Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1281/05.9TAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DONAS BOTTO
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
RETORSÃO
Nº do Documento: RP201009221281/05.9TAVLG.P1
Data do Acordão: 09/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não age em legítima defesa o agente que, em momento subsequente a uma tentativa de atropelamento de que foi vítima, durante uma altercação verbal, dirige um jacto de água ao autor dessa tentativa e os seus dois acompanhantes, molhando-os.
II - A retorsão corresponde a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1281/05.9TAVLG.P1


Acordam em Conferência no Tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO

Vêm pronunciados, para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, B………., filho de C………. e de D………., natural de Paredes, casado, nascido a 04/04/1964, operador de máquinas, residente na Rua ………., .., ………., Valongo, E………., filho de F………. e de G………., natural de ………., Paredes, casado, nascido a 25/08/1959, residente na Rua ………., n.º …, ………., Valongo, C………., filho de H………. e de I………., natural de ………., Valongo, casado, reformado, nascido a 09/11/1932, residente na Rua ………., n.º …, ………., Valongo, J………., filho de K………. e de L………., natural de ………., Valongo, casado, mecânico, nascido a 29/03/1959, residente na Rua ………., n.º .., ………., Valongo, e M………., filha de N………. e de O………., natural de ………., Valongo, nascida a 20/02/1959, casada, desempregada, residente na Rua ………., n.º .., ………., Valongo.
Aos arguidos C………. e B………. é imputada a prática, como co-autores materiais, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal; ao arguido B………., é imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física simples; ao arguido E………. é imputada a prática, em concurso real, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, um dos quais em co-autoria com aqueles arguidos, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p., à data dos factos, pelos art.ºs 22.º, 23.º, 143.º, 145.º e 132.º, n.º 2, g), e actualmente pelos art.ºs 22.º, 23.º, 143.º, 145.º e 132.º, n.º 2, h), do Código Penal, e de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º do mesmo diploma; ao arguido J………., a prática de três crimes de ofensa à integridade física simples e de três crimes de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º do mesmo Código; à arguida M………., o cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, daquele código.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resulta provada a seguinte factualidade, com interesse para a boa decisão da causa:
1. No dia 24 de Outubro de 2005, pelas 18 horas, no largo público existente defronte da residência do assistente J………. e do arguido E………, na Rua ………., em ………., Valongo, o assistente dirigiu-se para a sua casa e estacionou o carro.
2. De seguida, o arguido E………., que conduzia um veículo automóvel ligeiro, arrancou no mesmo em marcha-atrás e dirigiu-o na direcção do assistente, a quem só não atingiu, porque este se desviou.
3. O arguido E………. previu e quis actuar da forma descrita, com intenção de atingir o corpo do assistente, o que só não logrou fazer, porque este se desviou.
4. O arguido E………. actuou da forma descrita, bem sabendo que o veículo que queria utilizar para agredir o assistente tem particular aptidão para causar lesões relevantes no corpo e na saúde do assistente.
5. O arguido E………. agiu livre, voluntária e conscientemente.
6. Nos mesmos dia e local, em momento subsequente ao acima relatado, o assistente J………. encontrava-se a lavar o passeio junto à sua oficina, sita naquela rua, munido de uma mangueira.
7. A certa altura, os arguidos E………., B………. e C……… dirigiram-se àquele e encetaram uma altercação com o mesmo, ao que este dirigiu o jacto de água na sua direcção, molhando-os.
8. Por causa disso, os arguidos E………., B………. e C………. começaram a desferir murros e pontapés por todo o corpo do assistente J………..
9. Os arguidos e o assistente J………. envolveram-se todos em luta, acabando por cair todos ao chão, uns por cima dos outros.
10. M………., mulher do assistente, veio em defesa deste, tentando afastar o arguido E………. que, ao aperceber-se da presença daquela, desferiu-lhe pelo menos um soco na face, murros e pontapés em diversas partes do corpo.
11. A arguida M………., por sua vez, e nessa sequência, desferiu pelo menos um estalo na cara do arguido E………..
12. Em consequência desta situação, E………. apresentou, após ter sido sujeito a exame médico, diversos arranhões na face, que foram causa directa e necessária de 8 dias de doença, um dos quais com afectação da capacidade para o trabalho.
13. C………. sofreu, também em consequência dessa situação, contusões e equimoses na mão direita, contusões e equimoses no joelho esquerdo e contusões nas costas, que foram causa directa e necessária de 8 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
14. B………., por seu turno, sofreu traumatismo da região ocular direita.
15. J………. sofreu, por sua vez, traumatismo do crânio, do dorso e da mão direita, que foi causa directa e necessária de 22 dias de doença com incapacidade para o trabalho, bem como fractura do 5.º dedo da mão direita, o que lhe determinou um período de 23 dias de doença, com incapacidade temporária geral parcial e de incapacidade temporária profissional parcial.
16. M………. sofreu equimoses na face, no tórax, nos braços e nas pernas, que foram causa directa e necessária de 3 dias de doença, um dos quais com incapacidade para o trabalho.
17. Os arguidos C………., B………. e E………. actuaram em comunhão de esforços e de intentos, querendo agredir, como agrediram, o assistente J………. no seu corpo, molestando-o.
18. Os arguidos M………. e E………. quiseram agredir-se mutuamente, como agrediram, molestando reciprocamente os seus corpos.
19. O arguido J………. quis atingir B………., C………. e E………., como conseguiu.
20. Ainda nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o assistente P………. tentou socorrer J………., seu patrão, quando este estava envolvido em agressões com E………., B………. e C………..
21. Nesse contexto, o arguido B………. avançou na direcção do assistente P………., por trás, e segurando um objecto não concretamente identificado, mas com um cabo de madeira, desferiu-lhe uma pancada nas costas, o que lhe causou, directa e necessariamente, dores.
22. O arguido B………. previu e quis actuar da forma descrita, com a intenção, concretizada, de agredir o corpo do assistente P………., sabendo que actuava contra a sua vontade.
23. Nos mesmos dia, hora e local, o arguido E………. dirigiu-se ao assistente P………. e disse-lhe: “tu vais ver o que te vai acontecer”.
24. Os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.
25. Para além das dores que sentiram, J………., M………. e P………. sentiram-se nervosos, vexados e ansiosos na sequência da actuação dos arguidos B………., C………. e E………..
26. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
27. O arguido J………. explora uma oficina de mecânica, auferindo um rendimento mensal de cerca de € 1.500,00.
28. Tem um funcionário ao seu serviço, o assistente P………..
29. Tem o 6.º ano de escolaridade.
30. É casado com a arguida M………. e tem três filhos, de 24, 22 e 18 anos, todos estudantes, a seu cargo.
31. Tem dois veículos automóveis, um jipe e uma carrinha Renault ………..
32. Vive em casa própria.
33. A arguida M………. é doméstica e tem o 6.º ano de escolaridade.
34. O arguido B………. é operador de máquinas e aufere o salário mensal de € 468,50.
35. Vive na casa da sogra, com a mulher e uma filha de 15 anos de idade.
36. Tem o 4.º ano de escolaridade.
37. O arguido C………. é reformado, recebendo uma pensão mensal de cerca de € 300,00 por mês.
38. Vive com a sua mulher, também aposentada, e com um filho solteiro.
39. Tem o 4.º ano de escolaridade.
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FACTOS NÃO PROVADOS
Os factos seguintes ficaram não provados:
a) O arguido J………., que entretanto se havia libertado dos arguidos E………., C……… e B………., voltou a pegar na mangueira e desferiu jactos de água contra eles, atingindo-os.
b) De seguida, empunhou um ferro na direcção dos arguidos, não tendo chegado a atingi-los, porque foi impedido por terceiros, tendo então dito, dirigindo-se àqueles, em tom sério: “Vou buscar a caçadeira e mato-vos a todos”.
c) O arguido J………., ao proferir as expressões acima mencionadas, quis amedrontar B………., C………. e E………., e causar-lhes receio e inquietação, o que concretizou.
d) O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que esta conduta era proibida e punida por lei.
e) O arguido E………. previu e quis actuar da forma descrita, ao dirigir aquela expressão ao assistente P………., com a intenção de o constranger, o que fez de forma séria, bem sabendo que a sua conduta era idónea a fazer crer àquele que iria atentar contra a sua integridade física, assim prejudicando a sua liberdade de determinação, o que logrou fazer.
f) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido E………., dirigindo-se e referindo-se à pessoa do assistente J………., proferiu as expressões: “ladrão, filho da puta, não tens clientes porque roubaste os clientes, não te dás com ninguém, quando o teu pai era vivo disseste que lhe cortavas as mãos”.
g) O arguido B………. disse ao assistente: “não tens trabalho porque roubas os clientes” e “és um morto de fome, és um juiz da fome”.
h) O arguido C………., dirigindo-se ao assistente, proferiu as expressões: “ladrão, filho da puta”.
i) Os arguidos proferiram essas expressões com a intenção de ofender o assistente na sua honra e consideração, o que conseguiram, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, sabendo que esta conduta era proibida e punida por lei.
j) O arguido J………., ao mesmo tempo que molhava os assistentes B………., E………. e C………. com os jactos de água, estragando-lhes ainda o milho que tinham plantado no logradouro da sua casa, dirigiu-lhes as seguintes expressões: “cabrões, filhos da puta, cornos, paneleiros”, em voz alta, tendo sido ouvido por vizinhos e transeuntes.
k) O arguido proferiu essas expressões com a intenção de ofender os assistentes na sua honra e consideração, o que conseguiu, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, sabendo que esta conduta era proibida e punida por lei.
l) O assistente J………. sentiu-se envergonhado, vexado e atingido na sua reputação, por causa das expressões que lhes dirigiram os arguidos B………., C………. e E………..
m) Os assistentes B………., C………. e E………. sentiram-se envergonhados, vexados e atingidos na sua reputação, por causa das expressões que lhes dirigiu o arguido J………..
n) O assistente P………. sentiu-se limitado na sua liberdade, tendo sentido receio de que o arguido E………. viesse a concretizar um mal na sua pessoa.
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MOTIVAÇÃO
A convicção do tribunal, no que concerne à matéria assente referente ao circunstancialismo de tempo e lugar em que ocorreram os factos, baseou-se nas declarações conjuntas dos arguidos e das testemunhas que, neste aspecto, prestaram declarações genericamente coincidentes.
Relativamente à actuação dos arguidos B………., C………. e E………., o tribunal fundou-se, para a dar como provada, na ponderação crítica das suas declarações, bem como nos depoimentos de M………. e de P………. que, apesar do seu envolvimento pessoal na situação, falaram, a esse respeito, de maneira que se afigurou isenta, credível e segura, convencendo o tribunal quanto ao modo como aqueles arguidos se dirigiram ao assistente J………., bem como ao confronto físico que se seguiu e, bem assim, quanto à sua própria intervenção no dito confronto.
Relativamente ao comportamento do arguido J………., o tribunal ponderou criticamente, para o dar como assente, as declarações das já referidas pessoas, avaliadas à luz da normalidade da experiência, tendo sido ainda tidos em conta os relatórios dos exames médico-legais efectuados, através dos quais ficaram provadas as lesões sofridas por cada uma das pessoas envolvidas naquela contenda física.
Conjugando todos estes elementos de prova, o tribunal ficou convencido de que, efectivamente, os arguidos E………., B………. e C………. iniciaram o confronto, começando pela situação da utilização do veículo contra o ofendido J………. pelo primeiro e acabando na agressão conjunta àquele, depois deste lhes ter atirado água com a mangueira que empunhava, o que derivou num confronto físico em que todos os quatro se envolveram, batendo-se mutuamente, acabando por se envolver igualmente a arguida M………. e o assistente P………..
O depoimento deste último, por sincero, objectivo e escorreito, foi particularmente relevante quanto à intervenção de cada um dos arguidos, quer em relação uns aos outros, quer em relação a si, explicando ao tribunal a actuação do arguido B………. em relação a si.
No tocante às dores e aos sentimentos experienciados pelos assistentes, na sequência dos factos e das lesões sofridas, o tribunal deu-os como provados, na medida acima transcrita, após análise crítica das suas declarações e do que referiram as testemunhas dos pedidos de indemnização sobre esse assunto.
Para prova da ausência de antecedentes criminais dos arguidos, o tribunal baseou-se nos certificados de registo criminal juntos aos autos.
Relativamente às suas condições pessoais, profissionais e financeiras, o tribunal teve em consideração as suas declarações que, neste aspecto, se mostraram credíveis.
Quanto aos factos não provados, a sua classificação como tal resultou da circunstância de se terem gerado diversas dúvidas, que não foi possível superar, a respeito dos factos em causa. A prova, nessas matérias, não foi totalmente sólida, consistente, coerente nem credível.
Apesar do que disseram os arguidos e as testemunhas (sendo de salientar que a maior das expressões em causa nem sequer foram referidas por qualquer delas), ficou o tribunal sem conseguir descobrir, em meio a tantas declarações duvidosas e contraditórias, acerca do que disseram de insultuoso os arguidos, a quem e como. E, perante essas dúvidas, não restava se não dar como não provados os factos.
Já relativamente ao comportamento de E………. em relação a J………., a consideração da matéria acima transcrita como não provada decorre de uma apreciação de todo o contexto dos factos, expresso pelo próprio assistente e pelos arguidos e testemunhas, pelo qual ficou o tribunal convencido de que o arguido não pretendeu ameaçar o assistente, tendo apenas proferido aquela expressão inconsequentemente, sem a finalidade de o intimidar, mas antes no decurso da contenda, como meio de afastar aquele.
Finalmente, no que concerne à actuação do arguido J………., no que respeita à ameaça dirigida aos demais, a sua consideração como não provada emergiu também da inexistência de prova segura e certa, pois os arguidos C………. e B………. não se revelaram minimamente credíveis, quando falaram a esse respeito, nem as testemunhas se mostraram objectivas e isentas, criando sérias dúvidas que motivaram a sua inserção nos factos não provados.

DISPOSITIVO

Nestes termos,
1. julgo a acusação pública parcialmente procedente e, em consequência:
- absolvo o arguido E……….. da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 143.º, n.º1, 145.º e 132.º, n.º 2, g), e 22.º e 23.º do Código Penal;
- absolvo os arguidos J……… e E………. da prática, pelo primeiro, de três crimes de ameaça, e pelo segundo, de um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal;
- condeno o arguido J………., pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art-º 143.º, n.º1, do Código Penal, nas penas parcelares de 50 (cinquenta) dias de multa, e na pena única de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), perfazendo um total de € 880,00 (oitocentos e oitenta euros);
- condeno a arguida M………., pelo cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, daquele Código, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o total de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros);
- condeno cada um dos arguidos C………., B………. e E………. (para estes, sendo pena parcelar), pela prática, como co-autores materiais, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo, quanto ao arguido C………., o valor global de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros),
- condeno o arguido B………, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena parcelar de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), indo este arguido condenado na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, perfazendo o valor de € 700,00 (setecentos euros);
- condeno o arguido E………., pelo cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena parcelar de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), indo condenado na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, num total de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros);
2. julgo as acusações particulares improcedentes por não provadas e, em consequência:
- absolvo os arguidos E………., C……….. e B………. da prática, por cada um deles, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal;
- absolvo o arguido J………. da prática de três crimes de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal.
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Julgo totalmente improcedente o pedido civil deduzido por C………., E………. e B………., absolvendo J………. do mesmo.
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Julgo totalmente improcedente o pedido civil deduzido por J………., absolvendo C………., E………. e B………. do pedido.
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Julgo parcialmente procedente o pedido formulado por M………., condenando E………. a pagar-lhe a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), para ressarcimento dos danos sofridos, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data da presente sentença.
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Julgo parcialmente procedente o pedido de J………., condenando solidariamente B………., E………. e B………. a pagar-lhe a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), para ressarcimento dos danos sofridos, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data da presente sentença.
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Julgo improcedente o pedido deduzido por J………. contra E………., absolvendo-o integralmente do mesmo.
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Julgo parcialmente procedente o pedido deduzido por P………. contra B………. e E………., condenando o primeiro no pagamento da quantia de € 500,00 (quinhentos euros), para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, e absolvendo o segundo integralmente do pedido.
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Todos os arguidos vieram contestar esta decisão, alegando essencialmente que a sua actuação se enquadra na figura jurídica da legítima defesa.
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O Ex.mo Sr. PGA começa por levantar a extemporaneidade dos recursos interpostos pelos arguidos E………. e outros.
Quanto ao outro recurso, entende que o referente à arguida M………. pode proceder e ser julgado improcedente o do arguido J………..

Vejamos em primeiro lugar a questão prévia levantada pelo Ex.mo Sr. PGA.
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Questão prévia

Como bem alega o Ex.mo Sr. PGA no seu douto parecer, a sentença foi depositada em 2/7/09 (cfr. fls. 652), pelo que se iniciou a partir desta data o prazo para interposição de recurso (art. 411°, n.º 1 e 4 do CPP).
O recurso do arguido E………. e outros apenas deu entrada no dia 8/9/09, tendo sido, nessa data, autoliquidada apenas uma taxa de justiça (cfr. fls. 696 e 714).
Assim sendo e independentemente de não ter sido dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 80° do CCJudiciais, em relação aos outros recorrentes, o recurso não é de conhecer por extemporâneo.
Efectivamente, tendo-se iniciado o prazo de recurso a partir de 2/7/09, o seu termo máximo (art. 411°, n.º 4 do CPP) ocorreu em 1/9/09, pelo que nem sequer por força do disposto no art. 107°-A do CPPenal e o pagamento de multa seria agora possível considerar tempestiva a sua interposição.
Por carta registada de 28/7/09, os recorrentes vieram aos autos requerer que lhes fosse facultada cópia da gravação da audiência de julgamento, mas a secretaria, logo em 30/7/09, informou que a referida gravação estava disponível e que ali podia ser levantada, facto que, no entanto só veio a ocorrer em 3/9/09, ou seja, já depois de expirado o prazo legal de 30 dias de recurso (cfr. fls. 695).
Determina o artigo 7° do DL. 39/95, de 15/2:
1. Durante a audiência são gravadas simultaneamente uma fita magnética destinada ao tribunal e outra destinada às partes.
2. Incumbe ao tribunal que efectuou o registo facultar, no prazo máximo de oito dias após a realização da respectiva diligência, cópia a cada um dos mandatários ou partes que o requeiram.
Assim, os recorrentes sabiam que, decorridos 8 dias sobre a gravação da prova ou sobre a leitura da sentença, tinham à sua disposição a gravação da audiência – tal como, aliás, a secretaria os informou – pelo que o requerimento da mesma por escrito, praticamente no termo do prazo de recurso e na expectativa de que a mesma fosse remetida, não tem a virtualidade de suspender o prazo de recurso.
Tal suspensão só teria razão de ser se, solicitada a gravação, a mesma não fosse de imediato disponibilizada – suspensão que se manteria até à sua entrega, o que não aconteceu.
A informação da secretaria não reveste o carácter de notificação nem de comunicação (arts. 111 ° e 112°, n. ° 3 do CPP), pelo que a interposição do recurso fora do prazo legal é apenas imputável aos recorrentes, designadamente porque não procederam à recolha da gravação em tempo útil, não tendo sequer alegado justo impedimento para o levantamento tardio da gravação.

Pelo exposto, não se conhecem estes recursos, por serem extemporâneos.
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Inconformados com aquela decisão que os condenou, vieram, como já acima referimos, os recorrentes J………. e M…….., pedir a sua absolvição, uma vez que a sua actuação descrita nos autos, teve como objectivo defenderem-se dos arguidos E………., B………. e C………., pelo que invocando a legitima defesa, pedem a absolvição.

O MP em 1ª instância é de parecer que o recurso deve improceder.
Junto desta Relação, o Sr. PGA entende que o recurso da M……… pode ser procedente, enquanto o do J………. deve improceder.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Vejamos
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As causas de exclusão de ilicitude constam do art. 31.º do Código Penal, referindo-se no seu n.º 1 que:
“O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”,
seguindo-se no seu n.º 2, a exemplificação de algumas dessas situações.
Nos termos da al. a) não é ilícito, entre outros, o facto praticado em “legítima defesa”, considerando-se como tal, face ao art. 32.º:
“o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
Assim, na impossibilidade de se recorrer atempadamente ao poder preventivo do Estado, face a um ataque à ordem jurídica, esta permite, dentro de certos condicionalismos, que o particular exerça plenos poderes de auto-tutela face a essa violação, o que chegou a merecer plena consagração na própria Convenção dos Europeia dos Direitos do Homem, aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13/Outubro.
Também no artigo 21.° da CRP se diz que: Todos têm o direito de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.
Assim, são requisitos da legítima defesa:
existência de uma agressão de interesses (pessoais ou patrimoniais) do agente ou de terceiro.
- que essa agressão seja actual, no sentido de estar iminente;
- que seja ilícita no sentido de o seu autor não ter direito a fazê-la;
- que a defesa se circunscreva ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão, ou seja, a racionalidade do meio empregue;
- O animus deffendendi, ou seja, o intuito de defesa por parte do defendente.

A ilicitude desta agressão não tem de ser especificamente penal, podendo tratar-se de uma ilicitude civil, ou de mera ordenação social, administrativa ou mesmo constitucional, atento o carácter ilimitado dos interesses juridicamente protegidos - C FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal I, 2007, 415.
São ainda inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor, pelo que o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso, isto é, o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes (Cfr. H. Jescheck, ibidem, 308).

Por seu lado, a agressão pode estar ainda em curso mesmo que a consumação do crime se tenha já verificado. Portanto, no caso de crime duradouro ou permanente a legítima defesa pode ter lugar durante todo o tempo que durar a agressão - FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal I, 413, como é o caso do crime instantâneo, cuja execução seja repetida (vários socos e pontapés dados à mesma vítima pelo mesmo agressor).

Assim, agressão, é todo e qualquer tipo de comportamento humano, por acção ou omissão, que represente uma ofensa para interesses juridicamente protegidos, e tenha a sua origem numa atitude intencional ou meramente negligente, sendo ilícita quando esse comportamento se revestir de desvalor jurídico, o que sucede quando se infringem direitos ou interesses juridicamente tutelados do visado ou de outrem.
O meio empregue para a defesa, deve ser aferido racionalmente tanto em relação ao objecto como à forma como o mesmo é utilizado para repelir ou impedir uma agressão, mas sem esquecer que numa situação de conflito, que está normalmente subjacente a uma legítima defesa, existe sempre uma certa perturbação decorrente de uma agressão, que perturba a reflexão, a serenidade e tranquilidade de espírito de quem se defende.
Deve ainda existir a consciência da existência da actuação em legítima defesa, isto é, mediante o conhecimento de que existe uma agressão e da necessidade de defesa, podendo o mesmo resultar implicitamente do circunstancialismo em que tal ocorre.
A legítima defesa, como causa exclusória da ilicitude, constitui o exercício de um direito constitucionalmente consagrado (cfr. Art.º 21º da C.R.P.) como dissemos, e que, de igual modo, se encontra previsto, para efeitos penais, no Art.º 32° do C. Penal.
O reconhecimento desse direito parte do princípio de que a lei não tem que recuar ou ceder, nunca, perante a ilicitude, já que a agressão, sendo ilícita, não lesa apenas um interesse jurídico singular, mas viola também a própria ordem jurídica, o interesse comunitário.
Por sua vez, a legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor (cf. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General - 4ª edição - 1993, p. 303 e segs.).
A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.
O elemento subjectivo da acção de legítima defesa restringe-se à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que, em face de uma agressão actual e ilícita, se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários.
Figueiredo Dias, refere que «o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador há-de constituir a exigência subjectiva mínima indispensável á exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer causa justificativa» (Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 371).

Olhando agora para o caso concreto, vimos que no dia 24 de Outubro de 2005, pelas 18 horas, no largo público existente defronte da residência do assistente J………. e do arguido E………., na Rua ………., em ………., Valongo, o assistente dirigiu-se para a sua casa e estacionou o carro.
De seguida, o arguido E………., que conduzia um veículo automóvel ligeiro, arrancou no mesmo em marcha-atrás e dirigiu-o na direcção do assistente, a quem só não atingiu, porque este se desviou.
No mesmo dia e local, em momento subsequente ao acima relatado, o assistente J………. encontrava-se a lavar o passeio junto à sua oficina, sita naquela rua, munido de uma mangueira.
A certa altura, os arguidos E………., B………. e C………. dirigiram-se àquele e encetaram uma altercação com o mesmo, ao que este dirigiu o jacto de água na sua direcção, molhando-os.
Por causa disso, os arguidos E………., B………. e C………. começaram a desferir murros e pontapés por todo o corpo do assistente J………..
Os arguidos e o assistente J………. envolveram-se todos em luta, acabando por cair todos ao chão, uns por cima dos outros.
M………., mulher do assistente, veio em defesa deste, tentando afastar o arguido E………. que, ao aperceber-se da presença daquela, desferiu-lhe pelo menos um soco na face, murros e pontapés em diversas partes do corpo.
A arguida M………., por sua vez, e nessa sequência, desferiu pelo menos um estalo na cara do arguido E………..
Assim, constatamos desde logo que o J………. dirigiu o jacto de água da mangueira na direcção dos citados arguidos, molhando-os, o que constitui uma agressão que cabe nas previsões do art. 143º do CP, pois constitui um prejuízo não insignificante do bem-estar físico e psíquico, pelo que nunca se pode falar em legitima defesa, pois é manifesto que não preenche os pressupostos acima referidos.
Já no que diz respeito à arguida M………., vimos que foi em defesa do marido, procurando afastar o arguido E………. que estava envolvido com o seu marido, porém aquele logo lhe desferiu pelo menos um soco na face e murros e pontapés em diversas partes do corpo, levando esta, na sequência, a desferir-lhe pelo menos um estalo na cara daquele.
Poderá este comportamento ser entendido como legitima defesa?
Pensamos que não.
Efectivamente, olhando para os factos dados como provados, constatamos que a arguida M………. foi em auxílio do seu marido, procurando desde logo afastar o arguido E………. daquele. Porém, este ao aperceber-se da sua presença, começou a desferir-lhe socos, murros e pontapés e a arguida M………., por sua vez, e nessa sequência desferiu-lhe pelo menos um estalo na cara.
Ora, não sabemos se a intenção da arguida M………. era defender-se ou se queria agredir o E………..
Assim, em primeiro lugar a actuação da arguida M………., atentos os factos provados, sem esquecermos que não foi impugnada esta matéria de facto, já tinha sido agredida e não seria um estalo na cara do E………. que seria idóneo a afastar qualquer agressão, isto é, a prevenir a agressão deste.
Afastada a legitima defesa, será que se pode fazer uso do disposto no n.º 3 al. b) do art.º 143º do CP?
Dispõe o art.º 143 n.º 3 al. b) do CP, que o tribunal pode dispensar de pena quando o gente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.
A propósito, refere Paula Ribeiro de Faria, pág. 221/222 do Comentário Conimbricense do Código Penal, que a retorsão corresponde a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor) empregando a força física.
Esta apenas terá cabimento caso o agente se exceda na defesa, ou caso responda a uma agressão não actual no sentido previsto pelo art. 32°, uma vez que aí voltará a poder falar-se de ilicitude em relação à sua conduta.
A retorsão assenta, como acaba de se ver, num princípio de “resposta”. Assim sendo, as ofensas à integridade física devem encontrar-se numa relação causal, tendo em princípio lugar entre as mesmas pessoas.
Também Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, pág. 386, diz que a retorsão consiste numa reacção ilícita de agressão diante de uma agressão, também ela, ilícita. A retorsão diferencia-se da legítima defesa e do estado de necessidade, porque supõe a ilicitude da reacção da vítima.
A retorsão tem de ter lugar “no mesmo acto” sendo essencial o carácter imediato da reacção do agente.
Por sua vez, a dispensa de pena não é uma medida de clemência. Ela «tem a1go de uma pena de substituição» e o que na mesma existe verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa, ou, se se preferir, uma espécie de admoestação, que decorre de tal declaração (FlGUEIREDO DIAS, Direito Penal, II, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, 317).
Quando uma norma da parte especial do CP (por exemplo, artigo 143.°, n.º 3);) ou de outra lei penal prever a dispensa facultativa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem todos os requisitos gerais da dispensa de pena à excepção do requisito atinente aos limites da pena aplicável ao crime.
Distinta da dispensa de pena é a isenção da pena (impunibilidade), que dá lugar ao arquivamento tout court do processo, nos termos do artigo 277.°, n.º 1, ou à absolvição e o arguido não é tributado.
Ora, tendo em conta a diminuição da ilicitude do facto e a culpa da arguida M………., retratados na decisão recorrida, sendo delinquente primária, e que num primeiro impulso pretendia apenas defender o marido que estava a ser agredido pelo E………., causando reduzidas lesões a este, e sofrendo agressões mais graves do que as que provocou, para além do demais circunstancialismo referido na decisão recorrida, parece que a mesma poderia ser dispensada de pena, nos termos do n.º 3 do art.º 143º do CP.
Porém, como atrás referimos, se uma norma da parte especial do CP (por exemplo, artigo 143.°, n.º 3);) ou de outra lei penal prever a dispensa facultativa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem todos os requisitos gerais da dispensa de pena à excepção do requisito atinente aos limites da pena aplicável ao crime.
São pressupostos da sua aplicação, nos termos nº1 do artigo 74º do CP:
- serem diminutas a ilicitude do facto e a culpa do agente;
- o dano ter sido reparado; e
- à dispensa de pena não se oporem razões de prevenção.
Estes pressupostos têm que verificar-se sempre que outra norma, da Parte Especial do Código ou da legislação extravagante, admitir com carácter facultativo a dispensa de pena.
Assim, para que, no caso, se pudesse dispensar o arguido de pena, nos termos do nº3 do artº143º do C.P., mostrava-se necessário, para além de qualquer um dos requisitos por ele imposto, a reparação do dano, pressuposto que não se mostra cumprido.
O crime pelo qual a arguida foi condenada constitui um crime material e de dano, abrangendo um determinado resultado (ofensas no corpo ou na saúde), que ocorreu na esfera do arguido/ofendido e sendo a integridade física o interesse primeiramente protegido também estão em causa os danos não patrimoniais, como a dor e o sofrimento e mesmo patrimoniais, pois ficou provado no ponto 12 dos factos provados que, em consequência da agressão da arguida M………., E………. apresentou, após ter sido sujeito a exame médico, diversos arranhões na face, que foram causa directa e necessária de 8 dias de doença, um dos quais com afectação da capacidade para o trabalho.
Ora, tudo isto são danos que não foram ressarcidos, pelo que inexistem todos os pressupostos legais de dispensa de pena.

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs.

Porto, 22 de Setembro de 2010
Pedro Álvaro de Sousa Donas Botto Fernando
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves