anos, se estiverem a frequentar curso de mestrado ou curso de pós-graduação, a preparar tese de licenciatura ou de doutoramento ou a realizar estágio de fim de curso indispensável à obtenção de diploma;
c) Sem limite de idade, tratando-se de deficiente que nessa qualidade seja destinatário de prestações familiares.
Esclarece o nº 3 do artigo que temos vindo a citar que os limites etários de 18 aos 25 anos são aplicáveis à frequência de cursos de formação profissional que não determinem enquadramento nos regimes de proteção social.
Finalmente, o nº 4 do artigo em apreço prescreve que no caso de o curso de formação ou o estágio de fim de curso serem subsidiados, só há lugar à atribuição das prestações desde que o respetivo valor não ultrapasse dois terços da remuneração mínima garantida à generalidade dos trabalhadores.
É assim patente o equívoco da recorrente principal quanto à insusceptibilidade de ser paga pensão de sobrevivência a um descendente de beneficiário da Segurança Social maior de idade.
Deste modo, tendo a interveniente pago ao autor C… a quantia global de € 2.314,82 euros a título de prestações sociais e por causa do sinistro dos autos, visto o disposto no artigo 70º da Lei de Base da Segurança Social (Lei nº 4/2007, de 16 de janeiro), tem a interveniente direito a haver da recorrente principal o equivalente a 30% do que pagou, ou seja, a importância de € 694,45[44], acrescida de juros de mora à taxa legal supletiva para os juros civis, desde a notificação para contestar (24 de novembro de 2014) até efetivo e integral pagamento.
Pelo exposto, procede parcialmente o recurso principal no que respeita esta questão.
4.2 Do montante da compensação pela perda da vida e dos danos próprios da vítima (recurso principal)
A recorrente pugna pela revogação total da sentença recorrida, no que respeita ao montante arbitrado a título de danos próprios da vítima e reputa de excessivo o montante de setenta mil euros arbitrado a título de perda do direito à vida, pugnando pela fixação de um valor inferior, atenta a culpa da vítima.
Cumpre apreciar e decidir.
Salvo melhor opinião, a pretensão da recorrente funda-se num equívoco e, a ser procedente, levaria a que a mesma circunstância fosse duplamente valorada, em desfavor do lesado pois, num primeiro passo, a culpa do lesado seria valorada para fixar o montante da compensação devida e, posteriormente, a compensação fixada seria de novo reduzida na percentagem correspondente ao grau de culpa atribuído ao lesado.
De facto, a compensação por danos não patrimoniais, nomeadamente pela perda do direito à vida, é fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º (primeira parte do nº 4, do artigo 496º do Código Civil).
Ora, o artigo 494º do Código Civil prescreve que “[q]uando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
Assim, ao invés do que afirma a recorrente principal, a culpa do lesado não é um dos fatores que deva ser relevado na fixação da compensação pela perda do direito à vida nos termos conjugados do nº 4 do artigo 496º do Código Civil com o artigo 494º, do mesmo diploma legal, mas sim a culpa do agente, questão que contudo a recorrente não submeteu à cognição deste tribunal.
A sede própria de valoração da conduta do lesado é no quadro do disposto no nº 1, do artigo 570º do Código Civil, operando depois de fixada a compensação devida.
A compensação arbitrada pelo tribunal a quo contém-se dentro dos valores que vêm sendo arbitrados pelo Supremo Tribunal de Justiça, como reconhece a recorrente principal citando o acórdão proferido a 18 de Junho de 2015, no processo nº 2567/09.9TBABF.E1.S1, acessível no site da DGSI e a razão avançada pela recorrente principal improcede pelo que se acaba de expor.
Neste circunstancialismo, face ao que se concluiu na análise da primeira questão dos fundamentos de direito, apenas há que reduzir o montante arbitrado pelo tribunal a quo, na percentagem de 70%, ficando assim a compensação pela perda do direito à vida do falecido peão reduzida ao montante de € 21.000,00[45].
Assim, com este fundamento, tem parcial procedência o recurso principal nesta questão.
4.3 Do montante da compensação dos danos não patrimoniais próprios dos autores em razão do sofrimento por causa da morte do progenitor (recurso subordinado).
Os recorrentes subordinados pugnam pela revogação da sentença recorrida, no segmento relativo aos danos não patrimoniais próprios que sofreram com a morte de seu progenitor, pugnando por que tais danos sejam fixados no montante de quarenta e cinco mil euros para cada um.
Na decisão recorrida para fundamentar o valor de dez mil euros arbitrada a cada um dos autores escreveu-se especificamente o seguinte:
Resulta também notoriamente que os requerentes sofreram muita consternação e angústia com a morte do seu pai.
Assim, fixa-se a indemnização pelos danos morais sofridos pelos demandantes, a título de desgosto sofrido por eles com a morte do pai no montante de 10.000,00 €, a cada um dos AA..
Cumpre apreciar e decidir.
No que respeita este dano provou-se o seguinte:
- Apesar dos autores após o divórcio dos seus pais terem ficado a viver com a mãe, tinham uma boa relação com o pai, encontrando-se com alguma frequência mensal e usufruindo desse convívio com alegria (alíneas rr) e ss) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- Devido à morte do E…, os autores padecem de grande sofrimento e forte abalo psíquico (alínea uu) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- Os autores amavam o seu pai e morte deste causou-lhes um enorme desgosto e tristeza (alínea vv) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- Encontram-se muito traumatizados (alínea ww) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- No dia a dia sentem a falta do pai e perderam alguma da alegria de viver (alíneas xx) e yy) dos fundamentos de facto da sentença recorrida);
- O autor C… durante alguns meses após a morte do pai sofreu de insónias e pesadelos sendo frequente acordar durante a noite aos gritos (alínea zz) dos fundamentos de facto da sentença recorrida).
Os danos sofridos pelos autores com a perda de seu progenitor são, no essencial, os que normalmente resultam dessa situação traumática e mais ainda quando está em causa uma morte prematura, como sucedeu no caso dos autos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem arbitrado em casos similares compensações na ordem dos vinte mil euros[46] e atenta a função uniformizadora que o nosso mais alto tribunal desempenha e as exigências de que casos similares tenham um tratamento tanto quanto possível igual, afigura-se-nos adequada a fixação da compensação por aquele dano em tal montante.
Porém, atenta a culpa do lesado no sinistro que se entendeu fixar em 70%, o montante de tal compensação para cada um dos autores reduz-se ao montante de € 6.000,00.
Nestes termos, improcede o recurso subordinado.
4.4 Do termo inicial da contagem dos juros de mora sobre os danos não patrimoniais (recurso principal)
A recorrente principal insurge-se contra o termo inicial de contagem dos juros de mora relativamente aos danos não patrimoniais que foram fixados de forma atualizada, pelo que devem ser contados a partir da decisão condenatória e não desde a citação da ré para a ação.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 805º, n.º 3, do Código Civil dispõe que “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora nos termos da primeira parte deste número.”
Em nosso entender, resulta desta norma que o termo inicial da contagem de juros moratórios, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, é, em regra, a citação para a ação. Só assim não será quando se verificar iliquidez imputável ao devedor, caso em que a indemnização moratória será devida desde o momento em que se verifique a falta de liquidez imputável ao devedor.
No que respeita as obrigações ilíquidas, cuja iliquidez não seja imputável ao devedor, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, os juros de mora serão devidos, em regra, a contar da citação. De facto, do artigo 805º, n.º 3, segunda parte, do Código Civil, resulta que os juros podem incidir mesmo sobre obrigação ilíquida[47]. Esta previsão legal criou um regime especial para o dano moratório quando a fonte da obrigação de indemnizar seja a responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, afastando-se da regra geral prevista na primeira parte do nº 3, do artigo 805º, do Código Civil.
No momento presente importa ainda ter em conta o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, no qual se dispôs que “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação” (publicado no Diário da República, nº 146, da série I-A, de 27 de Junho de 2002).
Relevante ainda para o enquadramento normativo da questão em apreciação é o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 13/96, publicado no Diário da República I-A, nº 274, de 26 de Novembro de 1996, com o seguinte teor:
- “O tribunal não pode, nos termos do artigo 661º, nº 1, do Código de Processo Civil, quando condenar em dívida de valor, proceder oficiosamente à sua actualização em montante superior ao valor do pedido do autor.
No caso em apreço, na sentença recorrida, não se detecta qualquer operação formal de actualização dos montantes peticionados.
A compensação arbitrada a título de perda do direito à vida foi mais além do que havia sido pedido na petição inicial, ficando aquém do que aí havia sido pedido as compensações pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autores com o óbito do progenitor de ambos. No entanto, o pedido global deduzido pelos autores permitia ao tribunal a quo, se assim o entendesse, fixar valores superiores àqueles que fixou.
Em todo o caso essas compensações foram arbitradas com recurso a critérios de equidade, devendo ter-se ainda em atenção que, em regra, o tribunal deve ter em atenção a data mais recente a que puder aceder (artigo 566º, nº 2, do Código Civil), determinação que em termos processuais também é acolhida no artigo 611º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Num tal circunstancialismo, deve concluir-se que as compensações por danos não patrimoniais arbitradas nestes autos são atualizadas, razão pela qual os juros de mora devem ser contados a partir do dia imediato à prolação da decisão que os fixou[48].
Pelo exposto, procede também relativamente a esta questão o recurso principal.
Importa agora recapitular tudo quanto se decidiu.
Indeferiu-se a arguição de nulidade da sentença recorrida.
Deferiu-se parcialmente a reapreciação da decisão da matéria de facto, nos termos que ficaram expostos.
Concluiu-se pela constituição da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito por parte do segurado da ré e, concomitantemente desta, com culpa do lesado cuja proporção se fixou em 70%.
Procedeu a apelação principal, improcedendo totalmente a pretensão de compensação por danos não patrimoniais próprios do falecido sofridos antes do óbito.
Procedeu parcialmente a apelação principal, improcedendo parcialmente a pretensão da interveniente, fixando-se o montante da indemnização a cargo da recorrente em € 694,45.
Procedeu parcialmente a apelação principal, improcedendo parcialmente a pretensão por danos patrimoniais, reduzindo-se o montante fixado pelo tribunal recorrido para € 342,00.
Procedeu parcialmente a apelação principal no que respeita a compensação pela perda do direito à vida que se fixou, já depois da redução por força da culpa do lesado, no montante de € 21.000,00.
Procedeu parcialmente a apelação principal e improcedeu o recurso subordinado relativamente aos danos não patrimoniais próprios dos autores, fixando-se a compensação devida a cada um, no montante de € 6.000,00
Procedeu a apelação principal no que respeita a contagem dos juros de mora incidentes sobre as compensações por danos não patrimoniais que começarão a contar a partir de 24 de Outubro de 2015 e até efetivo e integral pagamento.
As custas do recurso principal e da ação são da responsabilidade dos autores, da interveniente e da ré, na exacta proporção da sucumbência, sem prejuízo do apoio judiciário de que gozam os autores (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
As custas do recurso subordinado são da responsabilidade dos autores, mas sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso subordinado interposto por B… e C… e parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Companhia de Seguros D…, S.A. e, consequentemente:
a) em indeferir a arguição de nulidade da sentença recorrida por condenação além do pedido;
b) em alterar, a requerimento e oficiosamente, a matéria de facto nos termos antes expostos;
c) em julgar parcialmente improcedente a ação, revogando-se parcialmente a sentença proferida a 23 de outubro de 2015, condenando-se a Companhia de Seguros D…, S.A. a pagar a B… e C…, a título de danos patrimoniais, a quantia de trezentos e quarenta e dois euros (€ 342,00), a que acrescem juros de mora contados à taxa supletiva legal desde a citação da ré e até efetivo e integral pagamento e a quantia de vinte e um mil euros, a título de dano de perda da vida do progenitor dos autores, acrescida de juros de mora contados à taxa supletiva legal desde 24 de Outubro de 2015 até efetivo e integral pagamento; condena-se a Companhia de Seguros D… S.A. a pagar a cada um dos autores a quantia de seis mil euros, a título de danos não patrimoniais próprios de cada um deles, importâncias acrescidas de juros de mora contados à taxa supletiva legal desde 24 de Outubro de 2015 até efetivo e integral pagamento; absolve-se a Companhia de Seguros D… S.A. do demais peticionado por B… e C….
d) em julgar parcialmente improcedente o pedido de reembolso deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP e, consequentemente, em condenar a Companhia de Seguros D… S.A. a pagar àquele instituto a quantia de seiscentos e noventa e quatro euros e quarenta e cinco cents, a que acrescem juros de mora contados à taxa supletiva legal desde a notificação da ré e até efetivo e integral pagamento, absolvendo-se a ré do demais peticionado pelo Instituto de Segurança Social, IP.
As custas do recurso principal e da ação são da responsabilidade dos autores, da interveniente e da ré, na exacta proporção da sucumbência, sem prejuízo do apoio judiciário de que gozam os autores (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
As custas do recurso subordinado são da responsabilidade dos autores, mas sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
***
O presente acórdão compõe-se de cinquenta páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 16 de maio de 2016
Carlos Gil
Carlos Querido
Alberto Ruço
_____
[1] Notificada às partes em expediente eletrónico elaborado em 23 de Outubro de 2015.
[2] Sobre a origem desta regra veja-se, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina 1997, José Carlos Brandão Proença, página 761 e nota 2594.
[3] Participação policial do sinistro lavrada pelo Sr. Agente da GNR, I… e cópias de fotos do veículo que terão sido tiradas logo no próprio momento em que o participante foi chamado a tomar conta da ocorrência, fotos que tiveram necessidade de ser repetidas, em virtude de terem ficado com uma coloração deficiente.
[4] Auto de exame direto ao local (datado de 04 de abril de 2013, referindo-se no auto que a diligência se realizou a 02 de abril de 2013) e relatório fotográfico elaborados por G…, Cabo da GNR, do Núcleo de Investigação Criminal de Acidentes de Viação, do Comando Territorial do Porto.
[5] Relatório sobre o sinistro objeto destes autos, datado de 06 de agosto de 2013, elaborado por G…, Cabo da GNR, do Núcleo de Investigação Criminal de Acidentes de Viação, do Comando Territorial do Porto.
[6] Cópia de certidão de óbito de E…, falecido em 19 de fevereiro de 2013, pelas 6h30, no estado de divorciado de N….
[7] Cópia de certidão de nascimento relativa a B…, nascido a 08 de abril de 1993, filho de E… e de N…, tendo sido homologado acordo do exercício das responsabilidades parentais, por sentença de 12 de novembro de 1997 e de acordo com a qual o referido B… ficou confiado à guarda e aos cuidados da mãe.
[8] Cópia de certidão de nascimento relativa a C…, nascido a 05 de fevereiro de 1995, filho de E… e de N…, tendo sido homologado acordo do exercício das responsabilidades parentais, por sentença de 12 de novembro de 1997 e de acordo com a qual o referido B… ficou confiado à guarda e aos cuidados da mãe.
[9] Cópia da fatura nº …., emitida pela Agência Funerária O…, datada de 02 de março de 2013, endereçada a C…, com referência às despesas efetuadas com o funeral do Sr. E…, computadas no montante global de € 1.420,00.
[10] Cópia do recibo nº …., referente à fatura nº …., emitido pela Agência Funerária O…, datado de 02 de março de 2013, endereçado a C….
[11] Cópia de Escritura Pública de Habilitação de Herdeiros, lavrada no dia 30 de outubro de 2014, no Cartório Notarial de P…, em …, na qual Q…, N… e M… declararam que no dia 19 de fevereiro de 2013 faleceu E…, no estado de divorciado de N…, sem testamento ou outra disposição de última vontade, deixando dois filhos, B… e C….
[12] Cópia de requerimento para prestações por morte, datado de fevereiro de 2013, com carimbo de entrada de 02 de abril de 2013, subscrito por C… e dirigido ao Diretor do Centro Nacional de Pensões.
[13] Cópia de certidão datada de 11 de novembro de 2014, emitida por K…, na qualidade de diretora do Núcleo de Recebimentos e Pagamentos do Instituto de Segurança Social, IP, Serviços Centrais, na qual certifica que o Instituto de Segurança Social, IP, através do Centro Nacional de Pensões, pagou subsídio por morte, relativamente ao beneficiário nº ………./00, E…, falecido em 19 de fevereiro de 2013, no montante de € 1.257,66, ao filho C…, tendo sido pagas pensões de sobrevivência relativas ao período de 2013-03 a 2014-08, no total de € 1.057,16
[14] Cópia da decisão de arquivamento proferida em 26 de setembro de 2013, nos autos de inquérito nº 1350/13.1TAVNG, da 2ª secção dos Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia e referente ao sinistro objeto destes autos.
[15] Sobre a problemática dos enviusamentos cognitivos em geral, veja-se Prova Testemunhal, Almedina 2013, Luís Filipe Pires de Sousa, páginas 154 a 172,
[16] Esta testemunha revelou uma confessada incapacidade em determinar distâncias concretas.
[17] Na prática dos tribunais e na recolha dos vestígios dos acidentes de viação vai-se trabalhando como se os rastos de travagem tivessem aptidão para evidenciar infalivelmente a velocidade de circulação, havendo alguma dificuldade em lidar com a ausência de tais rastos. De facto, os quadros mentais dos operadores judiciários não têm acompanhado a evolução técnica dos veículos, nomeadamente, não se tem em conta frequentemente a existência do sistema de travagem ABS que, em boas condições de funcionamento, permite o acionamento do sistema de travagem e a sua eficácia, sem que haja bloqueio das rodas e o consequente rasto de travagem.
[18] No caso de não se acionar ou de se levantar o pedal do acelerador, um veículo com caixa automática perde velocidade muito mais rapidamente do que um veículo com caixa de velocidades manual.
[19] Referimo-nos aos factos psíquicos.
[20] As operações aritméticas são também matéria conclusiva, sendo matéria de facto a prova das parcelas necessárias à efetivação de tais operações. A aritmética, enquanto tal, por razões óbvias, não constitui objeto de prova, sendo constituída por regras que são do conhecimento geral.
[21] Como exemplos destes juízos periciais de facto podem referir-se a incapacidade para o trabalho, o perigo de ruína (artigo 1226º nº 1 do Código Civil) e a graduação do quantum doloris e do dano estético.
[22] Incluir-se-ão nestes os factos hipotéticos ou conjecturais que não careçam de conhecimentos especiais para serem emitidos, como sucede relativamente à vontade hipotética ou conjectural das partes (artigos 292º, parte final, 293º, parte final e 2202º, parte final, todos do Código Civil).
[23] Não se objecte contra esta afirmação que os juízos de valor não são passíveis de prova, sendo apenas fundados ou infundados, como afirma Michele Taruffo in La Prueba de los Hechos, Editorial Trotta, cuarta edición, páginas 118 e 129, pois é a própria lei substantiva que inclui na matéria da instrução a apreciação de factos em sede de prova pericial. Assim, incluindo-se estes juízos periciais de facto nos temas de prova, a instrução destinar-se-á a determinar se são fundados ou não, não sendo de excluir a inserção em tal peça de juízos periciais de facto contraditórios, destinando-se a instrução, entre outras finalidades, precisamente à determinação do juízo que se reputa fundado ou mais fundado.
[24] O Sr. Juiz a quo com base na sua “ciência privada” foi-se referindo a distâncias, referências que este tribunal não deve utilizar, pois que, além de dificilmente percetíveis, não derivam de uma forma legal e adequada de produção de prova.
[25] O ponto fixo inalterável constitui mais um dos atavismos inquestionáveis da investigação de acidentes de viação no nosso país que vai subsistindo quando é certo que um só ponto fixo não tem por si só aptidão para situar qualquer ponto no espaço, só sendo possível essa operação se existirem pelo menos dois pontos fixos distintos.
[26] No entanto, na participação não vem indicada qualquer mancha de sangue, sendo certo que a existência de uma tal mancha indicará antes o local onde o corpo do peão foi repousar depois do embate e não o local onde foi colhido, podendo entre um local e outro haver uma distância maior ou menor consoante as concretas condições em que se verificou o sinistro, nomeadamente a existência de projeção do peão. No caso, como o embate do peão foi mais na zona lateral do veículo, sem atingir a parte inferior do corpo do peão, é provável que, a ter existido projeção, terá sido pequena.
[27] E porque são puros juízos, não é viável uma resposta restritiva concretizadora nos termos previstos na alínea b), do nº 2, do artigo 5º do código de Processo Civil.
[28] Embora da prova resulte que os cães circulavam sem trela, esta factualidade não foi alegada nos autos e por isso, não se deve dar como provada.
[29] Esta testemunha referiu que foi o seu colega quem se dirigiu junto da vítima, pessoa que não foi identificada.
[30] Nem as “golfadas” de sangue que o condutor do ES afirma ter visto e que o levaram a deslocar a cabeça do peão, a fim de evitar que abafasse com o seu próprio sangue permitem qualquer ilação relativamente aos factos probandos, pois podem ser mero resultado do simples funcionamento do corpo, sem qualquer interferência consciente ou voluntária do indivíduo.
[31] Já antes se referiu, e agora se repete, que operações aritméticas são também matéria conclusiva, sendo matéria de facto a prova das parcelas necessárias à efetivação de tais operações. A aritmética, enquanto tal, por razões óbvias, não constitui objeto de prova, sendo constituída por regras que são do conhecimento geral.
[32] No despacho de arquivamento proferido no inquérito criminal instaurado por causa do sinistro dos autos consignou-se que as causas da morte do peão foram as lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas.
[33] Normalmente, como bem se compreende se se tiverem presentes as leis da física, o peão sofre fratura do membro inferior que se acha mais próximo do veículo atropelante.
[34] O dano no para-brisas, no atropelamento “clássíco” se assim nos podemos exprimir, é em regra um dano subsequente ao embate do veículo contra o peão e resultante da projeção do peão para cima do veículo.
[35] Avaliando criticamente o depoimento do condutor do veículo ES, tendo em atenção que a uma velocidade de quarenta quilómetros por hora são percorridos 11,11 metros por segundo e que o tempo de reação médio de um condutor é de três quartos de segundo, pode concluir-se que para o simples início de execução da manobra de desvio para a direita a fim de evitar os canídeos, o referido condutor teve que ver os animais seguramente a pelo menos 8,3325 metros.
[36] Na verdade, o juízo sobre o caráter juridicamente proibido de certa conduta é por excelência um juízo normativo que se efetua com referência a normas legais, no caso o artigo 101º nº 3, do Código da Estrada.
[37] Esta matéria não provada, não impugnada por qualquer das partes, é totalmente ininteligível e deve por isso considerar-se não escrita.
[38] Tendo em conta a velocidade de circulação máxima do veículo ES de 50 quilómetros por hora, num segundo é percorrida a distância de 13,88 metros (50.000 metros por hora: 60 minutos = 833,33 metros por minuto: 60 segundos = 13,88 metros por segundo). Em três quartos de segundo, a essa mesma velocidade são percorridos 10,41 metros (13,88 metros: 4 = 3,47 metros; 3,47 metros x 3 = 10,41 metros). A uma velocidade de circulação de 40 quilómetros por hora, é percorrida num segundo a distância de (40.000 metros por hora: 60 minutos = 666,66 metros por minuto: 60 segundos = 11,11 metros por segundo). Em três quartos de segundo, a essa mesma velocidade são percorridos 8,3325 metros (11,11 metros: 4 = 2,77 metros; 2,77 metros x 3 = 8,3325 metros).
[39] Para efeitos do Código da Estrada considera-se que a visibilidade é reduzida ou insuficiente sempre que o condutor não possa avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, cinquenta metros (artigo 19º do Código da Estrada).
[40] O Sr. Professor Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, volume I, 7ª edição, Almedina 2008, página 316, nota 652, sustenta existir a contrario sensu, uma presunção legal de imputabilidade para os maiores de sete anos, presunção que extrai do disposto no artigo 488º, n.º 2, do Código Civil.
[41] Acerca desta questão veja-se, Responsabilidade Civil por Conselhos, Recomendações ou Informações, Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Almedina 1989, páginas 260 a 267.
[42] Veja-se, Das Obrigações em Geral, João de Matos Antunes Varela, 6ª edição, Almedina Coimbra, 1989, volume I, páginas 862 a 865.
[43] A compensação devida por este dano, tal como do seguinte será apreciada por este tribunal quando se debruçar sobre uma das questões do recurso principal e sobre a única questão do recurso subordinado.
[44] O valor exato é de € 694,446, que se arredonda por excesso para € 694,45.
[45] € 70.000,00 x 30% = € 21.000,00.
[46] Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis no site da DGSI: de 03 de abril de 2014, proferido no processo nº 436/07.6TBVRL.P1.S1; de 03 de novembro de 2010, proferido no processo nº 55/06.4PTFAR.E1.S1 e de 05 de junho de 2008, proferido no processo nº 08A1177.
[47] Ao nível jurisprudencial, quanto à incidência de juros de mora nas obrigações ilíquidas, vejam-se os Acórdãos publicados na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, tomo IV, páginas 194 a 196 e ano XX, tomo V, páginas 34 e 35 e mais recentemente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, acessível no site da DGSI, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, a 14 de Julho de 2009, no processo nº 630-A/1996.S1.
[48] Neste sentido vejam-se os seguintes acórdãos, ambos acessíveis na base de dados da DGSI: da Relação de Guimarães, de 10 de abril de 2014, no processo nº 320/12.1TBVCT.G1; da Relação de Coimbra, de 05 de março de 2013, no processo nº 1556/07.2TBAGD.C1.