Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1401/15.5T8AGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
ESCRITURA DE CONSTITUIÇÃO DE HIPOTECA
Nº do Documento: RP20171214140115.5T8AGD.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 800
Área Temática: .
Sumário: I - Os efeitos do reconhecimento de créditos no âmbito de um processo de insolvência circunscrevem-se a esse processo. O efeito declarativo da correspondente decisão, designadamente o referente ao valor do crédito ali reconhecido, não pode impor-se a terceiros a esse processo, designadamente a quem tenha sido garante da insolvente e seja alheio ao processo de insolvência.
II - Em relação a créditos anteriores à data da sua celebração, a escritura de constituição de uma hipoteca tendente a garantir a sua satisfação só poderia constituir título executivo desde que, simultaneamente, constituísse um documento recognitivo desses créditos, não podendo aplicar-se-lhes o regime do art. 50º do CPC anterior, correspondente ao art. 707º do actual CPC, que só vale para obrigações a cumprir ou a constituir ulteriormente.
III – Em relação a créditos emergentes de operações ulteriores à escritura de constituição de hipoteca, no respeitante a créditos emergentes do fornecimento de bens ou prestação de serviços, esta poderá constituir título executivo desde que complementada com documentos comprovativos de ter ocorrido um efectivo fornecimento de bens ou uma efectiva prestação de serviços; quanto a eventuais operações financeiras, para que a escritura pudesse constituir título executivo, de outro documento haveria de resultar a demonstração de que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
IV – A forma desses outros documentos - comprovativos da realização da prestação ou da constituição de obrigações - tem de obedecer às condições previstas na própria escritura, ou têm eles de constituir de per si, títulos executivos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. 1401/15.5T8AGD.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Águeda

REL. N.º 463
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Lina Castro Baptista
Fernando Samões
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

Neste processo executivo que B..., S.A. e C..., S.A. moveram contra D... e E..., dando à execução uma escritura pública de constituição de hipoteca que garantia os débitos decorrentes de operações comerciais celebradas entre as exequentes e uma sociedade designada F..., Lda, entretanto declarada insolvente, foi proferido despacho liminar que concluiu pela inexistência de título executivo contra os executados. Consequentemente, foi indeferido o requerimento executivo.
Vieram então as exequentes interpor recurso desta decisão, que foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Também então, e porquanto ainda o não tinham sido, foram convocados para os termos da causa os executados, ordenando-se a sua citação.
A agente de execução encarregada da prática do acto veio trazer aos autos a notícia da citação da executada mas, em simultâneo, o conhecimento do falecimento do executado.
A executada E... veio juntar resposta ao recurso, mas nada foi requerido ou decidido a propósito da notícia do falecimento do co-executado D....
Foram os autos devolvidos à primeira instância, para que pudesse ser promovida a habilitação dos respectivos sucessores, bem como para que eles fossem citados para os termos da execução e do recurso.
Foram habilitados como sucessores de D...:
- a sua esposa, E..., com quem era casado, mas separado de pessoas e bens;
- as filhas de ambos:
a) G...;
b) H...;
c) I....
Citadas para os termos da execução e do recurso, não adveio aos autos qualquer resposta.
Tal recurso compreende as seguintes conclusões:
“I Dirige-se o presente recurso contra a decisão liminar tomada pelo tribunal a quo que indeferiu, ao abrigo do disposto no art.º 726.º, nº 2, alínea a), do NCPCiv., o requerimento executivo apresentado pelas ora recorrentes por entender que não resultariam dos autos nem dos documentos juntos pelas exequentes qualquer título executivo válido contra os executados.
II. As ora recorrentes apresentaram requerimento executivo contra os executados D... e E..., casados entre si, e ambos sócios da sociedade F..., LDA. (doravante designada por F1...), com quem as ora recorrentes tiveram profícua e longa relação comercial.
III. Na verdade, a B1..., sendo importadora para o território nacional de diversas marcas automóveis, entre as quais se conta a ..., celebrou, na qualidade de Concedente, com aquela sociedade, que assim ficou sua Concessionária, Contrato de Concessão de Venda de Veículos Ligeiros de Passageiros da Marca ... e respectivo Contrato de Concessão de Serviços e Peças daquela marca, em 17.12.2003.
IV. A K... era quem, na qualidade de distribuidora designada das marcas de que a J... é importadora, fazia as vendas directas aos Concessionários dos veículos, em particular à F1... de quem os executados eram sócios.
V. Ora, no decorrer da relação comercial entre as partes foi necessário garantir de alguma forma as obrigações que a F1... ia assumindo perante a B1... e a L1..., as quais acabaram por assumir valores consideráveis.
VI. Assim, os executados, sócios da F1..., constituíram hipoteca voluntária unilateral sobre prédios de que são proprietários, por escritura pública de 16.11.2011, em favor das exequentes, ora recorrentes, "para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presentes ou futuras da sua concessionária, "F..., LDA" (…) emergentes do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou de quaisquer operações de financiamento ou afins, independentemente da referida forma ou natureza, em especial, mas sem restrição, provenientes de garantias bancárias prestadas ou a prestar, créditos documentários, operações cambiais à vista ou a prazo, empréstimos ou aberturas de crédito de qualquer espécie, fianças, livranças, letras e seus descontos, avales em títulos de crédito, responsabilidades por endosso e outros, financiamentos concedidos pela permissão da utilização a descoberto de contas de depósito à ordem, e contratos de locação financeira, de aluguer de longa duração ou de aluguer operacional, até ao montante máximo global de capital de TREZENTOS MIL EUROS".
VII. Mais se diz, "que, para além da referida quantia de capital, no montante máximo de até trezentos mil euros, as hipotecas ora constituídas garantem ainda os juros remuneratórios que sobre ele se vençam, até à taxa que se fixa, apenas para efeitos de registo, em oito por cento ao ano, a sobretaxa de até quatro por cento, na mora e a título de cláusula penal, e, bem assim, as despesas judiciais e extra judiciais que as referidas sociedades venham a ter de fazer para obter o reembolso dos seus créditos, despesas que, para efeitos de registo, se fixam em trinta mil euros, tudo no montante global máximo para efeitos de registo de QUATROCENTOS E TRINTA E OITO MIL EUROS (438.000,00€).
VIII. Firmaram os executados, por escritura, "que a presente hipoteca pode ser executada quando se mostrar vencida qualquer das obrigações cujo cumprimento a mesma assegura".
IX. Por fim se escriturou, com maior interesse para o caso, "que os documentos que representam os créditos da B..., S.A., da L..., S.A., e da M..., S.A. e, bem assim, toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca, constituirão títulos ou documentos respeitantes a esta escritura, dela fazendo parte integrante para efeitos de execução, sendo caso disso".
X. Ficou patenteado nos autos, através das respectivas certidões permanentes do registo comercial, que a acima indicada B..., S.A. é a ora recorrente B1..., e a acima indicada L..., S.A. é a ora recorrente L1....
XI. Tendo em conta o previsto na escritura de hipoteca, as ora recorrentes instruíram o seu requerimento executivo com duas certidões emitidas para fins judiciais pelo Tribunal da Comarca de Aveiro - Aveiro - Instância Central – 1ª Secção do Comércio - J3, de 17.03.2015, pelas quais se certifica que naquele Tribunal, sob o n.º de processo 1057/13.0T2AVR, correm termos os autos de insolvência da sociedade garantida F1..., que foi declarada insolvente em 23.05.2013, tendo tal decisão transitado em julgado em 13.06.2013.
XII. Mais se certifica que a recorrente B1..., reclamou créditos sobre a referida F1... no montante de €7.585,13, os quais foram reconhecidos e que, à data, não recebera nenhum montante para pagamento daquele valor, sendo esse o valor em execução por esta recorrente.
XIII Certifica-se na outra certidão, que a recorrente L1... reclamou créditos no montante global de €437.330,92, os quais foram reconhecidos e que, à data, não recebera nenhum montante para pagamento daquele valor, constando da documentação a especificação destes valores.
XIV. Os créditos reclamados pelas recorrentes não foram alvo de qualquer impugnação - nomeadamente por parte dos executados, pelo que, no âmbito do processo de insolvência da sociedade garantida F1..., ficou definido que esta devia às recorrentes os montantes que agora as recorrentes pretendem executar.
XV. O Tribunal a quo refere aliás que entende certificado este crédito.
XVI. Pelo que as obrigações de garantia, relativamente às obrigações assumidas ou a assumir no futuro pela sociedade garantida de que eram sócios, assumidas pelos executados através da hipoteca que constituíram em benefício das ora recorrentes, nenhuma dúvida suscitam que existam e o respectivo cumprimento pode ser exigido no cumprimento e dentro dos limites da hipoteca constituída.
XVII. Isto é, respondem por aquelas obrigações garantidas os bens que os executados deram em garantia através de hipoteca.
XVIII - Nada mais se pede ou pretende.
XIX. As recorrentes instruíram os autos com toda a documentação que comprova e titula os seus créditos, cujos montantes, exigibilidade, liquidez e vencimento foram verificados já em sede de insolvência da sociedade garantida F1... e o próprio Tribunal a quo reconhece.
XX. Os próprios executados expressamente previram e admitiram que tal documentação fizesse parte da escritura de hipoteca para efeitos de execução.
XXI. Pelo que, nos termos das disposições legais conjugadas dos artºs 703.°, nº 1, alínea b) e 707.°, ambos do NCPCiv., e o artº 818.° do CCiv., não se vê como defender que não existe título executivo que sustente a presente execução.
XXII. Se aquele património que se visa executar - apenas e só - foi afecto pelos executados à satisfação dos direitos de créditos das ora recorrentes sobre a referida sociedade F1... e estes créditos estão reconhecidos - tanto que o próprio tribunal a quo o reconhece - mais incorrecta se encontra a decisão recorrida.
XIII. Pelo que, tendo os executados garantido, com os prédios constantes da hipoteca, aquelas obrigações, não se encontra qualquer entrave legal a que esta hipoteca possa ser executada, no âmbito e dentro dos seus limites.
XXIV. Não podendo já os recorrentes exercer os direitos que lhe são conferidos pelo artº 817.° do CCiv. contra a insolvente F1..., cujas obrigações perante as recorrentes foram garantidas pelos executados através da hipoteca dada à execução, nenhum entrave se verifica à execução dos bens que os executados deram para garantia daquelas obrigações, o que por via da presente execução apenas e só se visou.
XXV. Pelo que, estando incorrecta a avaliação feita à documentação apresentada pelo Ilustre Tribunal a quo, resultam violados os mencionados preceitos legais na sua leitura conjugada fixados nos artºs 703.°, nº1 , alínea b) e 707.°, ambos do NCPCiv., e o artº 818.° do CCiv .
XXVI. Pelo que, não podendo esta subsistir, deve ser a mesma revogada e declarar-se ter as recorrentes título executivo bastante para se verem pagos os seus créditos através dos bens imóveis dados de hipoteca, como se requer respeitosamente a este Ilustre Tribunal da Relação.”
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A executada E... ofereceu resposta ao recurso, defendendo a confirmação da decisão recorrida, por – em suma - a escritura dada à execução não constituir título executivo, sendo uma mero título de constituição de uma garantia real relativamente a créditos que nem nela, nem em documentos conexos, se identificam.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foi recebido neste Tribunal da Relação e tido por devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Tal como decorre do anteriormente referido, o objecto do recurso reduz-se a apurar se a escritura de constituição de hipoteca junta com o requerimento executivo constitui título executivo que possa fundar a execução.
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Para a apreciação das questões descritas, é útil ter presente os seguintes elementos, que resultam dos próprios autos:
1 – As exequentes intentaram a presente execução pretendendo a cobrança dos seguintes créditos: C..., S.A., um total de €7.585,13, a título de capital, a que acrescem juros de mora; C..., S.A., um total de €437.330,92, sendo €372.787,53 a título de capital e o restante de juros.
2 – De todos esses créditos, apenas o valor de €7.585,13, pretendido pela C..., S.A., bem como um total de 39.045,34€, incluído na pretensão indemnizatória da C..., S.A,. respeitam a valores descritos como facturados entre Julho de 2012 e Janeiro de 2013, e entre Março e Julho de 2012, respectivamente, correspondendo este último valor a montantes parciais do preço de viaturas vendidas a F..., LDA; sendo todos os outros montantes referidos a operações decorridas entre 2008 e 2009.
3 – No requerimento executivo, alegaram que os executados constituíram, através de escritura de 16/11/2011, em seu favor, hipoteca voluntária unilateral sobre diversos imóveis “para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presente ou futuras, da sociedade F..., LDA, emergentes do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou de quaisquer operações de financiamento ou afins, até ao montante máximo global de capital de €300.000,00 (trezentos mil euros) e acessórios” e que, em 13.06.2013, a referida sociedade F...,LDA, foi declarada insolvente, tendo sido liquidada.
4 – Alegaram que reclamaram os seus créditos nessa insolvência, que lhes foram reconhecidos pelos valores referidos, mas que nada receberam.
5 – Como título executivo, juntaram cópia da escritura de constituição da referida hipoteca, onde a executada E... e marido declararam constituir hipoteca voluntária unilateral sobre diversos imóveis ali descritos, de sua pertença, “para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, presentes ou futuras da sua concessionária, "F..., LDA" (…) emergentes do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou de quaisquer operações de financiamento ou afins, independentemente da referida forma ou natureza, em especial, mas sem restrição, provenientes de garantias bancárias prestadas ou a prestar, créditos documentários, operações cambiais à vista ou a prazo, empréstimos ou aberturas de crédito de qualquer espécie, fianças, livranças, letras e seus descontos, avales em títulos de crédito, responsabilidades por endosso e outros, financiamentos concedidos pela permissão da utilização a descoberto de contas de depósito à ordem, e contratos de locação financeira, de aluguer de longa duração ou de aluguer operacional, até ao montante máximo global de capital de TREZENTOS MIL EUROS". E que, “(…) para além da referida quantia de capital, no montante máximo de até trezentos mil euros, as hipotecas ora constituídas garantem ainda os juros remuneratórios que sobre ele se vençam, até à taxa que se fixa, apenas para efeitos de registo, em oito por cento ao ano, a sobretaxa de até quatro por cento, na mora e a título de cláusula penal, e, bem assim, as despesas judiciais e extra judiciais que as referidas sociedades venham a ter de fazer para obter o reembolso dos seus créditos, despesas que, para efeitos de registo, se fixam em trinta mil euros, tudo no montante global máximo para efeitos de registo de QUATROCENTOS E TRINTA E OITO MIL EUROS (438.000,00€).”
6 – Na mesma escritura, ficou a constar “que os documentos que representam os créditos da B..., S.A., da L..., S.A., e da M..., S.A. e, bem assim, toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca, constituirão títulos ou documentos respeitantes a esta escritura, dela fazendo parte integrante para efeitos de execução, sendo caso disso.”
7 – Perante tal requerimento, o tribunal proferiu o seguinte despacho: “Antes do mais, e compulsado o requerimento executivo e da exposição sucinta dos factos, apenas resulta que o exequente juntou o comprovativo de ter garantia real sobre os executados, relativamente a créditos contraídos consigo.
No entanto, não juntou qualquer título executivo nem alegou quaisquer factos de onde provenha o seu crédito, sendo certo que da escritura não resulta qualquer confissão de dívida, mas, como dissemos, tão só que o crédito exequendo beneficia de garantia real.
Assim, e ao abrigo do disposto no artigo 726/4 do Código de Processo Civil, convido o exequente a juntar aos autos o título executivo de onde resulte o seu crédito e a completar o requerimento executivo, quanto aos factos, alegando de onde resulta o seu crédito, data de incumprimento e valores em dívida, no prazo de 10 dias, sob pena de vir a ser indeferido o requerimento executivo.”
8 – Em resposta a tal interpelação, as exequentes ofereceram articulado onde afirmaram que o valor dos créditos exequendos é o que lhes foi reconhecido no processo de insolvência da "F..., LDA”, conforme as certidões extraídas desse processo; e, bem assim, que a documentação que agora apresentavam era a mesma que haviam apresentado para instruir as reclamações de créditos naquele processo, onde nenhuma impugnação havia sido oposta.
9 – E juntaram extracto de conta-corrente e facturas de onde resultava o crédito de €7.585,13 a favor da C..., S.A., bem como facturas, extractos de movimentos a débito e crédito e um “Protocolo de Acordo de Contributo Financeiro Reembolsável”, celebrado em 1/10/2009, nos termos do qual teria conferido à "F..., LDA” um empréstimo de 70.000,00€ a reembolsar em 30 dias, de tudo resultando um crédito a favor da C..., S.A. num total €372.787,53 a título de capital, acrescendo aos dois créditos o montante de 124.631,85€ a título de juros, á data da entrada da acção em juízo.
10 – Foi, subsequentemente proferida a decisão recorrida, que concluiu não terem sido juntos que aos autos “quaisquer documentos que impliquem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação por parte dos ora executados, D... e E..., nem anterior nem posterior a 1 de setembro de 2013”, que os documentos juntos não têm “a força de título executivos” e que “as certidões juntas aos autos referentes ao reconhecimento dos créditos reclamados pelas ora exequentes junto do processo de insolvência da sociedade F..., Lda apenas certificam o reconhecimento do crédito das mesmas perante aquela sociedade e não perante os ora executados, não constituindo, assim, título executivo válido contra os ora executados.” Por isso, invocando o disposto no art. 726º, nº 2, al a) do CPC, indeferiu liminarmente o requerimento executivo.
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Como anteriormente se referiu, a questão a decidir traduz-se em aferir se a escritura de constituição de hipoteca junta pelas exequentes, associada ao reconhecimento dos créditos exequendos no processo de insolvência da "F..., LDA”, bem como aos documentos complementarmente juntos (extracto de conta-corrente, facturas, notas de crédito e débito, “Protocolo de Acordo de Contributo Financeiro Reembolsável”) todos emitidos sobre a referida insolvente, conforme reconhecido nesse processo, pode assumir eficácia executiva e fundar, nesta causa, a cobrança coerciva dos valores referidos, sendo certo que tais créditos são precisamente do género daqueles que tal hipoteca se destinava a garantir.
Desta análise não pode dissociar-se o teor da cláusula constante da escritura e referida supra, no ponto 5º, nos termos da qual as partes acordaram que “os documentos que representam os créditos da B..., S.A., da L..., S.A., e da M..., S.A. e, bem assim, toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca, constituirão títulos ou documentos respeitantes a esta escritura, dela fazendo parte integrante para efeitos de execução, sendo caso disso.”
O que acaba de referir-se comporta duas conclusões que, pela sua simplicidade, desde já se enunciam.
Em primeiro lugar, a escritura em questão, de per si, não pode assumir-se como título executivo. Nela não está descrita qualquer obrigação a favor das exequentes, que, mesmo através de um ulterior processo de liquidação, pudesse ser concretizada e feita cumprir coercivamente. É por isso que, nos termos da citada cláusula, o exercício do direito resultante da escritura, traduzido num puro direito real de garantia consubstanciado pela reserva de diversos prédios ali identificados à satisfação das obrigações presentes e futuras da "F..., LDA”, sempre implicaria a sua associação a “documentos que representam os créditos” das exequentes e, bem assim, “a toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca”.
Em segundo lugar, ao caso é indiferente a circunstância de o volume de créditos aqui invocados pelas exequentes lhes ter sido reconhecido no processo de insolvência da "F..., LDA”. Os efeitos desse reconhecimento circunscrevem-se a esse processo, ao qual as aqui executadas foram alheias. O reconhecimento de tais créditos destina-se a, ali, através da execução universal do património da insolvente, se satisfazerem, na medida do possível, os créditos reconhecidos. Mas o efeito declarativo referente, designadamente, ao valor do crédito ali reconhecido não pode impor-se a terceiros a esse processo, designadamente a quem tenha sido garante da insolvente e seja alheio ao processo de insolvência. A isso obsta o regime resultante dos arts. 619º, 580º e 581º do CPC. Aliás, duvidoso é até que se possa impor tal decisão ao próprio devedor, num outro processo que não o da insolvência.[1] Em qualquer caso, seguramente se não pode impor esse resultado às ora executadas.
Consequentemente, deverá ser em função de uma análise conjugada entre o teor da referida escritura e o dos documentos oferecidos pelas exequentes que haverá de se apurar da suficiência desse complexo documental para servir de título executivo.
Regendo sobre essa matéria, dispunha o art. 50º do CPC então vigente “Os documentos exarados ou autenticados, por notário (…), em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.” Esta norma foi replicada no novo CPC, sob o art. 707º.
Esclarecendo o teor desta norma, o Ac. do STJ de 4/5/99 (proc. nº 99A310, em dgsi.pt) refere: “I - O artigo 50º do CPC contempla dois tipos de situações: a) a convenção de prestações futuras, sendo indispensável, então, a prova de que "alguma prestação foi realizada para a conclusão do negócio"; b) a previsão da constituição de obrigações futuras, exigindo-se, aqui, a prova de que "alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes". II - Em ambas as situações a exequibilidade do documento fica dependente da apresentação de um outro documento, como prova adminicular, passado em conformidade com as cláusulas fixadas no primeiro. III - A forma desse outro documento - comprovativo da realização da prestação ou da constituição de obrigações - pode ser livremente estipulada na "escritura". IV - Todavia, tal documento complementar do "documento exarado ou autenticado por notário" tem de obedecer às condições neste previstas.”
No caso em apreço, podemos verificar, por um lado, que parte dos créditos cuja satisfação é pretendida por via desta execução, eram anteriores à data da constituição da hipoteca; e, por outro lado, que, estando em causa, quanto aos créditos ulteriores à data dessa escritura, aparentes negócios de fornecimento de automóveis, os documentos complementares hão-de demonstrar a realização de prestações, pelas exequentes, em cumprimento do negócio declarado pelas partes.
Em relação ao valor dos créditos anteriores, a escritura de constituição de hipoteca não pode servir de título executivo, mesmo complementada com os correspondentes documentos de suporte.
Com efeito, em relação a créditos anteriores à data da sua celebração, a escritura de constituição de hipoteca só poderia constituir título executivo desde que, simultaneamente, constituísse um documento recognitivo das dívidas. Nesse caso, alcançaria força executiva ao abrigo do disposto no art. 46º, nº1, al. b) do CPC em vigor ao tempo (1 - À execução apenas podem servir de base: b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.”
No caso sub judice, a escritura dada à execução não compreende o reconhecimento de qualquer obrigação, que do seu próprio teor, se possa extrair.
Com efeito, apesar de ali se referir que a hipoteca constituída sobre os diversos imóveis visa garantir todas e quaisquer responsabilidades presentes ou futuras da "F..., LDA”, nenhuma dessas “responsabilidades” é identificada, o que prejudica que, ao abrigo do citado preceito, a escritura em causa possa constituir título executivo apto à respectiva cobrança. Pelo contrário, desapoiada de um elemento declarativo (v.g., uma sentença) ou de um título executivo com força bastante, de per si, de onde resulte a demonstração dos créditos existentes nessa data sobre a "F..., LDA”, não pode tal escritura servir de suporte à pretensão executiva das exequentes, em relação a créditos anteriores. Ela não constitui, por si mesma, um documento recognitivo de qualquer obrigação concretamente definida, pelo que não é subsumível à al. b) do nº 1 do art. 46º citado.
Ao que acresce que os correspondentes documentos de suporte não constituem, nem títulos de crédito, nem documentos de confissão de dívida que pudessem constituir títulos executivos para cobrança dos valores a que se referem.
Consequentemente, a escritura em questão, mesmo complementada por tais documentos, não pode constituir título executivo para pagamento desses créditos anteriores à data da sua elaboração.
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Já em relação a créditos que, no âmbito do negócio de concessão comercial mantido entre as exequentes e a F..., LDA”, pudessem surgir, emergindo “do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou de quaisquer operações de financiamento ou afins, independentemente da referida forma ou natureza, em especial, mas sem restrição, provenientes de garantias bancárias prestadas ou a prestar, créditos documentários, operações cambiais à vista ou a prazo, empréstimos ou aberturas de crédito de qualquer espécie, fianças, livranças, letras e seus descontos, avales em títulos de crédito, responsabilidades por endosso e outros, financiamentos concedidos pela permissão da utilização a descoberto de contas de depósito à ordem, e contratos de locação financeira, de aluguer de longa duração ou de aluguer operacional”, cabe diferenciar a sua natureza, pois que em ambas as hipóteses do art. 50º do CPC elas poderão ser enquadráveis.
Assim, no respeitante a créditos emergentes do fornecimento de bens ou prestação de serviços, estaríamos em face da primeira alternativa prevista no preceito em questão. Nesse caso, para que a escritura pudesse constituir título executivo, haveria de ser complementada com documentos dos quais resultasse ter ocorrido um efectivo fornecimento de bens ou uma efectiva prestação de serviços.
Já quanto a eventuais operações financeiras, como as descritas na quele excerto da escritura, estaríamos perante a segunda hipótese da norma: a da previsão da constituição de obrigações futuras. Neste caso, para que a escritura pudesse constituir título executivo, de outro documento haveria de resultar a demonstração de que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.
Como se refere no Ac. do STJ supra citado, resulta ainda do art. 50º que a forma desses outros documentos - comprovativos da realização da prestação ou da constituição de obrigações - tem de obedecer às condições previstas na própria escritura.
No caso, a esse propósito, as partes estabeleceram, na escritura, o seguinte quanto a tais documentos: “documentos que representam os créditos da B..., S.A., da L..., S.A., e da M..., S.A. e, bem assim, toda a correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca, constituirão títulos ou documentos respeitantes a esta escritura, dela fazendo parte integrante para efeitos de execução, sendo caso disso”.
Ou seja, os documentos comprovativos de efectivos fornecimentos de bens ou serviços, ou da constituição de obrigações previstas pelas partes haveriam de ser “documentos que representam os créditos” ou “correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da presente hipoteca”.
Como se referiu anteriormente, em relação ao valor pretendido pela C..., S.A., de €7.585,13, os documentos de que este resultaria são constituídos por um extracto de conta corrente, que conclui por tal saldo, e respectivas facturas. Em relação ao valor de €39.045,34, tais documentos seriam constituídos por facturas de produtos que, segundo delas consta, teriam sido colocados à disposição do cliente na respectiva data.
Poder-se-ão considerar tais documentos comprovativos de efectivos fornecimentos de bens ou serviços, ou da constituição de obrigações previstas pelas partes, na escritura, por representarem os créditos ou constituírem correspondência trocada ao abrigo ou por efeito da hipoteca constituída?
Afigura-se-nos que a resposta a esta questão só pode ser negativa, como bem entendeu o tribunal recorrido.
Com efeito, os documentos em causa foram produzidos unilateralmente pelas próprias exequentes e não compreendem qualquer manifestação de aceitação pelo devedor a quem respeitavam (a insolvente F..., LDA). Nessa medida, não podem qualificar-se como “documentos que representem créditos” de qualquer das exequentes, pois que não pode admitir-se que os valores ali inscritos correspondam a um direito das exequentes, por terem realizado as prestações neles descritas, v.g., a entrega dos produtos referidos, pelos preços descritos e, no caso da C..., S.A., redundando no saldo de conta-corrente indicado. Como se referiu no Ac. do TRG de 12/5/2016 (proc. nº 3733/15.3T8VCT.G1, em dgsi.pt) “o contrato de compra e venda, em si, não reconhece à exequente qualquer crédito (…). Apenas lhe define as regras para a sua execução e as consequências em caso de incumprimento. Dele não resulta as obrigações ou créditos que a exequente diz que se venceram. O vencimento consta das facturas, na perspectiva da exequente, mas que não foram assinadas pela executada a reconhecer que deve o montante que nelas foi aposto.”
Por outro lado, nada revela que tais documentos tenham sido objecto de qualquer correspondência dirigida aos garantes, que constituíram a hipoteca em causa, nem ao próprio devedor. De resto, tais documentos são absolutamente alheios aos executados.
Por fim, tais documentos não constituem, de per si, títulos com força executiva.
Por todo o exposto, mesmo em relação aos créditos exequendos que teriam resultado de prestações ulteriores à data de constituição da hipoteca, concluímos que os documentos juntos e tendentes a complementar a respectiva escritura de hipoteca não são aptos a constituir um complexo documental que, face aos próprios termos em à luz do disposto no art. 50º do CPC vigente ao tempo (art. 707º do CPC actual), possa constituir título executivo, designadamente um título executivo capaz de sustentar qualquer dos segmentos das pretensões executivas das aqui apeladas.
Tal solução não implica, como é óbvio, qualquer juízo quanto à existência, ou não, dos créditos invocados pelas exequentes. Significa, tão só, que os documentos oferecidos como título executivo não permitem – como é da natureza dos títulos executivos - presumir que tais créditos existam tal como foram alegados, justificando-se satisfazê-los sem mais, à custa dos imóveis hipotecados. Por isso, na falência dessa presunção, não pode deixar de exigir-se a sua prévia verificação, ainda em sede declarativa. O que, como se referiu antes, não resultou suprido pela circunstância de tais créditos terem sido reconhecidos na insolvência da respectiva devedora.
Em conclusão, na ausência de título executivo, só poderia indeferir-se liminarmente a execução, em conformidade com o disposto na al. a) do nº 2 do art. 726º do CPC.
Deve, pois, confirmar-se a decisão recorrida, na improcedência da presente apelação.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelas apelantes.

Porto, 14/12/2017
Rui Moreira
Lina Baptista
Fernando Samões
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[1] Veja-se, a este propósito, o seguinte excerto do Ac. do TRC de 21/2/2017, proferido no proc. nº 6959/15.6T8CBR.C1, em dgsi.pt, que inclui útil referência a Lebre de Freitas, A Acção Executiva, À Luz do CPC de 2013: “Neste aspecto, aderimos à posição defendida por L. Freitas, expressa para a acção executiva singular (em A Acção Executiva, À Luz do CPC de 2013, 6ª Ed., págs. 370/373), mas aplicável, com as devidas adaptações ao concurso universal característico do processo de insolvência. Começa tal autor por alertar que a verificação e graduação de créditos não oferece ao devedor garantias idênticas ou equiparáveis às da acção declarativa comum, pois nela vigora o efeito cominatório pleno (art. 791º, nº 4, do NCPC) que não ocorre no processo declarativo comum. Assim, o reconhecimento do crédito não impugnado tem lugar, ainda que os factos alegados pelo reclamante não permitam essa conclusão, e que o executado não tenha tido efectivo conhecimento da reclamação por causa de não ter sido pessoalmente notificado do despacho que admita as reclamações.
Avança, dizendo, que se essa constatação levará a defender que o caso julgado material só se produz na acção de verificação e graduação de créditos quando o executado nela tenha intervenção efectiva ou quando para ela tenha sido notificado e todos os créditos sejam impugnados, a consideração de que, em qualquer caso, o objecto da verificação e graduação não é tanto a pretensão de reconhecimento do direito de crédito como a do direito real que o garante, relega o conhecimento do crédito para o campo dos pressupostos da decisão, como tal não abrangido pelo caso julgado.
Isto porque, explica (citando doutrina italiana), a prova do crédito não respeita ao crédito em termos absolutos, como acontece na acção declarativa, mas só ao crédito enquanto concretizado no direito a participar na distribuição do produto da venda. Corolário importantíssimo é que a admissão à distribuição tem o seu valor limitado à própria distribuição. Dela não nasce nenhum caso julgado a fazer valer em acções futuras.
Assim, prossegue tal autor, se explica que, apesar de expressamente reconhecer a força de caso julgado, nos termos gerais, às sentenças de mérito proferidas nos embargos de executado (art. 732º, nº 5, do NCPC) e nos embargos de terceiro (art. 349º), o Código nada diga sobre a sentença sobre a sentença de verificação e graduação de créditos.
O caso julgado produz-se, pois, apenas quanto ao reconhecimento do direito real de garantia, ficando por ele reconhecido o crédito reclamado só e na estrita medida em que funda a existência actual desse direito real.
(…) Perfilhamos, por isso, este entendimento, de não possibilidade de formação de caso julgado material na acção de verificação e graduação de créditos (também comunga do mesmo entendimento Salvador Costa, em Concurso de Credores, 5ª Ed., 2015, pág. 234)”