Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19528/23.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCA MOTA VIEIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP2024020819528/23.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O indeferimento liminar do procedimento cautelar só é admissível nas situações previstas no artigo 590º, nº 1, do CPC (conjugado com o artigo 226º, nº 4, alínea b), do mesmo diploma), isto é, quando «o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente».
II - Assim, os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal forma graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição.
III - Numa situação em que o juiz se depara com falhas de inferior gravidade, designadamente na situação em que o articulado incial enferma de alguma imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência, o juiz deve proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 19528/23.8T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Central Cível do Porto - Juiz 4


Relator: Francisca da Mota Vieira
1º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida
2º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita Teixeira



Acordam os Juízes no Tribunal da Relação do Porto

I .RELATÓRIO

1.AA, casado, contribuinte nº...94, portador do Cartão e Cidadão nº...92 ZU9 válido até 25.06.2029, natural da Freguesia de ... Concelho de Aveiro, residente na Rua ..., ... Porto, e A..., Lda., contribuinte nº...05, com sede na Rua ..., ... Porto, vieram requerer  contra BB, com domicílio profissional na Rua ... Porto, e B..., Lda, contribuinte nº...06, com sede na Rua ... Porto, providência cautelar de restituição provisória de posse, formulando a seguinte pretensão:

“deve a presente providência cautelar ser julgada totalmente procedente, por provada a matéria nela vertida e, por via disso, ser ordenada a restituição aos Requerentes de todos os artigos identificados nos documentos juntos como nº5 e nº6.”

Juntaram prova documental e testemunhal.

Alegam para o efeito que requerentes e requeridas estabeleceram um relacionamento contratual duradouro e complexo que é descrito no requerimento inicial, que lateralmente a esse relacionamento, a determinado momento os requerentes, que eram donos de bens móveis descritos nos documentos nºs 5 e 6 juntos aos autos, por acordo celebrado entre o primeiro requerente e segunda requerida, colocaram esses bens nas instalações desta,  tendo o primeiro requerente as chaves das instalações onde os bens se encontravam, mantendo a plena disposição sobre todos esses bens  que lhe pertencem a título particular e aqueles pertencentes à Segunda Requerente.

Mais alegam que por razões várias, sucintamente descritas no requerimento inicial, aquele relacionamento contratual duradouro cessou e que, por isso, o primeiro requerente procedeu à entrega das chaves à segunda requerida, que posteriormente as  requeridas recorrendo a actos suscetíveis de integrarem o conceito de violência pessoal, ( recurso  à violência física e verbal) recusaram a entrega aos requerentes dos  bens móveis propriedade destes e que se encontram no armazém/instalações da 2º requerida .

2. No dia 15.11.2023 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

“Com o presente procedimento cautelar pretendem os requerentes a condenação das requeridas na restituição “(…) de todos os artigos identificados nos documentos juntos como nº5 e nº6 (…)”.

Alegam os requerentes que tais artigos ascendem ao valor de 32.760,14 euros (os descritos no documento n.º 5) e de 16.695,00 euros (os descritos no documento n.º 6). Por isso, atribuem à causa o valor de 49.455,14 euros.

Ora, reclamando os requerentes a restituição de todos os bens descritos nos mencionados documentos, verificamos que no documento junto sob o n.º 6 se encontram elencados mais 104 objetos para além daquele cujo valor totaliza o montante de 16.695,00 euros, sem que esteja indicado o seu valor

Assim, determino a notificação dos requerentes para, no prazo de 10 dias, esclarecerem se reclamam também a restituição dos 104 objetos referidos e, em caso afirmativo, qual o valor que lhes atribuem.”

3. No requerimento apresentado para dar cumprimento ao despacho referido os requerentes, escreveram.

“Tendo sido notificados para o efeito vêm proceder à junção dos documentos solicitados, esclarecendo que apenas se juntam os relativos aos artigos indicados no documento nº5 da PI, pertencentes à Segunda Requerente, em virtude daqueles constantes do documento nº6 da PI, pertencentes ao Primeiro Requerente, terem sido adquiridos fora de plataformas de leilão, diretamente a particulares, tal como, aliás, se indica nesse mesmo documento, pelo que, tratando-se de negócios exclusivamente entre particulares, pessoas singulares, não existe qualquer documento contabilístico de suporte.”

4. De seguida, foi proferido despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial por se entender que não se verificam os requisitos previstos para a providencia cautelar de restituição da posse.

5. Inconformados os requerentes interpuseram recurso de apelação e apresentaram as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso da Douta Sentença proferida a fls… que indeferiu liminarmente a providência cautelar de restituição provisória de posse requerida  pelos ora Recorrentes com o entendimento de que não se verificam os requisitos previstos para a sua procedência.;

B) Tal decisão é, no entanto, errada e, desde logo, por padecer, de vício de nulidade.

C) Efectivamente, é nula a sentença quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (artigo 615.º nº1, alínea c) do CPC);

D) A Douta sentença ora posta em crise, literalmente, inventou, presumiu, no âmbito da parceria celebrada, a existência de um pretenso contrato de depósito celebrado entre Segunda Requerente e Segunda Requerida para justificação da existência de posse (mera detenção) dos bens móveis cuja restituição os Requerentes, ora Recorrentes, requerem;

E) Tal contrato de depósito nunca foi celebrado, não tendo a sua alegada existência qualquer conexão com a realidade ocorrida, existindo erros e imprecisões que advêm dessa fantasia manifestados na argumentação que o procura sustentar, para além da existência de factualidade alegada pelos Requerentes que indubitavelmente aponta em sentido diverso;

F) O primeiro erro e imprecisão a apontar reside no facto de se ter entendido que o pretenso contrato de depósito é celebrado entre Segunda Requerente e Segunda Requerida quando dos bens cuja restituição de posse se requer constam alguns pertencentes ao Primeiro Requerente que também alega ter sido esbulhado violentamente dos mesmos por ambas as Requeridas;

G) Daqui advém uma outra nulidade, processual agora, na medida em que não se verificando o tal pretenso contrato de depósito entre Primeiro Requerente e as Requeridas, não teriam estas a detenção desses bens pertencentes ao Primeiro Requerente, caíndo pela base a fundamentação para não ter havido sequer esbulho, ou seja, para ter sido proferida a decisão de indeferimento liminar, uma vez que este não pode ser parcial; Ou a fundamentação para o indeferimento liminar abarca toda a matéria, ou, havendo alguma matéria a que tal fundamentação não se aplique, então não pode ser decretado o indeferimento liminar, pelo que, tendo-o sido, então, estamos perante nulidade processual;

H) Existe factualidade alegada pelos Requerentes que indubitavelmente aponta em sentido diverso da existência do pretenso contrato de depósito, como é o caso do exposto nos artigos 20º e 35º da P.I., que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os efeitos legais, bastando esta factualidade para ser impossível a pretensão de existir um qualquer contrato de depósito na medida em que este pressupõe a entrega pelo depositante dos bens ao depositário e, como se demonstra, o Primeiro Requerente, pessoalmente e também em representação, sempre, da Segunda Requerente, era possuidor das chaves das instalações onde os bens se encontravam, mantendo a plena disposição sobre todos esses bens, os que lhe pertencem a título particular e aqueles pertencentes à Segunda Requerente, que, alíás, só se encontravam naquelas instalações exactamente, e antes de mais, porque havia esse acesso às instalações por forma a manter essa plena disponibilidade sobre os bens, não tendo ocorrido qualquer entrega dos mesmos a qualquer das Requeridas, só se perdendo tal disponibilidade sobre os bens após a entrega das chaves e o impedimento de saída das instalações com tais bens, da forma como tal ocorreu e é descrito na Petição Inicial (e aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais), ocorrendo o esbulho e a violência;

I) Sem a existência daquele pretenso contrato de depósito não existe qualquer detenção sobre os bens por parte de qualquer das Requeridas e, como tal, não existe fundamento para o indeferimento liminar e esta “criação” de um contrato de depósito, sem justificação ou factualidade alguma que minimamente a suporte, constitui ambiguidade e obscuridade que torna a decisão ininteligível nesse ponto, não se conseguindo discernir qual a verdadeira motivação para a decisão de indeferimento liminar, ferindo-a de nulidade;

J) Mesmo tendo existido contrato de depósito, o que aqui apenas se equaciona como mera hipótese académica, sempre o mesmo teria terminado por acordo das partes no momento em que terminara a parceria celebrada entre as mesmas partes, o que ocorreu com a entrega das chaves das instalações pelo Primeiro Requerente, recordando que a factualidade apontada, especificamente aquele artigo 35º da P.I. refere a proposta para uma nova parceria, o que indica a extinção da original, caso a entrega das chaves não seja indicação suficiente;

K) Com a extinção da parceria e do contrato de depósito constitui-se o depositário na obrigação de entrega dos objectos de depósito com o depositante a fazer tal exigência, mas ocorrendo o impedimento de saída das instalações com tais bens, da forma como tal ocorreu e é descrito na Petição Inicial (e aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais), verificando-se o esbulho e a violência;

L) Assim, deve ser a Douta Decisão de indeferimento liminar revogada com as legais consequências.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.

As questões colocadas no recurso são as seguintes:

Apreciar e decidir se a decisão-despacho recorrido enferma de nulidade por alegadamente padecer de obscuridade, vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil;

Apreciar e decidir se está correta do ponto de vista da aplicação do Direito a decisão recorrida, isto é, se há fundamento válido para indeferir liminarmente o requerimento inicial de restituição provisória da posse.

III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.

3.1. Da Nulidade imputada à decisão recorrida.

Os Apelantes insurgem-se contra esta sentença, além do mais, por considerarem que a mesma é nula.

Isto porque, alegadamente, padece de obscuridade, vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.

Para tanto, alegam: “D) A Douta sentença ora posta em crise, literalmente, inventou, presumiu, no âmbito da parceria celebrada, a existência de um pretenso contrato de depósito celebrado entre Segunda Requerente e Segunda Requerida para justificação da existência de posse (mera detenção) dos bens móveis cuja restituição os Requerentes, ora Recorrentes, requerem”

Apreciando e decidindo.

No artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, prevê-se o seguinte: “A sentença é nula quando: “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” (al. c);”

Trata-se de vício alheio ao julgamento de mérito, mas que pode afetá-lo, enquanto peça processual de índole formal, que tem um desenho legalmente definido e cujos contornos não podem deixar de ser observados.

Quanto à nulidade imputada à sentença, prevista na al c) do art 615º   do Código de Processo Civil, resulta expressamente deste normativo, que a nulidade a que se refere apenas se verifica quando se constate que os fundamentos de facto e/ou de direito da sentença não podiam logicamente conduzir à decisão que veio a ser tomada no segmento decisório da sentença ou quando neste se verifica uma obscuridade ou ambiguidade que torna a própria decisão ininteligível.

E porque releva, importa convocar Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, págs. 734-737, na parte em que aí escrevem:

 “Também a ininteligibilidade da parte decisória da sentença, contemplada na alínea c), quando subsista após a rejeição da arguição de nulidade, pelo juiz ou pelo tribunal de recurso, ou após a falta desta arguição (ver os art. ºs 615-4 e 617-1), merece a qualificação de nulidade. Com efeito, embora a ininteligibilidade, decorrente de ambiguidade ou obscuridade, tenha o tratamento da anulabilidade, carecendo de arguição da parte, a falta desta ou a sua rejeição tem o efeito de tornar definitivamente inaproveitável a sentença, por falta de decisão compreensível (…) No regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória da sentença, só releva quando gera a ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos art.ºs 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar. Sendo assim, se o vício não for corrigido, a sentença não poderá aproveitar-se, sendo nula, nos termos gerais dos art.ºs 280-1 CC e 295 CC. (…)”

Ora, se tivermos presente estes ensinamentos, facilmente verificamos que a crítica que os Apelantes dirigem à decisão recorrida, não se reconduz ao vício citado, mas, antes, a pretenso erro de julgamento.

Assim, não se verifica a nulidade arguida.

3.2. A factualidade a atender para apreciar e decidir sobre o mérito do despacho recorrido não se refere a factos provados, mas sim à factualidade alegada pelos requerentes no requerimento inicial para fundamentar a pretensão de tutela jurisdicional que formulam de natureza cautelar.

Assim, porque releva para o efeito, importa assinalar que os requerentes alegaram a seguinte factualidade, a qual, é de seguida reproduzida no essencial:

“Em janeiro de 2023 foi estabelecida uma parceria informal, entre Primeiro Requerente e a Primeira Requerida que visava exclusivamente a venda de lotes “retirados de leilão”, isto é, lotes que a Segunda Requerida tinha levado a leilão, mas que não tinha conseguido vender.

Nessa parceria, a Segunda Requerente é apenas um canal de venda, tal como a Segunda Requerida, que também é um canal de venda.

No momento da sua criação, a parceria estabelecida não visava a criação de qualquer sociedade.

Posteriormente, equacionou-se a criação de uma sociedade.

A criação da sociedade, que aconteceu em maio de 2023, tinha o intuito de passar a angariar recheios, à consignação, que iriam diretamente para venda sem ter de passar por leilão na Segunda Requerida e por isso nunca seriam “retirados de leilão”.

Na parceria, de venda de retirados, nunca foi acordada a divisão de mais-valias ou de custos de operação, até porque, neste tipo de acordos para venda de retirados as estruturas são independentes e a leiloeira (que fornece os lotes retirados), apenas recebe o valor de reserva a que a peça foi a leilão, acrescido de comissão de leilão e iva sobre a comissão, pelo que o ganho da leiloeira é o da comissão, uma vez que o valor de reserva deve ser pago ao fornecedor da peça.

Os Requerentes nunca omitiram qualquer informação aos Requeridos, uma vez que eram partilhados mapas de vendas constantemente, que permitiam à Segunda Requerida facturar os “retirados de leilão” que foram vendidos através da Segunda Requerente.

Todas essa facturas foram pagas.

Todas as vendas eram efetuadas por intermédio da Segunda Requerente, com utilização do know-how do Primeiro Requerente acumulado ao longo de vários anos de experiência na venda online internacional, bem como através do recurso a plataformas internacionais com que o Primeiro Requerente trabalha há vários anos.

Nem as Requeridas possuíam conhecimentos sobre a venda internacional, nem os meios para tal.

Em determinado momento da existência da parceria foi criado um novo perfil de venda para peças de maior valor.

A criação desse novo perfil de venda foi sugerida pela própria plataforma de venda e foi comunicada às Requeridas.

As peças, propriedade da Primeira Requerida não foram colocadas à venda neste perfil novo, mas sim no que sempre foi usado para a venda dos “retirados de leilão”.

O novo perfil serviu para venda de algumas jóias de uma fornecedora da Segunda Requerida a pedido da Primeira Requerida, mas também serviu para venda de joias de que o Primeiro Requerente era proprietário há vários anos.

Nunca os Requerentes efectuaram qualquer compra não autorizada de produto com fundos que deveriam ser divididos entre as partes, até porque, por um lado, a compra de produtos (extra retirados) foi feita com recurso a dinheiro vindo de outras vendas de peças (que o Primeiro Requerente já tinha de outros anos do seu negócio), e além do mais, não havia acordo para divisão de margem de negócio, e mesmo que houvesse, depois de retiradas as despesas inerentes à venda internacional, nada sobrava como margem líquida.

No âmbito da parceria, por parte dos Requerentes, nunca ocorreu a utilização de recursos logísticos e humanos da Segunda Requerida, mas ocorreu, até por insistência das Requeridas, a utilização de recurso físico destas, as suas instalações, e também a própria Segunda Requerida beneficiou dos recursos logísticos e humanos da Segunda Requerente para levar adiante a sua atividade (na fotografia, no embalamento, na classificação, na descrição, no envio de encomendas, etc).

A pedido da Primeira Requerida sempre foi dada prioridade às necessidades da Segunda Requerida (seja em fotografia, em embalamento e expedição de encomendas, preparação de leilões, descrição, etc.), mesmo com os recursos da Segunda Requerente, com um claro benefício da Segunda Requerida que, inclusivamente, reduziu a sua estrutura de custos e viu aumentar o fluxo de trabalho e venda.

O Primeiro Requerente sempre insistiu que era importante canalizar mais esforço para a venda internacional, mas a prioridade sempre foi a Segunda Requerida.

No âmbito da parceria a Primeira Requerida sempre insistiu em que o Primeiro Requerente estivesse nas instalações da Segunda Requerida, uma vez que estaria a fazer a venda dos retirados, sempre insistiu em que o Primeiro Requerente mantivesse o seu negócio em paralelo e que a intenção em levar grande parte desse material para as instalações da Segunda Requerida era no sentido de que esta pudesse ter mais material para fazer leilões, já que muitas vezes a Primeira Requerida se lamentava de não ter peças para fazer leilões, pelo que várias peças foram introduzidas no sistema da Segunda Requerida e levadas a leilão e algumas delas vendidas pela Segunda Requerida e nunca foram pagas;

Mais alegou que por vicissitudes que descreveu no requerimento inicial o  Requerente decidiu que não havia mais condições para manter a parceria ou criar qualquer outra, mesmo com toda a insistência da Segunda Requerida para formalizar uma nova parceria (incluindo em 28/8/2023), referiu-se à ocorrência de uma reunião entre as partes, na qual, não houve qualquer possibilidade de solucionar as divergências reveladas e que  o irmão da Primeira requerida pediu a chave das instalações na posse do primeiro requerente, as quais foram de seguida entregues à - Primeira Requerida.

Nas instalações da Segunda Requerida encontravam-se em 28/8/2023 os artigos indicados no documento que se junta como nº5, de propriedade da Segunda Requerente e os artigos indicados no documento que se junta como nº6 .

Prosseguiram e alegaram que no dia combinado para as requerentes procederam à retirada dos respectivos bens móveis das instalações da segunda requerida, o primeiro requerente e outros que o acompanharam, a Primeira Requerida, também Na qualidade de gerente da Segunda Requerida, não permitiu que o Primeiro Requerente procedesse à retirada daqueles artigos, impedindo-o com o auxílio de seu irmão, presente no local, e através de ameaças de violência física e de violência verbal, dirigidas quer ao Primeiro Requerente quer a quem o acompanhara ao local para o auxiliar na recolha e retirada dos artigos, alegando ter um crédito sobre os Requerentes e que enquanto esse crédito não fosse pago não seria permitido a retirada daqueles artigos, que ficariam, assim, retidos até ao pagamento integral do alegado Xrédito.

Temendo pela sua integridade física e pela dos seus acompanhantes, o Primeiro Requerente e quem o acompanhou, viram-se forçados a abandonar as instalações da Segunda Requerida sem poder proceder à retirada dos artigos.

3.3 Do Mérito da Decisão recorrida.

3.3.1. Reproduzida no essencial a alegacão vertida no requerimento inicial, considerando a factualidade que no essencial foi alegada para fundamentar a pretensão dos requerentes, impõe-se agora apreciar e decidir se a decisão-despacho recorrido está correta do ponto de vista da aplicação do Direito, isto é, se há fundamento válido para indeferir liminarmente o requerimento inicial de restituição provisória da posse.

É a questão que se segue.

Não estão aqui em causa factos provados, mas factos alegados, dada a fase liminar em que o procedimento se encontra.

Importa saber se a Requerente alegou os factos suficientes e necessários ao sucesso da providência, ou seja, a sua causa de pedir (art.ºs 377º e 552º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil).

O tribunal a quo entendeu negativamente, reproduzindo-se aqui, o despacho recorrido:

“Ora, do exposto pode concluir-se que no âmbito da parceria celebrada a segunda requerida , terá celebrado também um contrato de deposito dos bem móveis com a segunda requerente , ao abrigo do qual detinha a posse ( mera detenção) dos bens móveis a que se alude na providência, e que para o efeito não obteve tal posse com esbulho violento.

Neste campo cumpre não esquecer que o legislador, por motivos de equidade, concedeu excepcionalmente a defesa possessória em casos em que não existe posse, mas mera detenção. Assim, a tutela possessória foi ainda especialmente concedida aos direitos pessoais de gozo derivados do contrato de locação (art.1037º, nº2), de comodato (art.1133º) e de depósito (art.1188º, nº2).

Pelo exposto, podemos concluir que não foram os Requeridos que privaram os Requerentes da possibilidade de fruição do seu direito.È certo que os requerentes aludem á intenção de pretenderem cessar a parceria acordada. Ora, as partes contrataram e os contratos devem ser cumpridos integralmente. A existência de incumprimentos / resolução por justa causa dará lugar a eventuais sanções e indemnizações ou outros direitos, a definir pelos Tribunais, e a apurar na acção principal, meio adequado a apurar também os créditos de “ambas” as partes já enunciados pelos requerentes. No limite, a actuação dos requeridos visou apenas manter a sua «posse», não podendo configurar-se como sendo actos de esbulho violento.

Haverá, assim, que concluir que, no caso, não estão preenchidos os requisitos da providência cautelar de restituição provisória de posse requerida .

Por tudo o exposto, por entender que não se verificam os requisitos previstos e supra-referenciados, indefiro liminarmente o requerimento inicial .”

A revelar que o tribunal a quo, entendeu, perante a alegação vertida no requerimento inicial, que não foram alegados factos suscetíveis de consubstanciar actos de esbulho violento.

3.3.2. Apreciando e decidindo:

O indeferimento liminar do procedimento cautelar só é admissível nas situações previstas no artigo 590º, nº 1, do CPC (conjugado com o artigo 226º, nº 4, alínea b), do mesmo diploma), isto é, quando «o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente».

Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa[1], «os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal forma graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição».

Acrescentam os referidos autores que «mesmo quando, na intervenção liminar, o juiz se deparar com falhas de inferior gravidade, não está afastada a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento». Referem ainda que nas «situações em que se verifique imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência de algum articulado, o juiz profere o despacho de convite ao aperfeiçoamento (…). O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos»[2]

Para Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3] , o apuramento sobre se o pedido é manifestamente improcedente faz-se casuisticamente, em função do pedido e dos seus fundamentos de facto e de direito e «sê-lo-á seguramente nos casos de caducidade de conhecimento oficioso do direito que se pretende fazer, bem como quando não possa haver dúvida sobre a inexistência dos factos que o constituiriam ou sobre a existência, revelada pelo próprio autor, de factos impeditivos ou extintivos desse direito».

A jurisprudência dos tribunais superiores tem seguido este entendimento.[4]

3.3.3.

Importa agora atentar nas normas adjectivas e substantivas que são convocáveis para apreciar e decidir o presente recurso.

Dispõe o art.º 377º do Código de Processo Civil, no âmbito dos procedimentos cautelares especificados, que «no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência».

De acordo com o subsequente art.º 378º, «se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador».

Dispõe o art.º 1276º do Código Civil que, se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.

Todavia, para as simples ameaças de intromissão na esfera de atuação do possuidor ou por atos configurados como mera turbação da posse, já não será a restituição provisória a providência idónea, antes aquela que, enquadrada no procedimento cautelar comum abarque a situação sujeita a perigo de lesão grave e dificilmente reparável.

O Código Civil prevê a existência de acções de defesa da posse – de prevenção, manutenção e restituição – arts. 1276º a 1278º

Dispõe o art. 1277º do Código Civil:

“O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do antigo 336°, ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse”.

A posse, porque é um poder que se manifesta em relação a coisas, pode ser perdida pelo possuidor.

O art. 1267º do Código Civil elenca os casos em que o possuidor perde a posse.

Um dos casos de perda da posse é o previsto na al. d) segundo o qual o possuidor perde a posse – “Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado por mais de um ano”.

Nos termos do nº2:“A nova posse de outrem conta-se desde o seu início, se foi tomada publicamente, ou desde que é conhecida do esbulhado, se foi tomada ocultamente; sendo adquirida, por violência, só se conta a partir da cessação desta”.

Com este normativo articula-se o art. 1278º citado diploma que estabelece:

“1 No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito.

2. Se a posse não tiver mais que de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse.

3. É melhor posse a que for titulada; na falta de título, a mais antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse actual”.

O art. 1279º estatui: “Sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”.

Nos termos do art. 1261º,nº2, do Código Civil a posse considera-se violenta “quando para obtê-la o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do art. 255º”.

A restituição provisória da posse, com características antecipatórias, apreciada e decidida de forma acelerada e sem prévia audição do requerido, foi reservada para situações em que a ilicitude da conduta é mais grave. Visa conferir tutela provisória ao possuidor que, por seu intermédio, alcança a reconstituição da situação possessória anterior ao esbulho violento.

Assim, são pressupostos da restituição provisória da posse:

- A existência de posse (na conceção objetiva, bastando por isso que, por qualquer dos meios admitidos pela lei do processo, o juiz fique convencido do exercício de poderes materiais não casuais sobre uma coisa e não exista disposição legal que imponha mera detenção).

- Seguida de esbulho;

- Com violência.[5]

O esbulho corresponde a um ato pelo qual alguém priva outrem da posse de uma coisa determinada. Há esbulho, para efeito de aplicação do referido art.º 377º, sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar[6].

No esbulho, o terceiro não permite que o possuidor atue sobre a coisa que até então possuía, dela ficando o último desapossado e impedido de exercer toda e qualquer fruição.

Quanto à violência, já Alberto dos Reis[7] defendia que «tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas; é esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor; mas é igualmente violento o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor». Acrescentou ali que «a violência pode ser física ou moral; é esbulho violento o que resulta do emprego de força física ou de intimidação contra o possuidor; é também violento o esbulho obtido por coacção moral, proveniente da superioridade numérica das pessoas dos esbulhadores, da presença da autoridade, do apoio da força pública».

A violência sobre a coisa é relevante, para efeitos de restituição provisória, quando a coisa violada pela atuação do esbulhador era em si um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido[8] ou quando esteja ligada de algum modo à pessoa do esbulhado ou ainda quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral. Neste caso a violência contra as coisas há de constituir um meio de coação, de constrangimento físico ou moral sobre as pessoas, designadamente, intimidando o possuidor e limitando a sua liberdade de determinação.

A violência contra as coisas só releva se se pretender por via dela intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, sendo irrelevantes os meros actos materiais de danificação ou destruição inaptos para afectar o possuidor em termos psicológicos”. - Ac. da Relação de Lisboa de 12.12.1996, in BMJ., 462, 481.

Como se pode ler em “Temas da Reforma de Processo Civil”, Abrantes Geraldes, IV volume, págs. 43 e 44:

“Orlando de Carvalho, no seu estudo sobre a posse, publicado na RLJ, ano 122º refere que “a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo, por isso, qualificar-se como tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor”. E, concluindo, afirma ainda que “a violência sobre as coisas que estorvam a privação apenas relevará para este fim quando o agente usou, pelo menos, de dolo eventual, quando previu, como normal consequência da sua conduta, que iria constranger psicologicamente o possuidor e, todavia, não se absteve de a assumir, conformando-se com o resultado” (pág. 293).

 Esta doutrina tem vindo a ser seguida pela jurisprudência maioritária.[9]

O benefício concedido ao possuidor de ser restituído à posse imediatamente, isto é, antes de julgada procedente a ação, tem a sua justificação precisamente na violência cometida pelo esbulhador: é, por assim dizer, o castigo da violência. É a violência que compensa o facto da falta da característica típica das providências cautelares: o periculum in mora. Por isso Alberto dos Reis defendia que a restituição provisória da posse não constitui uma verdadeira providência cautelar.

Embora a violência possa dispensar até a presença física do esbulhado na ocasião do esbulho, devendo ponderar-se as circunstâncias concretas em que se verificou, ela só será relevante se os atos que a integram, designadamente, ameaças, tiverem sobre o esbulhado qualquer influência psicológica que afete a sua liberdade, segurança e tranquilidade[10]

Na verdade, não basta para integrar o conceito de violência que a atuação do esbulhador seja feita sem o consentimento ou contra a vontade do possuidor ou que este tenha ficado prejudicado com a atuação daquele. É necessário alegar e provar a existência de coação física ou moral, sendo certo que, nos termos do art.º 255.º, n.º 1, do Código Civil, se diz feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração. Esse mal pode ter vários conteúdos, no que não deve o interprete ser especialmente exigente.

Posto isto, a procedência do pedido, nas acções possessórias, não depende de se fazer prova cabal da existência do direito real a que corresponde a posse invocada, mas sim de se provar que existem actos e situações enquadráveis no conceito de posse.[11]

A jurisprudência maioritária tem vindo a entender que a constituição de um obstáculo físico que impede ao possuidor o acesso ao objecto da sua posse, e, consequentemente, inviabiliza a sua fruição, se traduz no requisito da violência exigido no n.º 1 do artigo 393.º do Código de Processo Civil [v. Acs. R.G. de 2.03.2006 (Pº. 0630368) e de 3.11.2011 (Pº. 69/11.2TBGMR-B.G1), e de Ac. R.C. de 4.04.2006 (Pº. 552/06). Ac. R. P. de 28.10.2013 (Pº 1880/13.5TBSTS.P1), Ac. R. E. de 20.10.2016 (Pº469/16.1T8ABT.E1)]

Sendo de verificação cumulativa os requisitos de que depende a concessão da providência “sub judice” – posse, esbulho e violência – importa, desde logo, apreciar se tais requisitos se provaram.

3.3.4.

Desde já adiantamos que não acompanhamos a argumentação expendida para fundamentar o indeferimento liminar da presente providência cautelar.

Concretizando.

Independentemente do juízo que possa ser formado sobre a necessidade de ser aperfeiçoado o requerimento inicial quanto à alegação de factos relativos aos concretos poderes de facto efectivamente exercidos pelos requerentes sobre os bens móveis a par da sua qualificação por referência aos direitos correspondentes, facto é que não acompanhamos o despacho recorrido.

Debruçando-nos sobre o caso em apreço e tendo sempre presente tudo o que supra se expandiu, diremos:

Com vista a serem restituídos à posse dos referidos bens móveis, de cujo acesso e consequente exercício se afirmam privados pela conduta das requeridas, os requerentes lançaram mão, em termos de tutela judicial, da presente providência cautelar de restituição provisória de posse.

Compulsando o articulado inicial  (e que acima deixámos, em síntese, retratado), somos de parecer que foram alegados pelos  requerentes factos bastantes (não nos esqueçamos que estando no domínio de uma providência cautelar estamos a falar de factos indiciários e da aparência do direito que se pretende tutelar) susceptíveis de, no caso de virem a ser comprovados, poderem vir a integrar aqueles três requisitos que acabámos de enunciar.

 Sendo certo ainda que naquela fase inicial não se pode de animo leve deixar de ter presente a possibilidade legal que sempre existe, no caso de não vir a concluir-se pela violência do esbulho, de converter a providência cautelar especificada numa providência cautelar comum ou não especificada (cfr. artº 379º do CPC).

Acresce que temos de atentar e considerar que na alegação dos recorrentes estes foram impedidos pelos requeridas com o uso de actos de violência de aceder e retirar das instalações das requeridas, (local ao qual anteriormente eram livres de aceder) os respectivos bens móveis, inviabilizando a fruição dos mesmos pelos requerentes.

E daí que, nessa medida, se nos afigure precipitado o juízo conclusivo feito no despacho recorrido de que não foram alegados factos susceptíveis de poderem integrar o esbulho violento.

Analisado o requerimento inicial, verificamos que foram alegados factos  que indubitavelmente apontam para uma realidade mais complexa que não se reduz a um simples contrato de depósito, sendo certo que, necessitando o tribunal a quo de ser esclarecido sobre a concreta realidade que está subjacente à colocação pelos requerentes dos respectivos bens nas instalações da segunda requerida, sempre deveria ter proferido um despacho prévio de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial em vez de indeferir liminarmente esse requerimento.

Acresce que foi alegada factualidade pelos Requerentes que aponta em sentido diverso da afirmada existência do pretenso contrato de depósito, como é o caso do exposto nos artigos 20º e 35º da P.I., os quais, aqui se reproduzem:

“20º No âmbito da parceria a Primeira Requerida sempre insistiu em que o Primeiro Requerente estivesse nas instalações da Segunda Requerida, uma vez que estaria a fazer a venda dos retirados, sempre insistiu em que o Primeiro Requerente mantivesse o seu negócio em paralelo e que a intenção em levar grande parte desse material para as instalações da Segunda Requerida era no sentido de que esta pudesse ter mais material para fazer leilões, já que muitas vezes a Primeira Requerida se lamentava de não ter peças para fazer leilões, pelo que várias peças foram introduzidas no sistema da Segunda Requerida e levadas a leilão e algumas delas vendidas pela Segunda Requerida e nunca foram pagas;

35ººPerante a dificuldade de diálogo, num ambiente de constante exaltação, o Primeiro Requerente deu por terminada a reunião e o irmão da Primeira requerida pediu a chave que o Primeiro Requerente foi buscar ao andar de baixo e entregou à Primeira Requerida,que ainda lhe pediu que pensasse bem em fazer-se uma nova parceria e que depois lhe dissesse alguma coisa”

Ora, afigura-se-nos que essa   factualidade não aponta para a existência um qualquer contrato de depósito na medida em que este pressupõe a entrega pelo depositante dos bens ao depositário e, como foi alegado, , o Primeiro Requerente, pessoalmente e em representação, sempre, da Segunda Requerente, era possuidor das chaves das instalações onde os bens se encontravam, mantendo a plena disposição sobre todos esses bens, os que lhe pertencem a título particular e aqueles pertencentes à Segunda Requerente.

A revelar que na tese dos requerentes os bens  só se encontravam naquelas instalações exactamente, e antes de mais, porque havia esse acesso às instalações por forma a manter essa plena disponibilidade sobre os bens, não tendo ocorrido qualquer entrega dos mesmos a qualquer das Requeridas, só se perdendo tal disponibilidade sobre os bens após a entrega das chaves e o impedimento de saída das instalações com tais bens, da forma como tal ocorreu e é descrito na Petição Inicial (e aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais).

Assim, são válidas as conclusões recursórias vertidas nas alíneas H) e I) .

Mas , admitindo que essa entrega dos bens móveis foi feita no âmbito de um acordo de depósito, o qual, se nos afigura ser instrumental de outros acordos  que celebraram e ou pretendiam celebrar, certo é que, do contrato de depósito, regulado no artigo 1185º e ss do C.Civil,  decorre a obrigação de restituir a coisa que lhe foi entregue  cfr. art.º 1187º al. c) do CC e que os requerentes alegaram que solicitaram às requeridas a restituição dos bens, solicitação que viram negada com recurso a actos que são suscetíveis de consubstanciarem violência pessoal sobre o requerente e outros que o acompanharam, vedando as requeridas aos requerentes o acesso aos bens móveis , pertença dos requerentes, privando estes de continuaram a exercer sobre os bens os  poderes de facto correspondentes aos direitos reais invocados.

De resto, resultando do requerimento inicial que os bens cuja restituição de posse é requerida estão na posse das requeridas na sequência de um relacionamento contratual duradouro e complexo que ligava as partes, uma vez   que é alegado que cessou  esse relacionamento contratual duradouro estabelecido entre as partes, no âmbito do qual, foi feita a colocação dos bens móveis em apreço nas instalações das requeridas, facto que não foi considerado na decisão recorrida,  resulta que as requeridas deixaram de ter título que legitime a alegada actuação destas, traduzida em impedir os requerentes de aceder e fruir dos seus próprios bens,.

Tudo a evidenciar que na tese dos requerentes as requeridas praticaram acto ilícito que legitima a utilização da presente providência cautelar.

Concluindo:

Afigura-se-nos que a factualidade alegada no requerimento inicial é suscetível de preencher os requisitos da providencia cautelar de restituição provisória de posse, revelando-se prematura a decisão recorrida, a qual, deve ser revogada para efeito do prosseguimento da presente providência cautelar, sem prejuízo, naturalmente, de ser ponderada pelo tribunal recorrido o aperfeiçoamento do requerimento inicial quanto à alegação dos concretos poderes de facto efectivamente exercidos pelos requerentes sobre os bens móveis a par da sua qualificação com referência aos direitos correspondentes, bem como,  quanto a outra parte da alegação que mereça ser aperfeiçoada.

Procedem, assim, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.


Sumário.
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IV.  DELIBERAÇÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento à apelação e revoga-se a decisão recorrida, para efeito de prosseguimento da presente providência cautelar de restituição provisória de posse.

Custas pelo apelante a atender a final-art 539º CPC



Porto, 08.02.2024
Francisca da Mota Vieira
Aristides Rodrigues de Almeida
Paulo Duarte Teixeira
____________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 674.
[2] Ob. cit., pág. 679
[3] Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 623.
[4] A propósito, convocando o Ac da Relação de Lisboa, de 1.10.2009 e o Ac. Relação de Coimbra de 3.03.2009, proferido no proc nº 2/09.1TBGVA.C1.
“Os despachos liminares de indeferimento das providências cautelares terão de ser reservados para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, pois que nos casos de fronteira, onde a dúvida se coloca, deverá dar-se seguimento ao procedimento, ainda que se admite à partida a eventualidade do seu insucesso dentro da sua normal tramitação.”
“I – O indeferimento liminar de uma providência cautelar de restituição provisória de posse, com base no fundamento da sua manifesta improcedência, só deverá ocorrer quando, perante os factos expostos pelo requerente na petição e à luz do direito aplicável, seja ostensivamente claro ou notoriamente evidente que tal pedido nunca poderá proceder.
II – Nas relações de composse sobre um bem comum do casal, é permitido a um dos cônjuges compossuidores, que ficou, entretanto, privado pelo outro da posse sobre o mesmo, instaurar procedimento cautelar contra ele com vista a ser (novamente) restituído à posse desse bem.”
[5] Menezes Cordeiro, in Direitos Reais, 1979, vol. II, pág. 833.
[6] Na definição de Manuel Rodrigues, A Posse, Edição de 1981, pág. 363, seguida por Moitinho de Almeida, Restituição da Posse e Ocupações de Imóveis, 2ª ed., pág. 100, Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, págs. 70 e 71 e A. Abrantes Geraldes, ob. cit., Vol. IV, págs. 46 e 47; acórdão da Relação de Coimbra de 16.5.2006, proc. 1240/06, in www.dgsi.pt.
[7] Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 670.
[8] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.1999, in BMJ, 489/338.
[9] Cf. A. S. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV, págs. 42 a 45, e acórdãos desta Relação de 8.1.2008, de 26.2.2008 e de 19.10.2009, e da Relação de Guimarães de 3.11.2011, proc. 69/11.2TBGMR-B.G1, in www.dgsi.pt).
[10] Acórdão da Relação de Coimbra de 3.12.1998, Colectânea de Jurisprudência, T. V, pág. 37 e acórdão da Relação do Porto de 18.9.2006, in www.dgsi.pt.
[11] Ac. da Relação de Lisboa, de 17.1.1991, in CJ, 1991, I, 124.