Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
40/17.0GCOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSE CARRETO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RECIPROCIDADE
Nº do Documento: RP2018050940/17.0GCOAZ.P1
Data do Acordão: 05/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 21/2018, FLS 98-110)
Área Temática: .
Sumário: I - Se nada impede a prática do crime de violência doméstica por parte de ambos os agressores em momentos divergentes, posto que nessa ocasião apenas um seja vitima e o correspectivo bem jurídico saia lesado.
II - Contudo, o crime de violência doméstica já não pode ser cometido em reciprocidade, quando estamos perante actos agressivos recíprocos, na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, pois que o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória não é afectado, não traduzindo essas acções tratamento desumano e degradante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 40/17.0GCOAZ.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C. C. nº 40/17.0GCOAZ do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira -Juiz 1 foi julgado o arguido
B...

O MP, ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, e do artº 21.°, nºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, deduziu pedido de reparação da vítima, peticionando a condenação do demandado/arguido a pagar àquela a quantia de 20.000,00 (vinte mil euros), ressarcido desse modo os danos de natureza não patrimonial por si sofridos.

Após julgamento por acórdão de 18/12/2017 foi proferida a seguinte decisão:
“FACE AO EXPOSTO, julga-se a acusação pública parcialmente procedente e, por conseguinte, acorda o Tribunal Coletivo em:
a) Absolver B... da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.os 1, alínea b), 2, 4 e 5, do Código Penal de que vinha acusado.
b) Convolar o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.os 1, alínea b), 2, 4 e 5 do Código Penal, imputado ao arguido num crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.°, n.º 1, do Código Penal e, em consequência, condenar o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.°, n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos).
c) Absolver B... da prática de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.°, n.º 1, alínea a), do Código Penal de que vinha acusado.
d) Absolver B... da prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.°, n.º 1, 155.°, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 131.°, todos do Código Penal de que vinha acusado. INSTÂNCIA CÍVEL
e) Julgar improcedente o pedido de reparação da vítima deduzido, absolvendo o demando do mesmo.
*
Em face do que acima se decide:
Declaram-se cessadas as medidas de coacção impostas ao arguido [artigo 35.°, nº5 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e artigo 214.°, n01, al. d) do CPP] com exceção do TIR.
Dê conhecimento à DGRSP - equipa de vigilância electrónica.
Condena-se o arguido nas custas processuais relativas à parte criminal, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC [cfr. artigos 513.° n.º 1 e 514.° n.º 1, todos do Código de Processo Penal e artigo 8.°, n.05 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Sem custas cíveis, atenta a isenção subjetiva do MP.
*
Após trânsito:
• Remeta boletim ao Registo Criminal - artigo 6.°, n." 1, alínea a), da Lei n." 37/2015, de 05 de Maio.
• Comunique à SGMAI, para efeitos de registo e tratamento de dados de acordo com o que dispõe o artigo 37.°, nº1 e com as limitações do nº2, da Lei 112/2009, de 16/9 [com as alterações introduzidas pela Lei nº 129/2015, de 03/09].

Recorre o Mº Pº o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
1) Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos autos, no qual o Coletivo de Juízes “a quo” na parte em que decidiu absolver o arguido B... da prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b), 2, 4 e 5, co Código Penal; convolar o referido crime num crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, n.º1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €5,50; e, julgar improcedente o pedido de reparação da vítima deduzido, absolvendo o demandado do mesmo.
2) Salvo devido respeito por opinião contrária, não podemos concordar com a posição adotada pelo Coletivo de Juízes uma vez que, em nosso entender, in casu, os factos dados como provados no douto Acórdão preenchem o tipo objetivo e subjetivo do crime de violência doméstica.
3) No que se reporta ao tipo objetivo e ao agente do crime, temos que resulta dos factos provados que: “O arguido B... e a ofendida C... mantiveram uma relação de namoro entre maio e agosto de 2015 e viveram como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de cama, mesa e habitação, entre agosto de 2015 e novembro de 2015, sendo que mantiveram, após a cessação da coabitação, relação de namoro, com frequentes visitas do arguido a casa da/ ofendida, durante as quais mantiveram relações sexuais. Durante o período da coabitação, fixaram residência na Rua ..., n.º ..., Oliveira de Azeméis e, posteriormente, na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis e na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis.”
4) O arguido B... manteve com a vítima uma relação análoga à dos cônjuges, relação íntima existente de facto durante o período dos factos, pelo que o arguido integra o conceito de agente do referido crime.
5) Conforme resulta dos factos provados o arguido, de forma reiterada, no interior da residência, na presença da filha de C..., dirigiu a esta insultos, “Sua puta, sua ordinária, sua vaca, sua cabra! Tu não vais ser de mais ninguém!, “És uma vaca, és uma puta! Não és para mim, não és para mais ninguém! Eu mato-te!” e “És uma puta, és uma vaca, andas com todos, és uma boieira, eu mato-te, sua puta! Se não fores minha não vais ser de mais ninguém!” e, no dia 5 de março de 2017, pelas 14.30 h, no exterior da residência da ofendida, sita na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis, o arguido dirigiu àquela as seguintes expressões “És sempre a mesma merda, já fazes de propósito para te esqueceres da carteira, sabias que eu não tinha gasóleo! És uma puta, és uma vaca! E “Vai-te foder minha puta do caralho!”, factos dados como provados e que integram uma reiteração de maus tratos psíquicos verbais dirigidos à ofendida de forma reiterada, durante todo o período da relação e que inequivocamente prejudicam o bem estar psicológico da mesma.
6) Mais resulta dos factos provados que o arguido durante todo o relacionamento infligiu à ofendida maus tratos físicos, “em quantidades não concretamente apuradas mas por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da ofendida e na presença da filha D..., o arguido desferiu no corpo da ofendida bofetadas e empurrões, projetando-a contra o chão e as paredes” e no dia 5 de março de 2017, pelas 14.30 h, no exterior da residência da ofendida, sita na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis, “agarrou a ofendida e desferiu-lhe três bofetadas na zona dos olhos, dizendo em seguida: “Eu mato-te!”, provocando-lhe lesões “dores faciais, com a mímica facial; na face, equimose arroxeada peri-orbicular, bilateral, lesões que lhe determinaram, como consequência direta e necessária, quatro dias para a cura, sendo um dia com afetação da capacidade de trabalho geral e quatro dias com afetação da capacidade de trabalho profissional”.
7) As condutas descritas preenchem inequivocamente o tipo objetivo do crime de violência doméstica.
8) Quanto ao elemento subjetivo resultou provado que o arguido conhecia a relação especial que mantinha com a vítima e agiu com dolo direto tendo com o seu comportamento reiterado o propósito de molestar física e psicologicamente a ofendida: “Sabia o arguido que com a sua descrita conduta lesava a sua companheira e namorada na saúde física e mental, como efetivamente lesou, diminuindo-a, como mulher, na sua autoestima, que prejudicava a sua liberdade de ação, lesando a sua integridade física, e ainda que atacava a sua dignidade como pessoa, mulher e mãe, e que perturbava o seu bem-estar no lar, espaço que deveria estar associado a sentimentos de segurança e harmonia, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima e na presença da filha menor da mesma. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei”.
9) Pelo que os factos provados preenchem o tipo legal de crime de violência doméstica, quer quanto aos elementos objetivos do tipo, quer quanto aos elementos subjetivos do tipo.
10) Verifica-se igualmente a qualificativa prevista no artigo 152º, n.º2, do Código Penal, porquanto dos factos provados resulta que grande parte dos factos foram praticados na residência comum ou da vítima e na presença da filha da vítima ainda menor.
11) No nosso entendimento não resulta dos factos provados qualquer reciprocidade adequada a afastar o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica.
12) Não resulta dos factos provados que a ofendida tenha insultado ou agredido o arguido nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar em que foi agredida e insultada pelo mesmo, mas apenas que desde o início do relacionamento também o insultou e o ameaçou. Tal, afasta qualquer reciprocidade ou, pelo menos, a mesma não resulta provada.
13) A reciprocidade pressupunha agressões e insultos recíprocos, isto é, no mesmo tempo, lugar e contexto, o que claramente não é o que resulta dos factos provados.
14) Mais se refira que não resulta dos factos provados e dos não provados que as agressões e insultos proferidos pela vítima mais não foram de que uma reação ao comportamento reiterado por parte do arguido de infligir maus tratos físicos e psíquicos à C.... Porque se foram em reação ao comportamento maltratante do arguido também não seriam adequados a afastar o preenchimento do crime de violência doméstica por parte do arguido, mesmo seguindo o entendimento do Tribunal.
15) Por conseguinte, e ao contrário da posição assumida pelo Coletivo de Juízes, entendemos que o comportamento do arguido descrito nos pontos 1 a 13 dos factos provados integra a prática, pelo mesmo, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b) e 2 do Código Penal, com pena de dois a cinco anos de prisão.
16) Quanto à pena afigura-se-nos apresentar-se como adequada e justa a aplicação ao arguido duma pena de prisão não inferior a 3 anos, que deverá ser suspensa na sua execução por idêntico período.
17) Estão verificados os pressupostos para ser arbitrada à vítima um quantum indemnizatório pelos prejuízos sofridos.
18) Pelo que deverá ser fixada à vítima uma indemnização no valor de €5.000,00.
19) O Tribunal ao decidir como decidiu violou o disposto nos artigos 152º, n.ºs 1, al. a), 2, 14º, n.º1 e 26º, todos do Código Penal.
Nestes termos e nos demais de direito, que os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto se dignarão suprir, revogando-se o Douto Acórdão proferido nos autos e condenando o arguido, em autoria material pela prática de um crime de violência doméstica, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 152º, n.ºs 1, al. b) e 2, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e fixando como valor de reparação à vítima o montante de €5.000,00, far-se-á a já costumada justiça.

Não foram apresentadas respostas
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição):
“II. FUNDAMENTACÃO DE FACTO
2.1. Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma, resultaram PROVADOS os seguintes factos:
1) O arguido B... e a ofendida C... mantiveram uma relação de namoro entre maio e agosto de 2015 e viveram como se de marido e mulher se tratassem, em comunhão de cama, mesa e habitação, entre agosto de 2015 e novembro de 2015, sendo que mantiveram, após a cessação da coabitação, relação de namoro, com frequentes visitas do arguido a casa da ofendida, durante as quais mantiveram relações sexuais.
2) Durante o período da coabitação, fixaram residência na Rua ..., n.º ..., Oliveira de Azeméis e, posteriormente, na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis e na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis.
3) Com o arguido e a ofendida residiu também a filha desta, D..., atualmente com três anos de idade.
4) Desde o início do relacionamento, o arguido dirigiu à ofendida, em quantidades não concretamente apuradas mas por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da mesma e na presença da filha D..., as palavras "Sua puta, sua ordinária, sua vaca, sua cabra! Tu não vais ser de mais ninguém!, "És uma vaca, és uma puta! Não és para mim, não és para mais ninguém! Eu mato-te!" e "És uma puta, és uma vaca, andas com todos, és uma boieira, eu mato-te, sua puta! Se não fores minha não vais ser de mais ninguém!".
5) Desde o início do relacionamento, em quantidades não concretamente apuradas mas por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da ofendida e na presença da filha D..., o arguido desferiu no corpo da ofendida bofetadas e empurrões, projetando-a contra o chão e as paredes.
6) No dia 5 de março de 2017, pelas 14.30 h, no exterior da residência da ofendida, sita na Rua ..., n.º ..., ..., ..., Oliveira de Azeméis, o arguido dirigiu àquela as seguintes expressões "És sempre a mesma merda, já fazes de propósito para te esqueceres da carteira, sabias que eu não tinha gasóleo! És uma puta, és uma vaca! e "Vai-te foder minha puta do caralho!
7) O arguido abandonou o local e a ofendida dirigiu-se a um estabelecimento de café com a filha D... e com a vizinha E....
8) Quando regressou a sua casa, passados aproximadamente 30 minutos, o arguido esperava-a no interior do seu veículo automóvel de marca Opel, modelo ..., cor branca, que estava estacionado junto à casa da ofendida.
9) Ato contínuo, o arguido agarrou a ofendida e desferiu-lhe três bofetadas na zona dos olhos, dizendo em seguida: "Eu mato-te!"
10) N essa sequência, a ofendida foi socorrida pelo INEM e transportada para o Hospital ..., em Santa Maria da Feira e, em seguida, para o Hospital ..., no Porto.
11) Como consequência direta e necessária da agressão que lhe foi infligida pelo arguido, a ofendida sofreu dores faciais, com a mímica facial; na face, equimose arroxeada peri-orbicular, bilateral, lesões que lhe determinaram, como consequência direta e necessária, quatro dias para a cura, sendo um dia com afetação da capacidade de trabalho geral e quatro dias com afetação da capacidade de trabalho profissional.
12) Sabia o arguido que com a sua descrita conduta lesava a sua companheira e namorada na saúde física e mental, como efetivamente lesou, diminuindo-a, como mulher, na sua autoestima, que prejudicava a sua liberdade de ação, lesando a sua integridade física, e ainda que atacava a sua dignidade como pessoa, mulher e mãe, e que perturbava o seu bem-estar no lar, espaço que deveria estar associado a sentimentos de segurança e harmonia, como efetivamente veio a suceder, não se coibindo de adotar tais comportamentos na residência da vítima e na presença da filha menor da mesma.
13) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Resulta da contestação que:
14) Nas circunstâncias referidas em 4), a ofendida dirigiu ao arguido, em quantidades não concretamente apuradas mas por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da mesma e na presença da filha D..., as palavras "Filho da puta, boi, cabrão! Tu não vais ser de mais ninguém! Não és para mim, não és para mais ninguém! Eu mato-te!"
15) Nas circunstâncias referidas em 5), a ofendida dirigiu ao arguido, em quantidades não concretamente apuradas mas por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da ofendida e na presença da filha D..., a ofendida desferiu no corpo do arguido bofetadas e empurrões, projetando-a contra o chão e as paredes.
Provou-se ainda que:
16) O arguido está desempregado, aufere 421,00€ mensais.
17) Vive com a esposa e com uma filha, maior de idade.
18) Paga a título de renda 300,00€ mensais.
19) Tem como habilitações literárias o 40 ano de escolaridade.
20) E não tem antecedentes criminais.
*
2.2. De resto, não se provou que:
a) Desde o início do relacionamento, o arguido dirigiu à ofendida, por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da mesma e na presença da filha D..., as palavras: Eu mato-te a ti e à tua filha. Eu acabo com a tua vida e a seguir acabo com a minha! Eu não me importo de ir preso mas vais para o cemitério, acredita que te mato!"
b) Desde o início do relacionamento, por mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da ofendida e na presença da filha D..., o arguido desferiu no corpo da ofendida murros, pontapés, puxões de cabelo
c) Desde o início do relacionamento, em quantidade não apuradas mas mais do que uma vez, inclusive no interior da residência da ofendida, o arguido dirige-lhe as palavras "Sua puta, quero foder-te! Eu estraguei o meu casamento por tua causa, agora tens que me dar a cona, e se não maderes a bem dás a mal!", obrigando-a deste modo a manter consigo relações sexuais e cópula completa.
d) Desde o início do relacionamento, de modo frequente e reiterado, inclusive no interior da residência da ofendida, o arguido agredindo-a por vezes com empurrões para o chão e apertões no pescoço, dirigindo-lhe as expressões "E vais ter, mesmo que não queiras vais ter", deste modo logrando manter com a mesma coito oral e anal, causando-lhe bastantes dores.
e) Em data não concretamente apurada do ano de 2015, anterior ao dia 6 de dezembro, o arguido ameaçou a ofendida, exibindo-lhe uma arma de fogo, na presença de um dos filhos da ofendida, à data com 12 anos de idade.
f) No dia 6 de dezembro de 2015, na via pública, junto à residência de ambos, sita na Rua ..., n.º ..., ..., Oliveira de Azeméis, o arguido dirigiu à ofendida as palavras "És uma puta de uma vaca!".
g) Nessa sequência, a ofendida perguntou ao arguido o que estava a dizer e empurrou-o.
h) Ato contínuo, o arguido desferiu um murro no rosto da ofendida e desferiu pontapés, atingindo-a na mão direita.
i) Como consequência direta e necessária da agressão que lhe foi infligida pelo arguido, a ofendida sofreu dores nas zonas atingidas; na face, edema ligeiro da região zigomática esquerda; no membro superior direito, escoriação no dorso da mão ocupando área com 7 por 5 cm de maiores dimensões; lesões que lhe determinaram, como consequência direta e necessária, cinco dias para a cura, em afetação da capacidade de trabalho geral.
j) Que nas circunstâncias referidas em 6), o arguido tenha dito: "Mato-te um dia destes!" e És uma vaca, eu mato-te se não fores minha!".
k) O arguido saiu do automóvel e, após uma troca de palavras, disse à ofendida "És uma puta! Mato-te!" e -o sua puta, sua vaca, tu andas metida com o K...!".
1) Ato continuo, o arguido agarrou a ofendida e desferiu-lhe dois murros na zona dos olhos.
m) Em datas não concretamente apuradas, durante o relacionamento que manteve com a ofendida, e anteriores a 7 de março de 2017, na sequência de conversas telefónicas relacionadas com a relação entre o arguido e a ofendida, o arguido dirigiu a F..., de modo sério, a expressão "Eu mato-a também se está a ser por ela!".
n) O arguido sabia ainda que, ao utilizar ameaça de uso de violência e a força física contra a ofendida, a obrigava a manter consigo relações sexuais de cópula completa, de coito oral e anal, contra a vontade da mesma e sem o seu consentimento, e desse modo violava a sua liberdade sexual, visando satisfazer os seus impulsos sexuais, com total desconsideração pela integridade física e pela liberdade sexual da ofendida, o que quis.
o) Coagindo-a a manter o relacionamento com o mesmo.
p) O arguido sabia que as expressões que dirigiu a F..., considerando o contexto e o modo como foram proferidas, eram suscetíveis e adequadas a fazê-la temer pela sua vida.
q) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas, referidas em a) a 1), proibidas e punidas por lei.
*
Restante matéria revelou-se de teor conclusivo, direito e/ ou irrelevante.
III. MOTIVAÇÃO DO TRIBUNAL
Funda-se a convicção do Tribunal, quer positiva, quer negativa, no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente nos depoimentos das testemunhas ouvidas, atendendo-se, neste último caso, à respetiva coerência, congruência, objetividade e isenção, sem prejuízo da consideração pelos documentos e relatórios periciais constantes dos autos, meios de prova conjugados com as regras gerais da experiência e com a normalidade do acontecer, de acordo com a lógica que sempre tem de presidir à apreciação da prova, como se explicará infra, não esquecendo ainda a livre convicção como que o Tribunal aprecia toda a prova - ef. artigo 127.0 do CPP.
1. Para dar como provada a factualidade constante nos pontos 1) a 9), alicerçamos a nossa convicção nas declarações prestadas pelo arguido B... e as demais prova testemunhal como infra se explicará.
Com efeito, o arguido de forma livre e sem qualquer reserva confessou os factos que se deram como provados, designadamente o que consta nos pontos 1) a 8) e, em parte, o ponto 9).
Esclareceu de forma que o tribunal considerou sincera que abandonou a esposa para ir viver com a ofendida nas moradas indicadas na acusação. Passou, desde as datas descritas na acusação, a manter um relacionamento estável, partilhando a habitação com a ofendida e a filha desta.
Caraterizou o relacionamento vivido com a ofendida como conflituoso mas o conflito era bilateral, ou seja, as agressões, quer físicas, quer verbais, ocorriam de parte a parte, mas que tudo terminava e era esquecido, acabando, por regra, em envolvimento sexual consensual. Tratava-se de uma relação possessiva de parte a parte e com episódios de ciúme.
Nega peremptoriamente que alguma vez tenha obrigado a ofendida a manter relações sexuais consigo. Referiu que todo o relacionamento sexual que manteve com a ofendida foi sempre consentido e pretendido por ambas as partes. Esclareceu que era a própria ofendida quem o convidava sempre que compareceu na sua habitação e que esta situação sucedeu mesmo após a separação. Disse ser preferência e manifestação de vontade da própria ofendida a prática de coito anal e oral.
Confessou, em parte, o acontecimento que teve lugar no dia 5 de março de 2017.
Neste episódio, confirmou que apenas desferiu uma bofetada na face da ofendida, negando que a mesma tivesse caído ao chão. Refere que desde esta data nunca mais contatou com a ofendida, nem o pretende fazer, uma vez que voltou para o convivo da família e que está a tentar reatar o seu casamento.
Negou ainda a detenção de qualquer arma e, consequentemente, que alguma vez tenha ameaçado a ofendida ou os seus familiares com a mesma.
No que concerne ao episódio ocorrido no passado dia 5 de março de 2017, o tribunal valorou essencialmente o depoimento de E... [54 anos, amiga e vizinha da ofendida], que a acompanhava a ofendida no referido episódio e confirmou de forma objetiva, isenta, credível, que o arguido desferiu três bofetadas na face da ofendida.
Confirmou, ainda, que o arguido a ameaçou que a matava, mas negou que tivesse desferido murros, pontapés ou que a ofendida tivesse caído ao chão.
Negou também que o arguido tivesse dito qualquer palavrão.
Por fim, confirmou que as discussões entre o arguido e a ofendida eram frequentes. De forma objetiva e isenta, contrariando a versão da ofendida - não obstante a relação de amizade que tem com esta - e confirmando a versão do arguido, referiu que as discussões eram frequentes e mútuas, quer as agressões físicas, quer as verbais, na sua expressão «andavam os dois à lapada». Assim como se insultavam um ao outro com «filho / a da puta, vaca, boi, cabrão, vai pro caralho», entre outros impropérios.
A secundar, ainda, as declarações do arguido, o Tribunal valorou os depoimentos de F... [56 anos, senhoria e a quem a ofendida telefonava sempre que havia problemas], que relatou de forma objetiva, circunstanciada e credível a convivência do casal, esclarecendo o Tribunal que, em regra, era a própria ofendida quem provocava a desordem. Aliás chegou a proibir o arguido de entrar no apartamento e que este cumpriu essa proibição. Porém, passado algum tempo, foi a própria ofendida quem lhe pediu para que voltasse a permitir que o arguido a entrar em casa. E que era a própria ofendida quem telefonava ao arguido para comparecer. Uma vez mais este depoimento contraria o afirmado pela ofendida, que negou que convidasse o arguido para a sua casa e que só permitia esta situação, porque este a ameaçava contra a vida.
Acrescentou que uma vez presenciou a ofendida a tentar agredir o arguido, ao mesmo tempo que o injuriava, e que apenas não o logrou fazer devido à intervenção dos vizinhos. Sendo que, neste episódio por si presenciado, o arguido se manteve impávido e sereno.
Concluiu, como afirmado pelo arguido e as restantes testemunhas, que as agressões físicas e verbais ocorriam de parte a parte.
A infirmar a relação conflituosa de parte a parte, o Tribunal valorou também os depoimentos, objetivos, credíveis, de G... e H..., namorado e filha do arguido, respetivamente, que demonstraram conhecimento direto dos factos por frequentarem, por regra, diariamente a habitação do casal.
Os seus depoimentos revelaram-se coincidentes mas sem que se tenha detetado que estivessem pré-consertados.
Confirmaram que as discussões entre o casal que presenciaram eram, essencialmente, verbais. Não obstante não terem assistido a qualquer agressão física, confirmaram que frequentemente a ofendida esbofeteava o arguido ao mesmo tempo que afirmava que o fazia por brincadeira. Todavia, numa dessas brincadeiras, a bofetada terá provocado a queda de um dente ao arguido.
Confirmaram que assistiram a um vídeo que terá sido publicado na página de Facebook da ofendida, em que a mesma filmava o seu envolvimento sexual com o arguido. Esta publicação foi também confirmada pela testemunha I... [27 anos, sobrinho do arguido] que também visualizou o referido vídeo e confirma, como as demais, que o vídeo foi filmado pela própria ofendida e o sexo praticado era consensual, sendo a própria ofendida que solicitada que o arguido a agredisse e insultasse.
Relataram o episódio que teve lugar num bar de "Karaoke", em que a ofendida se envolveu em confronto físico com duas senhoras, que a esbofetearam e puxaram pelos cabelos, por a arguida ter arremessado uma garrafa com água a outra senhora que estaria a cantar. Este episódio foi confirmado, por o terem presenciado, nos mesmos termos que as testemunhas anteriores por J... E I.... Negando uma vez mais a versão da arguida que apontava ao arguido a autoria do arremesso da garrafa de água.
2. No que concerne à prova pericial:
Atendeu-se à guia tratamento para o utente de fls. 4; ao episódio de urgência de fls. 200/201 e 205; em conjugação com o teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 209/210, mormente para apurar as lesões apresentadas pela ofendida C..., a data da sua consolidação, suas consequências e origem.
*
3. Os factos relativos ao elemento subjetivo, resultam da valoração conjugada dos meios de prova acima enunciados, à luz das regras de experiência comum. O conhecimento da ilicitude de condutas desta natureza é a da generalidade dos cidadãos.
4. A situação pessoal, profissional e familiar do arguido resultou do teor das suas declarações, não existindo nos autos qualquer elemento que os possa infirmar.
*
5. Em relação aos antecedentes criminais, teve-se em consideração o seu CRC.
*
FACTOS NÃO PROVADOS
Os factos dados como não provados resultam em face da ausência de prova produzida que os pudessem confirmar.
Desde logo, o Tribunal não ficou convencido que tenha ocorrido o episódio da violação ou qualquer ato semelhante. E, não ficou convencido, porque duvidou de veracidade do depoimento prestado pela ofendida, mas principalmente, porque nem a própria ofendida o confirmou de forma coerente e compatível com as regras da normalidade.
Vejamos.
A ofendida refere que após a separação apenas recebia o arguido em sua casa atentas as ameaças à sua vida e da sua filha proferidas por aquele.
Sucede que, como já referido, este facto não se revelou verdadeiro. Foi, inclusive, totalmente contrariado pela restante prova testemunhal, designadamente pelo depoimento da senhoria F... que confirmou que era a própria ofendida quem lhe pedia que autorizasse a presença do arguido em sua casa. Este pedido ocorreu mesmo após a senhoria da ofendida ter proibido a presença do arguido e, como aquela confirma, este ter deixado de frequentar a casa.
Confirmou também que era a própria ofendida quem ligava ao arguido para este comparecer em sua casa, mesmo após a separação, como foi confirmado pelo arguido.
O que contraria de todo a versão apresentada pela ofendida.
Por outro lado, se atendermos ao declarado pela ofendida, todo o circunstancialismo relatado por aquela não se compatibiliza com a alegada violação. Ora, ao mesmo tempo que diz ter sido obrigada a manter relações sexuais, diz que o arguido aguardou em sua casa com o objetivo de ter relações sexuais consigo, objetivo esse que a ofendida já tinha conhecimento, razão pela qual ainda lhe terá dito que deveria aguardar se quisesse "estar" com ela. Nestas circunstâncias, após a filha ter adormecido, a ofendida confirma que permitiu que o arguido ficasse a dormir consigo na mesma cama, onde permaneceu toda a noite, mesmo após a suposta violação. Este conjunto de factos não se compatibilizam com a ocorrência de uma violação, nem permitem ao Tribunal concluir pela sua ocorrência.
Acresce que a ofendida acabou por dizer - contrariando o que consta na própria acusação - que foi violada por 2/3 vezes. Sucede que inexiste qualquer registo destas ocorrências, nem a ofendida a participou a qualquer entidade, nem a relatou anteriormente a mais ninguém. Ora, este lapso de memória anterior, não é compatível com a normalidade. Também não é compatível com as regras da normalidade que a ofendida tivesse continuado a permitir o arguido frequentasse a sua casa e ainda solicitasse à senhoria que o continuasse a autorizar a frequentar.
O depoimento da ofendida, atenta as supra aludidas contradições, mostra-se, inevitavelmente, fragilizado.
No que concerne à ameaça com uma arma, não obstante a busca não foi apreendida qualquer arma na posse do arguido e o arguido negou que alguma vez possuísse uma arma. Estas ausências, conjugadas com as já apontadas contradições no depoimento da ofendida, não permitiu que o Tribunal se convencesse da sua prática.
O episódio referente ao dia 6 de dezembro de 2015 foi negado pelo arguido e pela própria ofendida.
Relativamente à troca de palavras referida em h), assim como as expressões injuriosas, são negadas pela testemunha E..., que presenciou os factos e cujo depoimento que o Tribunal considerou isento, objetivo e credível e contraria o depoimento da ofendida.
Por não ter sido confirmado nem pelo arguido nem mesmo pela ofendida o Tribunal não deu como provada as ameaças referidas em j). Aliás, não se compatibiliza com as circunstâncias em que as mesmas foram proferidas, quando manifestava desagrado pelo facto da arguida não ter consigo dinheiro, tenha dito "eu mato-te se não fores minha!".
A ameaça a F... foi negada pela própria assim como pelo arguido.
+
São as seguintes as questões a apreciar:
- Se esta verificado o crime de violência domestica e se existe o crime em caso de reciprocidade
- Medida da pena
- Reparação patrimonial
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in Dr. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor: “é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
Tais vícios não são alegados e vista a decisão recorrida não os vislumbramos

Conhecendo:
A discórdia decorre do facto de o recorrente entender que ocorre com os factos provados o crime em apreço de violência doméstica ao contrário do tribunal que entende não haver tal crime em caso de reciprocidade de lesões.

Expressa o recorrente:
“Do ponto de vista da conduta típica consiste em infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, de modo reiterado ou não. Os maus tratos físicos são os mais simples de reconhecer, embora não sejam os mais frequentes. Podem traduzir-se em ações muito diversas, incluindo bofetadas, murros, pontapés, beliscões, empurrões, abanões, puxões de cabelo, mordeduras, compressões de partes do corpo com as mãos ou objetos, traumatismos com objetos, queimaduras, intoxicações, ingestão ou inalação forçadas, derramamento de líquidos, imersão da vítima ou de partes do seu corpo. Podem também decorrer da omissão de cuidados indispensáveis à vida, saúde e bem-estar da vítima (relativamente a vítimas dependentes ou indefesas, nomeadamente em razão da idade ou do estado de saúde) (Teresa Magalhães, Violência e Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas, Estado da Arte, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010). Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se podem traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à vítima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desvalorizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (Teresa Magalhães, Violência e Abuso…, cit.). A modalidade mais grave de violência doméstica, que alguns autores designam por “intimate terrorism” (Michael P. Johnson, A typology of domestic violence - intimate terrorism, violent resistance, and situational couple violence, Boston, Northeastern University Press, 2008) e outros por “coercive control” (Evan Stark, How men entrap women in personal life, Oxford, Oxford University Press, 2007), tem como particularidade a circunstância de o (…) objetivo do agressor ser alcançar um total controlo e poder sobre a vítima. Nestes casos, a conduta do agressor, geralmente do sexo masculino, é delineada a médio/longo prazo e, começando muitas vezes de forma insidiosa, com comportamento aparentemente movidos por romantismo, dependência afetiva e/ou ciúme, vai-se progressivamente convertendo numa estratégia global em que, através de diferentes formas de intimidação, isolamento, vigilância e perseguição da vítima, o agressor intenta que aquela fique completamente na sua dependência e à sua mercê. Até à revisão de 2007 do Código Penal, discutiu-se na jurisprudência e na doutrina se o então designado crime de maus tratos exigia ou não a reiteração das condutas. O legislador, procurando ultrapassar tal controvérsia, determinou que o crime de violência doméstica pode ser cometido por dois modos alternativos: através de uma conduta reiterada ou de uma única conduta.”
Por seu lado o tribunal recorrido expressa:
“Na senda do doutamente decidido pelo acórdão da Relação do Porto, datado de 09.01.2013, processo 31/09.5GCVLP.P1, consultado na base de dados da DGSI, consideramos que o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade, como de facto ocorreu no presente caso.
Seguindo de perto o citado acórdão, questionamos se será que pode haver crime de violência doméstica cometido por ambos os cônjuges reciprocamente?
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5 AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, in ob. e loc. Cit., pág. 333.
6 ANDRÉ LAMAS LEITE, in A Violência Relacional Íntima, Revista Julgar, Setembro/Dezembro de 2010, pág. 49.
7 AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO) in ob. e loc. citados, pág. 334.
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Também, como naquele, consideramos que não.
Diz-se naquele acórdão que a «intenção do legislador era a de, por essa via, protege o elemento mais fraco, mais dependente, mais vulnerável do casal.» (...)
«o tipo legal constante do artigo 152° do Código Penal, que cobre ações típicas semelhantes àquelas que se acham já prevenidas noutros tipos legais (artigos 143° ofensas à integridade física, 183° injúrias, 163° coação sexual), não pode ser visto como reconduzindo-se à punição de um qualquer somatório de comportamentos deste tipo ocorridos entre pessoas que, a ligá-las, tenham, ou tenham tido, uma qualquer relação de proximidade familiar ou afetiva; o seu fundamento deve ser encontrado na proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal - conjugal ou não - vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas.»
Desta mesma forma ele se encontra caraterizado por André Lamas Leite, quando refere que o mesmo tem como fim o "(...) asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima de tipo familiar ou análogo (...)" sendo este bem jurídico multímodo "(...) uma concretização do direito fundamental (artigo 25° da C.R.P.) mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26° da C.R.P.), nas dimensões não recobertas pelo artigo 25° da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana.
(...) A degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do designado concurso legal, com ele se relacionam"
Sendo assim, podemos assentar, no que concerne ao crime de violência doméstica da previsão do artigo 152.° do Código Penal, que não pode ser cometido com reciprocidade.»
Assim, quando, como no presente caso, duas pessoas ligadas por particulares relações interpessoais, discutem, se insultam e agridem, reações resultantes de uma concreta e determinada situação vivencial de tensão e conflito, sendo os seus comportamentos equivalentes do ponto de vista da censurabilidade, não se alcançando qualquer posição de domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem distinguindo um como vítima e o outro como agressor.
Com efeito, ficou demonstrado que as agressões físicas, as agressões verbais ou mesmo as ameaças, decorriam de forma mútua, e não se demonstrou uma predominância de um dos intervenientes relativamente ao outro.
Face ao supra exposto, as situações provadas que constam dos pontos 4) a 9) dos factos provados não se enquadram na previsão na previsão do artigo 152º do Código Penal, ou seja, no tipo legal de violência doméstica.”

Em face do expendido quer pelo recorrente quer pelo tribunal recorrido, afigura-se-nos que por qualquer tópico que se analise a situação dos autos, não tem razão o recorrente, independentemente do caracter indeterminado dos factos da acusação constantes dos nºs 4 e 5 afectar o seu valor como integrantes do crime em causa (cf. ac. RP de 30/9/2015 www.dgsi.pt: “I- As imputações genéricas sem indicação precisa do tempo, lugar e circunstancialismo em que ocorreram, inviabilizam um efetivo direito de defesa devem considerar-se não escritas”).
O tribunal recorrido fundamentou a sua decisão fundamentalmente por entender que “o crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade”- ac RP 9/1/2013 www.dgsi.pt
Tal questão não só não é líquida, como não tem sido debatida.
Cremos que tal asserção é correcta quando estamos perante actos agressivos recíprocos na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, não por serem recíprocos mas por o fundamento do ilícito penal (o bem jurídico) protegido com tal crime não estar a ser afectado, por em um confronto com o outro, com igual gravidade, não se poder considerar estar a ser afectada a dignidade humana de um perante o outro, ambos capazes e portadores da mesma (in)dignidade, que por essa via não vemos que o direito deva nesse confronto proteger qualquer dignidade, não se manifestando por esse comportamento uma qualquer subjugação ou sujeição ou submissão eivada de medo resultado da aflição de um mal.
Sendo a que nosso ver, nada impede a prática de tal ilícito por parte de ambos os agressores em momentos divergentes, posto que nessa ocasião apenas um seja vitima e o bem jurídico saía lesado.
É neste sentido e com este propósito, que cremos que os factos não preenchem o ilícito em causa, por não ter sido atingido o bem jurídico lesado, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, atingindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro, como aliás salienta o citado ac RP 9/1/2013 “I - O bem jurídico tutelado pelo art. 152.º do CP, é plural e complexo, visando, essencialmente, a defesa da integridade pessoal (física e psíquica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. II – Este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação”.
Na verdade resulta dos factos provados agressões reciprocas (fora da ofensa à integridade física pelo qual o arguido foi condenado), pelo mesmo com igual intensidade ofensiva sendo a fundamentação muito expressiva sobre o modo de relacionamento entre o arguido e a ofendida, sem que dai resulte qualquer tentativa de domínio ou de subjugação, ou uma vivencia de medo ou de tensão.
Assim tendo em conta, o já descrito e como temos escrito constantemente, cf. ac. RP de 12/10/2016 www.dgsi.pt que:
“Característica indelével do crime de violência doméstica é o seu bem jurídico, que lhe confere não apenas autonomia mas legitimidade constitucional (artº 18º CRP) de interferência / regulação/ limitação, nas relações humanas e sociais, num âmbito específico destas (relações familiares ou análogas).
Assim fundamental na apreciação de tal ilícito é que os factos em que se desdobra (ou o facto em que se traduz - pois que tanto pode ser um como vários - de modo reiterado ou não, infligir maus tratos – artº 152º 1 CP) signifiquem a afectação da dignidade pessoal da vítima através do seu desrespeito como pessoa traduzida a mais das vezes no desejo de sujeição/dominação sobre a mesma e a sua manipulação.
Dos termos legais do artº 152º1 CP resulta a nosso ver que o conceito de violência doméstica podendo traduzir-se em actos reiterados ou não, deles têm de resultar “ maus tratos físicos ou psíquicos”, o resultado da actuação tem de traduzir uma gravidade que vá para além da simples ofensa em causa.
Mau trato, traduz ..., uma ofensa à dignidade humana (em concreto da pessoa visada, e em toda a sua plenitude: física e mental), bem jurídico abrangente que (para além da saúde) está subjacente a toda a protecção legal (cfr. Comentário Conimbricense do Cód Penal, I, Coimbra, 1999, pág. 232), o que tem de ser entendido para além da integridade física ou da honra (objecto de protecção de outras normas penais, cf. ac RG.10/7/2014 www.dgsi.pt: “Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar”), e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar), ou seja é necessário que justifique a sua autonomia, pondo em causa a relação existente entre agressor e ofendido.
Por isso cremos dever entender que infligir maus tratos físicos e/ou psíquicos, significa na economia do artº 152º CP, pôr em causa a saúde do ofendido nas suas diversas vertentes: física (ofensa á integridade física), psíquica (humilhações, provocações, ameaças, coacção ou moléstias), desenvolvimento e expressão da personalidade e dignidade pessoal (castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais, etc.) - que constituem o complexo bem jurídico protegido pela norma incriminadora e traduzem-se num complexo de acções por parte do agente que pressupõem na maioria das vezes “ uma reiteração das respectivas condutas” – cfr. por todos, Comentário Conimbricense ao Cód Penal, tomo I, págs. 332 a 334, ou quando assim não seja - sendo uma só acção - como se expressa o STJ no Ac de 14/11/97 CJ III, 235 “… as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente é que cabem na previsão do art. 152.º do Código Penal” ou quando a conduta do arguido “se revista de uma gravidade tal que seja suficiente para … comprometer a possibilidade devida em comum” -Ac. R. Évora 23/11/99 CJ V, 283, ou “se revelar de uma certa gravidade ou traduzir, da parte do agente, crueldade, insensibilidade ou até vingança” -Ac. R. E. 25/1/05, CJ I, 260, ou ainda “O crime de maus tratos exige uma pluralidade de condutas ou, no mínimo, uma conduta complexa, que revista gravidade e traduza, por exemplo, crueldade ou insensibilidade” - Ac. R. Porto 12/5/04, www.dgsi.pt, proc. 0346422.
Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica.
Cremos ser este o sentido do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt, e do ac. R.P 30/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, sob pena de não revelando a conduta do agente o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (cf. Valadão e Silveira, Maria Manuela “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in APMJ, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) o crime não se mostrar fundamentado.
O que fundamenta tal ilícito são pois os actos que, como expressa o Ac. TRP 28/9/2011 www.dgsi.pt/jtrp “… pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.” e nos casos de actos singulares tem de se verificar esta especial qualidade da acção, sob pena de não se mostrar preenchido o ilícito em causa. Cfr. Ac.R.P de 30/1/2008 www.dgsi.pt/jtrp “Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo do crime de maus-tratos previsto no art. 152º do C. Penal não se baste com uma acção isolada (nem tampouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), vem entendendo a generalidade da jurisprudência que existem casos em que uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal.”
Daí resulta, e em conclusão, que é à luz da ofensa do bem jurídico protegido e logo da mens legislatoris que as condutas ilícitas únicas ou reiteradas devem ser apreciadas no sentido de preencherem ou não o tipo legal, no sentido de revelarem um tratamento insensível ou degradante da condição humana da pessoa atingida. (cfr. também ac. TRP 26/5/2010 www.dgsi.pt/jtrp), e de modo a evitar uma situação de “…domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.” in Ac. TRP 9/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, ou de desprezo ou desconsideração por parte do agente (ac TRG de 1/07/2013 www.dgsi.pt), ou mais amplamente como expressa a RLisboa no ac. de 05/07/2016 www.dgsi.pt “ 1. O crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152.º, do Código Penal, após a autonomização operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.”
Estão assim em causa situações degradantes em que em face das condições e necessidades actuais não são prestados os cuidados necessários e adequados ao bem estar de uma pessoa enquanto tal dotada de dignidade, princípio informador e suporte de toda a sociedade (artº 1º CRP)
Por isso se justifica que no tipo legal caibam as situações reais traduzidas em privações de bens essenciais, que lesam esse bem jurídico e ofendem o bem estar necessário à vida pessoal e a que todas as pessoas têm direito como pessoas dotadas de dignidade como se expressa no ac. TRC de 16/01/2013 www.dgsi.pt: “O bem jurídico protegido no tipo legal de crime de violência doméstica reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesem essa dignidade. Tendo o arguido privado a sua esposa do acesso á água, gás, electricidade, telefone e correio, na casa onde ambos habitavam, deve interpretar-se tal conduta, segundo as regras da experiência comum, como a privação dos bens essenciais no espaço da residência que será o reduto de maior tranquilidade de qualquer pessoa, constituindo uma forte humilhação e privação do que de mais essencial se espera desse espaço privado, atentatória da dignidade humana e quem assim actua não pode desconhecer esse facto (basta que se coloque mentalmente na mesma situação).”, aceitando-se e fazendo sentido por isso que, como expende Ribeiro de Faria, M. Paula, Os crimes praticados contra idosos, UCE, Porto, 2015, pág. 15 (cf. motivação do recurso) sofre maus tratos físicos e psicológicos a pessoa de idade que não é alimentada, não beneficia de cuidados médicos necessários, o que tudo ou a nosso ver se traduz (ou pode traduzir) na omissão das acções adequadas a evitar tal resultado, fazendo sentido e aceitando-se por isso que em causa está “ a protecção de um estado de completo bem estar físico e mental” como defende Nuno Brandão, A tutela penal especial da violência domestica, Julgar, 12 especial, Set/ Dez 2010 pág.16;”
afigura-se-nos que os factos praticados não põem em causa o bem jurídico tal como entendido supra, não podendo tais acções ser qualificadas como tratamento desumano e degradante, pondo em causa a dignidade da pessoa visada pelo que não se mostrando verificada a ofensa do bem jurídico protegido, tais actos não preenchem o ilícito em causa, assumindo autonomia, tal como decidiu o tribunal recorrido os ilícitos integrantes do concurso.
Não ocorre por isso motivo para alterar a decisão recorrida, e dada a ausência de outras questões de que cumpra conhecer em face da prejudicialidade das demais questões suscitadas, improcede o recurso
+
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo Mº Pº e em consequência mantém o acórdão recorrido.
Sem custas.
Notifique.
Dn
+
Porto, 09/05/2018
José Carreto
Paula Guerreiro