Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
296/20.1T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
REQUISITOS
PERICULUM IN MORA
Nº do Documento: RP20210607296/20.1T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O procedimento cautelar comum constitui um meio processual destinado a obter uma decisão conservatória ou antecipatória que permita afastar o receio de que alguém se possa ver prejudicado pela conduta de um terceiro suscetível de causar lesão a um seu direito.
II - Não basta, porém, a invocação de um mero receio, assim como não se mostra suficiente a verificação de uma simples lesão do direito que se pretenda ver acautelado para que, desde logo, possa ser judicialmente desencadeado o procedimento cautelar.
III - Para que tal possa suceder, mostra-se necessário que se esteja perante a probabilidade séria da existência de um direito e que haja um justificado receio de que a conduta de um terceiro seja suscetível de causar uma lesão grave e dificilmente reparável ao titular desse direito.
IV- Assim, apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 296/20.1T8AVR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro – Juízo Central Cível, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
*
Sumário
………………………………
………………………………
………………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B…, SL instaurou o presente procedimento cautelar comum contra C…, pedindo que:
a) Seja decretada, sem audição do Requerido, a entrega/restituição dos dois veículos que identifica;
b) No caso de o Requerido não entregar os veículos no prazo que lhe for fixado, seja ordenada a sua apreensão pelas forças policiais competentes para posterior entrega à Requerente;
c) Seja o Requerido condenado no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 500,00 por cada dia que não cumpra a efetividade da providência decretada;
d) Seja decretada a inversão do contencioso, nos termos do disposto nos artigos 369.º e 371.º do Código de Processo Civil e, por via disso, dispensar a Requerente do ónus de propor a ação principal.
Alegou, para tanto, que o requerido foi administrador da requerente até 22 de Outubro de 2013, usufruindo, no desempenho dessas funções, de dois veículos de matrícula espanhola (um de marca Ferrari e outro de marca Citroen), que identificou, propriedade da requerente.
Acrescenta que, em virtude de o requerido ter deixado de exercer quaisquer funções na requerente, foi-lhe solicitada a devolução dos veículos, o que, todavia, não satisfez até à presente data.
Refere ainda que o requerido não tem autorização da requerente para continuar a utilizar os veículos, nem nacionalidade espanhola para os puder conduzir em Portugal, como o tem feito, sendo sério o risco de serem apreendidos, verificando-se que um desses veículos (o de marca Ferrari) não tem sequer a inspecção obrigatória efectuada.
Requereu a dispensa de prévia citação do requerido, por receio de dissipação dos bens, atendendo à sua natureza, o que foi deferido.
Foi produzida a prova indicada pela requerente e proferida decisão, com o seguinte conteúdo:
a) Decretar a entrega/restituição dos veículos identificados no artigo 3º dos factos indiciados, no prazo de 5 dias a contar da notificação da presente providência;
b) Ser o Requerido condenado no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, no valor de € 250,00 por cada dia que não cumpra a efetividade da providência decretada;
c) Sem prejuízo do determinado na alínea anterior, no caso de o Requerido não entregar os veículos no prazo fixado na alínea a) anterior, determina-se a apreensão e remoção física dos veículos, nos locais onde os mesmos se encontrem, nomeadamente nos locais referidos no artigo 35º da PI, através de Agente de Execução e sua entrega à requerente.
Inconformado com a decisão, veio o requerido deduzir oposição, peticionando a sua revogação.
Alegou, em síntese, que, apesar de não ser proprietário do veículo de marca Ferrari, o mesmo sempre foi por si utilizado, quer como administrador da requerente, quer como administrador de uma outra empresa (D…, S. A.), com conhecimento e autorização da requerente, sem qualquer oposição, não tendo sido interpelado pela requerente, antes da instauração desta providência, para a entrega do veículo.
Mais refere que entre a requerente (na pessoa no seu legal representante, seu pai) e o requerido havia sido acordado que o dito veículo seria por si adquirido, explicitando os termos desse acordo, tendo as partes negociado o preço e forma de pagamento, compra que ainda não se concretizou.
Alega ainda que relativamente ao outro veículo (de marca Citroen) o mesmo nunca foi por si utilizado, mas antes por um trabalhador da empresa requerente, também com autorização e conhecimento desta, constando inclusive do contrato de seguro como sendo este o seu condutor habitual.
Sustenta, por último, não existir qualquer perigo de lesão irreparável que justifique o recurso à providência, devendo, ainda, ser indeferido o pedido de inversão do contencioso, na eventualidade, que admite como mera hipótese, de a providência se manter.
Requer a condenação da requerente como litigante de má-fé.
A requerente exerceu o contraditório, concluindo pela manutenção da decisão proferida.
Requereu igualmente a condenação do requerido como litigante de má-fé.
O requerido exerceu o contraditório em relação ao incidente de litigância de má-fé.
Realizou-se audiência final com a inquirição das testemunhas arroladas pelo requerido, vindo a ser proferida decisão que:
(i) julgou improcedente a oposição deduzida, mantendo a providência decretada;
(ii) julgou improcedente o pedido de inversão do contencioso formulado pela requerente;
(iii) julgou improcedentes os incidentes de litigância de má-fé deduzidos por requerente e requerido.
Não se conformando com o assim decidido, o requerido interpôs o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Notificada a requerente apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente saber se estão verificados os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar não especificada impetrada pela requerente.
***
2. Recurso da matéria de facto

O tribunal de 1ª instância considerou “indiciariamente provados” os seguintes factos:
1.º A Requerente é uma sociedade comercial de direito espanhol, que se dedica à atividade de prestação de serviços relacionados com a publicidade, relações públicas e marketing, compra e venda, distribuição, exposição, importação e exportação de toda a classe de carnes para consumo e demais artigos e produtos alimentares.
2.º O cargo de administrador único da sociedade B…, SL. foi desempenhado pelo Requerido até 22 de outubro de 2013 e, desde então e até à presente data, é E… que desempenha tal função.
3º O requerido é filho do atual Administrador Único da Requerente.
4º A requerente foi constituída por iniciativa e em prossecução de um projeto do Requerido, em 20.11.2012, por este e seu pai, conforme escritura nessa data celebrada, em Vigo - Espanha, no Cartório Notarial de F…, constante de fls. 313 a 324 verso,
5º Com o capital social de € 5.000,00 (cinco mil euros), representado por cinco mil participações sociais no valor nominal de € 1,00 (um euro) cada, das quais cabiam ao Requerido 3.750, e a seu pai 1.250, sendo aquele o Administrador Único da sociedade.
6º Posteriormente, em 20/12/2012, num negócio conduzido pelo Requerido, à data administrador da requerente, a Requerente adquiriu a G…, o veículo usado, marca Ferrari, com matrícula de 16.09.2003, tendo sido pago o valor de € 26.030,00 (vinte e seis mil e trinta euros) incluído o valor de € 1.041,20 de impostos,
7º- De um negócio na importância global de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) sem impostos (fls. 328-328 verso, 333-334, 338), em que esteve também envolvida a empresa D…, S. A..
8.º Para o exercício da representação e atividade comercial, a Requerente procedeu à compra do Ferrari de matrícula espanhola, referido em 6º e de matrícula ….CMB com o número de identificação …………….. e um outro veículo de matrícula espanhola, de marca Citroen, com a matrícula ….JNM, e com o número de identificação ……………...
9.º A D1…, S. A. é uma sociedade da qual integram o conselho de administração o ora requerido e ainda H… e I….
10º O requerido foi nomeado como presidente do Conselho de Administração da D… por deliberação de 28 de Junho de 2019, registada na Conservatória do Registo Comercial em 22 de Julho de 2019, Ap. 18.
11º O veículo Ferrari foi adquirido essencialmente para operações de promoção e marketing não só da atividade da B…, mas, também, da D…, S.A. e era utilizado pelo requerido com conhecimento da Requerente e do seu atual Administrador E…,
12º Utilização que sempre foi feita apenas pelo requerido.
13º Após a venda da participação social detida na sociedade Requerente, o requerido passou a utilizar o Ferrari maioritariamente em Portugal, para fins de promoção junto de clientes, com autorizações emitidas pela requerente.
14º Por declarações de 24 de janeiro de 2013 e de 13 de maio e 05 de outubro de 2015, a Requerente, na pessoa do seu Administrador e sócio único E…, já vinha autorizando o aqui Requerido a utilizar a viatura Ferrari (fls. 347 a 349), constando das referidas declarações, respectivamente, o seguinte:
- “C… (…) é trabalhador da empresa mencionada e, para o desempenho de seu trabalho, está autorizado a conduzir o veículo da empresa com o número de registo ….CMB”;
- “C… (…) é colaborador da empresa mencionada e que, para o desempenho de seu cargo, está autorizado a dirigir o veículo Ferrari, propriedade da empresa com o número de registo ….CMB”; - “C… (…) é um colaborador/funcionário da empresa mencionada e que, para o desempenho de seu cargo, está autorizado a dirigir o veículo Ferrari, propriedade da empresa com o número de registo ….CMB”.
15º O requerido manteve-se em colaboração com a Requerente na área de Marketing, através de contrato celebrado por tempo indeterminado, do qual consta como data de início 1-10-2015 (fls. 354 a 356 verso).
16º E em 07/07/2017 chegou a estar prevista e em fase de concretização a venda do Ferrari, à D…, S.A., pelo valor de € 10.500,00 (dez mil e quinhentos euros) (fls. 354) tendo a Requerente emitido a competente fatura, a qual foi posteriormente anulada (fls. 220 verso, 221 e 388), ficando sem efeito.
17º Em Setembro de 2019 foi mencionada a intenção de encerramento da requerente B… por comunicação via email de 09 e 23.09.2019.
18.º J…, vendedor da requerente e da sociedade D…, S. A., utilizava o Citroen ao serviço e nessa qualidade, em Espanha e Portugal (fls. 366 verso a 377 verso; 374 a 377 verso), tendo a requerente, com data de 13 de Junho de 2018, emitido a declaração constante de fls. 384, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
19.º Com data de 27 de Novembro de 2018 a autora emitiu, em favor de J…, a declaração constante de fls. 367 com o seguinte teor: “ Autoriza: Ao S. J… (…) em nome da empresa mencionada, ele tramite perante os Correios o pedido de Distintivo Ambiental da DGT para o carro Citroen .., com o número de registo ….JNM”,
20.º Constando no contrato de seguro celebrado pela Requerente e assinado por E…, o nome deste enquanto condutor, documento constante de fls. 374 a 378, em vigor até 05-06-2019,
21.º Sendo as despesas inerentes às mesmas, reparações, seguros, impostos, inspecções, asseguradas umas vezes pela D…, S.A. e outras pela aqui Requerente.
22.º Atualmente e com a oposição da Requerente, é o Requerido quem vem utilizando e usufruindo de tais veículos.
23.º A Requerente tem vindo, sucessivamente, a solicitar ao Requerido a entrega dos veículos à sociedade, mas o Requerido não procedeu à restituição voluntária dos mesmos.
24.º A requerente teve conhecimento que tais viaturas têm vindo a circular em Portugal.
25.º O Requerido tem usufruído do uso de tais veículos em Portugal.
26.º A Requerente receia que o Requerido faça uma utilização dolosa dos referidos veículos, e que, posteriormente, venha a ser surpreendida com a notificação da existência de coimas, multas, ou, até de eventuais processos-crime instaurados contra si, por ser a proprietária dos mesmos.
27º A Requerente receia igualmente que possa ter ocorrido, ou que venha a ocorrer um acidente de viação causador de ofensas corporais ou mesmo a morte de terceiros, resultante da condução do Requerido ou mesmo de terceiros, que origine a obrigação de indemnizar os intervenientes, e que, posteriormente, venha a ser surpreendida com o pedido de pagamento de indemnizações.
28.º Receia ainda que o Requerido possa ter um acidente com os veículos dos quais é proprietária, com os inerentes riscos da existência de danos nos mesmos - mecânica e carroçaria – que possam afetar o seu bom funcionamento.
29.º O veículo automóvel de marca Ferrari tem um valor comercial aproximado de € 90.000,00.
30.º O veículo de marca Citroen tem um valor comercial aproximado de cerca de € 18.000,00.
31.º A Requerente teve conhecimento de que a Inspeção Técnica a Veículos (ITV) sobre o veículo de marca Ferrari, deveria ter sido efetuada até ao passado dia 24 de novembro de 2019.
32.º As relações entre a Requerente e o Requerido são de elevada animosidade e, por isso, a Requerente receia que o requerido faça desaparecer o veículo.
33º A viatura Ferrari esteve desde 10-10-2019 até à data da sua apreensão depositada na oficina K…, Lda. em …, para reparação.
*
O Tribunal de 1ª instância considerou como “não indiciados e que foram dados como indiciados na primeira decisão” os seguintes factos:
5.º Até outubro de 2013 e enquanto o aqui Requerido era o único administrador da Requerente, este circulava livremente com os veículos aqui em apreço, sem prestar qualquer tipo de justificação aos restantes sócios da Requerente.
Facto 6º: Deste facto, não indiciado que a requerente solicitou a entrega dos veículos desde que o requerido renunciou ao cargo após a nomeação de E… como administrador único da requerente.
*
O Tribunal de 1ª instância considerou como “factos da oposição não indiciados” os seguintes:
11º: indiciado apenas o que consta do artigo 7º dos factos apurados. Não indiciado o demais alegado.
19.º: não indiciado que o veiculo Ferrari se destinou ao uso pessoal exclusivo do requerido;
20º e 21º: Não indiciado que o requerido tenha mantido a utilização do veículo sem oposição da requerente;
28.º: indiciado apenas o que consta do artigo 16º dos factos indiciados e não provado o segmento “no seguimento do acordo que supra se referiu”.
34.º: indiciado o que consta do referido nos artigos 14º e 19º
*
Nas conclusões recursivas veio o apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados indiciariamente provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere, mostrando-se, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação dessa decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele preconizados.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, o apelante advoga que: (i) deverão ser excluídos do elenco dos factos indiciados os pontos nºs 22 e 23, devendo aí ser incluído um novo ponto com o seguinte teor: “As viaturas em apreço nos autos sempre foram utilizadas pelo requerido e pelo vendedor J… sem qualquer oposição por parte da requerente ou de quem quer que fosse”; (ii) devem ser retirados do elenco dos factos indiciariamente provados os pontos nºs 26, 27 e 28; (iii) devem ser aditados à materialidade indiciariamente provada três novos pontos com a seguinte redacção:
. “As viaturas em causa nos autos foram adquiridas por decisão do requerido e para utilização no âmbito da actividade das empresas por si administradas – e, em particular, da sociedade requerente e da D…, S.A.”;
. “As ditas viaturas nunca estiveram ao serviço da sociedade requerente”;
. “As partes sempre perspetivaram transferir a propriedade das viaturas em causa nos autos a favor do requerido e da sociedade D…, S.A.”.
Começando pelo primeiro segmento impugnatório, como se viu, nos pontos nºs 22 e 23 considerou-se indiciariamente provado que:
. “Atualmente e com a oposição da Requerente é o Requerido quem vem utilizando e usufruindo de tais veículos” (ponto nº 22);
. “A Requerente tem vindo, sucessivamente, a solicitar ao Requerido a entrega dos veículos à sociedade, mas o Requerido não procedeu à restituição voluntária dos mesmos” (ponto nº 23);
Por seu turno, considerou-se como indiciariamente não provado que “o requerido tenha mantido a utilização dos veículos sem oposição da Requerente”, proposição factual essa que havia sido alegada nos artigos 20º e 21º da oposição.
A propósito do sentido decisório que trilhou em relação a tais enunciados fácticos, na respetiva motivação de facto, o juiz a quo discreteou nos seguintes termos: «[sobre os factos provados 22º e 23º] consideramos que a prova produzida pelo requerido não afastou a convicção anteriormente formada com base no depoimento das testemunhas arroladas pela requerente.
Com efeito, sendo certo que todas as testemunhas arroladas pelo requerido referiram que este, durante muitos anos e de forma continua, utilizou o veículo de marca Ferrari, referiram também (coincidindo nesta parte com os depoimentos das testemunhas da requerente) que houve em 2019, meados desse ano, uma ruptura familiar.
Ficamos com a convicção de que essa ruptura marcou um ponto de viragem no relacionamento de requerente e requerido, alterando a utilização que este fazia, até então, sem oposição, do veículo.
As testemunhas arroladas pela requerente foram unânimes em afirmar que, por várias vezes, foi solicitada a entrega dos dois veículos, depoimentos não colocados em causa pelas testemunhas do requerido que, por não pertencerem aos órgãos de decisão, quer da requerente, quer da requerida, não tinham acesso a essas informações.
O depoimento, nesta parte, das testemunhas da requerente é reforçado pela intenção da requerente em cessar a sua actividade e de vender os dois veículos.
Foi ainda reforçado pela inexistência de qualquer documento, recente, concretamente de 2019, contendo autorizações de circulação por parte do requerido, em relação ao Ferrari e do vendedor da D…, a testemunha J…, em relação ao Citroen.
Não foi, assim, produzida prova pelo requerido, que afastasse a convicção formada, quanto a este aspecto, na primeira decisão (…).
[Sobre os factos não provados alegados nos artigos 20º e 21º da oposição] remetemos para a motivação dos factos apurados nos artigos 22º e 23º, da qual resulta que actualmente (à data da instauração da providência) o requerido utilizava o veículo com oposição da sua proprietária».
Sustenta o apelante que os dois primeiros pontos factuais deverão transitar para o elenco dos factos não provados, devendo ser aditado um novo facto à materialidade indiciariamente provada, com o seguinte teor: “As viaturas em apreço nos autos sempre foram utilizadas pelo requerido e pelo vendedor J… sem qualquer oposição por parte da requerente ou de quem quer que fosse”.
Para justificar a pretendida alteração do sentido decisório referente a essa materialidade, o apelante convoca essencialmente os depoimentos adrede prestados por L…, M… e O… que, na leitura que deles faz, confirmaram que a requerente não solicitou que o requerido procedesse à entrega das viaturas em causa, depoimentos esses que não foram devidamente valorados pelo decisor de 1ª instância que, ao invés, relevou, neste conspecto, apenas os depoimentos produzidos pelas testemunhas arroladas pela requerente - concretamente P…, I… e Q… – os quais “não poderiam ter merecido – como mereceram – qualquer fidedignidade ao Tribunal por estarem de relações cortadas com o requerido”, existindo “litígios pendentes entre as identificadas testemunhas e o requerido”, pelo que haveria que “avaliar com especial cuidado a credibilidade e rigor do que pelas mesmas foi adiantado” a propósito, designadamente, das (alegadas) solicitações que terão sido direccionadas ao requerido para proceder à entrega dos ajuizados veículos automóveis.
Procedeu-se à audição do registo fonográfico dos mencionados depoimentos, constatando-se que L… (que trabalha há já vários anos na sociedade “B…” como director de compras) referiu que era o requerido quem usava os veículos automóveis, designadamente o Ferrari, para operações de marketing, não sendo do seu conhecimento que alguém ligado à empresa requerente tivesse posto em causa essa utilização, exigindo a entrega dos mesmos.
Em idêntico sentido depôs a testemunha M… (trabalhador da “D…”), o qual declarou que “nunca assistiu a qualquer conversa” entre o requerido, os seus irmãos e o seu pai (E…, actual administrador único da requerente) donde resultasse a oposição deste último à utilização que aquele vinha fazendo dos veículos, mormente do Ferrari, e que, em algum momento, lhe tivesse sido exigida a restituição dos mesmos.
Também a testemunha O… (contabilista que durante vários anos prestou serviços quer à requerente, quer à “D…”) adiantou que nunca ouviu qualquer conversa, nomeadamente entre o requerido e o seu pai, em que tivesse sido solicitada a restituição dos veículos, acrescentando que enquanto desenvolveu a sua actividade nos referidos entes societários nunca recebeu qualquer telefonema, e-mail ou carta dirigida ao requerido a exigir a entrega das viaturas.
Certo é que relativamente à factualidade objecto de impugnação foram igualmente ouvidas outras testemunhas, concretamente P… (mãe do requerido), I… (irmã do requerido) e Q… (cunhado do requerido) que, filiando a sua razão de ciência no facto de serem familiares próximos do requerido, afiançaram que, pelo menos, desde o ano de 2019 este último (que até então utilizava os veículos ao serviço da requerente e da “D…”) tem sido interpelado, designadamente pelo seu pai, para proceder à entrega dos ajuizados veículos automóveis, sem que, no entanto, cumprisse essa determinação, o que acabou por motivar a propositura do presente procedimento cautelar.
Portanto, o que ressuma do cotejo entre a motivação da decisão sub iudicio e a motivação do recurso sub specie, é uma divergente valoração da prova produzida: tribunal recorrido e recorrente não divergem na leitura das provas, divergem na respetiva valoração.
Porém, como se anteriormente se referiu, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente (em termos de convicção autónoma) para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância e já não naqueles (como é o caso) em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, assumindo uma opção que justificou de forma que reputamos consonante com a prova produzida no âmbito do presente processo.
Como tal as aludidas afirmações de facto não deverão transitar para o elenco dos factos indiciariamente provados, já que essa prova não impõe - como é suposto pelo nº 1 do art. 662º - decisão diversa.
*
Preconiza ainda o apelante que a factualidade por si alegada nos artigos 22º, 23º, 24º, 25º, 28º, 29º, 30º e 33º da oposição deverá transitar para a materialidade indiciariamente provada, devendo ser aditados três novos pontos factuais com o seguinte teor:
. “As viaturas em causa nos autos foram adquiridas por decisão do requerido e para utilização no âmbito da actividade das empresas por si administradas – e, em particular, da sociedade requerente e da D…, S.A.”;
. “As ditas viaturas nunca estiveram ao serviço da sociedade requerente”;
. “As partes sempre perspetivaram transferir a propriedade das viaturas em causa nos autos a favor do requerido e da sociedade D…, S.A.”.
Na sentença recorrida o juiz de 1ª instância motivou o sentido decisório referente às aludidas afirmações de facto nos seguintes moldes: «22º a 24º e 28º (este na parte em que refere que a venda projectada era uma consequência do acordo mencionados nos artigos 22º a 24º): as testemunhas inquiridas e arroladas pelo requerido não revelaram conhecimentos sobre o alegado acordo entre o requerido e o seu pai na venda da participação que o primeiro detinha na sociedade requerente, nem do valor mencionado no artigo 23º.
29.º apesar de as testemunhas terem mencionado que foram realizadas diligências para obter o documento em causa, não se apuraram os motivos alegados neste artigo para a sua não obtenção.
30.º Mais uma vez as testemunhas não tinham conhecimentos sobre o acordo alegado neste artigo entre requerente e requerido. A testemunha O…, referiu que a venda do veículo ficou para mais tarde, mas não sabia se seria para o requerido ou para a sociedade D…, nem para quando é que esse acordo se iria concretizar, depoimento insuficiente para considerar como apurado a existência do acordo invocado.
32.º e 33º Não foi produzida prova sobre o alegado. Os documentos de fls. 361 a 363 indicam que a requerente quer vender os dois veículos – Ferrari e Citroen, mas não para o requerido ou a D…, nem que exista conexão entre a venda que ocorreu anteriormente em relação um outro veículo de marca Peugeot.
Desses documentos não se retira o alegado pelo requerido, convicção que resulta igualmente do depoimento da testemunha O… ao referir que o negócio de compra do Ferrari não tinha sido retomado
Confrontado com a transcrita motivação da decisão de facto, o apelante considera que, contrariamente ao que nela se refere, os depoimentos prestados pelas testemunhas L… e O… atestam que sempre foi intenção do requerido e do seu pai (enquanto legal representante da requerente) transferir a propriedade dos ajuizados veículos automóveis a favor do requerido e da sociedade “D…, S.A.”, sendo que, neste particular, se limita a transcrever excertos dos depoimentos produzidos pelas indicadas testemunhas.
Ora, depois de se proceder à audição integral do registo fonográfico dos mencionados depoimentos, o que dele resulta é que as testemunhas em causa prestaram, a este propósito, depoimentos pouco esclarecedores não sabendo concretizar os contornos do (alegado) acordo que teria sido gizado entre as partes para a transmissão do direito de propriedade sobre os veículos automóveis.
Assim, a testemunha L… limitou-se a adiantar que “quando se comprou o Ferrari, ficou em Espanha, mas depois, na altura, também se tinha falado em passá-lo para cá e matriculá-lo com matrícula portuguesa e passá-lo para cá, para a D…”, acrescentando que isso não se concretizou porque “a legalização ficava muito cara (…) na altura era um bocado de dinheiro e, depois, ficou um bocado em águas de bacalhau essa situação”.
Por seu turno, a testemunha O… referiu ter conhecimento que quando se realizou o negócio de transmissão da participação social que o requerido detinha na requerente “a ideia era o Ferrari entrar nesse negócio passando para o Dr. C… [o requerido] ou para a D…” o que, todavia, não se concretizou, referindo ainda que no ano de 2017 esteve em vias de concretização a venda do Ferrari à D…, venda essa que “acabou por não se realizar já que a legalização ficava muito cara, em virtude desse veículo emitir muito CO2”.
Assim, face à inconcludência dos aludidos subsídios probatórios, não se vislumbra, em termos de justificação racional da prova (justificação essa que se espera objectiva e não firmada em meras convicções subjectivas), razão bastante para divergir do sentido decisório que foi acolhido na sentença recorrida, já que a argumentação expendida pelo apelante não teve, quanto a nós, o condão de desconstruir a motivação adrede tecida nesse ato decisório.
Deste modo, as referidas proposições factuais devem manter-se no rol dos factos indiciariamente não provados.
*
Analisemos, por último, a impugnação dos pontos nºs 26, 27 e 28 dos factos provados.
Nos referidos pontos factuais deu-se como provado que:
. “A Requerente receia que o Requerido faça uma utilização dolosa dos referidos veículos, e que, posteriormente, venha a ser surpreendida com a notificação da existência de coimas, multas, ou, até de eventuais processos-crime instaurados contra si, por ser a proprietária dos mesmos” (ponto nº 26);
. “A Requerente receia igualmente que possa ter ocorrido, ou que venha a ocorrer um acidente de viação causador de ofensas corporais ou mesmo a morte de terceiros, resultante da condução do Requerido ou mesmo de terceiros, que origine a obrigação de indemnizar os intervenientes, e que, posteriormente, venha a ser surpreendida com o pedido de pagamento de indemnizações” (ponto nº 27);
. “Receia ainda que o Requerido possa ter um acidente com os veículos dos quais é proprietária, com os inerentes riscos da existência de danos nos mesmos - mecânica e carroçaria – que possam afetar o seu bom funcionamento” (ponto nº 28).
Advoga o apelante que tais pontos deverão ser excluídos do elenco dos factos indiciariamente provados, argumentando, fundamentalmente, que os depoimentos das testemunhas (concretamente, P…, I… e Q…) em que o decisor de 1ª instância se filiou para a emissão do sindicado juízo positivo são merecedores “das maiores reservas, pois que são, todas elas, testemunhas com conflitos declarados com o requerido”.
Ora, embora se nos afigure que os referidos enunciados fácticos - nos termos em que se mostram redigidos - revistam um cariz subjectivo[5], não se antolha, de igual modo, razão bastante que justifique a sua retirada do elenco dos factos indiciariamente provados, posto que as mencionadas testemunhas deram notícia dos receios que o administrador da requerente vem manifestando (maxime em resultado da elevada animosidade que se regista no relacionamento entre o requerido e o administrador da requerente – cfr. ponto nº 32 dos factos indiciariamente provados) no sentido de que os veículos em causa estejam eventualmente a circular sem as necessárias condições legais, sendo certo outrossim que, neste conspecto, o apelante não indicou sequer qualquer meio de prova que, em alguma medida, infirmasse esse juízo probatório.
As referidas proposições factuais devem, pois, manter-se no rol dos factos indiciariamente provados.
***
3. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Nas conclusões de recurso insurge-se ainda o apelante contra a decisão recorrida, sustentando que, ao invés do que nela se afirma, não se mostram, in casu, reunidos os pressupostos para ser decretada a providência ao abrigo do art. 362º, em particular a existência do periculum in mora.
Que dizer?
Preceitua o n.º 1 do citado preceito legal que “[s]empre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade deste”.
Por seu turno, o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada quando houver “[p]robabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (nº 1), podendo o tribunal, no entanto, recusar a sua decretação “[q]uando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (nº 2 do mesmo normativo).
Tendo por base os referidos normativos vem-se generalizadamente[6] entendendo que o decretamento de uma providência cautelar não especificada (ou comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos: (i) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (ii) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (iii) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393º a 427º; (iv) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (v) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
Como se referiu, no caso sub judicio, a divergência recursiva do apelante centra-se primordialmente na inverificação do segundo requisito enunciado, por considerar que a materialidade indiciariamente apurada não justifica um qualquer receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade da requerente sobre os dois veículos automóveis cuja entrega foi decretada.
A propósito deste requisito[7] no procedimento cautelar comum o legislador foi bem mais exigente (e, portanto, mais restritivo) na sua formulação do que, em geral, para os procedimentos cautelares específicos: enquanto que para estes basta que se verifique “dano apreciável”, “justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito” ou “justo receio de extravio ou dissipação de bens”, para aquele não basta uma qualquer lesão, tornando-se mister que se esteja perante uma lesão grave e dificilmente reparável do direito.
O legislador exige, pois, que a lesão seja grave e dificilmente reparável, sendo que a utilização da conjunção copulativa significa que não é apenas a gravidade da lesão previsível que justifica a tutela provisória, do mesmo passo que não basta a irreparabilidade absoluta ou difícil, de forma que apenas merecem a tutela provisória as lesões que sejam simultaneamente graves e irreparáveis ou de difícil reparação. Por isso, como sublinha ABRANTES GERALDES[8], ficam afastadas do “círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis”.
A lei optou, assim, por permitir apenas a utilização do procedimento cautelar, expedito e meramente indiciário - em que se não exige uma comprovação segura dos fundamentos da providência requerida - nos casos em que a lesão cujo perigo de verificação fundamente a providência revista natureza grave e de difícil reparação, sendo que nos demais casos (isto é, de receio de lesão não grave ou que não seja de difícil reparação) o legislador, de acordo com a ponderação de interesses que entendeu fazer, considerou não se justificar a utilização de um expediente sumário e escassamente apurado como é o procedimento cautelar não especificado. Por conseguinte, havendo justo receio de lesão de direito, o titular do mesmo terá de recorrer ao meio processual normal - acção -, com a necessidade de uma demorada, segura e amadurecida indagação dos fundamentos da pretensão, para a adopção da providência reparadora de modo definitivo, no fim do processamento normal da acção, se a lesão em causa não revestir a natureza grave e de difícil reparação; caso a lesão se possa qualificar como grave e de difícil reparação, poderá, então e só então, lançar mão do expedito, sumário e urgente procedimento cautelar comum.
Deste modo, a lesão receada pelo requerente, para ser relevante (no sentido de legitimar a via cautelar), tem de ser grave, gravidade essa que se mede em função da dimensão dos danos que possa provocar, ou seja, apenas a lesão que possa vir a desencadear danos de montante considerável deverá ser considerada grave.
Já no que especialmente se refere à irreparabilidade ou difícil reparação da lesão, importa clarificar o que pretendeu o legislador com tal exigência.
Apelando aos contributos que podem ser colhidos na doutrina e na jurisprudência[9], vem-se entendendo que para a densificação do aludido conceito indeterminado se deverá recorrer a dois critérios: um critério subjectivo e um critério objectivo.
Um critério subjectivo, segundo o qual se deverá atender às possibilidades económicas do requerido para vir a suportar a reparação do direito do requerente. Desta forma, atendendo às possibilidades económicas concretas do requerido, a lesão será dificilmente reparável nos casos em que o requerido se encontre em situação económica instável e precária, sendo previsível que a lesão causada ao requerente não irá ser reparada.
Por sua vez, um critério objectivo que terá em conta o tipo de lesão, a natureza do direito em causa, o tipo de sanção prevista pela ordem jurídica e as formas admissíveis de reparação da lesão.
Perante o exposto o julgador deverá ter sempre presente as várias formas existentes para a reparação da lesão: a reconstituição natural, que se traduz na obrigação de reconstituir a situação anterior à lesão (ou seja, o dever de repor as coisas na situação em que estariam caso o evento lesivo não se tivesse produzido) e a indemnização em dinheiro que tem carácter subsidiário, tendo lugar apenas nas situações em que a reconstituição natural não seja viável, quando não repare integralmente o dano ou quando seja excessivamente onerosa para o devedor (cfr. art. 566º do Cód. Civil). A indemnização colocará o lesado numa situação equivalente à situação em que se encontrava antes de se ter produzido o dano ou poderá apenas funcionar como reparação.
Ora, tendo em conta este critério objectivo, terá de se analisar a situação em concreto e as hipóteses existentes para posterior reparação da lesão. Se a lesão for passível de reconstituição natural, isto é, se for possível colocar o requerente/lesado na situação em que se encontrava antes da lesão, a medida cautelar requerida não deverá ser concedida já que nestas situações a lesão não poderá ser considerada dificilmente reparável.
Pelo contrário, nos casos em que não seja possível a reconstituição natural e a indemnização, subsidiariamente, também não seja capaz de compensar totalmente o lesado pelos danos sofridos, deverá então ser concedida a providência cautelar requerida, na medida em que tais situações se enquadram no conceito de lesões dificilmente reparáveis.
Por fim, quando esteja em causa uma lesão que pode ser ressarcida mediante uma indemnização por equivalente (ou seja, lesões susceptíveis de compensação pecuniária equivalente ao valor do dano) tem-se colocado a questão de saber se tais lesões se deverão incluir ou não no conceito de dificilmente reparáveis, sendo que a posição majoritariamente acolhida vem sufragando o entendimento de que se essas lesões são reparáveis mediante uma compensação pecuniária, poderão ser ressarcidas posteriormente, após a ocorrência da lesão, não constituindo, assim, lesões que sejam de difícil reparação.
Postas tais considerações, revertendo ao caso sub judicio verifica-se que o decisor de 1ª instância afirmou a ocorrência do pressuposto em análise em virtude de «estarmos perante veículos de matrícula espanhola que apenas podem circular no país de origem ou por quem tenha legalmente autorização para o conduzir em Portugal, factos que estão fora do domínio de facto da proprietária que fica sujeita a todas as consequências legais que o incumprimento desses deveres acarreta. A ausência do domínio de facto sobre bens móveis, como são os veículos, sendo facto notório que, pela sua natureza móvel, podem facilmente ser deslocados de um local para o outro, justifica igualmente o receio de serem dissipados ou mal utilizados.
Fundado é ainda o receio da requerente em ser responsabilizada, enquanto proprietária, por qualquer infração que venha a ser praticada pelo requerido ou terceiros a quem o mesmo permita o uso dos veículos, receio que já esta consumado em relação ao Ferrari por não ter a inspeção periódica realizada. O justo receio resulta também das várias interpelações efectuadas ao requerido para voluntariamente proceder à entrega dos veículos, sem resposta.»
Portanto, no ato decisório sob censura a afirmação do pressuposto em crise assenta fundamentalmente num (alegado) receio por parte da requerente de que o requerido dissipe ou faça uma má utilização dos ajuizados veículos.
Ora, como a este respeito vem sendo sustentado[10], o preenchimento do mencionado requisito há-de aferir-se não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza que tem que provir de factos que atestem perigos reais e certos, relevando tudo de uma apreciação ponderada, regida por critérios de objectividade e de normalidade, não bastando simples dúvidas, conjecturas ou meros receios subjectivos.
A esta luz, ainda que se condescenda que o prejuízo decorrente do incumprimento da obrigação da entrega dos ajuizados veículos automóveis por banda do apelante/requerido possa ser rotulado de grave, já será, contudo, discutível que o substrato factual indiciariamente apurado permita afirmar que esse prejuízo seja de difícil reparação, pois nada se concretizou sobre qualquer impossibilidade ou especial dificuldade de os prejuízos que a aludida privação possa ocasionar à requerente não possam vir a ser ressarcidos por aquele.
Ademais, verifica-se estarem em causa interesses meramente patrimoniais, indemnizáveis nos termos dos arts. 564º e 566º, do Código Civil. Só assim não seria se, porventura, a situação patrimonial do requerido o impossibilitasse de pagar a correspondente indemnização. Nesse caso a requerente deveria ter articulado factos concretos evidenciadores da precariedade da situação económico-financeira do requerido/apelante.
Na ausência de alegação e demonstração de quaisquer factos concretos que permitam ajuizar dessa situação económico-financeira, o tribunal não pode presumir que o requerido não disponha de meios que lhe permitam suportar o pagamento da indemnização devida à requerente pelos prejuízos de índole exclusivamente patrimonial decorrentes da eventual perda total ou parcial dos veículos, bem como da sua depreciação, desvalorização ou desgaste ou, inclusive, das eventuais contra-ordenações que possam ser perpetradas[11]. Portanto, a falta da atempada entrega dessas viaturas não privará, só por si, a requerente de receber a correspondente compensação monetária, de modo que, salvo melhor opinião, haveria que alegar e demonstrar factos que apontassem razoavelmente para a ocorrência de um risco superior ao normal, o que, nos sobreditos termos, implicaria a prova (ainda que perfunctória) de uma situação económica deficitária do requerido que tornasse impossível ou muito difícil o ressarcimento dos prejuízos que a demora nessa restituição ocasione ou tenha ocasionado à requerente.
Certo é que o tecido fáctico apurado não permite concluir, com a necessária objectividade e consistência, pela ocorrência de uma situação passível de constituir fundado receio de lesão grave e de difícil reparação do direito da requerente, sendo certo que, como anteriormente se enfatizou, estando, in casu, essencialmente em causa lesão suscetível de reintegração in natura ou de compensação por sucedâneo não pode a mesma ser considerada dificilmente reparável.
Tendo presente o descrito enquadramento, impõe-se, pois, a revogação da decisão recorrida, dada a falta de verificação do requisito do periculum in mora que, como se assinalou, constitui pressuposto material de concessão da providência cautelar.
***
III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida que decretou a providência cautelar.
Custas a cargo da apelada (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 7 de junho de 2021
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
_______________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Sobre a prova de factos internos ou estados subjectivos, vide, entre outros, ANTUNES VARELA et al., in Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, págs. 407 e seguinte e CLÁUDIA ALVES TRINDADE, in A prova de estados subjectivos no Processo Civil, Almedina, 2016, págs. 67 e seguintes.
[6] Cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. III, 3ª edição, Almedina, págs. 97 e seguintes, LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado. Vol. II, 3ª edição, Almedina, págs. 5 e seguintes e CARVALHO GONÇALVES, in Providências Cautelares, 2015, Almedina, págs. 168 e seguintes.
[7] Que alguns autores consideram constituir a verdadeira causa de pedir cautelar, assumindo natureza de pressuposto material de concessão da providência cautelar – cfr., neste sentido, RITA LYNCE DE FARIA, in A tutela cautelar antecipatória no Processo Civil Português, Universidade Católica Editora, 2016, págs. 132 e seguintes e RUI PINTO, in A questão de mérito na tutela cautelar – A obrigação genérica de não ingerência e os limites da responsabilidade civil, Coimbra Editora, 2009, págs. 589 e seguintes.
[8] Ob. citada, págs. 101 e seguinte.
[9] Cfr., inter alia, na doutrina, CARVALHO GONÇALVES, ob. citada, pág. 205, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 102, RITA LYNCE DE FARIA, ob. citada, págs. 145 e seguintes e ABRANTES GERALDES et al., in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, pág. 439; na jurisprudência, acórdãos desta Relação de 22.11.2011 (processo nº 1408/11.1TJPRT.P1) e de 11.04.2019 (processo nº 257/18.0T8AMR.P1), acórdão da Relação de Lisboa de 30.01.2019 (processo nº 7840/17.0T8CBR-B.L1-4), acórdão da Relação de Coimbra de 28.04.2010 (processo nº 319/10.2BPBL.C1) e acórdão da Relação de Guimarães de 10.10.2013 (processo nº 246/12.9TBBCL-A.G2), acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Cfr., inter alia, ABRANTES GERALDES, ob. citada, págs. 108 e seguinte e LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, ob. citada, pág. 8.
[11] Designadamente por falta de realização de inspecção periódica ou pelo facto de as viaturas em causa terem matrícula espanhola (não sendo, por via de regra, permitido a um cidadão residente em Portugal conduzir esse tipo de veículo sem autorização do respectivo proprietário), sendo que a inobservância daquela formalidade legal (na primeira hipótese) e a falta de regularização das inerentes obrigações tributárias (no segundo caso) são cominadas por sanções de natureza estritamente pecuniária, tal como emerge dos artigos 116º do Código da Estrada e 14º do DL nº 144/2012, de 7.12 e do art. 30º do Código do Imposto sobre Veículos, aprovado pela Lei nº 22-A/2007, de 29.06.