Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
281/14.2GCAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HORÁCIO CORREIA PINTO
Descritores: LEGITIMIDADE
QUEIXA
UNIÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP20180124281/14.2GAAVR.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 746, FLS 63-72)
Área Temática: .
Sumário: Tem legitimidade para apresentar queixa, por ter a disponibilidade de fruição das utilidades das coisas, o companheiro de união de facto, enquanto esta perdurar, em face da gestão comum dos bens patrimoniais, permitindo a qualquer dos interessados a defesa da intangibilidade desses bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 281/14.2GCAVR.P1
Acordam os juízes que integram esta 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

Relatório.
Procedeu-se a julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, de:
B...., filho de C... e de D..., nascido na freguesia ..., concelho de Aveiro, recepcionista, divorciado, residente na Avenida ..., n.º .., ..º F- Trás, Aveiro.
Discutida a causa o tribunal a quo condenou o arguido como autor material de um crime de abuso de confiança previsto e punido pelo artº 205 nº1 do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), num total de 1200 € (mil e duzentos

Resultaram provados os seguintes factos:
1 - O arguido B... é conhecido do ofendido E... e sobrinho de F....
2 - Em data não concretamente apurada, mas que ocorreu em 2010/2011, recebeu do ofendido e da tia supra identificada, que lhe pediram que os guardasse, na garagem que tinha arrendada, sita na Rua ..., ..., ..., os seguintes bens móveis:
- Uma mobília completa de quarto;
- Um roupeiro;
- Várias panelas e tachos em alumínio;
- Uma máquina de lavar, de cor branca;
- Um frigorífico da marca Philips;
- Um micro-ondas, de cor branca;
- Um fogão em inox de 4 bicos;
- Várias peças em louça e em porcelana;
- Várias peças de roupa de cama, lençóis, cobertores;
- Várias peças de toalhas;
- Uma carpete em arraiolos, de sala, de 3 x 3 metros.
3 - O ofendido acordou com o arguido que o mesmo os guardaria em tal local, até que o arguido mudasse de residência, altura em que o ofendido retiraria os referidos bens.
4 - O arguido recebeu os ditos bens dos ofendidos, para proceder ao depósito dos mesmos e posterior entrega ao seu legítimo dono.
5 - Desde que os recebeu atá à data, manteve-os consigo e na sua disponibilidade, até que, em data não concretamente apurada, mudou de residência, sem comunicar tal mudança ao ofendido, levando os bens que lhe foram entregues consigo.
6 - O tempo foi decorrendo, o ofendido insistindo com o arguido B... para que o mesmo procedesse à entrega objectos entregues.
7 - De evasiva em evasiva, o ofendido jamais conseguiu a entrega dos objectos por parte do arguido, apesar de instado pelo ofendido para o fazer, o arguido B..., nada fez, mantendo em sua posse os objectos que bem sabia não lhe pertencerem, e dando-lhes destino diverso.
8 - Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo ser ilícita a respectiva conduta e, apesar de tal consciência, não se coibiu de a prosseguir, alcançando desse modo o correspectivo resultado delituoso.
9 – Agiu com o propósito concretizado de, causando prejuízo aos ofendidos, se apoderar em proveito próprio do valor representado pelos objectos em causa, pertença daqueles, aproveitando-se da sua relação pessoal com o ofendido que confiou no arguido B....
10 - O arguido não tem antecedentes criminais.
11 – É recepcionista de hotel, auferindo cerca de 800 € por mês. Paga 250 € de renda por mês. Vive sozinho.
12 – Os bens em causa foram adquiridos, uns pelo ofendido, outros pela testemunha F... e outros por ambos, sendo que todos se destinavam a integrar o recheio da casa de ambos.
Não se provou que
O descrito em 2 tenha ocorrido no mês de Outubro de 2013.
O arguido tenha mudado de residência em Outubro de 2014.
Os bens descritos em 2 tenham um valor de 5000,00 € (cinco mil euros).

Motivação.
No CRC junto aos autos
O arguido admitiu que recebeu alguns bens a pedido da tia em 2010/2011, para os guardar, pedido que lhe foi feito por esta, alegadamente ir para o Canadá e não ter onde pôr as coisas. No entanto, apenas recebeu uma cama, dois colchões, duas mesas-de-cabeceira e duas ou três caixas de calçado e roupa. Admitiu depois, durante o depoimento que também lhe foram entregues louças e tachos e um mini frigorífico. No entanto, quando mudou de casa em 2013, entregou-lhe tudo. Mais tarde, a irmã e pai entregaram ainda uns caixotes que, por esquecimento, não tinha entregue.
Depôs o ofendido E... que confirmou a matéria constante da acusação. Referiu que vive com a tia do arguido e que, em data que não pode precisar mas, em 2010/2011, pediram ao arguido para lhes guardar uns bens pois que iam residir para casa de sua mãe. Referiu que alguns bens foram adquiridos por ambos e outros pela companheira. Quando pediram os bens de volta, o arguido respondeu sempre por evasivas e nunca lhes devolveu os bens.
Depôs também F..., tia do arguido que depôs, confirmando o depoimento do companheiro e confirmando quais os objectos que foram entregues ao arguido – os que constam da acusação. Disse ainda que parte dos bens foram adquiridos por ela, parte pelo companheiro mas que, vivendo juntos, ambos consideram que todos os bens pertencem aos dois.
Depôs de forma absolutamente clara, resultando do seu depoimento que os factos lhe provocaram amargura por estar em causa a conduta de um sobrinho em quem confiou. Explicou ainda que desconhece o sítio onde o arguido reside e tentou contactá-lo diversas vezes, por telefone, que nunca lhe foi atendido, excepto uma vez em que usou um número diferente. Assim, a única forma de contactar o arguido foi dirigir-se ao hotel onde o mesmo trabalha, aí indo algumas vezes. No entanto, o mesmo nunca lhe devolveu nada.
Mais disse que um dia, o pai do arguido foi a sua casa levar-lhe uns caixotes com um saco de coisas velhas que não lhe pertenciam, coisas que eram lixo. Quando viu o que lá estava dentro foi devolver o saco e deixou-o à porta porque o pai do arguido não estava em casa. Mostrou-se indignada com este comportamento – “Isto não se faz”.
Depôs ainda a testemunha G... que acompanhou as anteriores testemunhas quando estas levaram as coisas para casa do arguido. Confirmou ter ido entregar os bens descritos na acusação.
No que se refere à prova arrolada pela defesa a mesma não mereceu qualquer credibilidade. Depôs a testemunha H..., irmã do arguido que começou por dizer que, a pedido do irmão, entregou à tia caixotes com louças, sapatos, roupas e tapetes (duas passadeiras), nada mais tendo sido entregue. Nessa entrega participaram ela e a filha, pedindo ao pai para lhe indicar a residência da tia. Quando confrontada com as declarações prestadas em sede de inquérito, constantes de fls. 73, altura em que referiu que por ela e pelo irmão foram devolvidos um frigorífico, uma mesinha de cabeceira, dois colchões e uma cama e que posteriormente o pai é que entregou uns caixotes com calçado e tachos, acabou por se desdizer, alegando estar confundida e serem verdadeiras as declarações prestadas em inquérito.
Este depoimento não mereceu qualquer credibilidade.
Finalmente depôs a testemunha C..., pai do arguido, que depôs afirmando que pouco conhecimento tem dos factos. Sabe apenas que a filha foi entregar umas caixas a casa da tia, tendo-lhe para tanto perguntado onde esta morava. Depois, no mesmo dia, apareceram uns caixotes à sua porta. Colocou-os no lixo, presumindo que fossem os mesmos que a filha entregara à tia
Tal depoimento, se é concordante com o depoimento da filha, prestado em sede de julgamento, é contraditório com o depoimento da mesma, prestado em sede de inquérito.
No entanto, note-se que este depoimento confirma que, de facto, a ofendida devolveu o que lhe foi entregue e que essas coisas não tinham qualquer valor.
Face ao depoimento do ofendido e das testemunhas F... e G... que depuseram todas de forma clara, essencialmente concordante, espontânea e sincera em contraponto com as contradições existentes entre os depoimentos do arguido e das testemunhas por este arroladas, não resultam dúvidas que o arguido praticou os factos constantes da acusação.
Não se logrou provar o valor dos bens, pois que nenhuma prova foi carreada aos autos sobre essa matéria.
(…)
Foi invocada, em sede de alegações, a falta de legitimidade do ofendido para apresentar queixa. Ora, tal invocação improcede necessariamente pois que, como resultou da matéria provada, todos os bens, independentemente de quem os tivesse adquirido, se destinavam a integrar o recheio da casa do ofendido e da testemunha F.... Assim, qualquer um deles teria legitimidade para apresentar queixa, pois que ambos são titulares do direito protegido por lei.
(…)
Recurso do arguido B....
Conclusões:
I - Mal andou o tribunal a considerar que o queixoso teria legitimidade para apresentar a queixa e por essa via condenar o arguido.
II - Isto porque, a queixa que deu origem ao processo foi apresentada por E..., não tendo a sua companheira F... por qualquer modo manifestado vontade de procedimento criminal contra o arguido.
III - Todavia a douta decisão dá como provado no seu nº2 da mesma, que em data não concretamente apurada, mas que ocorreu em 2010/2011, recebeu do ofendido e da tia supra identificada, que lhe pediram que os guardasse, na garagem que tinha arrendada, sita na Rua ..., ..., ...., determinado bem móvel.
IV - E no ponto 3 que o ofendido acordou com o arguido que o mesmo os guardaria em tal local, até que o arguido mudasse de residência, altura em que o ofendido retiraria os referidos bens.
V - E no seu ponto 4, que o arguido recebeu os ditos bens dos ofendidos, para proceder ao depósito dos mesmos e posterior entrega ao sue legitimo dono.
VI - E no seu ponto 12, que os bens foram adquiridos, uns pelo ofendido, outros pela testemunha F... e outros por ambos, sendo que todos se destinavam a integrar o recheio da casa de ambos.
VII - Ora se o arguido no seu depoimento referiu ter-lhe sido solicitado pela sua tia testemunha F... para que guardasse determinados bens na sua garagem e a mesma no seu depoimento não é nada clara quando diz questionada sobre de quem eram os bens que entregou ao sobrinho para guardar, claro se demonstrou o depoimento da testemunha G... que espontaneamente referiu que os objectos eram da Dona F... e que foi esta que lhe solicitou que efectuasse o transporte dos documentos.
VIII - Deste modo não se alcança como é que o Tribunal dá como provado o ponto 2, referindo que o arguido recebeu do ofendido e da sua tia os referidos bens, e que o ofendido terá acordado com o arguido os guardaria na referida garagem.
IX - Ora o depoimento da testemunha G... não deveria ter sido desvalorizado como foi na questão da propriedade dos bens, pois revelou-se imparcial, espontâneo e acima de tudo muito coerente conforme o tribunal a quo considerou e bem e por essa via deveria ter sido também merecedor de credibilidade relativamente à questão da titularidade dos bens, e que o tribunal sobre esta questão não se pronunciou.
X - Não se compreende o facto de considerar uma testemunha, sincera coerente e espontânea sobre determinados factos que relatou, desvalorizando todos os todos os outros factos que não foram considerados.
XI - O recorrente não concebe pois, após os depoimentos prestados na audiência que seja dado como provado que o queixoso e a testemunha F... vivem em união de facto há mais ou menos 6 anos admitida nos depoimentos de todo os intervenientes e conforme correctamente provado no ponto 2, em 2010/2011.
XII - Que não tenha sido dado como provado que esta já vivia há mais de um ano da data dos factos no apartamento onde os objectos compunham o recheio da casa da testemunha F....
XIII - Tendo nesse sentido mais uma vez a testemunha G..., de forma isenta e clara, referido que sabia que os bens seriam da testemunha F..., porque ela já vivia lá há mais de um ano da data dos factos em que efectivamente esta lhe solicitou os transportes dos objectos para casa do arguido com intenção de os guardar.
XIV - Não resultando da audiência e conjugados todos os depoimentos que o queixoso e a testemunha F... tivessem adquirido estes bens juntos.
XV - E que o queixoso vivia há 7 anos com a referida testemunha.
XVI - E que se destinavam a integrar o recheio da casa do ofendido e da testemunha F....
XVII - Ou seja, a testemunha F... já vivia no apartamento do qual conforme referiu a testemunha G... efectuou o transporte dos pertences desta, há mais de um ano á data dos factos sozinha.
XVIII - Baseados neste depoimento claro coerente sincero e credível resulta claro que estes bens foram adquiridos apenas pela testemunha F... e já lhe pertenciam antes de iniciar a união de facto com o queixoso e já pertenciam a esta há pelo menos há 7 anos.
XIX - Outros bens que não estes, poderão ter sidos comprados pelos dois, tendo em conta o prolongar da união de facto. Mas estes são apenas propriedade da testemunha F.... Tal como o valor dos bens não ficou apurado na audiência, também não existindo prova documental que afira a propriedade dos mesmos, outra conclusão conjugando todos os depoimentos não poderia ter sido retirada pelo Tribunal. Pois a testemunha F... não consegue precisar nem o que era dela, nem o que era do queixoso. Dizendo de forma pouco clara que os objectos eram dos dois.
XX - Não conseguindo no seu depoimento concretizar e esclarecer o Tribunal no sentido que este dê como provado que os bens independentemente de quem os tivesse adquirido, se destinavam a integrar o recheio da casa do ofendido e da testemunha F.... Pelo que considera o recorrente, que os referidos factos relativamente à legitimidade do queixoso foram dados como incorrectamente provados.
XXI - Com efeito, o procedimento criminal por abuso de confiança depende de queixa artigo 205 nº3 do Código Penal, tendo legitimidade para apresenta-la o ofendido, considerando-se tal o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação artigo 113 do Código Penal).
XXII - Na ausência da qual carece o Ministério Público de legitimidade para exercer a acção penal, como resulta do disposto nos artigos 48 e 49 do Código de Processo Penal.
XXIII - Titular do direito de queixa é o ofendido, e no crime de abuso de confiança o bem jurídico tutelado é a propriedade.
XXIV - No caso concreto a propriedade dos objectos referidos em 2 da douta sentença que se recorre, pertencentes não são pertences do queixoso, mas antes da testemunha F..., como já enunciado, tendo resultado no depoimento desta na audiência que não exerceu o direito de queixa, que assim se extinguiu em razão do decurso do prazo a que se refere o artigo 115 nº1 do Código penal.
XXV - Deveria ter sido determinado a extinção do procedimento criminal atenta a inexistência de queixa válida e atempadamente efectuada pelo titular do direito de queixa.
XXVI - Posto isto, o recorrente não pode conformar-se com a douta sentença recorrida.
XXVII - É nossa convicção que todo o procedimento criminal se deve extinguir e em consequência deverá a sentença ser considerada nula por violação dos artigos 48/2, 49/2 do CP e 115/2 do CP por forma a ser reposta a correta aplicação do direito.
XXVIII. Sendo notório a mesma padecer dos vícios constantes nos artigos 379 e 410 nº 2 c) e b) do C.P.P.

Recurso do MP.
Conclusões
1. O presente recurso reflecte uma mera discordância do recorrente relativamente à valoração que o Tribunal fez da prova submetida à sua apreciação, contestando a convicção da Mma. Juiz a quo com a sua própria versão dos factos, desconsiderando que uma decisão judicial resulta da convicção do julgador e não das partes, como claramente resulta do artigo 127 do CPP.
2. Não merecendo qualquer censura o decidido quanto à matéria de facto consignada como provada, resulta cristalino que, face aos elementos fornecidos pela imediação e a oralidade os determinantes para a avaliação da prova, a decisão tomada pela Mmª Juiz a quo se mostra fundada na sua livre convicção pelo que, sendo uma das soluções possíveis face às regras da experiência comum e estando suportada por prova testemunhal, não deve ser alterada pelo Tribunal de recurso, devendo, pois, manter-se a decisão quanto à matéria de facto nos exactos termos em que consta da sentença recorrida.
3. A queixa foi apresentada por quem é titular dos interesses que a incriminação quis proteger – o ofendido E..., proprietário dos bens em causa nos autos e companheiro da tia do arguido, e também ofendida, F... – pelo que o Ministério Público tinha legitimidade para deduzir acusação, pelo crime de abuso de confiança pelo qual o arguido viria a ser condenado.
4. Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo recorrente.

Parecer de fls 219/220.
Reitera a posição defendida pelo MP a quo.

Cumpriu-se o artº 417, nº2 do CPP.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta à apreciação do mérito.
Mantém-se a regularidade da instância.

Fundamentação e Direito.
Objecto do recurso:
No presente recurso colocam-se duas questões que estão claramente interligadas: uma quanto à matéria de facto e outra, como consequência daquela, de direito.
Importa saber se, no decurso da produção de prova, ficou demonstrado se os bens confiados pertenciam de facto ao ofendido; se de facto eram sua propriedade. Neste contexto, na perspectiva do recorrente, é possível cogitar um erro de julgamento. A segunda questão tem a ver com a ilegitimidade do MP para deduzir acusação. O desejo de procedimento criminal foi apresentado pelo intitulado ofendido E... porém, se os bens não são sua propriedade mas antes da companheira F..., a ilegitimidade do MP é patente por ausência de queixa por parte desta, pois estamos perante um abuso de confiança fiscal simples.
Começar por dizer que, ao invés do que vem alegado, não é curial falar-se de vício do texto da decisão recorrida, quer por insuficiência
para a decisão da matéria de facto provada, quer por erro notório na apreciação da prova. É irrelevante caracterizar estes vícios porque a questão aflorada no recurso não tem a ver com o texto da decisão recorrida. O recorrente quer sim invocar erro de julgamento: deficiente análise e valoração da prova, nos termos do artº 412, nºs 3 e 4 do CPP. Suportado no depoimento da testemunha G... pretende o recorrente fazer crer que o ofendido e sua companheira não vivem em união de facto desde 2010/2011 e que, à data em que os bens foram confiados ao arguido estavam na exclusiva posse de F.... Assim quando o ofendido exerce direito de queixa procede ilegitimamente porque naquela data não tinha a disponibilidade dos bens.
Está lançada a questão da legitimidade consequente do MP para deduzir acusação. O procedimento criminal por abuso de confiança depende de queixa nos termos do artº 205, nº3 do CP. O titular do direito de queixa é o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. O direito de queixa – exercício de procedimento criminal - pertence ao ofendido e no crime de abuso de confiança o bem jurídico é a propriedade. Porque o procedimento criminal não foi exercido em tempo – 6 meses a contar da data que o titular teve conhecimento do facto e seus autores – extingue-se a queixa (artº 115 nº1 do CPP). O procedimento deve ser declarado extinto e consequentemente nula a sentença, por violação do disposto nos artºs 48, 49, nº1 e 115, nº1 do CPP.
Há várias questões lançadas que interessam dirimir.
Afinal a quem pertencem os bens confiados ao arguido?
A matéria de facto, devidamente motivada, designadamente com os depoimentos do ofendido e F..., sua companheira, no exercício de uma união de facto, demonstra que ambos vivem em comum desde 2010/2011. Emerge do facto provado em 2) que a união pelo menos provém desde essa data. Apesar deste facto não estar assente directamente na matéria de facto provada, depreende-se da discussão da causa e sequente motivação que ofendido e testemunha F... vivem em comunhão análoga à dos cônjuges, pelo menos desde 2010/2011.
A matéria de facto não pode sofrer contestação. A motivação é bem clara e os depoimentos são globalmente convergentes. O tribunal efectuou a devida análise crítica e valoração sobre os elementos de prova que tinha ao seu dispor, factores que cimentam uma boa interpretação do princípio da livre apreciação. Efectivamente quem apresenta a queixa é o ofendido E..., cfr. fls 4/5, onde expressamente deseja procedimento criminal contra o denunciado, ora arguido – 3/11/2014. Todavia, se o recorrente bem precisar, facilmente verifica que a tia do denunciado e companheira do ofendido também declara, a fls 84v, que deseja procedimento criminal contra o denunciado, bem como indemnização a que se achar com direito. Ofendido e testemunha F..., em data não concretamente apurada, tomaram conhecimento que o seu sobrinho havia mudado de residência levando os bens que lhe estavam confiados. A inversão do título da posse ocorreu pouco tempo antes da participação efectuada pelo E.... A testemunha, companheira do ofendido, depôs em inquérito no dia 15/04/2016, momento em que este processo já estava em marcha. Apesar de o direito de queixa estar extinto, quanto a esta interveniente, na data do seu primeiro depoimento, não deixa de ser relevante o facto de manifestar esse desejo, aliás já corroborado, em momento anterior, pelo seu companheiro com quem vivia há largos anos.
Resta-nos aferir se o desejo de procedimento criminal por banda do ofendido é regular.
Só o abuso de confiança simples é que depende de queixa – artº 205, nºs 1 e 3 do CP. A decisão não determina o valor dos bens mas, da condenação depreende-se um valor elevado – 200 dias de multa, a 6 € diários, o que perfaz 1200,00€.
A matéria que integra os elementos do crime não está em causa mas tão só a extinção do procedimento criminal pelo decurso do prazo. Talvez seja interessante determinar quando se consuma o crime e não a pretensão de deslindar a quem pertenciam os bens no momento em que foram entregues ao arguido. Por volta de 2014 o arguido foi interpelado pela última vez para restituir os bens, momento em que se apropria dos mesmos por inversão do título da posse, actuando como se os bens lhe pertencessem.
Apesar de a entrega dos bens ter sido efectuada em 2010/2011, momento em que já decorria a união de facto, temos de convir que quando se dá início a este processo, em 3/11/2014, ofendido e F... progrediam nessa relação e ambos tinham a disponibilidade das coisas, independentemente desses bens terem sido trazidos para o património da relação comum pela testemunha F.... O ofendido E... faz a participação individualmente mas, no interesse do casal, porque entende estar titulado pelo gozo legítimo dos bens; por ter sido afectado no seu direito de uso e fruição das coisas, ainda que estas tenham advindo à relação patrimonial por via da união de facto.
Mutatis mutandis, no crime de dano, o STJ, em 27/04/201, fixou jurisprudência no acórdão 7/2011 (processo nº 456/08.3GAMMV) determinando que o ofendido, proprietário da coisa, tem legitimidade para apresentar queixa … ou quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição. É neste sentido que a resposta do MP, de forma acutilante, cita este acórdão, de forma a justificar, por semelhança, que o ofendido E..., como companheiro da testemunha F..., também tem a disponibilidade de fruição das utilidades das coisas que fazem parte do património comum, que depois vieram a ser apropriadas ilegitimamente pelo arguido.
A queixa-crime foi apresentada em tempo pelo ofendido, como acima ficou esclarecido, e mesmo que se questione a sua qualidade de pleno proprietário, dificilmente se pode questionar ser titular de interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. Enquanto a união de facto perdurar, a gestão comum dos bens patrimoniais permite que, qualquer dos interessados, defenda a intangibilidade desses mesmos bens.
Apesar de o direito de queixa, constituição de assistente e demanda do pedido cível (qualidade de demandado) estabelecerem requisitos não coincidentes para serem exercidos, não podemos deixar de concluir que o procedimento criminal pode ser desencadeado pelo titular de interesses que a lei quis proteger, sobretudo quando se trata de bens que fazem parte do património comum, ainda que a relação seja uma união de facto.
Improcede a alegada ilegitimidade.

Em conclusão, este tribunal, corrobora a decisão proferida, por não se vislumbrar qualquer erro de julgamento, nem ilegitimidade do MP – o titular do direito de queixa é o próprio e actuou tempestivamente.

Assim e nestes termos acordam os juízes que integram esta 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B..., confirmando a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três UCs)
Registe e notifique.

Porto, 24 de Janeiro de 2018.
Horácio Correia Pinto
Moreira Ramos