Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1466/16.2T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: APOIO JUDICIÁRIO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP202304181466/16.2T8STS.P1
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Quando o pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, é formulado pelo devedor após o despacho final de exoneração do passivo restante apenas para se conseguir eximir ao pagamento das custas do processo, deve este ser desconsiderado pelo tribunal, mesmo que a Segurança Social tenha proferido relativamente a ele decisão favorável.
II - Não fere os princípios constitucionais a solução segundo a qual não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão.
III – Se o devedor não dispuser de meios económicos que lhe permitam pagar as custas, a respetiva execução não deve ser iniciada ou deve ser arquivada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1466/16.2T8STS.P1
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 5
Apelação
Recorrente: AA
Recorrido: Min. Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Em 6.12.2021 foi proferido despacho que, nos termos dos arts. 244º e 245º do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), concedeu a exoneração do passivo restante ao devedor AA.
A conta foi elaborada em 3.3.2022 e no dia seguinte o insolvente foi notificado da mesma e para proceder ao pagamento da importância de 4.028,48€.[1]
Em 17.3.2022 o insolvente apresentou o seguinte requerimento:
“(…) notificado da conta de custas elaborada, vem juntar comprovativo de apresentação de pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o que apenas agora se justifica, por força da notificação recebida e ainda do disposto no artigo 248º, n.º 1 do CIRE, devendo o pedido em questão ser analisado à luz do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021, de 23 de Julho.

Pelo que requer a V. Exa. que admita a junção do referido pedido, bem como que os autos aguardem a decisão que venha a ser tomada no âmbito do apoio judiciário requerido.”
Em 27.9.2022 o insolvente apresentou novo requerimento com o seguinte teor:
“(…) vem requerer a junção aos autos da decisão proferida sobre o pedido de apoio judiciário por si requerido, na sequência da impugnação judicial apresentada, decisão que, revogando o despacho de indeferimento datado de 29.08.2022, deferiu o pedido de apoio apresentado na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.”
O Min. Público, em 30.9.2022, emitiu o seguinte parecer:
“Requerimento do insolvente AA de 27 de setembro de 2022 (referência eletrónica n.º 33 378 217):
Em primeira linha e afirmação de princípio, não ignoramos a doutrina mais recente do Tribunal Constitucional que vem julgando inconstitucional, tanto quanto sabemos de forma unânime, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição, a norma do artigo 248.º, n.º 4, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de insolvência e do incidente de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica [acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 489/2020, de 6 de outubro de 2020 (Processo n.º 665/2018; Relator: Fernando Ventura), n.º 490/2020, de 6 de outubro de 2020 (Processo n.º 852/2018; Relator: Fernando Ventura), n.º 563/2020, de 21 de outubro de 2020 (Processo n.º 783/2018; Relator: José António Teles Pereira), n.º 564/2020, de 21 de outubro de 2020 (Processo n.º 828/2018; Relator: José António Teles Pereira), n.º 565/2020, de 21 de outubro de 2020 (Processo n.º 998/2018; Relator: José António Teles Pereira), n.º 639/2020, de 16 de novembro de 2020 (Processo n.º 238/2019; Relatora: Joana Fernandes Costa), n.º 642/2020, de 16 de novembro de 2020 (Processo n.º 678/18; Relator: Lino Rodrigues Ribeiro), 643/2020, de 16 de novembro de 2020 (Processo n.º 908/18; Relator: Lino Rodrigues Ribeiro), n.º 644/2020, de 16 de novembro de 2020 (Processo n.º 30/19; Relator: Lino Rodrigues Ribeiro), n.º 8/2021, de 6 de janeiro de 2021 (Processo n.º 863/18; Relator: Pedro Machete), n.º 9/2021, de 6 de janeiro de 2021 (Processo n.º 887/2018; Relator: Pedro Machete) e n.º 10/2021, de 6 de janeiro de 2021 (Processo n.º 125/19; Relator: Pedro Machete)], culminando, em primeira linha, com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021, de 15 de junho de 2021 (Processo n.º 1101/2020; Relator: Fernando Vaz Ventura), que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição, da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, em segunda linha, com a revogação deste normativo pelo artigo 11.º, alínea a), da Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
Todavia, também defendemos, na esteira de juízos de constitucionalidade uniformes, que o responsável pelo pagamento das custas não pode prevalecer-se do eventual deferimento de pedido que formulou nesse sentido após a notificação da conta de custas e com o único e confessado propósito de se eximir ao respetivo pagamento.
Como bem se nota no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7 de maio de 2020 (Processo n.º 637/16.6T8VCT-E.G1; Relatora: Conceição Sampaio), a dispensa do pagamento das custas tem que estar decidida antes da elaboração da conta de custas para nela poder ser considerada, a menos que o seu valor ultrapasse “flagrantemente padrões de proporcionalidade, em termos qualificáveis de iníquos e intoleráveis, atingindo níveis que impusessem o afastamento do regime legal”, o que não sucede no caso em apreço.
Ora o insolvente/devedor AA, ora requerente, mesmo beneficiando do diferimento do pagamento das custas e dos mais encargos do processo até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante (artigo 248.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), deveria ter acautelado a sua eventual situação de insuficiência económica em devido tempo [antes da interposição da ação ou durante, mas não após a formulação da conta processual (artigos 6.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e 31.º do Regulamento das Custas Processuais)], não podendo, agora, beneficiar de uma “eficácia retroativa” do pedido de apoio judiciário que formulou.
Com efeito, decorre do artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos, o que significa que se tem em vista assegurar que um interessado não possa ser dificultado ou impedido, por esse motivo, do recurso aos tribunais de forma a aí poder conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos (confronte-se acórdão do Tribunal Constitucional n.º 590/2001; Relator: Sousa e Brito).
Na concretização do princípio constitucional, resulta identicamente do artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, que o sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos, devendo o apoio judiciário ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica (artigo 18.º, n.º 2, do citado diploma legal).
Analisando a questão da oportunidade do pedido de apoio judiciário, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar, em jurisprudência uniforme, que o apoio judiciário pressupõe “uma relação conflitual ou pré-conflitual”, e tem sobretudo em vista evitar que qualquer pessoa, por insuficiência de meios económicos, deixe de recorrer a juízo para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos.
E tem sublinhado, em tais termos, que esse instrumento jurídico não pode ser visto como meio destinado a obter, após o julgamento da causa e a condenação em custas, a dispensa do pagamento dos encargos judiciais a que a participação no processo deu causa (confronte-se acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 872/1996; Relator: Ribeiro Mendes, n.º 508/1997; Relatora: Maria Fernanda Palma, n.º 112/2001; Relator: Paulo Mota Pinto e n.º 558/2009; Relator: João Cura Mariano).
Por tal razão, também de forma uniforme, o Tribunal Constitucional tem defendido que o pedido de apoio judiciário não é admissível após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão.
Permitimo-nos aqui, com a devida vénia, citar o que se deixou consignado no acórdão n.º 297/2001 (Relator: Vítor Nunes de Almeida) daquele Tribunal:
“Com efeito, só com este entendimento se pode realizar a finalidade a que se destina o acesso ao direito e aos tribunais: remover as dificuldades ou impedimentos que obstem a que qualquer cidadão possa conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos. Deste modo, um pedido de apoio judiciário formulado quando a causa a que se dirige está definitivamente julgada é manifestamente extemporâneo, para além de se mostrar claramente inviável, uma vez que o requerente já conhece o direito que era objecto de conflito, depois de o ter feito valer e defender na pendência do processo. De facto, um pedido de apoio judiciário, apenas para evitar o pagamento das custas da acção, depois de se ter litigado sempre sem qualquer apoio, representa a subversão da finalidade do regime de acesso ao direito e aos tribunais e não pode ser permitido”.
É neste contexto que caberia ao insolvente/devedor AA, ora requerente, conjeturar, no momento em que toma a decisão de litigar, o valor a que poderia ascender o montante das custas judiciais, para efeito de verificar se deveria ou não formular um pedido de protecção jurídica, de molde a que não viesse a ficar prejudicado no exercício do seu direito à justiça por insuficiência de meios económicos (neste sentido, veja-se o acórdão n.º 248/1994 do Tribunal Constitucional; Relatora: Assunção Esteves).
E, beneficiando do estatuído no artigo 248.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, até podia (e devia) tê-lo feito em momento subsequente à decisão proferida em 6 de dezembro de 2021 (referência eletrónica n.º 431 010 673), decisão que, naturalmente, há muito que transitou em julgado e por força da qual cessou aquele benefício de diferimento, com a consequente contabilização do processo por ato datado de 3 de março de 2022 (referência eletrónica n.º 434092875).
Em suma, o pedido formulado em 17 de março de 2022, porque requerido já após a decisão final, não pode comportar um efeito retroativo em relação à atividade processual já tributada, em conformidade com o que vem defendendo unanimemente o Tribunal Constitucional, não se prefigurando aqui qualquer violação da garantia de acesso aos tribunais quando o insolvente/devedor AA, ora requerente, litigou no processo sem suscitar a existência de dificuldades económicas e requereu aquela protecção jurídica apenas para se eximir ao pagamento de custas judiciais da sua responsabilidade.
Evidentemente que nada obsta ao aproveitamento do pedido formulado e em caso de diferimento, designadamente para efeito de isenção do pagamento das custas devidas por atos praticados após a sua formulação, mas tão só.
Mas, no que às custas contadas diz respeito, é, pois, manifestamente intempestivo o pedido deduzido pelo insolvente/devedor AA, ora requerente, perante o organismo competente do “Instituto de Segurança Social, I.P.”, em momento ulterior ao trânsito em julgado da decisão proferida por este Tribunal, e que originou precisamente o débito de custas – sendo, consequentemente irrelevante a decisão administrativa que deferiu a pretensão aduzida.
E, assim sendo, merecendo concordância, somos de parecer que o insolvente/devedor AA, ora requerente, deve ser notificado para proceder ao pagamento das custas da sua responsabilidade, independentemente da decisão favorável sobre o pedido de apoio judiciário que formulou, por dela não poder vir a beneficiar relativamente a custas já contabilizadas, sob pena de cumprimento do disposto no artigo 35.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.”
Em 6.10.2022 foi proferido o seguinte despacho judicial:
“Veio o insolvente juntar requerimento e decisão de apoio judiciário de deferimento de apoio judiciário.
O Digníssimo Magistrado do Ministério, em parecer fundamentado, veio requerer que o devedor deve ser notificado para proceder ao pagamento das custas da sua responsabilidade, independentemente da decisão proferida pela entidade administrativa competente sobre o pedido de apoio judiciário ali apresentado, por dela não poder vir a beneficiar relativamente a custas já contabilizadas, sob pena de cumprimento do disposto no artigo 35.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.
O pedido de apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica (artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho), mas sem efeitos retroativos, uma vez que “a contagem do processo é uma mera operação material, que tem como parâmetros a condenação concreta e definitiva no seu pagamento e as regras normativas, enunciadas no Regulamento das Custas Processuais, pelo que a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça tem de estar decidida antes da elaboração da conta para nela poder ser considerada” (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 7 de maio de 2020 – Processo n.º 637/16.6T8VCT-E.G1). E, ademais, não se vislumbrando que o valor das custas ultrapasse “flagrantemente padrões de proporcionalidade, em termos qualificáveis de iníquos e intoleráveis, atingindo níveis que impusessem o afastamento do regime legal” (confronte decisão citada), não pode o requerente vir a beneficiar da dispensa do seu pagamento por força de uma eventual decisão favorável do pedido de apoio judiciário, mesmo que o pedido de apoio judiciário tenha sido deferido.
Nessa medida, não só a exigibilidade da dívida de custas ao devedor, ora requerente, independentemente de lhe vir a ser concedido ou não o benefício do apoio judiciário, como a sua omissão tem por consequência a remessa de certidão à administração tributária, para fins executivos.
Assim, no que às custas contadas diz respeito, é manifestamente intempestivo o pedido deduzido pelo insolvente/devedor AA, ora requerente, perante o organismo competente do “Instituto de Segurança Social, I.P.”, em momento ulterior ao trânsito em julgado da decisão proferida por este Tribunal, e que originou precisamente o débito de custas – sendo, consequentemente irrelevante a decisão administrativa que deferiu a pretensão aduzida.
Pelo exposto, na senda do doutamente promovido, com cópia deste despacho e da douta promoção, notifique o devedor para proceder ao pagamento das custas da sua responsabilidade (conta n.º ...), sob pena de cumprimento do preceituado no artigo 35.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.”
Em 25.10.2022 o insolvente AA, inconformado com esta decisão, dela veio interpor recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida, ao pronunciar-se sobre a tempestividade e admissibilidade do pedido de apoio judiciário apresentado pelo Recorrente, como se entende ter feito, extravasou a competência do Tribunal.
2. Pois que, de acordo com o disposto no artigo 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, “[a] decisão sobre a concessão de protecção jurídica compete ao dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência ou sede do requerente.”, decisão que pode ser delegada e subdelegada (artigo 20º, n.º 3 da aludida Lei).
3. O que, porém, não pode suceder para o juiz do processo para o qual o apoio é pedido, desde logo porque não lhe foi distribuída impugnação judicial da decisão de indeferimento do pedido, como melhor se expôs nas alegações.
4. Assim, a decisão recorrida conheceu de questão sobre a qual não podia tomar conhecimento, pelo que deve ser declarada nula e de nenhum efeito, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea d) do CPC, o que se requer.
Sem prescindir,
5. A decisão recorrida concluiu que “(…) no que às custas contadas diz respeito, é manifestamente intempestivo o pedido deduzido pelo insolvente/devedor AA, ora requerente, perante o organismo competente do “Instituto de Segurança Social, I.P.”, em momento ulterior ao trânsito em julgado da decisão proferida por este Tribunal, e que originou precisamente o débito de custas – sendo, consequentemente irrelevante a decisão administrativa que deferiu a pretensão aduzida.
Pelo exposto, na senda do doutamente promovido, com cópia deste despacho e da douta promoção, notifique o devedor para proceder ao pagamento das custas da sua responsabilidade (conta n.º ...), sob pena de cumprimento do preceituado no artigo 35.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais.”.
6. Invocando, para o efeito, o disposto no artigo 18º, n.º 2 da já aludida Lei n.º 34/2004, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 7 de Maio de 2020 e proferido no processo n.º 637/16.6T8VCT-E.G1.
7. Como se depreende da própria interposição do recurso, o Recorrente não se conforma com a decisão, entendendo que apenas pretende fruir de um direito constitucionalmente e legalmente previsto, visto que não tem condições para suportar as custas devidas.
8. Mais entendendo que o pedido de apoio judiciário apresentado sempre se terá que considerar tempestivo.
9. O pedido de apoio judiciário visa precisamente salvaguardar a situação de carência do Recorrente e foi apresentado no momento em que o mesmo constata que não tem qualquer capacidade de solver o valor remanescente das custas, de elevado montante, não suportado pelos valores cedidos à fidúcia.
10. Com o devido respeito, a interpretação que é feita pela decisão recorrida do aludido artigo 18º é inconstitucional, por violação do direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, doravante CRP), bem como do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), inconstitucionalidade que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
11. Suscitando até um resultado prático que nos parece ser precisamente o que a Lei do Acesso ao Direito visa evitar: obrigar um cidadão que aufere o salário mínimo a pagar um valor de custas elevadíssimo face aos seus rendimentos, colocando-o numa situação de carência ainda mais grave.
12. E, cremos não ser descabido dizer, um dos motivos que levou à revogação da norma prevista no artigo 248º, n.º 4 do CIRE (na versão anterior à redacção dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro), bem como à sua anterior declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral – o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021 declarou, com força obrigatória geral “(…) a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2 da Constituição, da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.”.
13. Bem como tornaria totalmente desprovida de efeito útil a exoneração do passivo restante que foi concedida no próprio processo, com vista à sua recuperação financeira.
14. Não se pode perder de vista que o valor de custas em questão (€3.223,84, descontado o valor pago pela fidúcia), caso fosse pago em 12 prestações (limite máximo legal), obrigaria a um encargo mensal de €268,65, deixando ao Recorrente um rendimento mensal consideravelmente inferior ao salário mínimo nacional.
15. Colocando o Recorrente, a quem foi concedida a exoneração do passivo, com vista à recuperação da sua vida económica e financeira, em nova situação de insolvência, com um encargo que, manifestamente, não consegue suportar, donde nos parece resultar, ainda, a desproporcionalidade da decisão em crise.
16. Ora, o que se diz, é, em grande medida, a argumentação vertida nos mais recentes Acórdãos do Tribunal Constitucional sobre a matéria, de onde se destacam os Acórdãos n.º 418/2021 (acórdão disponível online, designadamente no seguinte link: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210418.html) e n.º 489/2020.
17. Posição que já foi secundada num recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Acórdão datado de 08.03.2022, proferido no processo n.º 2656/15.0T8STS.P1), como resulta do seu sumário, que se transcreve: “I – As custas não satisfeitas pela massa insolvente e pelo rendimento disponível no período da cessão, decorrente da respectiva insuficiência, devem ser suportadas pelo devedor que tenha requerido a exoneração do passivo restante, beneficiando ope legis de um diferimento do pagamento até à decisão final desse pedido; II – Só após a decisão final relativa ao pedido de exoneração do passivo restante, é que o devedor estará em condições de saber se, face aos rendimentos disponíveis e valor referente a custas, poderá proceder ao respectivo pagamento ou, se pelo contrário, não tem meios económico-financeiros para o fazer. III - Nesta última hipótese, poderá solicitar apoio judiciário para esse efeito, sob pena de se frustrarem os objectivos almejados com a exoneração do passivo (fresh start).”.
18. Destacando-se, quanto a este último Acórdão, que a situação é muito idêntica à dos autos, como se alcança pela leitura do seguinte trecho, de onde consta o relatório da decisão: [segue-se transcrição de parte do texto deste acórdão]
19. De facto, o aqui Recorrente apresentou-se à insolvência, tendo requerido que lhe fosse concedida a exoneração do passivo, a qual, liminarmente admitida, veio a ser efectivamente concedida.
20. Apresentando-se à insolvência e pedindo a exoneração do passivo, gozou da prerrogativa que era concedida pelo disposto no artigo 248º, n.º 1 do CIRE, não tendo tido necessidade de despender qualquer quantia com o processo, fosse taxa de justiça inicial, fosse qualquer outra taxa ou encargo, de onde se conclui que, a essa data, não se justificava a apresentação do pedido de apoio judiciário.
21. No caso dos autos, as quantias cedidas à fidúcia foram escassas, pelo que é apenas com a notificação da conta de custas do processo que o Recorrente constata que aquelas quantias não são suficientes para pagar as custas em dívida, bem como que não terá qualquer capacidade de suportar o valor remanescente.
22. Apresentando, de seguida, o pedido de apoio judiciário, que entende ser apresentado tempestivamente, como vieram a concluir os Serviços da Segurança Social.
23. Não nos parecendo exigível ao Recorrente, que o mesmo tenha de antecipar o concreto valor das custas posteriormente devidas, logo apresentando o pedido de apoio, sob pena de o mesmo vir mais tarde a ser indeferido por extemporâneo.
24. Pelo que se entende que andou mal o Tribunal recorrido ao considerar o pedido de apoio manifestamente intempestivo, porque apresentado em momento ulterior ao trânsito em julgado da decisão proferida pelo Tribunal, que originou o débito de custas.
25. Voltando à alusão que é feita pela decisão recorrida ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que invoca em defesa da sua decisão, entendemos que a mesma também não pode colher, desde logo porque, salvo o devido respeito, o Acórdão em questão debruça-se sobre situação distinta – pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça em acção de valor superior a €275.000,00.
26. A isto acresce que não há nenhuma norma que preveja expressamente a impossibilidade de apresentação de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão que condene em custas.
27. Entendendo o Recorrente que a norma do artigo 18º, n.º 2 da Lei n.º 34/2004 prevê de forma expressa situações em que tal pedido pode ser apresentado após decisão como a indicada, designadamente aquando de situações de carência superveniente.
28. É claro que o Recorrente não invoca a superveniência da sua situação de carência económica, mas o que se pretende demonstrar é que a apresentação de um pedido de apoio após o trânsito de tal decisão cabe no âmbito de aplicação da norma, pelo que é correcta a interpretação que admite como tempestivo um pedido de apoio judiciário apresentado depois de conhecido o concreto valor das custas, como sucedeu no caso dos autos, por ser o momento em que o Requerente constata a impossibilidade de suportar as custas concretas do caso.
29. Com a interpretação dada pela decisão recorrida, impede-se o acesso do Recorrente de aceder à justiça [sic], bem como se coloca o mesmo numa situação de injustificada desigualdade face aos cidadãos que se apresentam à insolvência, desde logo pedindo apoio judiciário para o efeito, ainda que tal pedido não se apresente, então, estritamente necessário, como acima já se referiu.
30. Alicerçando o que se tem dito – aliás, a argumentação do Recorrente é próxima da das decisões que se vem invocando –, parece-nos relevante transcrever o seguinte trecho do já aludido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021 (que, em rigor, corresponde a trechos da fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 489/2020, reproduzidas no Acórdão a que se faz menção): [segue-se transcrição de parte do texto deste acórdão]
31. Por fim, faz-se uma última alusão à decisão citada na despacho recorrido (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 7 de Maior de 2020 e proferido no processo n.º 637/16.6T8VCT-E.G1), para constatar que a situação dos autos se enquadra na situação salvaguardada na dita decisão, como consta do seu sumário:
“IV - A dispensa do pagamento requerida após a conta final apenas seria concebível caso os valores ultrapassassem flagrantemente padrões de proporcionalidade, em termos qualificáveis de iníquos e intoleráveis, atingindo níveis que impusessem o afastamento do regime legal.” (…).
32. Ora, repetindo-se o que já se disse, o valor de custas é muito elevado, em especial se se considerar, como é conhecido dos autos, que o Recorrente aufere parcos rendimentos, ao ponto de, sendo pago o valor das custas em 12 prestações (limite máximo legal), obrigar o mesmo a um encargo mensal de €268,65, deixando-o com um rendimento mensal consideravelmente inferior ao salário mínimo nacional.
33. Tudo dito, conclui o Recorrente que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 18º, n.º 2 e 20º da Lei n.º 34/2004, os artigos 20º, n.º 1 e 13º da CRP, bem como desconsiderou, salvo o devido respeito, a mais recente jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre matéria idêntica à discutida nos autos, da qual se destacam os Acórdãos n.º 418/2021 e n.º 489/2020.
34. Devendo, assim, ser revogada e substituída por outra que, reconhecendo a tempestividade do pedido de apoio judiciário apresentado pelo Recorrente e deferido pelos Serviços da Segurança, consigne que as custas do processo deverão ser suportadas pelo IGFEJ, o que se pede pelo presente.
O Min. Público pronunciou-se no sentido da rejeição deste recurso por inadmissibilidade, mas cautelarmente apresentou contra-alegações nas quais pugna pela confirmação do decidido.
Por despacho de 23.11.2022 o Mmº Juiz “a quo”, considerando-o inadmissível, rejeitou o recurso apresentado pelo insolvente.
Porém, este apresentou reclamação, a qual por decisão singular do Tribunal da Relação do Porto, de 22.2.2023, foi admitida.
Há então que apreciar e decidir o recurso interposto pelo insolvente em 25.10.2022.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I Apurar se a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Civil;
II – Apurar se o apoio judiciário concedido ao insolvente no âmbito do procedimento de exoneração do passivo restante abrange as custas devidas em momento anterior ao da formulação do respetivo pedido na Segurança Social.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I. Apurar se a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Civil
O recorrente principia por arguir a nulidade da decisão recorrida por entender que o Mmº Juiz “a quo” não se podia pronunciar sobre a tempestividade e admissibilidade do pedido de apoio judiciário que apresentou na Segurança Social e que por esta foi deferido, extravasando assim a sua competência.
Conheceu, por isso, na perspetiva do recorrente, de questão sobre a qual não podia tomar conhecimento, com o que cometeu a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d) do Cód. de Proc. Civil.
Vejamos.
Dispõe-se nesta norma, também aplicável aos despachos [art. 613º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil], que a sentença é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Ocorre assim esta nulidade – de excesso de pronúncia - quando o juiz conhece de questões de facto e de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso [art. 608º, nº 2, “in fine” do Cód. de Proc. Civil]. Ou seja, para que a nulidade se verifique, o juiz há-de ter conhecido de questão que nenhuma das partes submeteu à sua apreciação – cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 764; LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 737 e ALBERTO DOS REIS, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, reimpressão, 1984, pág. 143.
Retornando ao despacho em causa e que atrás foi transcrito logo se verifica que esta nulidade não foi cometida. Com efeito, o Mmº Juiz “a quo”, perante o deferimento por parte da Segurança Social do pedido de apoio judiciário formulado pelo insolvente já depois de notificado da conta de custas e junção da respetiva decisão administrativa ao processo, tinha naturalmente que se pronunciar sobre os efeitos que esta decisão teria no pagamento das custas da responsabilidade do insolvente.
Ora, na apreciação que fez entendeu que, apesar da concessão do benefício de apoio judiciário ao insolvente, este era “manifestamente intempestivo” no que às custas contadas diz respeito e assim concluiu ser irrelevante a decisão administrativa que o havia deferido.
Mas de modo algum extravasou a sua competência, nem tão-pouco se envolveu nos poderes que legalmente estão atribuídos à Segurança Social no âmbito da concessão do apoio judiciário.
Ao cabo e ao resto, o Mmº Juiz “a quo” no percurso argumentativo que segue não se pronuncia sobre a tempestividade ou sobre a admissibilidade do pedido de apoio judiciário formulado pelo insolvente, mas tão-somente sobre os efeitos que a respetiva decisão de deferimento terá no pagamento das custas a cargo do insolvente.
Não há, pois, excesso de pronúncia, razão pela qual não ocorre a nulidade suscitada pelo recorrente.
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II. Apurar se o apoio judiciário concedido ao insolvente no âmbito do procedimento de exoneração do passivo restante abrange as custas devidas em momento anterior ao da formulação do respetivo pedido na Segurança Social
1. Na decisão recorrida o Mmº Juiz “a quo” considerou que o pedido de apoio judiciário deduzido pelo insolvente junto da Segurança Social em momento posterior ao trânsito em julgado da decisão final do procedimento de exoneração do passivo restante, que originou o débito de custas, é manifestamente intempestivo e, por isso, a decisão administrativa que o concedeu é irrelevante.
Como tal, nessa decisão foi decidido notificar o devedor para proceder ao pagamento das custas da sua responsabilidade, sob pena de cumprimento do preceituado no art. 35º, nº 2 do Regulamento das Custas Processuais.
Ora, é contra este entendimento que se insurge o insolvente em via recursiva, pugnando pela relevância da concessão do benefício de apoio judiciário.
Apreciando:
2. O art. 248º do CIRE[2], sob a epígrafe “apoio judiciário”, dispõe o seguinte:
«1. O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o Cofre tenha suportado.
2. Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3. Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização de pagamento em prestações, e aos montantes em dívida, acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no nº 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no nº 1 do artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais.»
Conforme decorre do nº 1 deste art. 248º, o devedor que apresenta um pedido de exoneração do passivo restante beneficia quanto a custas do diferimento do seu pagamento até à decisão final de tal pedido, respeitando esse diferimento à parte das custas que não seja suportada, quer pela massa insolvente, quer pelo rendimento disponível cedido, durante o período de cessão.
Daqui resulta que as custas que não sejam satisfeitas nem pela massa insolvente, nem pelo rendimento disponível no período da cessão, deverão ser suportadas pelo devedor que tenha requerido a exoneração do passivo restante.
De qualquer modo, o devedor sempre beneficiará “ope legis” de um diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido e, sendo concedida a exoneração do passivo restante beneficiará ainda do pagamento em prestações – arts. 248º, nº 2 do CIRE e 33º do Regulamento das Custas Processuais.
3. Prosseguindo.
Com a declaração de insolvência o devedor fica numa situação de inibição relativamente à prática de atos de natureza patrimonial [art. 81.º, nº 1 do CIRE], sendo o património gerido, em primeira linha, pelo administrador de insolvência e, numa fase subsequente, em casos de deferimento liminar da exoneração do passivo restante, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na respetiva fase, efetuar o pagamento de dívidas, “maxime” de dívidas resultante de custas judiciais [arts. 55.º, nº 1, al. a), e 241.º, n.º 1, al. a, do CIRE].
Por isso se compreende o disposto no art. 248º do CIRE, onde se consagra o diferimento do momento de pagamento de custas no processo de insolvência. Pretende-se com esta norma proteger o devedor que, com a declaração de insolvência, fica numa situação de inabilidade legal para a prática de atos que atinjam o seu património, passando este a ser gerido primeiro pelo administrador de insolvência e depois, não se verificando indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, pelo fiduciário, sendo que a cada um deles incumbirá, na respetiva fase, proceder ao pagamento das dívidas, inclusive as das custas processuais – cfr. Ac. STJ de 15.11.2012, relator ABRANTES GERALDES, proc. 1617/11.3TBFLG.1.S1, disponível in www.dsi.pt.
4. No caso dos autos a Segurança Social concedeu ao devedor apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo em 27.9.2022, sendo certo que o despacho final de concessão de exoneração do passivo restante data de 6.12.2021 e a conta respetiva foi elaborada em 3.3.2022. Ou seja, a concessão de apoio judiciário na modalidade referida, peticionada na Segurança Social no dia 17.3.2022, é posterior à decisão proferida sobre a exoneração do passivo.
O devedor/recorrente em apoio da sua pretensão no sentido da relevância do apoio judiciário respalda-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8.3.2022 desta mesma secção (proc. 2656/15.0T8STS.P1, relatora ANABELA MIRANDA, disponível in www.dgsi.pt.) proferido em situação processual idêntica e onde, revogando-se a decisão da 1ª Instância, se declarou que o devedor estava dispensado do pagamento de custas por gozar de benefício de apoio judiciário.
Consignou-se o seguinte no respetivo sumário:
“I – As custas não satisfeitas pela massa insolvente e pelo rendimento disponível no período da cessão, decorrente da respectiva insuficiência, devem ser suportadas pelo devedor que tenha requerido a exoneração do pedido restante, beneficiando ope legis de um diferimento do pagamento até à decisão final desse pedido; II – Só após a decisão final relativa ao pedido de exoneração do passivo restante, é que o devedor estará em condições de saber se, face aos rendimentos disponíveis e valor referente a custas, poderá proceder ao respectivo pagamento ou, se pelo contrário, não tem meios económico-financeiros para o fazer. III - Nesta última hipótese, poderá solicitar apoio judiciário para esse efeito, sob pena de se frustrarem os objectivos almejados com a exoneração do passivo (fresh start).”.
5. Na argumentação desenvolvida neste acórdão colocou-se o acento tónico nos objetivos visados com a exoneração do passivo restante e que seriam frustrados com a impossibilidade do devedor solicitar apoio judiciário após concessão definitiva daquele benefício e subsequente elaboração da conta de custas.
Chamou-se em apoio desta posição o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 418/2021, de 15.6.2021 (relator FERNANDO VENTURA, disponível in tribunal constitucional.pt.), onde se declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos arts. 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2 da Constituição, da norma constante do n.º 4 do art. 248.º do CIRE[3], na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.
Nele se escreveu o seguinte:
“(…) afastada a exigibilidade de qualquer pagamento a título de taxa de justiça ou encargos, o devedor que requeira simultaneamente a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante não carece do benefício do apoio judiciário nas modalidades em que a prestação consiste, justamente, na dispensa, total ou parcial, de tais pagamentos. A mesma solução preside, aliás, aos casos em que o legislador estabelece isenção de custas (artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais), relativamente aos quais não tem cabimento, por desnecessidade, a concessão ao interveniente processual isento do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou pagamento faseado das custas. Permanece, apenas, a carência da modalidade de apoio judiciário tendo com objeto a representação forense, sem a qual estaria impedida de pleitear em juízo a parte desprovida de meios económicos, incluindo o pagamento pelo Estado dos respetivos honorários.
Sucede, todavia, e ao contrário do que acontece com os casos de isenção, que o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrador de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos do artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais.
Ora, decorrido o período de cessão, não existem garantias de que o devedor insolvente tenha melhorado substancialmente a sua capacidade de obter rendimentos, ao menos em termos equivalentes aos que legitimam, no âmbito do regime do apoio judiciário, o cancelamento da proteção jurídica e exigência ao beneficiário do pagamento de custas de que foi dispensado, integral ou parcialmente, a saber, a aquisição superveniente, pelo requerente ou respetivo agregado familiar, de «meios suficientes» para dispensar o benefício (artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 34/2004). Pelo contrário, o funcionamento do mecanismo de cedência, e a sua imputação nos termos estipulados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, é de modo a fazer esperar que a condição de melhor fortuna permitirá extinguir pelo pagamento o remanescente da taxa de justiça e encargos da responsabilidade do devedor insolvente. Quanto tal não sucede, sendo parco ou inexistente o rendimento disponível suscetível de cessão (artigo 239.º, n.º 3), estamos, (…), perante a manutenção de um quadro de baixos rendimentos, nos limites do razoavelmente necessário para sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i)]. Exigir, mesmo que em prestações, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente de custas e encargos que a massa insolvente e o período de cinco anos[4] não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica (fresh start), a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.”
No mesmo sentido se haviam pronunciado já numerosos acórdãos do Tribunal Constitucional, mais concretamente os nºs 489/2020, 490/2020, 563/2020, 564/2020, 565/2020, 642/2020, 643/2020 e 644/2020, todos disponíveis in tribunalconstitucional.pt., sendo que da leitura destes acórdãos logo se alcança que os mesmos se reportam a situação diversa da dos presentes autos, pois nestes, diferentemente, o benefício de apoio judiciário havia sido concedido ao devedor logo em fase inicial do processo, normalmente aquando da apresentação à insolvência e formulação do pedido de exoneração do passivo restante e não, como aqui ocorre, já depois da decisão final do procedimento.
6. Assim, pelos motivos que passaremos a apontar e sem desdouro para o mesmo, não concordamos com o dito Acórdão da Relação do Porto de 8.3.2022 no qual o recorrente sustentou a sua argumentação.
A questão que aqui se discute reconduz-se a saber se depois do despacho final do incidente de exoneração do passivo restante, o devedor poderia vir requerer a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de custas e demais encargos com o processo, sendo que na decisão recorrida se entendeu que não, por tal pretensão ter sido formulada já depois do trânsito em julgado da decisão que viria a originar o débito de custas.
Com efeito, não se pode ignorar o disposto no art. 18º, nº 2 da Lei nº 34/2004, de 29.7., onde se diz que o apoio judiciário deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica.
Ora, o que se constata nos presentes autos é que o apoio judiciário foi concedido pela Segurança Social ao devedor na sequência de requerimento apresentado por este já depois da prolação e notificação do despacho final que lhe concedeu a exoneração do passivo restante.
Assim, a concessão do apoio judiciário, neste caso, não teria como objetivo garantir a tutela de um qualquer direito do devedor ou permitir o seu acesso à justiça, mas apenas o de o desonerar do pagamento das custas.
Ou seja, a situação jurídica do devedor estava juridicamente decidida e, ao cabo e ao resto, o que se visava com aquele apoio judiciário seria uma autêntica “isenção de custas", não prevista legalmente.
Na verdade, terá que se realçar que aquando da dedução do pedido de apoio judiciário o devedor não mostrava interesse em recorrer de qualquer decisão proferida nos autos ou prosseguir com a sua tramitação.
A insolvência estava finda, tal como findo estava o incidente de exoneração do passivo restante e, por conseguinte, achavam-se extintos os créditos sobre o devedor, o que significava estar assegurado o seu recomeço limpo, o “fresh start”.
O que o devedor, de forma manifesta e claramente evidenciada, visa com o pedido de apoio judiciário é subtrair-se ao pagamento das custas que entretanto já foram contadas.
Não está aqui em causa o acesso ao direito ou a garantia de uma tutela judicial efetiva, uma vez que, neste caso, apenas se pretende lograr uma “isenção de custas” com base numa situação, comprovada, de insuficiência económica.
Porém, uma situação deste tipo não tem tutela no regime do apoio judiciário.
A dispensa do pagamento de custas pressupõe que a parte pretenda exercer um qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, garantindo-se o acesso à justiça de qualquer cidadão independentemente da sua situação económica.
É consabido que o instituto do apoio judiciário visa evitar que, por insuficiência económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendem fazer valer os seus direitos em tribunal, constituindo uma consequência do princípio constitucional consagrado no art. 20º, nº 1 da Constituição da República, onde se diz que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.»
Daqui decorre que o benefício de apoio judiciário, conferindo um direito especial a um dado cidadão, apenas se justifica enquanto não estiver dirimido o litígio; uma vez julgado o pleito ou esgotado o interesse em agir do requerente, não mais este terá o direito de requerer tal benefício.
Pronunciando-se sobre a questão da oportunidade do pedido de apoio judiciário, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar, em jurisprudência uniforme, que o apoio judiciário pressupõe uma relação conflitual ou pré-conflitual e tem sobretudo em vista evitar que qualquer pessoa, por insuficiência de meios económicos, se veja impedida, condicionada ou dificultada no recurso aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos.
Contudo, não pode o apoio judiciário ser visto como meio destinado a obter, após o julgamento da causa e a condenação em custas, a dispensa do pagamento dos encargos judiciais a que a participação no processo deu causa.
Por esta razão tem-se considerado que não fere os princípios constitucionais a solução segundo a qual não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão – cfr., neste sentido os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 295/2012, 112/2001, 297/2001, 590/2001 e 558/2009.
Assim, em consonância com o Acórdão da Relação do Porto de 12.1.2021 (proc. 5135/14.0TBVNG.P1, relator IGREJA MATOS, disponível in www.dgsi.pt.), também desta secção, que se tem vindo a seguir no essencial neste ponto II.6., há a concluir que “o apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais; o instituto foi criado para que esses cidadãos possam aceder ao sistema judicial independentemente dessas carências económicas; não estando em causa o exercício de qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, tratando-se apenas, prosaicamente, de evitar pagar as custas já determinadas no âmbito de um processo findo o acionamento desse mecanismo não pode ser validamente desencadeado.”
Acontece que esta conclusão não contende com a competência da Segurança Social para as decisões relativas ao apoio judiciário, salientando-se que no despacho recorrido o Mmº Juiz “a quo” não pôs em causa a decisão daquela entidade, tendo-se limitado a apurar dos efeitos decorrentes da decisão que concedeu o apoio judiciário, em conjugação com a razão de ser de tal instituto, tudo isto na aplicação jurisdicional ao caso concreto que tinha em apreciação.
Neste contexto, haverá que confirmar a decisão recorrida que não conferiu relevância, para efeito de pagamento de custas, ao benefício de apoio judiciário concedido ao devedor/recorrente em 27.9.2022, consignando-se que aquela em nada violou os arts. 20º, nº 1 e 13º[59 da Constituição da República, nem tão pouco a jurisprudência constitucional decorrente dos Acórdãos nºs 418/2021 e 489/2020[6].
7. Antes de concluir, haverá a referir que não tendo o devedor, neste caso, meios económicos que lhe permitam pagar as custas, e não podendo ser relevado o apoio judiciário que lhe foi concedido pelas razões que se expuseram, ainda assim essa impossibilidade não poderá deixar de ser atendida.
Com efeito, não tendo o devedor tais meios económicos, o que, na presente situação, parece ser evidente, a execução não se deverá iniciar ou, iniciando-se, deverá ser arquivada.[7]
Finalizando, impõe-se a improcedência do recurso interposto.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo devedor AA, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.

Porto, 18.4.2023
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes
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[1] Depois de ter sido atendido o saldo da conta aberta em nome da Massa Insolvente no montante de 804,64€, em 20.6.2022 foi elaborada nova conta donde resultava para o devedor a importância em dívida, a título de custas, de 3.223,84€.
[2] Na redação da Lei nº 9/2022, de 11.1.
[3] Número que entretanto foi suprimido à redação do art. 248º do CIRE pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
[4] Deixa-se consignado que atualmente o período de cessão é de três anos – cfr. art. 239º, nº 2 do CIRE na redação introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
[5] Importa também referir que nenhuma violação se descortina do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da Constituição da República, uma vez que nada impediu o devedor/recorrente de, à semelhança de outros devedores em casos similares, vir logo no início do processo de insolvência requerer, diga-se cautelarmente, a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
[6] Também não se vislumbra qualquer dissonância com o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 418/2021, atendendo a que este se reporta a uma situação fáctico-jurídica diversa – a não consideração após o despacho final da exoneração do passivo restante do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, que havia sido concedido ao devedor logo no início do processo de insolvência.
[7] Cfr. Ac. STJ de 30.5.1995, p. 087314, relator PAIS DE SOUSA, disponível in www.dgsi.pt., em cujo sumário se consignou o seguinte: “Certamente que na fase posterior à contagem das custas e antes do seu pagamento o devedor destas pode não ter possibilidade de as pagar, mas se não tem meios para liquidar as custas não há execução ou esta é arquivada, não podendo requerer o apoio judiciário para tal efeito porque a acção findou com a sentença transitada em julgado.”