Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3481/10.0TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CASA DE HABITAÇÃO
INSOLVENTE ARRENDATÁRIO
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP201709113481/10.0TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 09/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 657, FLS 39 A 45)
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade estatuída no artigo 615.º, nº 1 al. c) do CPCivil só se verifica quando o juiz deixe de conhecer as questões essenciais que decidem do mérito do pleito ou de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, quando colocados pelas partes, ou conheça hipótese inversa.
II - O diferimento de desocupação previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPCivil constitui um meio de tutela excepcional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5 do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente a massa insolvente ou ao adquirente.
III - A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas.
IV - Não detendo a qualidade de insolventes ou arrendatários, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 1 do art.º 864º, a tutela legal, não é de reconhecer aos meros detentores do imóvel vendido, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas, o direito ao diferimento da desocupação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3481/10.0TBVNG - A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução-J8
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
I- A nulidade estatuída no artigo 615.º, nº 1 al. c) do CPCivil só se verifica quando o juiz deixe de conhecer as questões essenciais que decidem do mérito do pleito ou de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, quando colocados pelas partes, ou conheça hipótese inversa.
II- O diferimento de desocupação previsto nos artigos 864.º e 865.º do CPCivil constitui um meio de tutela excepcional, estando assim reservado aos casos nele previstos, ou seja, de execução para entrega de casa de habitação arrendada e, por força da remissão operada pelo art.º 150.º, n.º 5 do CIRE, também aos casos de entrega da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente a massa insolvente ou ao adquirente.
III- A restrição ao direito de propriedade em que se traduz o diferimento da ocupação só poderá ocorrer nos confinados casos previstos na lei e se verificados os pressupostos nela exigidos, estando vedada a sua aplicação analógica a outras situações que não as especificamente previstas.
IV- Não detendo a qualidade de insolventes ou arrendatários, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do nº 1 do art.º 864º, a tutela legal, não é de reconhecer aos meros detentores do imóvel vendido, ainda que relativamente a eles se verifiquem “razões sociais imperiosas” e cumpram algum dos critérios previstos nas referidas alíneas, o direito ao diferimento da desocupação.
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de execução que o Banco B…, SA move contra C…. veio D… residente na Rua … nº …, …, …, Vila Nova de Gaia deduzir o incidente de diferimento de desocupação do imóvel.
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O tribunal recorrido indeferiu o referido incidente por despacho de 01/06/2017 do seguinte teor:
Veio D…, na qualidade de ocupante do imóvel penhorado e vendido, apresentar o requerimento de fls. 185, requerendo que, nos termos conjugados dos artigos 861.° e ss. do C.P.C, o Tribunal ordene a suspensão da entrega e o diferimento da desocupação do imóvel por um período de 6 meses, tempo que, segundo a requerente, que se encontra grávida e tem uma filha menor, é suficiente para que possa dar à luz em paz e sossego, acompanhe os primeiros meses do recém-nascido e faça a mudança para a nova habitação, que lhe está prometida entregar para arrendamento.
A exequente, notificada para o efeito, pronunciou-se nos termos que constam de fls. 193 e ss., no sentido do indeferimento da pretensão.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
No caso dos autos, a requerente não é executada. Ademais, também não é arrendatária do imóvel, como ela própria reconheceu na missiva que enviou ao Sr. Agente de Execução e que consta do processo na notificação dela ao exequente, constante do PE com data de 17-03-2013 (cfr. ref. n.° 5634229).
Efectivamente, nessa missiva, a ora requerente expôs que efectuou um acordo com o executado em Setembro de 2009 (altura em que começou a ocupar a casa), nos termos do qual habitaria a casa durante 5 anos, sendo essa a forma do executado pagar uma alegada divida que tinha para com a requerente.
Ora, esses 5 anos há muito que terminaram, sendo certo que a requerente continuou a habitar o imóvel penhorado (aparentemente, sem ter pago qualquer contrapartida desde Outubro de 2014).
Observe-se, ademais, que a ora requerente foi nomeada depositária do imóvel em 16-07-2012 (cfr. fls. 75 e ss.) e em 11-01-2017 foi afixado, na porta do imóvel penhorado um edital de venda (cfr. fls. 177 a 178).
Vale isto por dizer que, compreendendo-se as alegadas dificuldades com que se depara a requerente, o por ela impetrado não tem "jus"”.
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Não se conformando com o assim decidido veio a interveniente interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
I - O douto despacho recorrido que julgou improcedente o incidente de diferimento de desocupação e, em consequência, não atendeu ao pedido formulado pela Recorrente no mencionado incidente, não aplicou correctamente o direito.
II - O disposto no art.º 864.º do CPC, não pressupõe a existência de um contrato de arrendamento, nem a sua regularidade formal, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, que se deve seguir aquele regime, numa perspectiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao ocupante do imóvel, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação.
III – A Recorrente encontra-se grávida de 7 meses, conforme declaração médica junta aos autos e está sob vigilância médica por se tratar de uma gravidez de risco, por esse motivo e pela salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar (o direito à habitação – art. 65º da Constituição da República), deverá ser concedido o diferimento da desocupação do imóvel.
IV - A Recorrente nesta fase final da gravidez, considerada de risco, não consegue diligenciar pela obtenção de uma qualquer habitação com condições de habitabilidade para o seu agregado familiar e com um valor de renda que possa ser suportado, sem colocar em causa a sua sustentabilidade económica.
V - Ao não se ter pronunciado, nem decidido sobre o pedido de diferimento de desocupação de imóvel formulado pela Recorrente, limitando-se a referir que a pretensão não tem “jus”, incorreu o Tribunal “a quo” em omissão de pronúncia o que, consequentemente, é gerador de nulidade, nos termos do art. 615º n.º 1, al. d) do C.P.C., que expressamente se invoca.
VI - No requerimento de diferimento de desocupação de imóvel apresentado judicialmente em 24.05.2017, a ora Recorrente requereu a produção de prova testemunhal para a prova dos factos alegados, não tendo o Meritíssimo Juiz “a quo” pronunciado quanto à (in)admissibilidade da prova requerida nos autos, pelo que a falta de produção da prova constitui violação do direito de defesa consagrado no art.º 20º da CRP e nulidade processual, nos termos do art.º 195º do C.P.C., que expressamente se invoca.
VI - Foi omitido nos autos o acto de pronúncia acerca da produção da prova arrolada pela Recorrente no requerimento de diferimento de desocupação de imóvel, não o tendo feito, incorreu o Tribunal “a quo” na omissão de um acto que a lei prescreve e na violação do direito de defesa.
VII - A Recorrente é titular de um interesse jurídico relevante que poderá ser afectado em função da entrega imediata do imóvel, resultando assim verificadas as condições para a decisão favorável ao pedido de diferimento de desocupação formulado pela Recorrentes, pelo período de 6 meses, tempo necessário para que a mesma encontre, com ajuda social, uma habitação condigna
VIII - O douto despacho recorrido viola o disposto nos arts. 615º n.º 1 al. d), 864º e 865º, todos do C.P.C., bem como o art. 20º da C.R.P., não se pronunciado sobre o pedido efectuado pela Recorrente e sobre a prova apresentada e não atribuindo à mesma o beneficio de diferimento de desocupação de imóvel que teria direito face à verificação dos requisitos exigidos por lei para o efeito, tendo feito uma inadequada aplicação do direito à situação em concreto.
IX – Como tal deverá ser substituído por douto Acórdão, que substitua a decisão recorrida revogar-se a decisão recorrida e, em consequência, julgado procedente o pedido de diferimento de desocupação do imóvel por um período de 6 meses.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questões que importa apreciar:

a)- saber se o despacho recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia;
b)- saber se existia fundamento para o indeferimento liminar do incidente deduzido.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto a ter em conta para a questão colocada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá por integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira a questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se a decisão proferida padece, ou não, da nulidade que lhe vem assacada.
Importa, desde logo, dizer que as conclusões formuladas pela recorrente são, manifestamente, confusas já que ora fala em omissão de pronúncia por referência à decisão, ora fala deste vício por referência à circunstância de o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre a produção da prova arrolada.
Vejamos então.
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas nas várias alíneas do no nº 1 do artigo 615.º do CPCivil.
Nos termos do disposto na citada alínea d) a sentença é nula sempre que “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infracção ao disposto no artigo 608.º, nº 2, do mesmo diploma legal. Ou seja, a nulidade prevista na alínea d) está directamente relacionada com o nº 2 do artigo 608.º, referido, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Conforme este princípio, cabe às partes alegar os factos que integram o direito que pretendem ver salvaguardado, impondo-se ao juiz o dever de fundamentar a sua decisão nesses factos e de resolver todas as questões por aquelas suscitadas, não podendo, por regra, ocupar-se de outras questões.
Mas, importa precisar o que deve entender-se por “questões” cujo conhecimento ou não conhecimento integra nulidade por excesso ou falta de pronúncia.
Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras “questões” de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade em causa.
Há, assim, que distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes.
Num caso como no outro não está em causa omissão ou excesso de pronúncia.
No que concerne à falta de pronúncia dizia Alberto dos Reis[1] que “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.
Dentro deste raciocínio do ilustre mestre se poderá acrescentar que, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas partes não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade.
Do que se conclui que apenas as questões essenciais, questões que decidem do mérito do pleito ou, convenhamos, de um problema de natureza processual relativo à validade dos pressupostos da instância, é que constituem os temas de que o julgador tem de conhecer, quando colocados pelas partes, ou não deve conhecer na hipótese inversa, sob pena de a sentença incorrer em nulidade por falta de pronúncia ou excesso de pronúncia.
Obviamente, sempre, salvaguardadas as situações onde seja admissível o conhecimento oficioso do tribunal.
Postos estes breves considerando vejamos, então, se a decisão recorrida padece da nulidade por omissão de pronúncia.
Na conclusão V refere a recorrente que o tribunal recorrido ao não se ter pronunciado, nem decidido sobre o pedido de diferimento de desocupação de imóvel formulado pela Recorrente, limitando-se a referir que a pretensão não tem “jus”, incorreu o Tribunal “a quo” em omissão de pronúncia.
Ora, não vemos como, sob este conspecto, se possa dizer que houve omissão de pronúncia.
A recorrente na qualidade de ocupante do imóvel penhorado e vendido veio apresentar requerimento solicitando, nos termos conjugados dos artigos 861.° e ss. do CPCivil, que o Tribunal recorrido ordenasse a suspensão da entrega e o diferimento da desocupação do imóvel por um período de 6 meses.
Sendo este o pedido impetrado pela recorrente, o tribunal a quo, analisando-o concluiu pelo seu indeferimento ancorado, essencialmente, na circunstância de que a recorrente não é arrendatária do imóvel.
Perante semelhante procedimento como dizer que existe omissão de pronúncia?
Pode a recorrente discordar do assim decidido, todavia isso não torna a decisão nula, pois que uma coisa é o erro de julgamento outra coisa, completamente distinta, é a nulidade da decisão quando sofra de um dos vícios a que alude citado artigo 615.º, nº 1 do CPCivil.
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Refere por outro lado a recorrente que existe omissão de pronúncia por o tribunal recorrido não se ter pronunciado sobre a produção da prova arrolada.
Cremos, que também aqui a recorrente labora em manifesto equívoco.
Com efeito, a não produção de prova não constitui qualquer questão nos termos atrás enunciados e, como tal, não inquina de nula a decisão proferida por omissão de pronúncia.
Não obstante o supra referido sempre se dirá que não é lícito realizar no processo actos inúteis (cfr. artigo 130.º do CPCivil).
Ora, na base da decisão recorrida está, como supra se referiu, a circunstância de não assistir à recorrente o direito de pedir o deferimento da desocupação do imóvel.
Portanto, o tribunal recorrido face ao alegado pela recorrente entendeu que se impunha, desde logo, o indeferimento do incidente ou seja, para a decisão que foi proferida a produção de outra prova, e concretamente a arrolada pela recorrente, revelava-se um acto inútil.
Significa, portanto, que o fundamento deste recurso nunca poderá ser a falta de produção de prova, mas sim outro, nomeadamente o erro de julgamento.
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Improcedem, desta forma, as conclusões III a VIII formuladas pela recorrente.
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A segunda questão colocada no recurso consiste em:
b)-saber se existia fundamento para o que o incidente deduzido fosse indeferido liminarmente.
Na conclusão II refere a recorrente que o disposto no artigo 864.º do CPCivil, não pressupõe a existência de um contrato de arrendamento, nem a sua regularidade formal, mas simplesmente determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspectiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao ocupante do imóvel, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação.
Não cremos, salvo o devido respeito, que se possa sufragar semelhante entendimento.
Analisando.
Estatui o artigo 864.º do CPCivil sob e a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação” que:
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Portanto, prevê a lei no n.º 1 do transcrito normativo, para o caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada que, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior-sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do artigo 865.º do mesmo diploma legal não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder-a desocupação do imóvel. Tal regime é aplicável “à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente”, por força do disposto no n.º 5 do artigo 150.º do CIRE.[2]
A lei confia a decisão ao prudente arbítrio do tribunal, apelando assim à sensatez e racionalidade do juiz, mas não deixa de apontar critérios decisórios, prescrevendo que devem ser tomadas em consideração “circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos”.
Acresce que a invocação das referidas “razões sociais imperiosas” não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito.
Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cf. n.º 4, in fine do artigo 152.º do CPCivil), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário ou, para o que aqui releva, insolvente, a saber: a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º).
Sendo este, em traços breves, o recorte do regime legal, a questão que agora se coloca é saber se o direito ao deferimento da desocupação poderá ser reconhecido de forma autónoma a detentores do imóvel relativamente aos quais se verifiquem razões sociais imperiosas, cumprindo eles algum dos critérios previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do citado artigo 864.º, sendo certo que a recorrente ocupa o imóvel em questão por ter efectuado um acordo com o executado em Setembro de 2009 (altura em que começou a ocupar a casa), nos termos do qual habitaria a casa durante 5 anos, sendo essa a forma do executado pagar uma alegada divida que tinha para com ela.
A resposta é quanto a nós, salvo melhor entendimento, claramente negativa.
Quer o arrendatário quer o insolvente, ambos perdem o direito que fundava a ocupação da casa onde habitavam: no primeiro caso, o direito contratual ao gozo do arrendado; no segundo o direito de propriedade.
Trata-se, contudo, em ambas as situações, de um regime jurídico de excepção, porquanto a regra é a de que, mediante circunstâncias que constituem o pressuposto da obrigação de entrega do imóvel, este seja efectiva e imediatamente entregue, ao senhorio exequente, no caso do fim do arrendamento; ora ao administrador da insolvência, no caso da perda de propriedade, por apreensão para a massa insolvente, ora ao adquirente, no caso da sua venda ou adjudicação.
E porque se trata de normas excepcionais, elas não permitem aplicação analógica, estando assim vedada a sua aplicação a situações nelas não previstas (cf. art.º 11.º do CC).
Pode questionar-se se a situação em causa não poderá considerar-se coberta pela previsão normativa pelo recurso à interpretação extensiva, sabendo-se que nesta, ao invés da analogia, que pressupõe uma lacuna, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, de modo que por via interpretativa e pela extensão da letra da lei é possível colocar sob a alçada do regime uma situação não expressamente prevista mas cuja inclusão estava na mente do legislador e foi por este querida.
Ou seja, será que pela via da interpretação extensiva será possível estender o regime excepcional do diferimento da ocupação do imóvel a um simples detentor?
A resposta é, quanto a nós, negativa.
Efectivamente, não se descortina que o texto da citada norma tenha atraiçoado o pensamento do legislador e que este, ao redigi-las, disse menos do que efectivamente pretendia dizer.
Antes pelo contrário, entendemos que o legislador disse, de forma precisa, o que queria dizer, daí resultando que só o arrendatário habitacional e o insolvente poderá lançar mão do incidente de diferimento da desocupação do imóvel. Não há assim norma que, perante os poderes do proprietário, acautele a posição do possuidor ou detentor sem título, mesmo que se trate de pessoa a atravessar fase de grandes dificuldades económicas.
Importa sopesar que o fundamento da tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do senhorio ou adquirente no processo de insolvência é apenas o prolongamento (a curto prazo) de um direito anteriormente reconhecido em face da boa-fé do respectivo titular e das suas necessidades bem como das pessoas que vivem consigo, sendo pois, esse o significado da referência à boa-fé constante do n.º 2 do artigo 864.º do CPCivil.
Ou seja, dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou do insolvente (alicerçada no seu direito contratual de gozo ou de propriedade, respectivamente), designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, e daí que o legislador tenha querido proteger esses anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam.
Mas já não protege esses mesmos interesses, autonomamente, relativamente a quem não tiver sido titular desses direitos, pois em relação a tais terceiros já não se identifica qualquer direito no qual se possa sediar, de per si, a ultra-vigência desses efeitos, a continuidade da tutela desses interesses.[3]
Por outro lado, não se questiona que o direito à habitação goza de justificada tutela constitucional-cf. art.º 65.º da CRP, que proclama, no seu artigo 1.º que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Todavia, assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado, não de particulares (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do preceito), pelo que se afigura conforme à lei fundamental a opção legislativa no sentido de limitar a tutela legal ao arrendatário e insolvente e desde que verificados determinados pressupostos condicionantes.[4]
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Nestes termos, reconhecendo embora com o maior respeito que a condição da requerente até pudesse preencher o conceito de razões sociais imperiosas, não lhe assiste o direito que pretende ver-lhe reconhecido ao diferimento da desocupação, já que não detém a qualidade de insolvente ou arrendatária, a quem o legislador entendeu conferir, de forma exclusiva e nos estreitos termos definidos pelas als. a) e b) do n.º 1 do artigo 864.º, a tutela legal.
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Face ao que vem de expor-se e porque a pretensão formulada pela recorrente, ainda a provar-se a totalidade da factualidade por ela alegada, não conduziria ao seu deferimento, por não ter cobertura legal, não havia que proceder à inquirição das testemunhas indicadas, que se revelaria como já supra se referiu um acto inútil e, nessa medida, proibido pela lei (cf. art.º 130.º do CPC).
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Improcedem, desta forma, as restantes conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 11 de Setembro de 2017.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] In “Código de Processo Civil”, Anotado, Volume V, pág. 143.
[2] Conforme se explanou no Ac. desta Relação 24/11/2011 (proc. nº 1924/10.2TJPRT-C.P1, acessível em www.dgsi.pt) “(…) ao remeter para ali [para o art. 930º-A do CPC em vigor ao tempo], através do respectivo art.º 150º, nº 5, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspectiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os nºs 2 e 3 ainda do art.º 930º-C), procura novo espaço habitacional.”
[3] No mesmo sentido cfr. Ac. desta Relação de 13/05/2014 in www.dgsi.pt.
[4] Cfr. neste sentido, ainda que a propósito da extensão do regime ao arrendatário rural que habita no prédio arrendado, o Acórdão do TC n.º 581/2014, de 17 de Setembro, processo n.º 650/12, no qual se refere que “O direito à habitação tem, assim, o Estado-e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios-como único sujeito passivo e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios”.