Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
519/18.7PAVFR-A.P1\
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
JIC
CONCORDÂNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
VERIFICAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS MATERIAIS
Nº do Documento: RP20191210519/18.7PAVFR-A.P1
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos da suspensão provisória do processo, a concordância do juiz de instrução criminal (JIC) a que se refere o n.º 1 do artigo 281º do Código de Processo Penal (CPP) não é «paralela» à concordância exigida às partes (arguido e assistente), pois que estes se limitam a exprimir as suas vontades, enquanto pessoas livres e autónomas, ao passo que o JIC, enquanto garante das liberdades, terá em conta não só a verificação dos pressupostos formais da suspensão [enunciados no corpo e nas alíneas a) a d) do n.º 1 do citado artigo], como também os pressupostos materiais [alíneas e) e f) do mesmo número, e n.º 3 do mesmo artigo].
II - A concordância do JIC não é um mero «pressuposto formal», antes constitui materialmente uma decisão jurisdicional na medida em que, ao autorizar a suspensão, o JIC outorga ao subsequente despacho do MP o suplemento de jurisdicionalidade que o legitima materialmente.
III - Consequentemente, a intervenção judicial, para além de constatar a existência dos pressupostos formais, deve, também, considerar verificados os conceitos abertos inscritos no preceito legal e, nomeadamente:
a) Ausência de um grau de culpa elevado;
b) Previsibilidade de que o conjunto das injunções responda às exigências de prevenção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 519/18.7PAVFR-A.P1
Recurso Penal
Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 2
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório
No âmbito dos autos de inquérito que, sob o nº 519/18.7PAVFR, corre termos pelo DIAP – 2ª Secção de Santa Maria da Feira contra o arguido B…, foi proferido despacho pela Sra. Juíza de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, manifestando discordância relativamente à suspensão provisória do processo determinada pelo Magistrado do Ministério Público titular do inquérito, por se terem considerado insuficientes as injunções propostas para responder adequadamente às necessidades preventivas verificadas no caso concreto.
Considerando que compete unicamente ao Ministério Público, titular do inquérito, propor as injunções que repute adequadas, foi ordenada a remessa do processo à Mma. Juíza de Instrução, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 281.º, n.º 1, do CPP.
A Mma. JIC proferiu novo despacho, no qual, entendendo nada a haver a acrescentar ao despacho anterior, ordenou a devolução do processo ao DIAP.
O Ministério Público, notificado dos aludidos despachos, arguiu a sua nulidade e inconstitucionalidade, decorrentes da violação dos princípios da legalidade e do acusatório.
A Mma. JIC proferiu despacho de indeferimento das invocadas nulidade e inconstitucionalidade.
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
……………………………………………………….
……………………………………………………….
……………………………………………………….
*
O recurso foi admitido para subir em separado dos autos principais, de imediato e com efeito devolutivo.
*
O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual se pronunciou pela improcedência do recurso, aderindo aos fundamentos do despacho recorrido (nos termos nele constantes e cujo teor aqui se dá por reproduzido) e invocando decisões jurisprudenciais concordantes com tal posição.
*
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*
II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art. 410º, nº 2 ou o art. 379º, nº 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) No despacho a que alude o art. 281.º, n.º 1, do CPP, o JIC pode formular um juízo sobre a adequação das injunções e regras de conduta?
2) A discordância do JIC com a suspensão provisória do processo proposta pelo MP, fundada num juízo de desadequação das injunções e regras de conduta, configura uma nulidade e inconstitucionalidade?
*
Delimitado o thema decidendum, importa reproduzir o teor da decisão recorrida e descrever a sequência dos elementos processuais relevantes para a decisão do presente recurso:
Por despacho datado de 28/6/2019, considerando estarem verificados os respectivos pressupostos de aplicabilidade, determinou o Exmo. Magistrado do Ministério Público titular do inquérito a suspensão provisória do processo, com a imposição ao arguido da injunção de prestar 60 horas de trabalho comunitário, no prazo de 3 meses, obtida a necessária concordância do Juiz de Instrução.
Por despacho datado de 2/10/2019, manifestou a Mma. JIC discordância relativamente à suspensão provisória do processo propugnada pelo MP, por se lhe afigurarem insuficientes as injunções impostas ao arguido.
Notificado de tal despacho – e do que lhe sucedeu, no qual a Mma. JIC, instada, de novo, a proferir despacho de concordância com a suspensão provisória do processo, entendeu nada mais haver a acrescentar sobre tal matéria -, o MP arguiu a sua nulidade e inconstitucionalidade, decorrente da violação dos princípios da legalidade e do acusatório.
No despacho datado de 22/10/2019, a Mma. JIC indeferiu as invocadas nulidade e inconstitucionalidade do despacho precedente, tendo sido desta decisão que o MP interpôs o presente recurso.
O despacho recorrido é do seguinte teor:
“Veio o Ministério Público arguir nulidade dos despachos de fls. 77, 78 e 88 com a seguinte fundamentação:
«(…) por violarem os princípios da legalidade e do acusatório, nos termos dos arts. 118º, n.º 1, 120º, 122º, 127º, 53º, n.º 2, al. b), 268º “a contrario sensu”, 269º “a contrario sensu”, 281º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e ainda o art. 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que as injunções são fixadas na fase de inquérito pelo Ministério Público que é quem dirige o inquérito não podendo o M.mo Juiz de Instrução na fase de inquérito fazer valoração da prova e dos depoimentos das testemunhas, sendo por isso os despachos de fls. 77, 78 e 88 ilegais, nulos e inconstitucionais.».
Cumpre decidir.
Está em causa o despacho pelo qual manifestamos a nossa discordância da suspensão provisória do processo determinada pelo Ministério Público, posto que o subsequente a esse se limita a exarar nada haver a acrescentar a tal despacho ante nova remessa dos autos pelo Ministério Público.
Antes de mais, deve dizer-se que o art. 118º/1 do Código de Processo Penal, que vem citado no despacho do Ministério Público, prevê expressamente o princípio da legalidade quanto a nulidades processuais, ou seja, a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Na presente invocação de nulidade, o Ministério Público limita-se a citar as normas genéricas atinentes ao regime legal das nulidades, uma sobre as atribuições do Ministério Público, duas sobre os actos a praticar, autorizar e ordenar pelo Juiz de Instrução na fase de inquérito, e outra sobre o princípio da livre valoração da prova, além do art. 281º do Código de Processo Penal e do art. 32º/5 da Constituição.
Não vem indicada qualquer previsão legal que comine com nulidade o despacho de não concordância emitido pelo Juiz de Instrução ao abrigo do art. 281º do Código de Processo Penal, independentemente dos seus fundamentos, estando o mesmo, como cremos estar (o que não vem sequer questionado) devidamente fundamentado.
E tal sucede por inexiste expressa na lei uma tal cominação.
Como assim, assoma como inexistente a arguida nulidade.
*
Sempre se dirá, no entanto, que o Ministério Público parece in casu defender uma interpretação do disposto no art. 281º do Código de Processo Penal e do regime da suspensão provisória do processo sem apoio legal, jurisprudencialmente ultrapassada e incompatível com a Constituição da República Portuguesa.
Se bem compreendemos, insurge-se o Ministério Público contra o facto de termos fundamentado a nossa discordância do seu despacho de suspensão provisória do processo:
- na discordância das injunções indicadas, que entende devem ser fixadas pelo Ministério Público na fase de inquérito;
- na valoração que fizemos da prova e depoimento das testemunhas.
Depreendemos, assim, entender-se que no âmbito da concordância a prestar nos termos do art. 281º do Código de Processo Penal está vedado ao Juiz de Instrução:
- discordar das injunções indicadas pelo Ministério Público nesse despacho;
- fazer uma apreciação da prova indiciária reunida na fase de inquérito.
Ora, com todo o respeito, não vemos qual seja o fundamento legal e muito menos constitucional deste entendimento.
Isto porque, em termos estritamente jurídico-legais, inexiste norma legal que restrinja os fundamentos da discordância do Juiz de Instrução relativamente à suspensão provisória do processo.
Ponto é que essa discordância se mostre devidamente justificada por apelo aos pressupostos estabelecidos no citado art. 281º/1 do Código de Processo Penal, todos eles, sem excepção, podendo ser aí escrutinados.
De resto, remetemos a este propósito para as doutas considerações de contextualização histórica e sistematização do instituto da suspensão provisória do processo, expendidas no acórdão de uniformização de jurisprudência 16/2009 do STJ, de 18/11/2009, processo nº 270/09.9YFLSB, relatado por Santos Cabral (embora o seu objecto imediato seja a irrecorribilidade do despacho de concordância/discordância).
Esta tem sido a jurisprudência claramente dominante (pese embora uma ou outra voz dissonante no panorama doutrinário), como decorre, a título meramente exemplificativo do acórdão da Relação de Évora, de 30/09/2014, proferido no processo nº 89/13.2GGODM- A.E1, ou mais recentemente do acórdão da Relação de Guimarães, de 05/03/2018, proferido no processo nº 474/17.0GCBRG.G1.
Por último, esta é também a interpretação que respeita a Constituição, como sobejamente resulta do acórdão do Tribunal Constitucional 7/87, de fiscalização preventiva da constitucionalidade de normas do Código de Processo Penal, concretamente do art. 281º.
Na verdade, na sua redacção primitiva, o art. 281º não previa a intervenção judicial na suspensão provisória do processo, que ficava assim entregue ao Ministério Público.
A exigência da concordância do Juiz de Instrução Criminal, que veio a ter consagração legislativa no Código de 87, nasceu da posição assumida naquele aresto pelo Tribunal Constitucional, concluindo que não cabe ao Ministério Público o exercício da função jurisdicional conferido pela possibilidade de aplicação de injunções/regras de conduta ao arguido, verdadeiramente restritivas, em muitos casos, dos seus direitos fundamentais. Entendeu-se então que permitir ao Ministério Público determinar autonomamente a suspensão provisória do processo, ainda que com as concordâncias do arguido e do assistente, seria violador das normas dos arts. 206º e 32º/4 da Constituição.
Daí a necessidade da intervenção jurisdicional materializada num juízo de verificação dos pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo, e de todos eles, sem excepção.
Neste quadro, cremos que, além de destituída de fundamento processual, por não se mostrar legalmente prevista, a nulidade invocada mostra-se também materialmente improcedente.
Em razão do que, sem necessidade de outras considerações, se indefere a arguição de nulidade em apreço.
Notifique e devolva ao Ministério Público.”.
*
Estabelece o art. 281º, n.º 1, do CPP, sob a epígrafe “Suspensão provisória do processo”:
1 - Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.
2 - São oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta:
a) Indemnizar o lesado;
b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;
c) Entregar ao Estado ou a instituições privadas de solidariedade social certa quantia ou efectuar prestação de serviço de interesse público;
d) Residir em determinado lugar;
e) Frequentar certos programas ou actividades;
f) Não exercer determinadas profissões;
g) Não frequentar certos meios ou lugares;
h) Não residir em certos lugares ou regiões;
i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas;
j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões;
l) Não ter em seu poder determinados objectos capazes de facilitar a prática de outro crime;
m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso.
3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor.
4 - Não são oponíveis injunções e regras de conduta que possam ofender a dignidade do arguido.
5 - Para apoio e vigilância do cumprimento das injunções e regras de conduta podem o juiz de instrução e o Ministério Público, consoante os casos, recorrer aos serviços de reinserção social, a órgãos de polícia criminal e às autoridades administrativas.
6 - A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.
7 - Em processos por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado, o Ministério Público, mediante requerimento livre e esclarecido da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
8 - Em processos por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, o Ministério Público, tendo em conta o interesse da vítima, determina a suspensão provisória do processo, com a concordância do juiz de instrução e do arguido, desde que se verifiquem os pressupostos das alíneas b) e c) do n.º 1.
9 - No caso do artigo 203.º do Código Penal, é dispensada a concordância do assistente prevista na alínea a) do n.º 1 do presente artigo quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtração de coisas móveis de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas.
Como vimos, a questão essencial a decidir, no presente recurso, consiste em saber se o despacho de não concordância com a suspensão provisória do processo proferido pela Mm.ª. Juíza de Instrução padece das nulidades e inconstitucionalidades invocadas.
Importa recordar que foi fixada jurisprudência segundo a qual “A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do nº 1 do artigo 281º do Código de Processo Penal não é passível de recurso” (cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 16/2009, DR 1ª Série, de 24/12/2009).
Deste modo, não está em causa aferir do acerto (ou desacerto) da posição de discordância assumida pela Exª JIC com a suspensão provisória do processo, uma vez que essa questão, bem ou mal, está resolvida por decisão irrecorrível, nos termos do mencionado AUJ nº 16/2009.
A concordância do juiz de instrução não estava prevista no projecto do CPP, tendo sido imposta pelo acórdão do TC n.º 7/87, que, fazendo notar um défice de intervenção jurisdicional na versão do art.º 281.º constante do projecto - preceito que permitia ao Ministério Público (MP) impor injunções e regras de conduta ao arguido, sem o «aval» de um juiz -, determinou a sua inconstitucionalidade.
Como refere o Conselheiro Maia Costa, na declaração de voto constante do AUJ nº 16/2009, a «concordância» do juiz de instrução criminal (JIC) a que se refere o n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal (CPP) não é «paralela» à concordância exigida às partes (arguido e assistente) para a viabilização da suspensão provisória do processo, a qual não é mais do que a simples expressão das suas vontades, enquanto pessoas livres e autónomas.
“A intervenção do JIC, enquanto garante das liberdades, terá em conta não só a verificação dos pressupostos formais da suspensão [enunciados no corpo e nas alíneas a) a d) do n.º 1 do citado artigo], como também os pressupostos materiais [alíneas e) e f) do mesmo número, e n.º 3 do mesmo artigo].
O JIC, concordando ou discordando, não exprime uma vontade pessoal, livre, ou incondicionada, antes está vinculado aos pressupostos de natureza material e de política criminal que estão subjacentes à criação do instituto da suspensão provisória do processo. Ele decide se estão ou não verificados os pressupostos formais e materiais de aplicabilidade da suspensão. Por isso, a «concordância» não é um mero «pressuposto formal», antes constitui materialmente uma decisão jurisdicional. Funcionando embora como pressuposto do despacho do MP, é a «concordância» do JIC, que constitui uma autorização, que confere àquele a legitimidade constitucional para determinar a suspensão. Ao autorizar a suspensão, o JIC outorga ao subsequente despacho do MP aquele suplemento de jurisdicionalidade que o legitima materialmente, tratando-se de um verdadeiro acto decisório do juiz.”.
E embora na génese da afirmação da necessidade constitucional de controlo jurisdicional tivesse estado a intervenção do juiz, configurado, em primeira linha, como “juiz das liberdades” – o garante dos direitos, liberdades e garantias, em particular dos “cidadãos confrontados com a máquina estatal da investigação criminal” [2] -, logo se reconheceu que a intervenção judicial não está limitada à constatação dos pressupostos meramente formais, e deve abranger, também, a verificação dos conceitos abertos nela inscritos e, nomeadamente:
a) Ausência de um grau de culpa elevado;
b) Previsibilidade de que o conjunto das injunções responda às exigências de prevenção.
Neste sentido, afirmou-se no mencionado AUJ: “Com Paulo Pinto de Albuquerque entendemos que o juiz deve verificar a existência dos pressupostos da suspensão do processo e formular um juízo sobre o período da suspensão e a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso. Foi precisamente esta a razão de ser da exigência pelo TC da intervenção judicial na aplicação do instituto pelo MP (Acórdão do TC n.º 7/87). O juiz não tem, pois, qualquer discricionariedade se estiverem verificados os pressupostos da suspensão do processo e a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção.”.
Como é salientado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 30/9/2014 (disponível em www.dgsi.pt), “o interesse público que condiciona o juízo de concordância ou não concordância do JIC em relação à proposta do M.P. de suspensão provisória do processo, abarca, necessariamente, todos os elementos que a constituem, quer formais, quer materiais, desde a existência de indícios de crime e respectiva punibilidade, à dimensão e natureza das injunções e regras de conduta promovidas, cabendo-lhe ainda aferir, em concreto, se as mesmas atentam contra a dignidade pessoal do arguido ou atingem o núcleo dos seus direitos fundamentais.
Mas a norma em causa (als. e. e f. do nº1 do artº 281.º do CPP), igualmente exige que o JIC apure se os autos revelam uma inexistência de um grau elevado de culpa e se é previsível que as injunções propostas responderão, eficazmente, perante as exigências de prevenção geral e as demandas de prevenção especial.
Estes conceitos, de natureza algo aberta, como acertadamente se diz no mencionado aresto de fixação de jurisprudência, exigem uma avaliação jurisdicional, de ponderação do grau de culpa, de aferição do juízo de censura, de apreciação da própria dimensão do desvalor social da acção e das necessidades em sede de prevenção especial, que não só justificam como impõem que o JIC, no âmbito da sua vinculação pública como juiz dos direitos, liberdades e garantias, não dê a sua concordância à proposta de suspensão provisória do processo, quando entender que algum daqueles vectores não se mostra suficientemente verificado, o que, naturalmente, consubstanciará a ausência de preenchimento da totalidade dos pressupostos exigidos pelo art.º 281 do CPP.” [3].
Ou seja, na avaliação jurisdicional da dimensão e natureza das injunções e regras de conduta promovidas pelo MP, impõe-se ao JIC a obrigação de sindicar eventuais excessos – atentatórios da dignidade pessoal do arguido ou que ponham em causa o núcleo dos seus direitos fundamentais -, mas também eventuais défices ao nível da salvaguarda das necessidades preventivas verificadas no caso concreto.
No presente caso, a Exma. JIC considerou insuficientes as injunções e regras de conduta propostas pelo MP, afirmando não se afigurar “poder prever que o cumprimento das injunções propostas responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir”, por não “parecer suficiente para dar satisfação às exigências de prevenção especial e geral positivas, estas na vertente de reforço da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas violadas e protecção dos bens jurídicos.”.
Podendo concordar-se ou não com esta conclusão – questão que não é passível de cognição pelo tribunal de recurso, como vimos -, certo é que não se trata, manifestamente, de uma exorbitância dos poderes conferidos nesta matéria ao JIC, mas, pelo contrário, de uma concretização do poder jurisdicional que a lei lhe confere.
Não se verifica, portanto, qualquer nulidade (ou inconstitucionalidade) na prolação do despacho em causa (designadamente, por violação do princípio da acusação ou da estrutura acusatória do processo penal, contemplado no art.º 32.º, n.º 5, da CRP), na medida em que o mesmo se traduz na exigência de aferição jurisdicional da globalidade dos pressupostos da suspensão provisória do processo, nos quais se inclui, como é evidente, o teor da alínea f), do nº 1, do art. 281.º do CPP.
*
III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, em manter integralmente o despacho recorrido.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente (art. 522º do CPP e art. 4.º, n.º 1, alínea a), do RCP).
Notifique.
*
(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP)
*
Porto, 10 de Dezembro de 2019.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
_________________
[1] Mantendo-se a ortografia original do texto.
[2] N expressão utilizada no AUJ nº 16/2009, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral.
[3] No mesmo sentido, quanto à natureza e limites da intervenção do JIC nesta matéria, cfr. o acórdão da Relação de Guimarães, de 5/3/2018, disponível em www.dgsi.pt.