Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
453/23.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: PAGAMENTO DE RENDA
RECIBO DE QUITAÇÃO
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP20240304453/23.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de oportuna entrega do recibo de quitação não justifica a recusa de pagamento da renda com base na exceção de não cumprimento do contrato, pois a obrigação de pagamento de renda é a contrapartida pela cedência de gozo do locado.
II - Para obstaculizar ao não pagamento da renda por falta de emissão de recibo de quitação, o inquilino terá que exigir ao senhorio a passagem do recibo e comunicar-lhe a recusa do pagamento enquanto não houver quitação.
III - Não encontra arrimo legal que o inquilino deixe de pagar as rendas por tempo indefinido com fundamento no atraso na entrega de três recibos de quitação, entretanto emitidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 453/23.9T8PRT.P1

Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AA, por si e na qualidade de procurador de BB, intentou a presente ação declarativa com processo comum contra CC.
Pede:
- que seja decretada a resolução de contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas por mais de três meses, com a consequente cessação do contrato de arrendamento, ordenando-se o despejo imediato do locado e a condenação da R. a entregá-lo livre e devoluto de pessoas e coisas, em bom estado de conservação e manutenção;
- que se condene a R. no pagamento das rendas em atraso, correspondentes aos meses de agosto a dezembro de 2022, na quantia de € 320,00 cada, perfazendo € 1.920,00, bem como o pagamento de rendas vincendas até ao despejo, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde o vencimento de cada uma das rendas até pagamento, ascendendo os vencidos a € 11,85;
- que, em caso de mora na entrega, se condene a R. a pagar indemnização correspondente ao dobro do quantitativo das rendas, até à entrega.
A R. contestou. Invocou que os senhorios emitiram tardiamente recibos de renda, o que a fez perder o direito a apoio com que suportava parte do pagamento daquela contrapartida, objetivo que visavam. Concluiu que a sua conduta é imputável àqueles.
Foi designada data para audiência prévia, em que se deu conta de que os autos reuniam os elementos necessários ao conhecimento do pedido, tendo sido ordenada a abertura de conclusão.
Foi proferida sentença que julgou a ação procedente, declarando resolvido o contrato de arrendamento e condenando a R. a despejar de imediato o locado, entregando-o livre e devoluto de pessoas e coisas, em bom estado de conservação e manutenção, a pagar as rendas vencidas no valor de € 320,00 cada a partir de agosto de 2022, bem como ao pagamento de rendas vincendas até ao despejo, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde o vencimento e cada uma das rendas até efetivo e integral pagamento, bem como a pagar a indemnização correspondente ao dobro do quantitativo das rendas, a partir da data da sentença até à entrega.
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Inconformada, a R. interpôs o presente recurso. Teceu as conclusões que se seguem.
1. Os Autores sabiam que a Ré beneficiava daquele apoio ao pagamento da renda e que, no âmbito desse apoio, estava obrigada a apresentar, no Gabinete do Inquilino Municipal, o original do recibo da renda, como comprovativo do pagamento ao senhorio da última renda vencida.
2. Sabiam também que, caso deixasse de apresentar os referidos recibos durante três meses, o referido apoio seria cessado, como aconteceu.
3. A Ré procedeu ao pagamento das rendas de Maio, Junho e Julho de 2022.
4. Os Autores só emitiram os recibos correspondentes às referidas rendas no dia 22.08.2022 - quase 3 meses após o primeiro pagamento - sem qualquer justificação aparente para o efeito.
5. A emissão dos recibos de renda é uma obrigação imposta ao senhorio.
6. A Ré cumpriu a sua obrigação de pagamento da renda e os Autores não cumpriram a correspondente obrigação de emissão dos recibos, o que colocou a Ré na situação que conhecemos e que a conduziu a uma situação de incumprimento nas rendas subsequentes.
7. O tribunal a quo faz uma incorreta aplicação do direito porque exclui a aplicabilidade da exceção de não cumprimento do art.º 428º do Código Civil.
8. Mas também porque não enquadra o caso dos autos na previsão do art.º 787.º do C.C. apesar dos factos que considerou provados.
9. A conduta dos Autores causou diretamente o incumprimento da Ré, tendo sido aquela deliberada no sentido de conseguirem a cessação do contrato de arrendamento.
10. Por esse motivo, e face ao tudo o quanto já exposto, deverá a indemnização prevista no artigo 1045.º ser excluída.
11. Ou, caso assim não se entenda, deverá pelo menos ser fixada apenas nos termos do n.º 1 do artigo 1045.º e não ao dobro da renda, pois que não há culpa do locatário.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se a ação totalmente improcedente, assim se fazendo Justiça!
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Os AA. contra-alegaram, rematando nos termos que se seguem.
A MM.ª Juiz do Tribunal “a quo” decidiu bem ao não aplicar a exceção de não cumprimento, bem como ao condenar no pagamento da indemnização em dobro, conforme alega a Ré no seu recurso.
A MM.ª Juiz esteve bem na análise da prova carreada para os autos, que comprova que a Ré não liquida as rendas desde Agosto de 2022.
A MM.ª Juiz aplicou bem o direito aos factos, pois nenhuma dúvida se levantou quanto à falta de pagamento da rendas desde agosto de 2022, que a Ré estava obrigada, e por isso outra solução não restava senão a condenação da Ré nos termos em que foi condenada, ou seja, a despejar o locado, a pagar as rendas vencidas e vincendas até entrega do locado, nos juros calculados desde o vencimento de cada uma das rendas, na indemnização elevada ao dobro e nas custas do processo.
Pugnam pela manutenção da decisão recorrida e pela análise do comportamento da R., por forma a apurar se age de má-fé e, se assim se entender, pela respetiva condenação em multa e em indemnização, que não deverá ser inferior a € 1.000,00 mensais.
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II - Questões a dirimir:
a - se a circunstância de os AA. terem emitido recibo de pagamento das rendas de maio, junho e julho de 2022 em 22 de agosto de 2022 obsta à procedência do despejo;
b - do montante devido a partir da data da sentença;
c - da má-fé da R..
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III - Fundamentação de facto
1. Os Autores são donos e legítimos proprietários de uma fração correspondente a uma habitação T2, destinada a habitação, no 2.º andar direito, com entrada pelo n.º ..., sito na Rua ..., em ..., Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia ..., Porto, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ..., freguesia ... e inscrita nos competentes serviços de finanças do Porto.
2. No dia 1 de abril de 2017, o Autor marido celebrou com a Ré um contrato de arrendamento urbano arrendamento para fim habitacional, dando de arrendamento à Ré a fração identificada no artigo anterior.
3. O contrato foi celebrado pelo prazo de 1 ano, com início no dia 1 de abril de 2017 e término do dia 31 de março de 2018, considerando-se prorrogado por períodos iguais, caso não seja denunciado por qualquer das partes por carta registada com aviso de receção e com a antecedência mínima de 30 dias.
4. Foi estipulada uma renda anual de 3.840,00 € (três mil e oitocentos e quarenta euros), a pagar mensalmente em duodécimos de 320,00 € (trezentos e vinte euros), até ao oitavo dia do mês aquele a que disser respeito, o pagamento tem que ser efetuado por transferência bancária para o IBAN ....
5. O Autor interpelou a Ré para proceder ao pagamento das rendas, acrescida da indemnização prevista no n.º 1 do artigo 1041.º do CC.
6. Anteriormente ao contrato referido, os Autores e a Ré celebraram a 26.03.2013 um contrato de arrendamento relativo ao imóvel descrito em 1., com início em agosto de 2013, sendo desde esta data que a Ré habita no imóvel arrendado.
7. A Ré deixou de conseguir cumprir a obrigação de pagamento das rendas a partir de agosto de 2022.
8. A Ré beneficiava de um apoio ao pagamento da renda, concedido pelo Município ..., no âmbito do programa ... - Fundo Municipal de Emergência Social.
9. Em julho de 2019, o apoio foi concedido pela quantia de 240,00€, pelo prazo de 12 meses, que se renovou.
10. Em maio de 2022, foi concedido um apoio mensal de 128,00 Euros, a partir de julho de 2022.
11. A Ré estava obrigada a apresentar no Gabinete do Inquilino Municipal prova do pagamento da renda.
12. A Ré procedeu à transferência bancária para pagamento das rendas de maio, junho e julho de 2022, em 01/06/2022, 02/06/2022 e 01/07/2022.
13. Os Autores emitiram recibo de pagamento das rendas de maio, junho e julho de 2022 a 22 de agosto de 2022.
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IV- Subsunção jurídica
a - Se a circunstância de os AA. terem emitido recibo de pagamento das rendas de maio, junho e julho de 2022 a 22 de agosto de 2022 obsta à procedência do despejo
Os AA. deduziram a presente ação com fundamento na falta de pagamento de rendas pela R. a partir de agosto de 2022. Tendo a ação sido proposta em 9-1-2023, encontravam-se vencidas e não pagas quantias equivalentes a mais de três rendas.
Nos termos do disposto no art.º 1083.º/3 do C.C., é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda.
Foi o que se verificou no caso vertente, objetando, todavia, a apelante à peticionada resolução do contrato de arrendamento a pretexto de que o não pagamento das rendas devidas a partir de agosto de 2022 se ficou a dever a conduta dos senhorios. Efetivamente, de julho de 2022 em diante a R. omitiu a obrigação do pagamento de rendas. Em sua defesa invoca que a mora na emissão dos recibos a fez perder o direito a apoio no pagamento da renda que vinha percebendo do Município ....
Não se alcança com precisão qual o alcance desta alegação.
É certo que consta dos factos assentes que a R. beneficiava de um apoio ao pagamento da renda, concedido pelo Município ..., que a R. estava obrigada a apresentar no Gabinete do Inquilino Municipal prova do pagamento da renda e que em maio de 2022 foi concedido apoio mensal de € 128,00, a partir de julho de 2022.
Por um lado, ascendendo a renda a € 320,00, já se vê que a R. teria forçosamente que encontrar outras fontes de rendimento que concorressem, juntamente com o apoio da edilidade, para alcançar a totalidade do montante da contrapartida devida - mesmo com o apoio camarário, a R. teria que desembolsar, dos seus próprios proventos, € 192,00 mensais.
Por outro lado, não se provou que a R. tivesse efetivamente perdido o apoio, como tão pouco se apurou que não pudesse voltar a beneficiar do mesmo.
Sustenta ainda a apelante nas conclusões das suas alegações que a conduta dos AA. causou diretamente o incumprimento da Ré, tendo sido aquela deliberada no sentido de conseguirem a cessação do contrato de arrendamento.
Não consta, porém, da materialidade adquirida que os senhorios soubessem que a R. beneficiava deste apoio e que o poderia perder acaso não apresentasse os recibos de pagamento da renda mês a mês. Por inerência, nada consta nos factos assentes no sentido de os senhorios terem retardado a emissão dos recibos no intuito de impossibilitarem a inquilina de continuar a obter o subsídio, expectantes de que, nessa falta, acabasse por deixar de pagar rendas, logrando, por essa via, o despejo do arrendado.
Já se vê que, de tudo quanto alega, a R. logrou apenas demonstrar a perceção de apoio que permitia prover ao pagamento parcial da renda e que se verificou um atraso na emissão dos recibos por banda dos AA..
A este respeito apurou-se que os AA. emitiram recibo de pagamento das rendas de maio, junho e julho de 2022 em 22 de agosto de 2022. Apesar de a R. ter procedido a transferência bancária para pagamento das rendas de maio, junho e julho de 2022, em 01/06/2022, 02/06/2022 e 01/07/2022, os AA. apenas emitiram recibo de pagamento em 22/08/2022. Os credores cumpriram, pois, tardiamente, a sua obrigação de quitação, entrando de algum modo em mora por falta de colaboração no cumprimento (art.º 813.º do C.C.). Fizeram cessar a mora ao emitirem os recibos.
Não se descura a exigência legal da quitação.
Efetivamente, nos termos do disposto no art.º 787.º/1 do Código Civil quem cumpre a obrigação tem o direito de exigir quitação daquele a quem a prestação é feita, devendo a quitação constar de documento autêntico ou autenticado ou ser provida de reconhecimento notarial, se aquele que cumpriu tiver nisso interesse legítimo.
A quitação destina-se a facilitar a prova do cumprimento pelo devedor sobre o qual impende o correspondente ónus (art.º 342.º/2, do C.C.).
A quitação constitui um direito de quem cumpre a obrigação, quer se trate do devedor, quer do terceiro que realize a prestação em seu lugar (art.º 767.º do C.C.).
Nos termos do n.º 2 do aludido art.º 787.º, o autor do cumprimento pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada, assim como pode exigir a quitação depois do cumprimento.
No caso concreto, porém, ao contrário do defendido pela recorrente, não está em causa uma verdadeira exceção de não cumprimento do contrato, tal como prevista no art.º 428.º do C.C..
No âmbito do contrato de locação, entre a obrigação de pagamento da renda, que impende sobre o inquilino (art.º 1038.º/a do C.C.) e a obrigação de quitação desse pagamento, que recai sobre o senhorio (art.º 787.º/1 do C.C.) não há correspetividade ou interdependência. A obrigação de pagamento de renda é a contrapartida pela cedência de gozo do locado (art.º 1022.º do C.C.). Por isso, a falta de oportuna entrega do recibo de quitação não justifica a recusa de pagamento da renda, com base na exceção de não cumprimento do contrato (cf. ac. da Relação de Lisboa, de 12/07/2018, proc. 1296/16.1T8LRS.L1-6, Maria de Deus Correia, consultável em www.dgsi.pt, tal como os demais acórdãos que venham a ser indicados, salvo indicação diversa).
A não emissão de recibo pode justificar a recusa do pagamento de renda, mas com base na exceção prevista no já referido art.º 787.º/2 do C.C., enquanto modo de tutela da posição jurídica do devedor (cf. ac. da Relação do Porto de 16-5-2023, proc. 2767/21.3T8STS.P1, João Diogo Rodrigues).
Em todo o caso, sempre se dirá que não encontra arrimo legal que a R. pudesse validamente eximir-se, por tempo indefinido, ao pagamento das rendas com fundamento no atraso na emissão de três recibos de rendas.
O não pagamento das rendas pelo inquilino em face da omissão do recibo está necessariamente sujeito a determinados requisitos. Veja-se o ac. da Relação de Lisboa de 3-10-2013 (proc. n.º 6836/11.0YYLSB-A.L1-8, António Valente), em que se sustenta que o não pagamento das rendas pelo inquilino, só poderá ser abrangido pela previsão do art.º 787.º/1/2 do Código Civil, caso aquele exija do senhorio a passagem de recibos e lhe comunique a recusa do pagamento da renda enquanto não for prestada tal quitação, isto independentemente da faculdade de consignação em depósito do montante das rendas.
Nenhum destes requisitos se mostra verificado na situação vertente.
No caso dos autos, a R. nem sequer alega que a omissão de pagamento das rendas referentes a agosto de 2022 e aos meses subsequentes se tenha ficado a dever à recusa dos senhorios na emissão do recibo de renda ou à mora na sua entrega, mas, isso sim, que deixou de conseguir acudir ao pagamento das rendas por força de conduta culposa daqueles: não teriam emitido os recibos tempestivamente por forma a impedir que apresentasse os comprovativos dos pagamentos junto da entidade que mensalmente lhe entregava parte do montante da renda. Alcançariam, assim, segundo a alegação, a verificação de fundamento para o despejo do imóvel arrendado. Ora neste contexto, não logrou a R. inquilina produzir qualquer prova.
Por outra parte, é consabido que a insuficiência económica, seja qual for a sua origem, não fundamenta a impossibilidade de cumprimento ou a mora nas obrigações de natureza pecuniária (art.º 790.º/1 do C.C.). Só a impossibilidade absoluta, objetiva e definitiva, acarreta a extinção da obrigação. Não é o caso da falta de meios pecuniários, pois estes podem vir a ser obtidos pelo devedor (cf. ac. do STJ de 13-12-1977, BMJ 272, p. 193).
Em suma, a defesa gizada pela apelante alicerçou-se na invocação da emissão tardia pelos senhorios de recibos com vista à perda de um benefício concedido por entidade terceira. Só com o concurso desse subsídio a inquilina poderia fazer face à totalidade do pagamento. Impendendo sobre a recorrente o ónus da prova dos factos impeditivos do direito dos AA. (art.º 342.º/2 do C.C.), é certo não ter logrado demonstrar qualquer factualidade inerente. Em todo o caso, tal alegação, por si só, sempre seria insuscetível de permitir que a arrendatária pudesse obstaculizar indefinidamente à resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas.
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b - Das rendas devidas
Defende a apelante que perante a conduta dos AA. deveria a indemnização prevista no art.º 1045.º/2 ser excluída, ou, subsidiariamente, que deveria pelo menos ser fixada nos termos do art.º 1045.º/1, por ausência de culpa.
A sentença condenou a R. no pagamento de rendas vincendas até efetivo despejo, acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde o vencimento e cada uma das rendas até efetivo e integral pagamento, bem como a pagar indemnização elevada ao dobro do quantitativo das rendas, a partir da data da sentença até entrega efetiva, nos termos do disposto no art.º 1045.º/2 do C.C.
Dispõe o art.º 1045.º do C.C.:
1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.
Através da condenação operada, a R. mais não terá que pagar do que o equivalente à renda devida, sendo a indemnização devida em função da mora. A constituição em mora em nada se prende com conduta imputável aos AA., mas sim com o atraso na entrega, pelo que a pretensão da apelante carece de fundamento legal.
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c - Do pedido de condenação da recorrente enquanto litigante de má-fé
Os AA. pedem a condenação da R. como litigante de má-fé, arguindo que a conduta desta é contrária à boa-fé.
Preceitua o art.º 542.º/1 do C.P.C que, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
E o n.º 2 do mesmo art.º: diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a discussão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A prova de uma versão dos factos ou de parte de uma e de parte de outra não conduz, sem mais, à condenação do autor material da versão total ou parcialmente infirmada enquanto litigante de má-fé
O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também podendo ser violado numa perspetiva da atuação processual, mormente, pelo recurso a juízo através de ações ou procedimentos cautelares abusivos. Configura-se, nesse caso, a existência do abuso do direito de ação, a culpa in agendo, e faz-se apelo à prudência normal (cf. ac. S.T.J., de 4-11-2008, proc. 08A3127, Fonseca Ramos). De outra forma, a parte que perde a ação, a menos que a questão fosse exclusivamente de direito, seria invariavelmente condenada enquanto litigante de má-fé (o sistema de condenação automática da parte perdedora como litigante de má-fé já vigorou no direito português - cf. Cordeiro, António Menezes, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, Coimbra, Almedina, p. 17).
O sistema tem por razoável que as partes litiguem dentro duma verdade aceitável.
Dir-se-ia, então, que a verdadeira pedra de toque do sistema no que toca às partes é, mais do que a boa-fé, entendida como dever de litigar, quer com verdade, quer com diligência aceitável, a ausência de má-fé. Desde que dentro de limites de razoabilidade, as partes mantêm alea para sustentar a diversidade de posições que as trazem a juízo. O sistema funda-se na boa-fé das partes, entendida esta com alguma parcimónia, como vem sendo defendido pela jurisprudência.
O Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que as regras consagradas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 456.º do CPC devem ser interpretadas em consonância com a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias de um Estado de Direito, incompatíveis com interpretações mais ou menos literais.
No ac. do S.T.J. de 11-12-2003 (proc. 03B3893, Quirino Soares) conclui-se que só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser sancionada como litigante de má-fé. “A verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. […] a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu”.
No ac. da Relação do Porto de 12-11-2008 (proc. 0722723, Canelas Brás) defende-se que desde que a versão dos factos aventada pela parte que perdeu não seja destituída de fundamento, tratando-se apenas da versão do problema que não vingou em tribunal, inexiste fundamento para a condenação por má-fé.
A sanção por litigância de má-fé exige a verificação de dolo ou negligência da parte que adota tal conduta, o que não sucederá, normalmente, com a dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento se verificou por mera fragilidade da prova e incapacidade de convencer o tribunal da realidade trazida a julgamento, ou mercê da discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos.
No sentido de observância de especiais deveres de prudência na apreciação da boa-fé, veja-se o ac. do S.T.J. de 15-10-2002 (proc. 02A2185, Ferreira Ramos): os tribunais devem ser prudentes na condenação por litigância de má-fé, apurando-se caso a caso - apreciação casuística - onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão foram feitas; o ac. do S.T.J. de 23-4-2008 (proc. 07S2894, Mário Pereira) consigna que a sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correta interpretação da lei não implica, por si só, em regra, a qualificação de litigância de má-fé na espécie de lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação aos factos.
A litigância de má-fé exige a consciência de que quem pleiteia de certa forma tem a consciência de não ter razão (ac. do S.T.J. de 11-9-2012, proc. 2326/11.09TBLLE.E1.S1, Fonseca Ramos)
A má-fé depende de intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva (ac. do S.T.J. de 12-11-2020, proc. 279/17.9T8MNC-A.G1.S1, Maria do Rosário Morgado).
Na verdade, nem sempre a condenação na lide significa que o réu ou o autor reconvindo agiu sob o signo da má-fé ou formulou pretensão injusta, a reclamar o seu sancionamento como litigante de má-fé. Traduzindo a lide processual um conflito de interesses, poderá compreender-se que as partes, convictas do seu direito, percam algum discernimento e objetividade, congeminando uma versão dos factos que é para elas a verdadeira e que pode não corresponder àquela que venha a ser reconhecida a final.
Trata-se de uma área de elevado melindre. É, pois, compreensível que se observe um grau de prudência razoável, numa apreciação casuística da situação em confronto.
É verdade que a interpretação acurada da norma em apreço permite uma maior exigência quanto ao desempenho das partes, mas até ao momento a análise jurisprudencial não permite concluir que os tribunais venham a usar de um crivo mais apertado, erigindo a boa-fé em verdadeiro esteio do sistema. Conferem às partes o benefício da dúvida e só as confrontam com a litigância de má-fé em casos de manifesto desrespeito ético - Menezes Cordeiro (Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa in Agendo, Coimbra, Almedina, pp. 30-32) elenca situações em que tribunais superiores procederam a condenações de litigância de má-fé, exemplificativas do grau de exigência praticado.
Na concreta situação que nos ocupa, pese embora a improcedência das objeções da apelante à bondade da sentença recorrida, entende-se não estar demonstrado o grau de malícia e temeridade necessários à respetiva condenação enquanto litigante de má-fé. O desempenho da R. não reveste tal grau de gravidade, antes se pautando por uma mera continuidade numa análise particular dos elementos factuais ao seu dispor.
Em suma, tratando-se de questão fluida, não resulta dos autos que a R. recorrente tenha agido de qualquer das formas supra descritas, pelo que não é de proceder à respetiva condenação como litigante de má-fé.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
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Custas pela apelante por ter decaído totalmente na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
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Porto, 4 de março de 2024
Teresa Fonseca
Ana Paula Amorim
José Eusébio Almeida