Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
293/23.5T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
PRESUNÇÃO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RP20240220293/23.5T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Do art. 186º, nº 3 do CIRE emana uma presunção de culpa grave do administrador ou gerente da insolvente, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo a qualificação da insolvência como culposa que se demonstre que esta foi causada ou agravada em consequência da mesma conduta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 293/23.5T8AMT-A
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 4

REL. N.º 835
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
Fernando Vilares Ferreira
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

A..., Unipessoal, Lda., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ..., ..., Lousada, foi declarada insolvente por sentença de 27-02-2023, transitada em julgado.
Por despacho de 22-05-2023, foi determinada a abertura do incidente de qualificação da insolvência, na sequência de requerimento por parte do Sr. Administrador de Insolvência, suscitado pelo credor AA, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE
O Administrador da Insolvência alegou ter verificado a disposição de bens da devedora em proveito pessoal do seu gerente, bem como a omissão do depósito das contas da insolvente, desde 2019. Requereu a afetação do gerente da insolvente.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da qualificação de insolvência como culposa, por considerar que, do alegado, resultam factos suscetíveis de preencher os n.ºs 1 e 2, alínea d), do artigo 186.º do CIRE e propôs igualmente a afetação do sócio-gerente, BB.
A insolvente contestou, impugnando os factos alegados. Conclui ser fortuita a insolvência.
Após saneamento dos autos, foi realizada a audiência de julgamento, no termo da qual o tribunal proferiu sentença decretando ser fortuita a insolvência da A..., Unipessoal, Lda.
É dessa decisão que o MºPº veio interpor recurso, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer quanto à respectiva qualificação. Terminando esse recurso, formulou as seguintes conclusões:
“1º Em face da prova que foi produzida, nomeadamente a prova produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se uma decisão diferente quanto à matéria de facto e, consequentemente, quanto ao objecto deste incidente, devendo, a final, ser proferida decisão que julgasse como culposa a insolvência.
2º Em sede de julgamento, foi ouvida como testemunha a referida CC, tendo prestado as seguintes declarações, no dia 02-11-2023 (duração 14:40:21): [não se reproduz este segmento das conclusões por ser impertinente, nesta sede, a transcrição do depoimento citado]
3º A estatuição do Princípio da livre apreciação da prova, confere ao Juiz a faculdade, diria até o ónus ou mesmo a obrigação, de recorrer às regras da experiência, e da sua vivência, na apreciação da prova produzida e na formação da sua convicção acerca da verdade.
4º A testemunha em causa, amiga da família do gerente da sociedade, apresenta uma versão muito rudimentar, incoerente e inverosímil dos factos atentas as mais elementares regras da experiência. Não podemos ter por aceitável fazer crer que a testemunha dispunha de milhares de euros em dinheiro, guardados em casa, a fim os destinar, sendo necessário, aos empréstimos que o gerente da insolvente lhe ia pedindo.
5º Perguntada, a testemunha refere que o prazo de pagamento daquele montante era “mais ou menos 30 dias” , o que contraria as declarações que prestou segundo as quais estipulava sempre um prazo. “Mais ou menos” 30 dias não pode ser considerado um prazo de pagamento. Não colhe também credibilidade que alguém tenha, na sua posse, o valor de venda de uma casa (ou metade dela), em dinheiro vivo, quando tem uma conta bancária em seu nome (tanto é que foi nessa conta que foi depositado o valor de 3000€). O mais normal é que o dinheiro que recebeu da venda da casa estivesse depositado em conta bancária, que para além de oferecer mais segurança, oferece também vantagens financeiras evidentes, atenta até a elevada taxa de inflação que se vem verificando e que se traduz numa desvalorização do dinheiro.
6º Mais, quando perguntada se tinha queles valores em dinheiro na sua casa, disse a testemunha que tinha uma pessoa amiga que tinha o dinheiro com ela, dando a entender que depositou o valor que recebeu com a venda de uma casa junto de uma “pessoa amiga”, que não identificou.
7º Acresce ainda que nem o empréstimo pedido à testemunha, nem o seu reembolso constam da contabilidade da sociedade. Ora, nada nos autos nos pode fazer concluir que o empréstimo que teria sido concedido pela testemunha ao gerente da sociedade, facto que duvidamos ter sequer ocorrido, tenha sido sequer um empréstimo para beneficiar a sociedade e não um empréstimo para o próprio BB, destinado à sua vida pessoal. Com efeito, não foi exibido qualquer documento, qualquer evidência financeira ou contabilística, nem o próprio BB veio prestar declarações no sentido de esclarecer o destino dos 3000€ que a testemunha lhe teria emprestado.
8º Por fim, estranha-se a coincidência que se deu de sociedade ser devedora da testemunha no exacto montante correspondente à primeira prestação que lhe foi paga por AA.
9º É, portanto, numa sucessão de factos insólitos, pouco credíveis, incoerentes, trazidos por uma testemunha que prestou um depoimento comprometido, pouco seguro e defensivo que o Tribunal funda a convicção de que a transferência se destinava a pagar parte de uma dívida contraída perante CC.
10º Quanto a nós, o depoimento desta testemunha não mereceu qualquer credibilidade. Em consonância, deveria o Tribunal ter dado como não provado o ponto 8 do elenco dos factos provados e pelo, contrário, ter dado como demonstrado o facto a) dos factos não provados.
11º O que aconteceu foi, seguindo as regras da normalidade e da experiência, a utilização de uma conta de uma pessoa da confiança do gerente para fazer sair o valor de 3000€ da esfera do património da sociedade, a fim de ser utilizado tal valor pelo gerente ou por terceiro, eventualmente pela própria CC.
12º Pelo exposto, a decisão do Tribunal deveria ter sido no sentido de dar como não provado que a transferência de 3000€ se destinava ao pagamento de parte de uma dívida contraída perante CC e dar como provado que o gerente da insolvente praticou actos com o propósito de prejudicar a sociedade insolvente e os seus credores, para proveito próprio ou de terceiros.
13º Sendo operada aquela alteração no julgamento da matéria de facto, como se impõe, deveria ter o Tribunal em consequência, ter considerado preenchida a previsão do art. 186º, nº2 al. d) , ou seja que ocorreu disposição dos bens do devedor em proveito próprio ou de terceiro e, como consequência, julgar a insolvência dolosa por esta razão, já que o nº2 do art. 186º do CIRE tipifica acções que qualificam a insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração que causaram ou agravaram a insolvência e/ou que o devedor actuou com dolo ou com culpa grave. Trata-se de presunções inilidíveis de insolvência culposa.
14º Mas entendemos ainda que a decisão da matéria de direito não pecou apenas aqui. Com efeito, resulta dos factos provados (e bem) que: 10. Desde a sua constituição, a insolvente nunca procedeu ao depósito de contas na Conservatória de Registo Comercial.
15º O tribunal considerou, no entanto, que não basta que se dê este facto como provado para que, automaticamente, se faça valer a presunção de insolvência culposa por via da aplicação do art. 186º, nº3 al. b) do CIRE.
16º O nossa discordância dirige-se à interpretação do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE no sentido de que os factos previstos nas alíneas a) e b) fazem presumir [presunção iuris tantum] que o incumprimento das obrigações neles previstas procede de culpa grave do administrador, mas não fazem presumir que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela acção do administrador. Segundo esta interpretação, a prova do incumprimento das obrigações previstas na norma não seria suficiente para qualificar a insolvência como culposa. Além da prova dele, seria necessário a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela acção do administrador, ou seja, era sempre necessário fazer prova do nexo de causalidade.
17º A este respeito, socorremo-nos do Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo 4139/15.0T8VIS- C.C1, de 22/06/2020, disponível em www.dgsi.pt no qual se defende, de forma exaustiva, com recuso a apreciação de direito comparado, a elementos históricos e teleológicos, que os factos nela previstos [alíneas a) e b)] fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor. E assim, como se decidiu, entre outros, no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 22-11-2016, proferido no processo n.º 2675/13.1TBLRA-C.C1, e no acórdão do STJ proferido em 23-10-2018, no processo n.º 8074/16.6T8CBR-D, ambos publicados em www.dgsi.pt, a insolvência do devedor que não se apresentou à insolvência nos termos prescritos pelo n.º 1 do artigo 18.º do CIRE presume-se culposa [presunção relativa ou juris tantum]. Segue-se daqui que, provando-se o não cumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, a qualificação da insolvência como culposa só é de afastar se o administrador provar que a insolvência da sociedade não foi causada culposamente por ele.
18º Como bem assinala Fernando Silva Pereira (Insolvência Culposa e Responsabilidade dos Administradores, Revista do Tribunal de Contas nº2): com efeito, a identificação do bem jurídico protegido por esta regulação, no sentido exposto, permite perceber que a agravação da insolvência não exige a causação de um dano patrimonial, estando também protegida a faceta funcional dos direitos de crédito46. Ou seja, os deveres ali previstos não consistem apenas em evitar causar danos aos credores, o que se deduz já das regras gerais sobre a responsabilidade civil extracontratual, mas compreendem o cumprimento de deveres de controlo e minoração do risco de insolvência, prevenção de crise empresarial e adoção de medidas de saneamento. Estando presumida esta conexão objetiva, compete aos administradores (artigo 350.º, n.º 1 CC), dada a natureza relativa da presunção, demonstrar que o seu comportamento não criou ou agravou a situação de insolvência.
19º Conforme afirma CATARINA SERRA (O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, cit., pág. 122) , estão em causa na norma do artigo 186.º, n.º 3 CIRE não simples presunções iuris tantum de culpa qualificada no facto praticado, mas autênticas presunções iuris tantum de culpa qualificada na insolvência, isto é, presunções relativas de insolvência culposa, sob pena de se esvaziar de utilidade estas presunções. As presunções de culpa estabelecidas no n.º 3 do artigo 186.º «existem para impedir que, devido à dificuldade de provar o nexo de causalidade, fiquem, na prática, impunes os sujeitos que violaram obrigações legais», os quais são onerados «com a prova de que não foi a sua conduta ilícita (e presumivelmente culposa) que deu causa à insolvência ou ao respetivo agravamento, mas sim uma outra razão, externa ou independente da sua vontade – por exemplo, a conjuntura económica ou as condições de mercado» - CATARINA SERRA, «“Decoctor Ergo Fraudator” – A Insolvência Culposa», cit., pág. 69..
20º Este é o entendimento que, segundo cremos, se adequa melhor à razão de ser da norma, aderindo, integralmente, aos argumentos supra citados.
21º No caso dos autos, não tendo o insolvente demonstrado que o depósito das contas na conservatória do registo comercial não contribuiu nem agravou a situação de insolvência, é de concluir que não ilidiu a presunção do art. 186º, nº3 al b) pelo que também por aplicação desta norma, deverá a insolvência ser julgado como culposa.
22º Em suma, deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que decida julgar procedente o incidente, qualificando como culposa a insolvência de “A... Unipessoal Lda.”, por força do disposto no art. 186º, nº1 al. d) e nº3 al- b) do CIRE
23º Mais: - deve ser afetado pela qualificação BB, seu sócio e gerente (art.º 189°, n.º 2, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); - deve ser fixado o período em que aquele ficará inibido para administrar patrimónios de terceiros, entre 2 a 10 anos (art.º 189.º, n° 2, al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); - deve ser fixado o período em que aquele ficará inibido para o exercício do comércio, entre 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa (art.º 189.º, n° 2, al. c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); -deve determinar-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente por si detidos, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (art.º 189.º, n. 2, al. d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas); - deve o afetado ser solidariamente condenados a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património (art.º 189.º, n. 2, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas);
- deve a inibição para o exercício do comércio ser registada na Conservatória do Registo Civil (quando a pessoa afetada for comerciante em nome individual, também na Conservatória do Registo Comercial), com base em comunicação eletrónica ou telemática da secretaria, acompanhada de extrato da sentença (arts. 189.º, n. 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e 69.º, n. 1, al.l do Código de Registo Civil.”
A insolvente ofereceu resposta ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido, como apelação, com subida nos próprios autos do incidente e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1 e 2, do C.P.Civil.
Das conclusões do presente recurso, recuperam-se as seguintes questões:
1ª –Alteração da decisão sobre a matéria de facto, dando-se por não provada a factualidade do item 8º (… que a transferência de 3000€ se destinava ao pagamento de parte de uma dívida contraída perante CC) e dando-se por provado que o gerente da insolvente “praticou actos com o propósito de prejudicar a sociedade insolvente e os seus credores, para proveito próprio ou de terceiros.”
2ª – Interpretação da regra do nº 3, b) do art. 186º do CIRE, quanto à necessidade de identificação de um prejuízo decorrente do incumprimento da obrigação de depósito de contas.
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Para a decisão das questões que acabam de se identificar, é útil, antes de mais, ter presente a matéria ajuizada positiva e negativamente pelo tribunal, que o foi nos seguintes termos:
Com interesse para a decisão do presente incidente, resultaram provados os seguintes factos:
1. Nos autos principais foi proferida sentença, datada de 27/02/2023, transitada em julgado, a decretar a insolvência de “A..., Unipessoal, Lda.”.
2. A sociedade insolvente tinha como objeto social a realização de trabalhos de pavimentação e calcetamento, atividades de construção de todos os tipos de edifícios residenciais e não residenciais.
3. Desde a sua constituição, em 15/01/2019 até 27/02/2023 (data da insolvência), foi único sócio gerente da sociedade, BB, que exerceu sempre a gerência de facto e de direito da mesma sociedade.
4. O credor AA celebrou com a sociedade insolvente um contrato de prestação de serviços, em 04/06/2021, que tinha como objeto o fornecimento e assentamento de paralelo, pelo montante global de 6525,00€.
5. Foi acordado entre as partes que as obras iniciavam no dia 22/06/2021 e que a entrega da obra ocorreria no dia 30/06/2021.
6. Ficou estipulado que o valor orçamentado seria liquidado em duas prestações, a primeira de 3.000,00€ no início dos trabalhos e o remanescente na data da entrega da obra.
7. O credor AA procedeu à transferência do montante acordado de 3.000,00€ para a conta indicada pela insolvente, titulada por CC.
8. A transferência de 3000,00€ destinava-se a pagar parte de uma dívida contraída perante CC para fazer face a despesas da sociedade.
9. Por vezes a conta pessoal mencionada em 7. era usada porque a conta da empresa se encontrava a descoberto.
10. Desde a sua constituição, a insolvente nunca procedeu ao depósito de contas na Conservatória de Registo Comercial.
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Com interesse para a decisão não ficou provado que:
a) O gerente da Insolvente praticou atos com o propósito de prejudicar a sociedade insolvente e os seus credores, para proveito próprio ou de terceiros.
b) Devido a divergências entre o credor e os trabalhadores da insolvente, o gerente desta propôs ao credor o pagamento de €500,00 pelos trabalhos já efetuados e a devolução do remanescente.
c) O credor não aceitou a proposta descrita em d).
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A impugnação da decisão sobre a matéria de facto impõe a observância de especiais ónus processuais, designadamente quanto à concretização dos factos indevidamente avaliados, à indicação do sentido da decisão pretendida sobre eles e dos meios de prova tendentes à alteração do juízo recorrido. É o que dispõe o nº 1 do art. 640º do CPC, nas suas 3 alíneas.
No caso em apreço, o apelante satisfez tal ónus em relação à matéria que o tribunal a quo qualificou como provada e não provada, em termos que quer ver revertidos: o item 8º dos factos provados, e a al. a) dos factos não provados.
No respeitante aos “concretos meios probatórios” que justificam a diferente decisão, só está em causa o depoimento de CC.
Podem, por isso, considerar-se preenchidos os requisitos processuais da impugnação recursiva da matéria de facto, cumprindo apreciar o recurso nessa parte.
A discordância do MºPº dirige-se, em primeiro lugar, à conclusão do tribunal sobre a justificação para a entrega de 3.000,00€, destinados ao pagamento parcial de um serviço prestado pela insolvente, não à própria insolvente, mas sim a CC, por indicação daquela.
Para se aferir da importância relativa de um tal valor, no contexto destes autos, constata-se que, no relatório do administrador de insolvência, este concluiu pelo reconhecimento de créditos nom total de 111.000,00€, bem como pela inexistência de qualquer património susceptível de apreensão para a massa insolvente.
Na ausência de qualquer prova documental, foi exclusivamente com fundamento no depoimento de CC que o tribunal deu por provado que a entrega feita através de transferência para a respectiva conta bancária se justificou como pagamento de parte de uma dívida que a insolvente tinha para consigo. Afirma-se na sentença: “O Tribunal baseou a sua convicção, quanto à matéria de facto controvertida, na análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos com o depoimento (…) da testemunha CC, titular da conta bancária para a qual o credor AA transferiu o valor de €3000,00, que por isso tinha conhecimento direto quanto a uma parte substancial dos factos em apreço, esclarecendo que é a titular da conta bancária em alusão nos autos e que aí recebeu o valor de €3.000,00 pago pelo credor AA, pelo que os seu depoimento se mostrou credível ao tribunal, atenta a forma serena e circunstanciada como o seu depoimento como foi prestado.”
É certo que a testemunha não sustentou as suas declarações, sobre o empréstimo de dinheiro à insolvente, em qualquer outro meio de prova, designadamente num documento comprovativo que ilustrasse a anterior entrega de um valor superior a 3.000,00€ à insolvente. Todavia, apresentou uma justificação para a disponibilidade de dinheiro em numerário, com o que afirmou ter realizado o empréstimo à insolvente.
Afirma o MºPº a pouca credibilidade dessa versão, pois que o normal é que as pessoas não conservem dinheiro em casa.
Porém, por um lado, tal facto não pode ter-se por certo em ordem a fundar a prova, por presunção judicial, de que a testemunha não dispunha desse dinheiro em numerário, pelo que o não podia ter emprestado. Por outro, cumpre reconhecer que inexiste qualquer prova de sinal contrário, isto é, que descredibilize s declarações da própria testemunha que, tal como o tribunal recorrido afirmou, foi coerente, serena e resultou credível.
Por conseguinte, no contexto de limitação probatória que aqui se identifica, conclui-se não se encontrar fundamento para discordar do tribunal recorrido, negando ao depoimento testemunhal de CC a credibilidade que também lhe foi reconhecida por aquele.
Complementarmente, pretende o recorrente que se dê por provada uma afirmação que o tribunal recorrido classificou como não provada, e que nessa medida é inconsequente, mas cuja natureza conclusiva sempre haveria de impedir a sua inclusão entre o elenco de factos provados, como se de um facto se tratasse. Tal afirmação, descrita al. a) da matéria não provada, apresente o seguinte teor: “O gerente da Insolvente praticou atos com o propósito de prejudicar a sociedade insolvente e os seus credores, para proveito próprio ou de terceiros.”
É, porém, claro que esta afirmação não identifica um facto, pois que assumiria a natureza de uma conclusão a extrair na sequência da classificação de actos e negócios concretamente identificados que, nas suas circunstâncias, haveriam permitir aferir da intencionalidade que lhes estava pressuposta, tal como da sua aptidão para prejudicarem a insolvente e os seus credores.
Não pode, por isso, deferir-se a pretensão do MºPº recorrente, no sentido de incluir tal afirmação entre os factos provados, ou qualquer outra que constituísse premissa desta, quer dada a natureza conclusiva daquela que o tribunal inseriu entre a matéria não provada, quer dada a ausência de alegação e demonstração de qualquer acto concreto apto àquela se pudesse reconduzir.
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Fixada nos termos anteriormente determinados a matéria de facto provada, verificamos ser impossível ter por verificada a facti species da norma constante da al. d) do nº 1 do art. 186º do CIRE, o que importaria necessariamente a qualificação da presente insolvência como culposa.
Improcede, por isso, a correspondente pretensão recursiva do MºPº.
Mas o apelante invoca ainda outra razão em ordem ao mesmo objectivo: que a omissão do depósito de contas por que foi responsável a insolvente deve determinar, por si só, a qualificação da insolvência como culposa.
A contrario, a sentença recorrida concluiu ser “necessário demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência”, o que teve por não verificado. Por isso rejeitou a qualificação da insolvência como culposa, ou seja, necessariamente, como fortuita.
A este propósito, é incontroverso o seguinte enunciado do tribunal recorrido: “Tendo ficado provado que a insolvente desde 2019 não procedeu ao depósito das suas contas na Conservatória do Registo Comercial (facto provado 9), cumpre aferir se houve omissão da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
Resulta do art. 65.º do Código das Sociedades Comerciais que a obrigação de elaboração do relatório de gestão e das contas do exercício é anual, sendo que o artigo 70.º, do mesmo diploma estatui ainda a obrigatoriedade de proceder ao registo das contas.
Por outro lado, urge ainda ter presente o artigo 3.º, n.º 1 Código de Registo Comercial, o qual estipula que “Estão sujeitos a registo os seguintes factos relativos às sociedades comerciais e sociedades civis sob forma comercial: (…)
n) A prestação de contas das sociedades anónimas, por quotas e em comandita por ações, bem como das sociedades em nome coletivo e em comandita simples quando houver lugar a depósito, e de contas consolidadas de sociedades obrigadas a prestá-las.”
Assim, importa concluir que a insolvente, enquanto sociedade comercial por quotas, estava legalmente obrigada ao depósito das contas de cada exercício, obrigação esta que, por seu turno, está sujeita a registo.
Uma vez que a insolvente não procedeu ao depósito das contas desde o ano da sua constituição, em 2019, o administrador/gerente da sociedade devedora, omitiu a correspondente obrigação de depositar as contas anuais na conservatória do registo comercial. Está, assim, verificada a alínea b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, pelo que o administrador/gerente da insolvente agiu com culpa grave.”
Todavia, na falta de demonstração que tal actuação, por omissão, culposa do gerente da insolvente determinou ou contribui para o surgimento ou agravamento da situação de insolvência, concluiu o tribunal recorrido pela inviabilidade da qualificação da insolvência como culposa.
É esta, com efeito, a interpretação que entendemos dever ser operada sobre o regime previsto para as diferentes situações jurídicas previstas nas alíneas do nº 3 do art. 186º do CIRE. A presunção ali estabelecida apenas haverá de actuar quando, nos termos do nº 1 do mesmo art. 186º, se demonstrar que a actuação gravemente censurável identificada tiver determinado ou agravado a situação de insolvência.
Isto mesmo se expressa lapidarmente no Ac. do STJ de 4~5/4/2022, (proc. nº 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, Relator: ANA PAULA BOULAROT) nos seguintes termos: “I - O incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada - que, por substancial, pressupõe a omissão de elementos relevantes e essenciais em termos contabilísticos - há-de influir nessa percepção, impedindo-a, impossibilitando ou prejudicando o conhecimento das causas da insolvência ou do agravamento destas. II - A omissão na elaboração das contas anuais e ao seu depósito na respectiva Conservatória, não constitui, a se, uma presunção inilidível de comportamento culposo e causal da situação insolvencial, sendo mister apurar-se o nexo causal entre tais omissões e a criação e/ou o agravamento do estado de insolvência, situação esta que tem de ser devidamente alegada e provada: o n.º 3 do art. 186.º apenas presume a culpa do administrador naquela omissão, mas já não em relação ao nexo causal entre o seu comportamento e o estado de insolvência ocorrido ou o seu maior comprometimento.”
Isso mesmo foi também decidido em recente acórdão deste TRP, de 07-02-2023, (proc. nº 49/22.2T8AMT-A.P1, Relator: MÁRCIA PORTELA, também em dgsi.pt, que o ora relator subscreveu como adjunto), nos seguintes termos: “ O que resulta do art. 186º, nº 3, é apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da actuação dos seus administradores, de direito ou de facto, mas não uma presunção da causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do art. 186º, n.º 1, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta.”
No caso sub judice, como bem concluiu o tribunal recorrido, “não resultou provado qualquer facto que permita considerar existir um nexo de causalidade entre a omissão do dever de depositar as contas e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.”
Por conseguinte, não pode ter-se por verificado o pressuposto invocado apto a sustentar uma decisão de qualificação da insolvência da A..., Unipessoal, Lda como culposa.
Resta, pelo exposto, negar provimento ao recurso, na confirmação integral da decisão recorrida.
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Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao recurso, na confirmação integral da decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Rui Moreira
Maria da Luz Seabra
Fernando Vilares Ferreira