Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
589/12.1TAVFR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ACÓRDÃO DO STJ
REENVIO
RENOVAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RP20161123589/12.1TAVFR.P2
Data do Acordão: 11/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: REENVIO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1033, FLS.94-96)
Área Temática: .
Sumário: No caso de em recurso do acordão da Relação o STJ, assacar ao acordão recorrido os vícios do artº 410º 2 CPP e, não podendo estes ser sanados com base na documentação da prova, nem haver sido requerida a renovação da priva, impõe-se o reenvio do processo para a 1ª instancia para novo julgamento limitado aos vícios assinalados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 589/12.1 TAVFR.P2
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

Inconformada com o acórdão, aqui proferido (fls. 957 e segs.), que, concedendo provimento ao recurso interposto pelas demandantes civis da decisão absolutória da 1.ª instância, julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização que formularam, a demandada “Companhia de Seguros B…, S.A.” dele recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Por acórdão de 14.07.2016 (fls. 1116 e segs.), o STJ concedeu parcial provimento a esse recurso e, por considerar verificados no acórdão recorrido os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de “contradição insanável entre a factualidade provada e fundamentação da matéria de facto”, ordenou o reenvio do processo para esta Relação “para novo julgamento circunscrito às questões enunciadas nos pontos 3 e 4 deste acórdão”.
Vejamos quais são essas questões de facto que terão de ser objecto de novo julgamento.
Do elenco de factos que na 1.ª instância foram considerados provados e como tal integrados na sentença, fazia parte o n.º 11 com o seguinte conteúdo:
11- A cerca de 17 metros de distância o arguido apercebeu-se da presença de um vulto no local em causa sendo que a cerca de 7 metros de distância travou e guinou repentinamente para a sua direita, a fim de tentar evitar atingir a pessoa caída;
Aqui, na Relação, esse ponto foi alterado, passando a ser do seguinte teor:
11 - A cerca de 17 metros de distância do local onde estava caído o C… e tombado o seu velocípede, o condutor do veículo HI apercebeu-­se da sua presença, sendo certo que podia ter avistado, quer um, quer outro, a uma distância de, pelo menos, 30 metros.
Na fundamentação da decisão argumentou-se que qualquer condutor sabe que as luzes de um veículo automóvel na posição de «médios» iluminam e permitem avistar um obstáculo a uma distância de 30 metros (cfr. artigo 60.º, n.º 1, al. b), do Código da Estrada) e, por conseguinte, se o condutor seguir com a devida atenção e adequar a velocidade do veículo automóvel que conduz às concretas condições de trânsito, não terá dificuldade em imobilizá-lo antes de chegar ao obstáculo.
Neste caso, menor seria a dificuldade na medida em que o obstáculo constituído pelo C… e o seu velocípede caídos no pavimento da faixa de rodagem não constituiu uma situação, de todo, inesperada para o condutor do veículo atropelante, já que este foi, atempadamente, alertado para a situação de perigo (n.º 6 do elenco de factos provados) e por isso podia e devia ter evitado o atropelamento.
Foi, em apertada síntese, por estas razões que, em sintonia com jurisprudência do STJ que se mencionou, se concluiu que o comportamento do condutor do veículo atropelante foi concausal do acidente mortal e, portanto, que houve concorrência de culpas.
Porém, outro foi o entendimento que prevaleceu no STJ, como se constata pela seguinte passagem do douto acórdão:
Dito por outras palavras, entendemos que o facto do condutor do veículo HI poder ter avistado o obstáculo a 30 metros e tendo-o apenas avistado a 17 metros de distância não é, por si só, suficiente para imputar o resultado ao condutor do veículo HI – é necessário que se tivesse provado que, se o tivesse avistado a 30 metros, o lesante teria evitado o atropelamento.
Ora, não consta da factualidade dada como provada este facto, isto é, que o condutor do veículo HI, avistando a 30 metros a vítima no solo, circulando a velocidade não superior a 50 Km/h, podia imobilizar o veículo nesse espaço livre e visível à sua frente, e evitado o atropelamento”.
Por estas razões, concluiu o STJ que o acórdão da Relação padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Mais se entendeu naquele Tribunal Supremo que a forma de ultrapassar a insuficiência factual apontada, ou seja, para se apurar se, circulando o veículo HI a uma velocidade não superior a 50 Km/h, de noite, avistando o obstáculo no solo a 30 metros de distância, podia ter evitado o atropelamento, é através da realização de uma perícia.
Relevante seria, ainda, “saber qual a inclinação da via – dado que o veículo circulava a uma velocidade não superior a 50 Km/h (facto provado 1), qual seria a distância necessária à imobilização da viatura atenta a velocidade, as características do veículo em causa, e a inclinação (em sentido ascendente atento o sentido de marcha) da via. Devendo, também aqui, saber-se se o veículo circulava com carga ou não, e qual o relevo desta circunstância para a distância necessária à completa imobilização da viatura”.
Mais ainda, haverá que saber “se estando a vítima imobilizada com o corpo em paralelo com o veículo parado (facto provado 7), e tendo sido accionados sinais de luzes (facto provado 6), qual a distância entre o corpo e o veículo, e se as luzes quando accionadas iluminavam ou não o corpo. E tratando-se de um acidente que ocorreu no dia 23.03.2012, pelas 20:05 (facto provado 1), ou seja, quando já era noite, cumpre saber se aquelas luzes accionadas não poderão encadear um qualquer condutor que circule em sentido contrário”.
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O outro vício que o STJ vislumbrou no acórdão da Relação é o da “contradição entre a factualidade dada como provada e a fundamentação de facto”.
Como já se referiu, no n.º 11 do elenco de factos provados, o tribunal de 1.ª instância consignou que, quando estava a cerca de 7 metros de distância do “vulto” (de cuja presença se apercebeu quando estava a cerca de 17 metros), o condutor do veículo automóvel “travou e guinou repentinamente para a sua direita, a fim de tentar evitar a pessoa caída”.
É este segmento destacado que foi eliminado no ponto 11 e a decisão está assim fundamentada:
“Uma tal manobra (travagem e guinada repentinas do veículo), normalmente, deixaria marcas bem visíveis no pavimento da estrada. E sendo essas marcas sinais que podem constituir elemento importante na reconstituição do acidente, qualquer estagiário de polícia não deixaria de as descrever na respectiva participação. No entanto, nada disso foi assinalado na participação do acidente aqui em causa elaborada pela GNR, o que legitima a conclusão de que tais marcas não existiam. E, se não existiam, nenhuma corroboração probatória têm as declarações do condutor do veículo atropelante, pois nenhuma das testemunhas que presenciou o acidente confirma esse facto. Por isso, muito mal se compreende que o tribunal tenha justificado o acolhimento da versão do condutor do veículo limitando-se a afirmar que atendeu às declarações do “arguido” D… que descreveu “a manobra de recurso que realizou para tentar evitar o atropelamento daquela e dado a sua explicação para o facto de não o ter conseguido”.
Não olvidamos que no nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador), pelo que, em regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o princípio da livre convicção do julgador.
Corolário lógico desse princípio, é a liberdade que o juiz tem de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração e pode considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só testemunha.
Porém, sempre se impõe que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Ora, como já se salientou, a testemunha D… foi arguido e esteve acusado da prática de um crime de homicídio por negligência e a circunstância de ter sido absolvido (e ter beneficiado da passividade do Ministério Público) não o fez perder interesse no desfecho do processo.
Não estando, minimamente, justificada a opção do tribunal de, quanto a esse ponto, lhe conferir crédito total, manifestamente, impõe-se alterar a decisão recorrida”.
Acontece que, por manifesto lapso, não se eliminou, como se impunha, no n.º 12 do elenco de factos provados, o segmento inicial “Pese embora aquela manobra de recurso” e daí ter o STJ concluído pela existência do vício da “contradição entre a factualidade dada como provada e a fundamentação de facto”.
*
Delimitado o objecto do reenvio parcial, importa definir a quem cabe efectuar o novo julgamento.
Sobre este reenvio (do STJ para a Relação), dispõe o n.º 2 do artigo 426.º do Código de Processo Penal:
“O reenvio decretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de recurso interposto, em 2ª instância, de acórdão da relação é feito para este tribunal, que admite a renovação da prova ou reenvia o processo para novo julgamento em 1.ª instância”.
Impõe-se, então, saber qual das hipóteses desta alternativa (renovação da prova/reenvio do processo para a 1.ª instância) se aplica a este caso.
Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição actualizada, …..) esclarece:
“A Lei n.º 48/2007, de 29.8, regula especificamente o caso de reenvio ordenado pelo STJ em recurso interposto, em segunda instância, de acórdão do TR. O reenvio deve ser feito para o TR, que pode determinar a renovação da prova ou o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância. A Lei n.º 48/2007, de 29.8, não diz quando deva ter lugar cada uma destas soluções, mas elas resultam da aplicação dos princípios gerais relativos aos poderes de cognição do TR. Assim, tendo havido renovação da prova no julgamento no TR, o TR deve, após o reenvio ordenado pelo STJ, determinar segunda renovação da prova, sempre que o vício possa ser sanado com essa repetição do julgamento em segunda instância. Tendo havido renovação da prova no julgamento no TR, o TR deve, após o reenvio ordenado pelo STJ, determinar o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância, sempre que o vício não possa ser sanado com a repetição do julgamento em segunda instância. Não tendo havido renovação da prova no julgamento no TR, o TR, deve, após o reenvio ordenado pelo STJ, determinar o reenvio do processo para novo julgamento em primeira instância.
Em nenhuma circunstância pode haver renovação da prova depois do reenvio do STJ para o TR quando essa renovação não teve lugar no primeiro julgamento realizado pelo TR, pois a renovação depende sempre da iniciativa do recorrente (artigo 411.°, n.º 5) e, não tendo ela sido oportunamente requerida pelo recorrente no momento próprio, não se renova o prazo para esse efeito depois da ordem de reenvio do STJ”.
Assim é porque, como se refere no acórdão do STJ, de 13.09.2007 (acessível em www.dgsi.pt), “o STJ não reenvia directamente o processo para o tribunal de 1.ª instância”.
É sabido que, a partir da reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a regra passou a ser a do julgamento do recurso em conferência.
Excepcionalmente, admite-se a realização de audiência.
Um dos dois casos em que tal é possível é, justamente, quando o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, pede a renovação da prova (artigos 412.º, n.º 3, al. c), e 430.º, n.os 1 e 3, do Cód. Proc. Penal).
A renovação da prova constitui um regime excepcional, pois que “havendo documentação da prova, os vícios do art.º 410.º, n.º 2, podem ser logo conhecidos e corrigidos com base nessa documentação da prova e, portanto, não há necessidade de renovação da prova no TR, nem de reenvio do processo. Mas não podendo os vícios do artigo 410.º, n.º 2, ser corrigidos com base nessa documentação da prova, então deve o TR ordenar a renovação da prova para esse efeito, de preferência ao reenvio” (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 1169).
Cabe, em especial, fazer notar que “renovação da prova” não é repetição do julgamento, ou a realização de um segundo julgamento.
Como faz notar o Prof. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, III, UCE, p. 353, trata-se de renovação da prova produzida em 1.ª instância e não de produção de prova nova.
Ora, não houve lugar a audiência na Relação para renovação de prova, desde logo, porque ninguém a requereu.
Por isso impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento na 1.ª instância.
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Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em ordenar o reenvio do processo para novo julgamento na 1.ª instância com observância das regras estabelecidas nos artigos 426.º-A e 40.º, al. c), do Código de Processo Penal, sendo o novo julgamento limitado às questões supra identificadas.
Sem tributação.

(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 23/11/2016
Neto de Moura
Ana Bacelar