Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
571/12.9T2AVR-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CURA MARIANO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO DOS BENS DA MASSA INSOLVENTE
ANULAÇÃO DA VENDA
FALTA DE AUDIÇÃO DE INTERESSADO NA COMPRA
EFEITO
Nº do Documento: RP20170123571/12.9T2AVR-H.P1
Data do Acordão: 01/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º 641, FLS.318-320)
Área Temática: .
Sumário: I - O facto do Administrador não ter ouvido um interessado antes de ter procedido à venda por negociação particular de um imóvel que integrava a massa insolvente, por preço inferior àquele que esse interessado já havia oferecido e não havia sido aceite, não constitui uma nulidade processual que possa afetar a venda realizada.
II - Se o Administrador da Insolvência, nas operações para a venda dos bens que integram a massa insolvente, deve procurar obter o melhor preço, de modo a proteger os interesses do insolvente e dos credores, estando sujeito a deveres de atuação diligente, o incumprimento de tais deveres, designadamente quando despreza injustificadamente a existência de uma melhor proposta para a venda de um bem da massa insolvente, tem como consequência, não a anulação da venda realizada com o incumprimento desses deveres, mas sim uma eventual destituição do cargo, ao abrigo do artigo 56.º, n.º 1, do CIRE, e a sua responsabilização, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 571/12.9T2AVR-H.P1 – Comarca de Aveiro – Instância Central – 1.ª Secção de Comércio – J2
Relator: João Cura Mariano
Adjuntos: Maria José Simões
Abílio Costa

B… Limitada, nos autos de liquidação de bens da insolvente C… Limitada, veio requerer, além de diligências de audição e comunicação, a anulação da venda de imóvel apreendido à Insolvente, formalizada em escritura outorgada em 21.8.2015, pelo valor de €240.000,00.
Posteriormente veio a apresentar proposta de aquisição do referido imóvel pelo valor de €288.000,00, requerendo a sua aceitação.
Alegou a existência de vários factos que considera constituírem irregularidades no procedimento que conduziu à venda impugnada.

Responderam a este requerimento, o Banco D…, S.A., na qualidade de credor hipotecário, que se pronunciou pela anulação da venda, caso se confirmasse a existência de preterição de formalidades essenciais, e o Banco E…, S.A., a F…, Limitada, e o Administrador da Insolvência, no sentido de não serem conhecidas irregularidades que justifiquem a anulação da venda.

Foi proferida decisão de não anulação da venda impugnada e indeferimento da subsequente proposta de aquisição.

B…, Limitada, interpôs recurso desta decisão, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:
A) Tendo sido determinado mediante despacho judicial nestes autos que não deverá ser anulada a venda do imóvel indicado, constante da massa insolvente da empresa C… por considerar o MM Juíz que da atuação do Sr. AI não decorre a preterição de qualquer formalidade legal que houvesse de ter sido cumprida, entende a Recorrente tal assim não é.
B) Entende a Recorrente que perante o histórico de comunicações entre a Recorrente e a leiloeira, e entre a Recorrente e o Sr. AI; perante as irregularidades e incoerências que caracterizaram essas comunicações; perante o interesse continuadamente manifestado pela aqui Recorrente na aquisição do imóvel (facto que era do conhecimento do Sr. AI), era imperativo do Sr. AI auscultar a B… antes de vender a quem quer que fosse.
C) Aliás, o resultado de não o ter feito está à vista: a B… estaria disposta a dar mais 48.000 EUR (ou talvez mais ainda se a conversa tivesse existido com o Sr. AI) pelo imóvel maximizando assim o interesse dos credores como compete no âmbito da insolvência.
D) O que comprova que o Sr. AI não diligenciou pelo cumprimento zeloso dos seus deveres perante os credores e, tendo ignorado completamente o conhecimento que tinha dos interesses manifestados pela B… em adquirir o imóvel, omitiu claramente zelos, cuidados e formalidades que deveria ter cuidado de cumprir.
E) Tendo assim violado o disposto no artigo 195º, n.º 1 do CPC ao omitir atos que deveria ter praticado em nome do zelo devido aos interesses dos credores na insolvência e que impunham conduta diferente da que teve.
F) Quer isto dizer que a omissão de atos que se impunham ao AI veio determinar uma decisão para o assunto bem menos vantajosa do que aquela que deveria ter ocorrido, influindo a conduta do AI de forma negativa e irregular na decisão que veio a ser tomada e que determinou uma venda com prejuízo para os credores se comparada com aquela que poderia ter ocorrido caso a B… tivesse adquirido o imóvel.
Pelo exposto, não se aceita a decisão do MM. Juiz devendo o despacho do mesmo ser em sentido oposto ao que veio a ser emitido.
Nestes termos deverá ser anulada a venda efetuada neste apenso de liquidação com a F… e deverá, subsequentemente ser aceite a proposta efetuada pela B… de aquisição do imóvel por 288.000 EUR.

F…, Limitada, apresentou contra-alegações, sustentando a manutenção do decidido.
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1. Do objeto do recurso
Encontrando-se o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, cumpre apenas apreciar a seguinte questão (não podendo ser objeto de conhecimento as questões que apenas foram referidas no corpo das alegações):
A não audição da B… pelo Administrador da Insolvência antes de ter procedido à venda do imóvel em causa determina a anulação dessa venda?

2. Factos
Encontra-se provado documentalmente:
- No dia 21 de agosto de 2015, por escritura pública, o Administrador da Insolvência de C…, Limitada, nessa qualidade, declarou vender ao Banco E…, S.A., pelo preço de duzentos e quarenta mil euros, o seguinte bem: prédio misto composto por edificação e logradouro, sito no lugar de …, …, freguesia de …, concelho de Oliveira do Bairro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, sob o número mil cento e trinta e três da freguesia de ….
- No mesmo ato as representantes do comprador declararam que aceitavam o contrato nos termos exarados e que o imóvel comprado ia ser objeto de locação financeira imobiliária a celebrar na mesma data com F…, Limitada.
- Este imóvel integrava a massa insolvente de C…, Limitada.

3. Da anulação da venda
A Recorrente é uma interessada na compra de um bem imóvel que integrava a massa insolvente de C…, Limitada, e que foi vendido em 21 de agosto de 2015 ao Banco E… pelo Administrador da Insolvência.
Pretende a anulação da venda realizada por negociação particular e que seja aceite uma proposta para a compra desse bem mais elevada que o preço da venda efetuada.
Alega que foi cometida uma nulidade pelo Administrador da Insolvência ao não a ouvir antecipadamente sobre a venda realizada, uma vez que este sabia que ela já tinha oferecido pela compra desse imóvel um valor superior àquele pelo qual o mesmo foi vendido.
Com o CIRE a venda dos bens que integram a massa insolvente alterou-se significativamente, tendo-se registado uma desjudicialização do respetivo procedimento, passando a ser conferida ao Administrador da Insolvência uma maior autonomia, com vista a uma maior dinamização da liquidação do ativo.
Assim, não só o Administrador da Insolvência tem competência para escolher a modalidade da venda que entender ser a mais adequada para o bem a vender, nos termos do artigo 164.º, n.º 1, do CIRE [1], como também, em regra, deixou de existir um meio para no processo de insolvência se reagir contra os seus atos, em termos de os poder afetar, designadamente, anulando-os [2].
Acresce que à venda por negociação particular, a qual no processo de insolvência é uma modalidade de venda em processo judicial executivo, mas que se efetua sem a participação do tribunal, não se lhe aplicam regras processuais. À venda por negociação particular deve antes ser aplicado o regime específico do contrato de compra e venda e as regras gerais que regem os negócios jurídicos[3].
Daí que a invocação pela Recorrente do facto do Administrador não a ter ouvido antes de ter procedido à venda de um imóvel que integrava a massa insolvente, por preço inferior àquele que a Recorrente já havia oferecido e não havia sido aceite, nas diligências efetuadas pelo Administrador da Insolvente e que antecederam a venda impugnada, não constitua qualquer nulidade processual que possa afetar a venda realizada.
Se é certo que o Administrador da Insolvência, nas operações para a venda dos bens que integram a massa insolvente deve procurar obter o melhor preço, de modo a proteger os interesses do insolvente e dos credores, estando sujeito a deveres de atuação diligente, o incumprimento desses deveres, designadamente quando despreza injustificadamente a existência de uma melhor proposta para a venda de um bem da massa insolvente, tem como consequência, não a anulação da venda realizada com o incumprimento desses deveres, mas sim uma eventual destituição do cargo, ao abrigo do artigo 56.º, n.º 1, do CIRE, e a sua responsabilização, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do mesmo diploma [4].
Por esta razão, mesmo a verificar-se a omissão culposa do Administrador da Insolvência denunciada pela Recorrente, esta não integraria uma nulidade processual que tivesse como consequência a anulação da venda realizada e a subsequente aceitação da proposta da Recorrente, pelo que o recurso deve improceder, confirmando-se a decisão recorrida.
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Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas do recurso pela Recorrente.
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Porto, 23 de Janeiro de 2017
Cura Mariano
Maria José Simões
Abílio Costa
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[1] Apesar da venda por negociação particular exigir as autorizações e condicionamentos previstos no artigo 161.º, n.º 4 e 5, do CIRE.
[2] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE anotado, pág. 603, 3.ª ed., Quid iuris.
No CPEREF estava prevista no artigo 184.º a possibilidade de dedução de reclamação contra os atos irregulares praticados no decurso da liquidação que poderia conduzir à anulação dos atos impugnados.
[3] Neste sentido, Rodrigues Bastos, em Notas ao Código de Processo Civil, vol. IV, pág. 122, ed. do autor de 1984, Alberto dos Reis, em Processo de execução, vol. II, pág. 326, reimpressão de 1982, Coimbra Editora, Anselmo de Castro, em A ação executiva, singular, comum e especial, pág. 210, da 3.ª ed., Coimbra Editora, Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, em Código de Processo Civil anotado, vol. 3.º, pág. 602-603, ed. 2003, Coimbra Editora, e os Acórdãos:
- da Relação de Lisboa de 17.3.1976, na C.J., Ano I, tomo 2, pág. 450, relatado por Braga Temido.
- da Relação do Porto de 30.6.1998, na C.J., Ano XXIII, tomo 3, pág. 226, relatado por Afonso Correia.
- e da Relação de Coimbra de 21.4.2015, em www.dgsi.pt, relatado por Sílvia Pires
[4] Em situações em que estava em causa o incumprimento de formalidades processuais na venda de bens pelo Administrador da Insolvência, também afastaram a possibilidade da venda ser anulada, os seguintes acórdãos, acessíveis em www.dgsi.pt:
- da Relação do Porto, de 16.9.2014, relatado por Maria de Jesus Pereira;
- da Relação de Guimarães, de 28.7.2008, relatado por Rosa Tching.
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Sumário:
(da responsabilidade do relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
I - O facto do Administrador não ter ouvido um interessado antes de ter procedido à venda por negociação particular de um imóvel que integrava a massa insolvente, por preço inferior àquele que esse interessado já havia oferecido e não havia sido aceite, não constitui uma nulidade processual que possa afetar a venda realizada.
II - Se o Administrador da Insolvência, nas operações para a venda dos bens que integram a massa insolvente, deve procurar obter o melhor preço, de modo a proteger os interesses do insolvente e dos credores, estando sujeito a deveres de atuação diligente, o incumprimento de tais deveres, designadamente quando despreza injustificadamente a existência de uma melhor proposta para a venda de um bem da massa insolvente, tem como consequência, não a anulação da venda realizada com o incumprimento desses deveres, mas sim uma eventual destituição do cargo, ao abrigo do artigo 56.º, n.º 1, do CIRE, e a sua responsabilização, nos termos do artigo 59.º, n.º 1, do mesmo diploma.

Cura Mariano