Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
353/17.1SLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
VÍTIMA
FISCALIZAÇÃO DA PENA
MEIOS TÉCNICOS DE CONTROLO Á DISTÂNCIA
Nº do Documento: RP20181031353/17.1SLPRT.P1
Data do Acordão: 10/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º46/2018, FLS.119-129)
Área Temática: .
Sumário: I - Toda a pena acessória assenta no pressuposto formal da condenação do agente numa pena principal.
II - A pena acessória deve ser graduada, dentro dos limites legais, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
III - Não existe, nem tem de se estabelecer, qualquer conexão entre a pena de substituição e a pena acessória pelo que a duração da pena acessória não tem de corresponder ao período de suspensão da execução da pena de prisão.
IV - A fiscalização, por meios técnicos de controlo à distância, da pena acessória de proibição de contactos, deve ser fundamentada exigindo-se um juízo de imprescindibilidade dessa medida para protecção da vítima e está dependente do consentimento do arguido e da vítima.
V - A dispensa de consentimento a que alude o art.º 36º, n.º7 da Lei n.º 112/2009, exige que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 353/17.1SLPRT.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 353/17.1SLPRT, corre termos pela Instância Local Criminal (J1) de Matosinhos, Comarca do Porto, B…, melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento em tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, consubstanciado nos factos descritos na peça acusatória de fls. 284 e segs.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença, datada de 19.06.2018 (fls. 442 e segs.) e depositada na mesma data, com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, o Tribunal decide:
a) Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
no entanto, por considerar que as exigências de prevenção ficam devidamente salvaguardadas, decide-se suspender a pena de prisão aplicada, condenando-se assim o arguido B… na pena de 3 (três) anos de prisão, prisão suspensa na execução pelo período de 3 (três) anos, suspensão sujeita a regime de prova, obrigando-se o arguido ao cumprimento do plano de reinserção social que venha a ser homologado e impondo-se, ainda, ao arguido, que, nos termos do disposto no artº 54º, nº 3, do Cód. Penal se sujeite a:
- responder a convocatórias dos técnicos de reinserção social, no âmbito da elaboração e acompanhamento dos planos de reinserção social;
- receber as visitas dos técnicos de reinserção social e comunicar-lhes ou colocar à disposição informações necessárias elaboração e acompanhamento do plano de reinserção social;
- informar os técnicos de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
- obter autorização prévia do magistrado, que à data da deslocação seja titular deste processo, para se deslocar para o estrangeiro.

Do plano de reinserção social deverá constar o tratamento ao alcoolismo, se tal for considerado necessário e ainda o cumprimento das penas acessórias.
b) Condenar o arguido B… na pena acessória de proibição de contactos com C… (proibição de contactos telefónicos, presenciais, por redes sociais ou epistolares), com a imposição do afastamento do arguido do local de trabalho/residência vítima C…, pelo período de 3 (três) anos, e com recurso a meios de vigilância eletrónica.
c) Condenar o arguido B… na pena acessória de obrigação de frequência no Programa de Prevenção de Agressores de Violência Doméstica, em sessões a definir pela DGRSP de acordo com as necessidades do condenado, programa a frequentar no prazo de 1 (um) ano;
*
d) Por se considerar o pedido de indemnização civil procedente, por provado, condena-se o demandado B… a pagar à demandante C…, pelos danos não patrimoniais, a quantia de €2500,00 (dois mil e quinhentos euros)».

Inconformado, veio o arguido interpor recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, de que extraiu as seguintes “conclusões” (transcrição integral):

«I - A pena imposta ao ora recorrente é excessiva e deve ser reduzida para os seus limites mínimos atenta a factualidade dada como provada.

II - O Tribunal a quo não fundamentou, na perspectiva da defesa, a culpa do arguido e também descurou, o Tribunal a quo na determinação das exigências de prevenção, nomeadamente, as exigências de prevenção especial, estando quer a ofendida, quer o arguido completamente separados e a refazer as suas vidas. Sendo que, tal como resulta da douta Sentença proferida, o arguido não mais contactou com a ofendida, até mesmo antes de ter sido aplicadas as medidas de coacção, apresentou uma postura correcta no Tribunal, não registando o arguido antecedentes criminais.

III - Ao condenar o arguido em 3 anos de prisão pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º n.º 1, al. a) e c) e n.º 2, do Código Penal, o Tribunal a quo violou, por conseguinte, o disposto no artigo 71º do Código Penal, traduzindo-se a pena aplicada numa pena severa, atenta a factualidade considerada.

IV- A douta Sentença deverá ser revogada na parte em que decretou a pena acessória de regras de conduta e regime de prova.

V - Nem a culpa do agente, nem as exigências de prevenção - atenta a factualidade provada - indicam a necessidade da aplicação da pena acessória. Aliás, da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo resulta que o arguido encontra-se divorciado da ofendida, não tendo contacto com a mesma e não tem antecedentes criminais, estando abstinente do consumo de bebidas alcoólicas, pelo que, não se justifica tal aplicação atento o arguido e a ofendida já não viverem na mesma casa desde Julho de 2017, estarem divorciados e não terem contacto. Mais, esta pena é de aplicação meramente facultativa, apenas devendo ser aplicada quando especiais razões justifiquem a sua aplicação, devendo esta ser sempre fundamentada, cumprindo ao Julgador demonstrar que aquela concreta pena acessória justifica, só assim se observando o princípio de direito criminal da individualização das penas.

VI - Ora, a factualidade provada não revela uma necessidade social imperiosa de sujeitar o arguido a regras de conduta e regime de prova. E mais, tal aplicação condicionará a vida pessoal e profissional do arguido.

VII - A não ser assim, deverá aquela pena acessória ser reduzida ao limite mínimo legal, bem como o regime de prova, nomeadamente tão só ao tratamento ao alcoolismo para o qual o arguido deu consentimento.

VIII - O Tribunal a quo não valorou positivamente o que resultou de favorável em relação ao arguido no decorrer da audiência de discussão e julgamento nem dos documentos juntos aos autos.

IX - A douta Sentença deverá ser revogada na parte em que fixa o montante de 2.500 euros, devendo ser esse montante fixado atendendo aos critérios de equidade e fixada pelo mínimo atenta a situação económica do arguido e aos danos que foram provados.

X - Em conclusão, tendo em conta os danos que se visa ressarcir por meio da indemnização arbitrada e o disposto nos artigos 483.º, 496.º e 494.º do C. Civil, revela-se excessivo o montante fixado pelo Tribunal a quo, pelo que deve o mesmo ser fixado em montante bem inferior.
XI - Foi, assim, violado o artigo 71º do Código Penal».

Admitido o recurso e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, quer o Ministério Público, quer a assistente apresentaram resposta à respectiva motivação, ambos pugnando pela sua total improcedência.
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Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que se pronuncia pelo não provimento do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
Antes, porém, do conhecimento de mérito, importa apreciar e decidir uma questão que tem a ver com a admissibilidade do recurso.
Quando o tribunal de recurso, em processo penal, conhece de um recurso ordinário, deve começar por proceder à delimitação objectiva do seu âmbito.
O art.º 402.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal dispõe que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, mas ressalva o disposto no artigo seguinte, que trata da delimitação objectiva do âmbito do recurso.
Do aludido artigo 403.º decorre que o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida, como sucede com a parte da decisão em matéria penal e a parte da decisão em matéria civil.
O arguido/recorrente não limitou o recurso que interpôs à parte criminal, antes almeja a redução do montante indemnizatório que foi condenado a pagar à assistente.
Ora, nessa matéria, o artigo 400.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal estabelece regras idênticas às do processo civil.
Assim, o recurso só é admissível se:
a) o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e
b) a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Tendo em consideração que a alçada do tribunal de comarca é de €5.000,00 (artigo 44.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e que o valor do pedido que a assistente/lesada formulou foi de €2.500,00, não está verificado o primeiro dos apontados requisitos.
O mesmo acontece quanto ao segundo, pois que o pedido foi julgado totalmente procedente, mas o quantum indemnizatório corresponde, exactamente, a metade daquela alçada, ou seja, não a ultrapassa, pelo que, nessa parte, é inadmissível o recurso.

IIFundamentação
É, geralmente, aceite que são as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
As conclusões de recurso devem expressar-se através de proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações e nessas proposições devem estar manifestadas, de forma clara, as razões (de facto e de direito) da discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, a indicação especificada dos fundamentos do recurso.
A exigência legal significa que o recorrente deve fazer uma síntese da substância da fundamentação do recurso para que o tribunal ad quem possa, facilmente, aperceber-se e apreender o que é essencial e não se disperse na apreciação do que é acessório, supérfluo ou inútil na economia da motivação.
Lendo a motivação do recurso, facilmente se constata que as conclusões ficam aquém do que está alegado no “corpo” da motivação.
Com efeito, das conclusões decorre que o recorrente ataca a sentença, apenas, em matéria de direito, concretamente, quanto à medida da pena (principal) e quanto às penas acessórias e, bem assim, o montante indemnizatório fixado.
Porém, do texto da motivação, também, resulta que o recorrente se insurge contra a decisão em matéria de facto, dizendo até estranhar “como pode o Tribunal formar a convicção no depoimento do filho e da nora que estão de relações cortadas com o arguido e que prestaram depoimentos pautados por grande parcialidade, atentas as relações inamistosas da assistente e testemunhas com o arguido e a de não terem presenciado qualquer facto”.
Se foi esse o propósito do recorrente (impugnar a decisão de facto), não o concretizou devidamente, pois não satisfez as exigências legais nessa matéria.
Uma das questões mais complexas e delicadas acerca da prova é a da sua análise e valoração. É o ponto axial do processo probatório, já que, da amálgama das provas produzidas, o tribunal tem de “separar o trigo do joio”, seleccionar as informações válidas e rejeitar as outras, de acordo com os critérios da experiência comum, mas também à luz dos conhecimentos científicos e técnicos postos à sua disposição.
O tribunal a quo motivou a sua decisão em termos que satisfazem, minimamente, a exigência legal.
Ora, perante uma sentença fundamentada, para que possa (deva) ser revogada ou alterada, não basta apontar o error in judicando, “impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou o conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão” (acórdão da Relação de Coimbra, de 30.03.2010, disponível em www.dgsi.pt/jtrc).
Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
■ os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”[2]);
■ as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[3]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
Este é um ponto que tem sido sublinhado na jurisprudência dos tribunais superiores e tem merecido geral aceitação: para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
Como bem se faz notar no acórdão da Relação de Coimbra de 08.02.2012 (Des. Brízida Martins), disponível em www.dgsi.pt, “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127.º, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.
Por outro lado, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www. dgsi.pt).
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso.
O reexame da matéria de facto é, necessariamente, segmentado, tem em vista a correcção de pontuais erros de julgamento e não todo o conglomerado factual.
O recorrente não concretiza quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Além de afirmar que o tribunal desconsiderou “o que resultou em benefício do arguido em sede de audiência de discussão e julgamento” (que é “boa pessoa”, completamente diferente do que é quando está sob influência do álcool), o recorrente argumenta que ninguém viu a assistente com hematomas ou escoriações.
É quando aborda matéria de direito (a medida da pena principal) que o recorrente indica um concreto ponto de facto que, no seu entender, não devia ter sido considerado provado: o descrito sob o n.º 15 do elenco de factos provados.
Também no que tange ao ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o recorrente limita-se a questionar a credibilidade dos depoimentos testemunhais (do filho e da nora) e a suficiência da prova resultante das declarações da assistente.
Esse ónus impõe ao recorrente que indique, concretamente, as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes para a boa decisão da causa (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal).
Isto, claro está, quando se trata de prova pessoal.
Sendo curial que transcreva essas passagens (pois só assim é possível relacionar o conteúdo específico do meio de prova que, alegadamente, impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado), a tanto não o obriga a lei.
Importa recordar a jurisprudência uniformizada sobre esta matéria.
O cumprimento de tal ónus exige do recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (pois são estas que devem ser ouvidas, lidas ou visualizadas pelo tribunal) e pelo AUJ n.º 3/2012, de 08.03.2012 (DR, I, n.º 77, de 18.04.2012), o STJ manifestou o entendimento de que, para o efeito, basta “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.
Ora, o recorrente limita-se a manifestar a sua divergência ou discordância em relação à análise e à valoração das provas que o tribunal fez.
Concretamente, quanto ao facto descrito sob o n.º 15, o recorrente alega que, nem do relatório do INML, nem das declarações da assistente (que “sofria de vertigens recorrentes há já longos anos”, como resultaria do teor do documento de fls. 12 do processo apensado) não se pode extrair a conclusão de que a lesão detectada (perfuração antero-inferior da membrana timpânica esquerda) tenha sido consequência de agressões físicas que lhe tivesse infligido.
O tribunal motivou assim a sua decisão relativamente a esse facto:
«Os factos presentes nos números 4. a 22. e 25. a 28. e 37. a 39. dos factos provados são centrais neste processo.
(…)
O Tribunal baseou a sua convicção a partir das declarações prestadas por C…, a ex-mulher do arguido e ofendida e que, por isso mesmo, teve conhecimento direto destes factos (razão de ciência).
(…)
A assistente foi totalmente credível pela forma sentida como prestou as declarações, sendo declarações sentidas e amarguradas nas palavras.
De salientar a postura corporal da própria assistente, em sofrimento por ter de relatar os factos que, visivelmente, tanto a magoavam (corpo defensivo e retraído na cadeira).
No entanto a assistente foi firme e segura ao relatar os factos.
É certo que a assistente não sabia indicar o dia em concreto em que todos os factos ocorreram.
Mas tal não lhe retira credibilidade. De facto, os factos que ocorrem com muita regularidade tornam-se mais difusos, em termos temporais, à memória. Por exemplo, toda a pessoa comum é capaz de dizer que comeu batatas no ano de 2017, mas se questionar em que datas específicas, dificilmente alguém conseguirá assegurar um dia em particular.
O mesmo sucede com a memória da assistente, relativamente a dias concretos em que os factos, imputados ao arguido, ocorreram, já que eram quotidianos. O Tribunal não tem nenhuma dúvida de que os factos ocorreram mesmo.
Sobre a perfuração do tímpano e as consequências, o Tribunal valorou o relatório de fls. 218 a 220».
A opção do tribunal de conferir irrestrito crédito à assistente e as suas declarações prestadas em audiência terem sido, praticamente, o único meio de prova (as testemunhas D… e E… nada presenciaram) em que assentou a sua convicção para dar como provados os factos considerados “centrais” neste processo não é, por si só, merecedora de qualquer reparo ou crítica.
No nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador), pelo que, em regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado/assistente em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[4]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
Mas, sendo na apreciação da prova que se decide a concreta aplicação do direito, é imperioso rodear esta tarefa de especiais cuidados.
Na apreciação da prova, o juiz deve, antes de mais, evitar o convencimento apriorístico. O juiz não pode deixar-se fascinar por uma tese, uma versão, deve evitar ideias preconcebidas que levam a visões lacunares, unilaterais ou distorcidas dos acontecimentos.
Se, durante muito tempo e até há uns anos, a vítima de violência doméstica sentia que o mais provável é que a sua denúncia acabasse em nada por não ter quem atestasse as agressões e às suas declarações não era dado o devido relevo probatório, a verdade é que, nos últimos tempos, têm-se acentuado os sinais de uma tendência de sentido contrário, em que a mais banal discussão ou desavença entre marido/companheiro/ namorado e mulher/companheira/namorada é logo considerada violência doméstica[5] e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido.
Não é essa visão maniqueísta que se surpreende na decisão recorrida, se bem que não possa considerar-se feliz a comparação aí feita para justificar as falhas de memória da assistente que, mesmo em relação aos actos de violência mais graves e mais recentes narrados na acusação, não foi capaz de os situar no tempo com um mínimo de precisão.
Em suma, não há razões para alterar a decisão em matéria de facto e, aliás, parece ter sido propósito do recorrente submeter à apreciação do tribunal de recurso, apenas, as seguintes questões:
- se a pena (principal) respeita os parâmetros legais ou peca por excesso;
- se está verificado o condicionalismo de aplicação das penas acessórias de proibição de contactos com a (ex)mulher e de obrigação de frequência de programa de prevenção de agressores de violência doméstica.
*
Balizado que está o âmbito da apreciação do tribunal ad quem pela delimitação do objecto do recurso, importa ter presente a factualidade em que assenta a condenação proferida.
Factos provados:
1. C… e o arguido B… já viviam em comunhão de leito, mesa e habitação (condições análogas à dos cônjuges) no momento do nascimento do filho do casal, D…, a 09 de Março de 1985, tendo fixado residência no Bairro …, Bloco …, entrada …, casa .., …. Porto.
2. No dia 09 de Março de 1994, C… e o arguido contraíram matrimónio.
3. No mês de Novembro de 1999, o identificado casal, juntamente com o filho, passaram a residir na Rua …, n.º …, …, …. - … … - Matosinhos, local onde sucederam os factos que de seguida se descrevem.
4. Pelo menos, desde o ano de 2013 até à saída da habitação de C…, o arguido, em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos uma vez por semana, após o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, dizia, aos gritos, a C… que ela era “uma puta, uma vaca, que só tinha amantes, porca e que ela não valia nada”.
5. Nalgumas dessas situações, o arguido também dizia a C…: “eu mato-te!”.
6. Sem prejuízo das situações específicas infra mencionadas, em momentos não concretamente apurados, mas durante o período indicado no número 4. dos factos provados, o arguido agrediu fisicamente C…, mediante bofetadas, que a atingiam na cabeça e membros superiores, ao mesmo tempo que lhe dirigia as referidas expressões.
7. Das referidas condutas do arguido resultaram para a identificada C… hematomas, edemas, escoriações e dores, com exceção da situação mais grave que infra se descreve.
8. No ano de 2014/2015, em dia não concretamente apurado, por volta das 07H00, C… e o arguido discutiram.
9. C… levantou-se, arranjou-se e saiu de casa para ir trabalhar.
10. Quando se dirigia, apeada, para o estabelecimento comercial onde laborava, o arguido telefonou a C… e disse-lhe que estava com uma arma para ir ter com o amante dela.
12. Logo após esta desliga o telefone, regressa de imediato e em pânico a casa, tendo nessa ocasião, por volta das 8:30 horas, o arguido lhe apontado um objeto não concretamente apurado mas com a forma de uma pistola e dito a C… que a matava por esta ter um amante.
13. Uns dias mais tarde, por volta das 5:30 horas, o arguido empunhou e apontou-lhe novamente o aludido objeto e disse-lhe que ela era puta, uma vaca e que não valia nada.
14. No mesmo dia, C…, por volta das 17:00 horas, disse ao arguido que ou o mesmo se livrava do referido objecto ou então faria queixa dele na polícia, levando a que este tivesse acatado o mencionado pedido.
15. Em dia não concretamente apurado do primeiro semestre de 2016, situado no mês de Abril ou Maio, no interior da referida residência, o arguido desferiu vários socos em C…, atingindo-a nas diferentes zonas da cabeça, incluindo ouvidos.
16. Da referida conduta do arguido resultou para C… perfuração antero-inferior da membrana timpânica esquerda, para além de edemas, hematomas e escoriações nas demais zonas da cabeça e ainda das dores que sentiu, que lhe determinaram 60 (sessenta) dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral (8 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (8 dias), e sem quaisquer consequências permanentes.
17. Também noutras ocasiões o arguido telefonava insistentemente para o telemóvel de C…, para controlar os seus passos e dizia-lhe que ela tinha amantes.
18. O arguido por inúmeras ocasiões queimou-se em frente a C…, com cigarros e chegou mesmo a cortar-se, para demonstrar que não tinha medo de morrer, o que causou naquela um enorme estado de sofrimento e terror.
19. Os factos indicados no número 4. dos factos provados também chegaram a suceder no estabelecimento comercial de café, denominado “Café F…”, sito na Rua … – Matosinhos, explorado pela C…, desde 2011 e até 18 de Julho de 2017, inclusivamente em frente a clientes.
20. No dia 18 de Julho de 2017, pelas 04H30, o arguido chegou à referida residência comum do casal, após ter consumido bebidas alcoólicas em excesso, agarrou numa catana que exibiu em direcção à C…, e disse-lhe: “vou-te matar e depois mato o teu filho!”.
21. C… receando que o arguido concretizasse o referido anúncio, conseguiu manter a calma e disse àquele que assim não iria resolver nada, e que mais tarde iria se recordado pelos netos como um assassino, conseguindo desta forma que aquele abandonasse o referido propósito e lhe entregasse o dito objeto.
22. Assim que teve oportunidade, e perante o mencionado receio, a C… abandonou nesse mesmo dia a referida residência, permanecendo em paradeiro desconhecido do arguido até à presente data.
23. Ademais, viu-se forçada, em prol da sua segurança, a manter encerrado o identificado estabelecimento comercial, perdendo, deste modo, a sua única fonte de rendimento.
24. O arguido procurou C… junto do filho e da nora, em estado ébrio, pretendendo obter falar com C… ou obter a sua localização.
25. Como tais pedidos lhe tem sido recusados, o arguido tem ali provocou desacatos.
26. Já noutras ocasiões a C… havia abandonado a residência, refugiando-se em casa do filho, razão pela qual o arguido ali se deslocou.
27. Sente uma enorme angústia perante a atitude do arguido contra o filho e nora, como forma de pressão sobre a C…,
28. e por não poder contactar normalmente com os netos, perante a situação em que se encontra (escondida daquele).
29. O arguido não efetuava qualquer tratamento ao problema de alcoolismo de que padece pelo menos desde 1999.
30. Bem sabia o arguido que ao comportar-se da forma descrita relativamente à C…, a submetia a um grande sofrimento psíquico, um enorme medo e inquietação, resultados estes que o arguido quis repetidamente produzir e que efetivamente se verificou.
31. O arguido quis repetidamente ainda infligir maus-tratos físicos à C…, querendo causar-lhe as lesões e dores verificadas.
32. O arguido, ao dirigir à C… as expressões atrás descritas no números 4. a 11. dos factos provados, ofendeu a honra, atentando contra o bom-nome e sensibilidade daquela, e provocando-lhe maus-tratos psicológicos, o que quis repetidamente.
33. Ademais, ao dizer à C… que a mataria pretendeu, repetidamente, intimidar e perturbar o sentimento de segurança daquela, o que conseguiu, não se tendo coibido para o efeito, de lhe exibir os referidos objetos.
34. Do mesmo modo, o arguido ao auto agredir-se e ao dizer que mataria o filho comum do casal, provocou repetidamente, com essa intenção, maus tratos psicológicos na C…, para além de intimidar e perturbar o sentimento de segurança desta, o que conseguiu.
35. Ademais, agiu repetidamente com o propósito concretizado de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da C…, através da realização de inúmeros telefonemas para o seu telemóvel, resultado esse que representou.
36. Mais sabia que, ao actuar dentro da residência comum do casal, ampliava o sentimento de receio da C…, visto que violava o espaço reservado da vida privada do casal e o seu carácter securitário, mas quis, repetidamente, isso mesmo.
37. O arguido agiu sempre de vontade deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tais condutas são proibidas e punidas por lei penal.
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Se ao legislador compete estatuir as molduras penais para cada crime, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um dos tipos pode assumir, e oferecer ao juiz uma directriz, tanto quanto possível precisa, sobre os critérios de que este deve socorrer-se na escolha e na determinação concreta da pena, ao juiz cabe a tarefa de, por um lado, determinar a moldura penal cabida aos factos provados e, por outro, dentro desta moldura penal, encontrar o quantum concreto de pena a cominar ao arguido.
A primeira operação a realizar é, pois, a determinação da moldura penal cabida a cada crime.
Ao crime de violência doméstica agravado do artigo 152.º, n.os 1 e 2, do Código Penal corresponde a pena de 2 a 5 anos de prisão.
Não ocorrem circunstâncias modificativas que façam com que se alterem, baixando (circunstâncias modificativas atenuantes) ou elevando (agravantes modificativas), os limites mínimo e/ou máximo da moldura da pena correspondente ao crime cometido.
O recorrente censura a sentença recorrida porque, na sua perspectiva, o tribunal a quo, na determinação da pena concreta, não respeitou os critérios legais definidos no artigo 71.º do Cód. Penal, já porque o grau de ilicitude não seria muito elevado, já porque não há razões de prevenção, sobretudo de prevenção especial, que reclamem uma pena tão elevada (arguido e ofendida estão já divorciados e a refazer as suas vidas, nunca mais a contactou desde que foram aplicadas as medidas de coacção e não tem antecedentes criminais).
Vejamos, então, se foram devidamente ponderados na sentença recorrida estes factores de determinação da medida da pena.
Depois de referências às finalidades da punição e à função da culpa, ponderou-se:
« Assim, em sede de medida concreta da pena, há que valorar o grau de ilicitude do facto que é elevado, atendendo às consequências dos atos em C…, que se viu obrigada a sair de casa.
Quanto à culpa, a intensidade do dolo é elevada, até porque o arguido atuou com dolo direto, o que se valora contra este.
O arguido não se encontra socialmente integrado (cfr. números 40. a 45. dos factos provados).
As necessidades de prevenção geral neste tipo de crimes são especialmente elevadas. Com efeito, é conhecido o efeito devastador da violência doméstica para os ofendidos, sendo que em Portugal ainda se verifica uma taxa muito elevada de prática destes crimes.
As necessidades de prevenção especial são relevantes.
No percurso de vida do arguido não se vislumbra qualquer facto que pudesse, de alguma forma, enquadrar a conduta do arguido (cfr. números 40. a 45. dos factos provados).
É certo, no entanto, que se verifica a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido (cfr. número 46. dos factos provados).
Tudo visto e ponderado julga-se adequada a pena de 3 (três) anos de prisão».
Como decorre do disposto no art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, é em função do binómio prevenção-culpa que se há-de encontrar a medida da pena, assim se satisfazendo a necessidade comunitária da punição do caso concreto e a exigência de que a vertente pessoal do crime limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
Tende a ser praticamente consensual na jurisprudência o acolhimento da doutrina[6] de que a pena visa finalidades, exclusivamente, preventivas (de prevenção geral e de prevenção especial), cabendo à culpa a função de impedir excessos, sendo pressuposto (não pode haver pena sem culpa) e limite inultrapassável da pena (em caso algum a medida desta pode ultrapassar a medida da culpa).
O momento inicial, irrenunciável e decisivo da fundamentação da pena repousa numa ideia de prevenção geral, uma vez que ela (pena) só ganha justificação a partir da necessidade de protecção de bens jurídico-penais.
A finalidade primeira da aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos[7]. Prevenção geral positiva ou de integração, tendo-se em vista uma concepção integrada de intimidação que actue dentro do campo marcado por padrões ético-sociais de comportamento que a ameaça da pena visa justamente reforçar.
É esta ideia de prevenção geral positiva, enquanto finalidade primordial visada pela pena, que dá conteúdo ao princípio da necessidade da pena consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa.
São as exigências de prevenção geral que hão-de definir a “moldura da prevenção” (em que o quantum máximo da pena corresponderá à medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar e o limite inferior é aquele que define o limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar), dentro da qual cabe à prevenção especial (por regra, positiva ou de (res)socialização) determinar a medida concreta.
A determinação da medida da pena em função da satisfação das exigências de prevenção obriga à valoração de circunstâncias atinentes ao facto (modo de execução, grau de ilicitude, gravidade das suas consequências, grau de violação dos deveres impostos ao agente, conduta do agente anterior e posterior ao facto e as chamadas consequências extra-típicas) e alheias ao facto, mas relativas à personalidade do agente (manifestada no facto), nomeadamente as suas condições económicas e sociais, a sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado, etc.
É geralmente aceite que a violência no seio da família assume proporções alarmantes e se é certo que o problema dos maus tratos do cônjuge não se resolve apenas com a repressão penal, não é menos verdade que tais comportamentos terão de ser severamente punidos, sem o que se frustrará a finalidade precípua das penas que, reafirma-se, é a protecção de bens jurídicos.
Mas, ao contrário do que se proclama, não é legítimo afirmar que se verifica um recrudescimento do fenómeno da violência doméstica e em particular da violência contra as mulheres.
O que acontece é que a maior transparência das relações familiares confere visibilidade a actos que antes ficavam escondidos no universo fechado em que a família se estruturava.
Não é exagero nenhum qualificar a violência doméstica como um flagelo social e é um dado adquirido que os maus tratos do marido ou do companheiro sobre a mulher são a principal forma de violência doméstica em Portugal.
Neste contexto, uma vez que não existem circunstâncias capazes de alterar, elevando ou diminuindo, os limites da moldura legal, a medida de 2 anos de prisão (que coincide com o limite mínimo legal, pois a conduta do arguido é punida nos termos do n.º 2 do artigo 152.º) afigura-se-nos corresponder ao limiar mínimo de defesa do ordenamento jurídico, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa aquela sua função tutelar. Foi, certamente, essa a razão por que, em 2007, o legislador fixou os 2 anos como limite inferior da moldura penal.
A finalidade preventivo-especial da pena é evitar que o agente cometa, no futuro, novos crimes. Evitar a reincidência, portanto.
Sendo primordial a função de socialização, a tarefa que se impõe ao juiz é averiguar se o agente está carecido de socialização.
Quando o agente não revela carências de socialização, como nos diz o Professor Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, p. 244), “tudo será questão, em termos de prevenção especial, de conferir à pena uma função de suficiente advertência do agente, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do limite mínimo de defesa do ordenamento jurídico, ou mesmo que com ele coincida. Se é certo que esta função de advertência joga o principal papel em tema de penas de substituição, ela pode relevar igualmente, e de forma decisiva, no âmbito de medida da pena”.
O arguido/recorrente não revela graves problemas de inserção social.
Além do problema de alcoolismo (de que aceitou tratar-se no âmbito das medidas de coacção impostas e tem vindo a cumprir), está inactivo e a sua integração laboral não se perspectiva que ocorra a breve trecho, dada a sua idade e escassas competências pessoais.
Tirando os factos por que foi julgado, apresenta-se como um cidadão fiel ao direito.
Por isso, não revelando o arguido dificuldade em ajustar-se a normas de convivência social, entendemos que a tal medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar não tem de afastar-se muito do limite mínimo da moldura penal.
Um dos princípios a que obedece o Código Penal é o princípio da culpa, segundo o qual não pode haver pena sem culpa, nem pena superior à medida da culpa.
Relevantes para avaliar da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de culpa verificada no caso concreto são os factores elencados no art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal e que, basicamente, têm a ver, quer com os factos praticados, quer com a personalidade do agente que os cometeu.
Aproveitando, mais uma vez, o ensinamento do Professor Figueiredo Dias (Ob. Cit, 245), porque a culpa jurídico-penal é “censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”, há que tomar em consideração todas as circunstâncias que caracterizam a gravidade da violação jurídica cometida (o dano, material ou moral, causado pela conduta e as suas consequência típicas, o grau de perigo criado nos casos de tentativa e de crimes de perigo, o modo de execução do facto, o grau de conhecimento e a intensidade da vontade nos crimes dolosos, a reparação do dano pelo agente, o comportamento da vítima, etc.) e a personalidade do agente [condições pessoais e situação económica, capacidade para se deixar influenciar pela pena (sensibilidade à pena), falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, e conduta anterior e posterior ao facto].
Deste modo, não pode ser indiferente para apurar o grau de culpa e, logo, para a determinação da medida judicial da pena o tipo de violência usado contra as vítimas, o modo de execução dos factos e a gravidade das suas consequências.
O grau de ilicitude da conduta do arguido não pode ser menosprezado, tendo em consideração a natureza do bem jurídico violado.
Presentemente, é consensual a ideia de que a utilização da violência, nomeadamente contra as mulheres, as crianças e os idosos constitui uma violação dos direitos fundamentais da pessoa humana.
No entanto, este caso de maus tratos está longe de ser dos mais graves que surgem nos tribunais.
O quadro traçado na acusação está longe, muito longe mesmo, de corresponder à realidade dos factos provados.
A única situação, devidamente concretizada[8], de violência física (aquela que, normalmente, é mais grave e tem consequências mais nefastas) é a ocorrida em Abril ou Maio de 2016, em que o arguido desferiu vários socos em C…, atingindo-a nas diferentes zonas da cabeça, incluindo os ouvidos, provocando-lhe perfuração do tímpano esquerdo, além de edemas, hematomas e escoriações.
Todas as outras situações são de ofensas verbais e ameaças.
Nunca o arguido utilizou contra a ofendida qualquer instrumento (de natureza contundente ou outra) ou arma de qualquer espécie, embora a tenha ameaçado de morte quando tinha na sua posse um objecto não identificado, com a aparência de arma de fogo.
Por isso, os factos, apreciados na sua globalidade, não revelam uma carga de ilicitude particularmente acentuada, confinando-se àquilo que é a situação mais comum no quadro geral da violência doméstica.
O arguido demonstra perfeita consciência das implicações decorrentes da sua conduta ilícita, tal como reconhece, em abstracto, o desvalor dessa conduta e as consequências danosas que implica para as vítimas, o que permite inferir que interiorizou a censurabilidade do seu comportamento.
Cabe salientar que nunca o arguido/recorrente desvalorizou a gravidade dos factos praticados, como tantas vezes acontece em casos de violência doméstica.
Por tudo isto, é fundada a sua pretensão de que seja reduzida a pena.
A pena de 2 anos e 8 meses revela-se mais adequada à culpa do arguido e satisfaz as exigências de prevenção.
Mantendo-se a suspensão da execução da pena, não vislumbramos nenhuma razão atendível para não manter, também, o regime de prova que a condiciona ou acompanha.
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Toda a pena acessória assenta no pressuposto formal da condenação do agente numa pena principal. Com efeito, penas acessórias são aquelas que só podem ser aplicadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal e assentam, materialmente, num específico conteúdo de censura do facto.
É a essas penas, que se traduzem na perda (temporária) de direitos civis, profissionais ou políticos, que se refere o n.º 4 do art.º 30.º da CRP, que visa «proibir que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecanicamente, independentemente de decisão judicial, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra “pena” daquela natureza», ou seja, «a teleologia intrínseca da norma consiste em retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente, e impedir que, de forma mecânica, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil, profissional ou política do cidadão” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 504).
Sendo indiscutível o carácter não automático das penas acessórias, a sua aplicação não depende de um poder discricionário do juiz, antes constitui um seu poder-dever a ser exercido verificados que se mostrem os respectivos pressupostos formais e materiais.
Isto não obstante o texto da lei, por vezes, inculcar ideia diferente da exposta, como acontece com o n.º 4 do artigo 152.º do Código Penal, em que se estabelece que “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica” (sublinhado, obviamente, nosso).
Complementarmente, o n.º 1 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (na redacção dada pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro), estabelece que
o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância” e o n.º 1 do artigo 36.º do mesmo diploma legal que “a utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta”.
O recorrente insurge-se contra as penas acessórias pelas seguintes razões:
- a sua aplicação é meramente facultativa e, nem as exigência de prevenção, nem a culpa, justificam a sua cominação;
- a sua aplicação não está, devidamente, fundamentada na sentença recorrida.
Como acontece com qualquer pena, a aplicação destas penas acessórias pressupõe a intervenção mediadora do Juiz, que, no seu doseamento, deve pautar-se pelos mesmos critérios e, portanto, atender ao mesmo circunstancialismo, que o orientou na determinação da pena principal, ou seja, a pena acessória deve ser graduada, dentro dos limites legais, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo-se em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Na sentença recorrida, a aplicação dessas penas está assim justificada:
« Considerando que a vítima C… demonstra receio intenso do arguido, mais se aplica ao mesmo a pena acessória de proibição de contactos com C… pelo período de 3 (três) anos, não se podendo o arguido, voluntariamente, se aproximar a menos de 200 metros e sendo que a proibição de contacto é sob todas as formas (proibição de contactos telefónicos, presenciais, por redes sociais ou epistolares), com a imposição do afastamento do arguido do local de trabalho ou de residência da vítima C….
Mais se determina que durante o período de 3 (três) anos, a fiscalização ocorra por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do disposto no artº 152º, nºs 4 e 5, do Cód. Penal, dispensando-se o consentimento do arguido e de C… para o efeito».
Tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, e sendo a suspensão acompanhada de regime de prova, é evidente que os objectivos que se visam com a pena acessória de proibição de contactos com a vítima seriam melhor alcançados no âmbito desse regime (que passa pela elaboração e implementação, a cargo dos serviços de reinserção social, de um plano individual de reinserção social do arguido) e com a imposição de deveres e regras de conduta.
Mas, ainda que muito perfunctoriamente, o tribunal a quo justificou a aplicação da proibição de contactos na sentença recorrida.
Tendo sido, várias vezes, ameaçada de morte pelo arguido, é compreensível que a ofendida se sinta, ainda, intimidada e insegura, com receio de que ele concretize as ameaças e a proibição de contactos pode ajudá-la a superar esse medo, pelo que podemos considerar verificados os respectivos pressupostos formais e materiais da aplicação dessa pena.
O que não está, de todo, justificado na sentença recorrida é o (longo) período fixada para essa proibição.
Aparentemente, fez-se corresponder a duração dessa pena acessória ao período de suspensão da execução da pena de prisão, mas não existe, nem tem que se estabelecer, qualquer conexão entre a pena de substituição e a pena acessória.
Depois que lhe foram aplicadas as medidas de coacção (entre as quais o afastamento da residência e a proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida), o arguido nunca mais incomodou a sua (ex)mulher e cumpriu, escrupulosamente, as medidas impostas.
Por outro lado, o arguido está, agora, divorciado da assistente e a tendência natural será que cada um siga o seu caminho, refaça a sua vida e não voltem a contactar um com o outro, pois não há motivo para tanto (o único filho de ambos há muito que se autonomizou).
Também relevante é o facto de o arguido estar a seguir programa de tratamento da sua dependência alcoólica, que esteve na base dos actos de violência praticados contra a sua (ex)mulher.
Não há razões de prevenção, nem se antolha qualquer razão válida para que a pena acessória de proibição de contactos tenha duração superior à pena acessória de frequência de programa de prevenção da violência doméstica: um ano.
Na sentença recorrida determinou-se, ainda, que a proibição de contactos com a vítima fosse fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
Também essa decisão não está, minimamente, fundamentada.
Como se decidiu no acórdão da Relação de Guimarães, de 21.09.2015 (CJ, Ano XL, T. IV, 301) e resulta do citado n.º 1 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, a utilização desses meios requer, desde logo, um juízo de imprescindibilidade dessa medida para a protecção da vítima, juízo que a sentença recorrida omite.
Por outro lado, está dependente do consentimento do arguido e da vítima, nos casos em que a sua utilização abranja a participação desta, e não se vislumbra que tal consentimento tenha sido obtido.
É certo que na sentença recorrida se consignou que se dispensava esse consentimento, mas, nos termos do n.º 7 do artigo 36.º, ainda da Lei n.º 112/2009, para tanto, é necessário que o juiz, “de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima”, mas a sentença, também, omite essa fundamentação.
Não pode, pois, manter-se a decisão de utilizar meios técnicos de controlo à distância na fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos.
IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto por B… e, em consequência:
a) rejeitar, por legalmente inadmissível, o recurso interposto da sentença na parte relativa ao pedido de indemnização civil;
b) manter a condenação do arguido B… pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152.º, n.os 1, alíneas a) e c), e 2, do Código Penal, mas alterar a medida da pena que agora se fixa em 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período;
c) manter a condenação do arguido na pena acessória de proibição de contactos com C…, mas reduzir a sua duração para um ano;
d) revogar a decisão de utilização de meios técnicos de controlo à distância na fiscalização do cumprimento dessa pena acessória;
e) em tudo o mais, designadamente no que tange ao regime de prova e imposição de deveres e regras de conduta que condicionam a suspensão da execução da pena e quanto à pena acessória de obrigação de frequência de programa de prevenção de agressores de violência doméstica, manter o decidido.
Sem tributação, por não ter havido decaimento total.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).
Porto, 31.10.2018
Neto de Moura
Luís Coimbra
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[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[3] Idem
[4] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[5] Repare-se que, neste caso, está descrito como um acto de violência doméstica sobre a C… o facto de o arguido, na presença dela, se queimar com cigarros e cortar-se “para demonstrar que não tinha medo de morrer”.
[6] Cujo expoente máximo é, sabidamente, o Professor Figueiredo Dias (cfr. a sua obra “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, 75 e segs., que, neste ponto, seguimos de perto).
[7] Com uma perspectiva diversa, defendendo que “encontrar a “justa retribuição”, a pena “merecida” para o delinquente constitui a finalidade primeira da sanção, embora logo seguida das necessidades preventivas, especial e geral”, A. Lourenço Martins, “Medida da Pena – Finalidades – Escolha – Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 501.
[8] O que consta do ponto 6 do elenco de factos provados não passa de imputação genérica, insusceptível de fundamentar uma condenação penal.