Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
982/14.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: DIREITO DE ACÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP20161124982/14.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 76, FLS. 221-239)
Área Temática: .
Sumário: I - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), pelo que não ocorre nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, se o juiz decidiu a questão sem aplicar as normas jurídicas que o recorrente considera aplicáveis.
II - O direito de ação, com proteção constitucional, é atualmente entendido, de modo pacífico, como um direito público totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a tutela judiciária, afirmando-se como existente, ainda que ela, na realidade, não exista; a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à emissão da sentença.
III - Salvo casos excecionais, sendo o direito de ação inerente ao Estado de direito e um veículo para a discussão do direito material subjetivo, não é por se decidir na ação que este direito afinal não existe que deixa de se reconhecer que o direito de ação foi plena e corretamente exercido.
IV - Situações excecionais, justificativas de responsabilidade, são aquelas em que o direito de ação é exercido com abuso de direito, de que é afloramento a litigância de má fé, e as que caraterizam a culpa in agendo.
V - Por falta de disposição legal específica, quando lícito, o exercício do direito de ação não é fonte de responsabilidade civil (por atos lícitos).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 982/14.5T8PRT.P1 (apelações)
Comarca do Porto Póvoa de Varzim - Inst. Central - 2ª Secção Cível

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.[1]
B…, LDA., com sede na Av. …, n.º …., loja ., …, Matosinhos, pessoa coletiva nº ………, instaurou ação declarativa comum contra C…, LDA., com sede na Avenida …, nº …., .º, freguesia de …, Porto, pessoa coletiva nº ………, alegando essencialmente que a R. propôs contra si uma ação judicial reivindicativa do direito de propriedade de um determinado prédio urbano, ação essa que foi levada a registo no dia 25.9.2008, a aqui A. foi citada, como interveniente principal, no dia 19.6.2009, e a respetiva sentença transitou em julgado no mês de abril de 2013.
Enquanto a ação esteve pendente, dada a oneração com o registo da ação, ninguém arriscava adquirir o prédio; por isso a A. (ali ré) suspendeu a promoção de venda do mesmo ou qualquer ato de licenciamento camarário para o industrializar. Assim, durante 4 anos, 7 meses e 28 dias, a A. esteve impossibilitada de obter qualquer proveito do imóvel, o qual, por seu turno, sofreu uma depreciação para o valor de € 1.558.200, pelo que, se o tivesse adquirido apenas em maio de 2013, a A. pagaria menos € 341.800,00.
O valor que investiu para o pagamento do preço, em 1 de agosto de 2008, estava depositado a prazo, em entidade bancária, gerando juros à taxa de 5% ao ano. Nesse período de 4 anos, 7 meses e 28 dias, caso se mantivesse nesse depósito a prazo, a A. teria obtido a quantia de € 442.726,03, a título de juros e não teria suportado os valores respeitantes a IMI durante o referido período, no valor anual de € 801,12, sendo que, como não procedeu à revenda do imóvel, perdeu a isenção de pagamento de IMI que lhe havia sido conferida pelo período de 3 anos. Assim, por aquele período, foi devido a título de IMI o montante de € 3.733,44.
Teve, por tudo, um prejuízo de € 787.463,47, causado pela R. através da propositura daquela ação contra D…, SA, onde a A. foi chamada a intervir a título de interveniente principal, ao lado da ali ré, ação que foi julgada improcedente.
Naquela ação, a autora (aqui R.) alegou haver celebrado, a 2 de agosto de 2001, na qualidade de promitente-compradora, com D…, S.A., na qualidade de promitente-vendedora, um contrato-promessa de compra e venda que tinha por objeto, além do mais, o referido imóvel. Qualificando tal contrato como meio translativo da posse do bem em causa, concluiu a autora que o possuía, ininterruptamente, por um período de 7 anos (desde 2 de agosto 2001 a 4 de setembro de 2008 — data da apresentação da petição inicial em Juízo) e que a sua posse deveria ver-se acrescida da posse da sua antecessora (D…), de tal modo que, apoiando-se no instituto da acessão na posse, à data da apresentação da ação em Juízo, a posse por si exercida no imóvel contabilizava 73 anos, pelo que o adquirira por usucapião.
Na sequência do chamamento da aqui A. àquela ação, em 9.5.2009, foi alterado o pedido primitivo em consonância com a alteração subjetiva da instância, tendo então a aqui A., a 8 de setembro de 2009, apresentado contestação-reconvenção aos factos constantes da petição inicial, concluindo, nesta última, pelo pedido de condenação da ora R. (ali autora) no reconhecimento da aqui A. (ali ré) como legítima proprietária do mesmo imóvel.
Com data de 19 de abril de 2011, foi proferido despacho saneador/sentença que conheceu do mérito da causa, julgando a ação improcedente e absolvendo a R. do pedido da ação; porém os autos prosseguiram para oportuna apreciação do pedido reconvencional ali deduzido pela aqui A.
Daquela decisão foi interposto recurso pela ora R. para o Tribunal da Relação e depois para o STJ, tendo havido confirmação a decisão tanto na 2ª instância como na revista.
A 5 de dezembro de 2012 a ali autora (aqui R.) pôs termo à reconvenção por confissão dos factos que sustentaram o respetivo pedido da aqui A., reconhecendo-a como a legítima proprietária do imóvel.
Considera a A. que a pretensão que a R. deduziu naquela ação era, do ponto de vista jurídico, manifestamente inviável, e que sabia bem disso no momento em que a instaurou. Peticionou o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel, por via da usucapião, com base, por um lado, na posse do mesmo desde a data da celebração do contrato-promessa e por motivo da celebração desse contrato e, por outro lado, com base na acessão na posse da anterior proprietária do imóvel, mas quer um fundamento quer outro são desadequados face à matéria factual carreada para os autos. Daí que esteja agora em causa um caso de ilícita perturbação do direito de propriedade da A. sobre o imóvel, que incidiu, em especial, na dimensão económica do seu direito de propriedade que se concretizou na desvalorização do imóvel e, concomitantemente, afetou as faculdades de fruição e disposição que caracterizam o núcleo deste direito. Tal perturbação, porquanto ilícita, gerou na esfera jurídica da R. a obrigação de indemnizar a A. com base em sede de responsabilidade civil extracontratual.
A A. fez culminar o seu articulado com o seguinte pedido:
«Termos em que
Se requer V. Exc.a se digne julgar a presente ação integralmente procedente por provada e, em consequência, condenar a Ré no pagamento à Autora de uma indemnização no montante de € 787.463,47 (setecentos e oitenta e sete mil quatrocentos e sessenta e três euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a citação até efetivo e integral pagamento (…)» (sic).
Citada, a R. contestou a ação defendendo a respetiva improcedência, para o que alegou essencialmente que usou da referida ação no exercício de um direito de ação, para tutela legítima dos seus direitos e interesses, numa atuação congruente e conforme ao agir de boa-fé.
Disse que havia pago à D…, S.A. a totalidade do preço acordado entre ambas para a compra e venda dos três prédios objeto do contrato-promessa, entre os quais o que então se discutia e, na mesma data, 2 de agosto de 2001, a promitente-vendedora entregara-lhe aqueles imóveis, tendo entrado (ou, pelo menos, na altura, tendo considerado entrar) na posse dos mesmos. A cláusula 5.ª do contrato-promessa celebrado estipulava expressamente que “a entrega dos imóveis pela Promitente Vendedora à Promitente Compradora é feita na presente data, entrando a Promitente Compradora, nesta data, na posse dos mesmos”.
A D… e a aqui R. concluíram que a realização da escritura pública de compra e venda dos prédios, para cuja formalização não foi fixado prazo, não seria mais do que uma formalidade confirmativa do negócio já realizado e cujos efeitos corporizaram, na prática, os efeitos que adviriam do contrato definitivo.
Concomitantemente com a celebração do contrato-promessa de compra e venda dos 3 (três) prédios, a D… outorgou uma procuração irrevogável, através da qual concedeu poderes especiais à aqui R. para proceder à sua venda, concedendo-lhe ainda poderes para celebração de negócios consigo mesma.
Desde 2 de agosto de 2001 que a ora R. considerou ter exercido ininterruptamente, de forma pública e sem oposição, todos os poderes de administração sobre aqueles bens, passando a responder pelos encargos e demais responsabilidades indispensáveis à administração dos mesmos, como se tivesse sido já investida na qualidade de proprietária.
A Ré assumiu ainda a responsabilidade pelo cumprimento das obrigações fiscais incidentes sobre os três prédios até ao final do ano de 2006 e, no exercício dos seus poderes de facto sobre os mesmos, decidiu recorrer aos meios judiciais adequados à efetivação e ao regular exercício do direito de propriedade que entendia assistir-lhe.
Fez notar que, não obstante a D… ter recebido o preço integral pela venda dos imóveis sitos em Matosinhos, no qual se integra o imóvel dos autos, não se inibiu nem hesitou em constituir sobre os mesmos hipotecas voluntárias para garantia do pagamento de dívidas suas e de terceiras entidades, tendo sido neste contexto que, para evitar a dissipação pela D…. dos bens prometidos vender, requereu e logrou obter a procedência de um procedimento cautelar de arrolamento dos prédios em apreço e, como ação principal do indicado arrolamento, que correu por apenso àquele, instaurou ação de execução específica do contrato-promessa de compra e venda celebrado com a D….
A ação de execução específica foi, no entanto, julgada improcedente, na medida em que o Tribunal entendeu que, na ausência de incumprimento por parte da D... quanto ao estipulado no contrato-promessa de compra e venda, não se encontravam reunidos os pressupostos para decretar a execução específica daquele contrato.
Daí que a R., confrontada com i) a recusa de renovação do registo de aquisição provisória dos três prédios sitos em Matosinhos a seu favor, ii) o facto de ter procedido ao pagamento do preço integral pela venda dos referidos imóveis, detendo desde há muito o controlo material dos mesmos, iii) a constituição e registo de hipotecas voluntárias por parte da D… sobre prédios que sabia não lhe pertencerem, para garantia do pagamento de dívidas suas e de terceiras entidades, (iv) a constituição e registo de encargos sobre os indicados prédios (penhoras) aos quais a D… não reagiu e (v) a improcedência da ação de execução específica acima indicada, lançou mão da ação declarativa de condenação que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Matosinhos sob o n.º 5978/08.3TBMTS, na qual peticionou o reconhecimento e aquisição do direito de propriedade, livre de ónus e encargos, por via de usucapião com recurso ao instituto da acessão na posse, dos 3 (três) prédios ali em questão.
Com a instauração da referida ação judicial, a R. não pretendeu pôr em causa a posição jurídica de proprietária da A. sobre o aludido imóvel, abalando, assim a segurança jurídica da posição em que aquela entendia estar investida. Pretendeu antes reagir à dissipação pela D… dos bens prometidos vender, acautelando a posse que exercia e o direito de propriedade que esperava formalmente vir a adquirir, tanto mais que a ora contestante apenas tomou conhecimento de que o prédio dos autos tinha sido, entretanto, alienado pela D… à A. já no decurso da referida ação judicial, concretamente quando foi notificada da contestação daquela empresa e requereu o registo da ação.
Daí que a R., confrontada com a nova inscrição incidente sobre o prédio, tenha requerido ao tribunal a ampliação do pedido secundário formulado nessa ação judicial, de modo a que este passasse a abranger, entre outros, o negócio jurídico de compra e venda do prédio dos autos, celebrado entre a D… e a A.
Reconhece que a construção jurídica levada a cabo na referida ação judicial era complexa e não isenta de divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Contudo, o facto de a ação ter sido julgada improcedente no saneador-sentença, absolvendo os RR. de todos os pedidos aí formulados, não leva a concluir que a aqui R. utilizou o processo de forma abusiva, temerária, desrazoável ou imprudente.
Aliás, o tribunal de primeira instância concluiu pela qualidade de possuidora de boa-fé da aqui R., o que foi confirmado pelo tribunal da Relação. Consideraram, porém, que a R. não tinha adquirido a posse por título válido, razão pela qual não poderia aceder na posse do seu antepossuidor, com vista à junção da sua posse com a deste, tendo em vista a usucapião.
Ainda assim, o entendimento de que a aqui R. não tinha adquirido a posse por título válido não era pacífico, como, aliás, expôs o próprio Tribunal da Relação do Porto e reconheceu também o STJ, que admitiu a revista excecional impetrada pela ora R., pelo que a sua pretensão não era tão criativa e infundada como a A. pretende fazer crer, como nenhuma das instâncias nem o STJ assim entenderam.

Por despacho de fls. 453, tendo o tribunal intenção de conhecer do mérito da causa, foi designada a realização de audiência prévia, com o propósito facultar às partes a discussão de Direito.
As partes sustentaram os fundamentos dos seus articulados e foi depois proferida sentença com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Nos termos expostos, julga-se improcedente a presente acção e, consequentemente, absolve-se a Ré “C…, Lda.” do pedido contra si deduzido pela A. “B…, Lda.”.
*
Custas pela A. (art.º 527º, 1 e 2, CPC).»
*
Inconformado com a decisão sentenciada, recorreu a A. B…, Lda., produzindo alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«A. O Recorrente não se conforma com despacho saneador/sentença por entender que, na fundamentação apresentada, se incorreu em violação e indevida interpretação de normas legais e constitucionais.
B. As mencionadas faltas tiveram como principal resultado a prolação de uma decisão altamente injusta e intolerável do ponto de vista jurídico e ético-social, uma vez que tal decisão se traduziu na afirmação da total impunidade do agente causador de danos e na manietação do lesado quanto à possibilidade de obter ressarcimento pelos danos sofridos na sua esfera jurídica (obrigando-o a arcar com os prejuízos decorrentes da atuação de terceiro).
C. No caso dos autos discutiu-se a violação da dimensão económica do direito de propriedade causada pelo exercício de um direito de ação.
D. A decisão judicial do Tribunal a quo afirma que os titulares desse direito de propriedade se deverão sujeitar ao exercício do direito de ação e conformar-se com a violação ou limitação do seu direito, arcando com todo e qualquer prejuízo daí adveniente
E. Isto é, que deverá correr por conta do titular do direito de propriedade o risco (no caso efectivado) de não poderem gozar na plenitude do direito de que são legitimamente titulares, quando essa limitação decorra do exercício do direito de ação.
F. A decisão recorrida equivale, no fundo, a afirmar que qualquer agente económico se possa ver privado dos bens de que é titular e que utiliza na prossecução do seu objecto social, sem poder, por isso, ser ressarcido.
G. Como está bom de ver, trata-se de uma solução injusta e inaceitável.
H. E o que acima se refere é particularmente visível (e repudiável) no caso dos autos, em que a Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto (i.e, como meio de prossecução do lucro) a construção e a compra, venda e revenda de imóveis, sendo que pretendia afetar o imóvel dos autos ao referido fim social, não fosse a ofensa perpetrada sobre o direito de propriedade de que o mesmo era objeto.
Acontece que
I. No caso dos autos, encontram-se reunidos todos os pressupostos de que depende o acionamento da responsabilidade civil extracontratual e a consequente condenação da Recorrida no pagamento de uma indemnização à Recorrente.
J. Para o desfecho encontrado, a decisão recorrida ateve-se, no essencial, na constatação da não verificação dos pressupostos do instituto do abuso de direito, repudiando, com base nesse fundamento, a aplicação do instituto da responsabilidade civil.
K. Porém, e sempre com o devido respeito, tal solução não é admissível do ponto de vista jurídico.
L. E isto porque essa mesma decisão, focando-se na construção jurídica encontrada, olvidou o ponto mais importante: o de que houve, no caso dos autos, uma claríssima violação do direito de propriedade da Recorrente e o de que essa violação – que é ilícita – não pode colher a indiferença do sistema jurídico.
Vejamos:
M. O ponto central da presente acção contém-se na questão da violação do direito de propriedade da Recorrente, precisamente da dimensão económica deste direito, relacionada com as faculdades de fruição e disposição.
N. O direito de propriedade é um direito absoluto que, como tal, gera na esfera jurídica de todos os terceiros uma obrigação passiva universal.
O. A coarctação do direito de propriedade é, por definição, ilícita.
P. Apenas não o será se concorrerem causas de exclusão de ilicitude.
Q. As causas de exclusão de ilicitude expressamente previstas no nosso ordenamento jurídico (e teoricamente passíveis de serem aplicáveis ao caso) são a acção direta, a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do lesado.
R. Nenhuma destas circunstâncias se verifica no caso dos autos.
S. Por outro lado, é pacífico o entendimento (subscrito pela nossa jurisprudência) de que o direito de ação não funciona como causa de exclusão de ilicitude.
T. Assim sendo, a coarctação do direito da Recorrente perpetrada pela Recorrida tem cariz ilícito.
U. Cariz este que pode (e deve) ser valorado no contexto da responsabilidade civil extracontratual, conduzindo-nos, concretamente, à conclusão de que o requisito da ilicitude se encontra verificado.
V. Por assim ser, as indagações que se poderiam (em tese) produzir acerca do preenchimento do requisito da ilicitude através do conceito do abuso de direito, perdem sentido.
W. Isto é, essas indagações tornam-se desnecessárias e inócuas uma vez que o requisito a que as mesmas dizem respeito se encontra verificado por outra via: a da violação de um direito absoluto (a 1ª via da ilicitude prevista no artigo 483.º do Código Civil).
X. A par do requisito da ilicitude – que foi central na fundamentação da sentença recorrida – concorrem, no caso dos autos, os demais que condicionam o acionamento do instituto da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.
Y. Tudo isto – naturalmente – sem prejuízo da demonstração judicial e da concretização desses outros requisitos, a efectuar em sede própria.
Z. Em suma, e atendendo ao estado dos autos, inexiste qualquer circunstância que permita excluir a responsabilidade da Recorrida. Muito pelo contrário, aliás.
Sem prescindir do exposto, sempre se diga que
AA. Na sentença recorrida conferiu-se particular destaque ao facto de o facto lesante ter decorrido direta ou indiretamente do exercício de um direito de que a Recorrida era titular: o direito de ação.
BB. Ou seja, e na prática, estaria em causa uma situação de exercício conflituante de dois direitos: por um lado o direito de propriedade da Recorrente, que a mesma estava legitimada a gozar na sua plenitude; por outro, o direito de ação da Recorrida.
CC. Acontece que, a este caso – como a todos os demais análogos – se deverá conferir o tratamento plasmado na lei, concretamente no n.º 2 do artigo 335.º do Código Civil, que dispõe que: “Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.
DD. E no caso dos autos, não há dúvida de que o direito da Recorrente – porquanto absoluto – deve considerar-se superior.
EE. Ou seja, colidindo os dois direitos, merece prevalência o direito de propriedade, de onde resulta que a coarctação deste direito é ilícita.
FF. Como tal, concorrendo os demais pressupostos da responsabilidade civil, o titular do direito “menor” fica obrigado a ressarcir os danos provocados na esfera do titular do direito prevalecente.
GG. É o que se impõe no caso dos autos, conduzindo-nos, uma vez mais, à conclusão de que é adequada e juridicamente correta a condenação da Recorrida a indemnizar a Recorrente, solução que – ademais – é acolhida pela nossa jurisprudência. (cfr. designadamente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-07-2010, proferido no âmbito do processo n.º 1259/08.0TVLSB.L1-8, disponível em www.dgsi.pt)
Acresce que
HH. É idêntico o tratamento constitucional conferido ao tema (resultado da coerência do sistema jurídico).
II. Com efeito, o direito de propriedade merece destaque no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
JJ. O direito de propriedade tem natureza de direito análogo aos direitos liberdades e garantias, pelo que, nessa qualidade, lhe é aplicável o regime jurídico destes últimos.
KK. Por assim ser, as restrições admissíveis ao direito de propriedade hão de conter-se no estabelecido no artigo 18.º da CRP.
LL. A restrição imposta no caso dos autos através da atuação da Recorrida não preenche os pressupostos daquele dispositivo, concretamente os elencados nos seus n.os 2 e 3, onde se destaca a necessidade da observância dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
MM. Assim, a Recorrida terá que ser responsabilizada pelo prejuízo causado à Recorrente com a apresentação e registo da ação judicial, a qual impediu temporariamente esta última de exercer plenamente o seu direito, designadamente as faculdades de fruição e disposição.
NN. A posição acima exposta encontra pleno suporte no entendimento expendido pela doutrina nacional, designadamente por Vital Moreira e J. J.Gomes Canotilho em comentário ao artigo 62.º da CRP, visível nos excertos que acima se transcreveram e que aqui novamente se dão por reproduzidos.
Em suma,
OO. A restrição imposta pela conduta da Recorrida, porquanto violadora de princípios normativos e constitucionais e, como tal, ilícita, deverá dar lugar à obrigação de indemnizar nos termos peticionados nos autos pela Recorrente.
PP. Por tudo quanto exposto, conclui-se que a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 483.º, 335.º e 1305.º do CC bem como dos artigos 61.º, 62.º, 17.º e 18.º da CRP, e 595.º, n.º 1 a) do CPC
QQ. Razão pela qual deverá ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Ainda que assim não se entenda, mas sem prescindir do exposto:
RR. Os factos alegados nos autos pela Recorrente para sustentar o pedido condenatório deduzido contra a ora Recorrida tanto podem, em abstrato, fundamentar uma condenação tendo por base o instituto da responsabilidade civil subjetiva (conforme acima sustentado), como uma condenação tendo por base o instituto da responsabilidade civil por factos lícitos.
SS. No caso da responsabilidade subjetiva ou por factos ilícitos, é necessária a comprovação do facto, da ilicitude, da culpa (imputação do facto ao lesante), do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano.
TT. Já na responsabilidade por factos lícitos, basta comprovar o facto (no caso, a violação do direito de propriedade da recorrente), a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, assim como as demais (e eventuais) circunstâncias previstas na norma jurídica onde se fundamente esta responsabilidade. Ou seja, neste caso a indemnização não depende da ilicitude da conduta do lesante.
UU. Acontece que, apesar da dicotomia que os factos dados como provados permitiam, na douta sentença recorrida enquadrou-se a questão exclusivamente na ilicitude da conduta da Recorrida sob o prisma do instituto do abuso de direito (contexto em que se concluiu que a mesma não havia cometido qualquer ato ilícito, ditando a improcedência da ação).
VV. Ora, não estando o juiz sujeito à alegação das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, como prescreve o n.º 3 do artigo 5.º do CPC, verifica-se que a questão da responsabilização da Recorrida com base no instituto da responsabilidade civil por factos lícitos não chega a ser levantada pelo Tribunal a quo.
WW. Por outras palavras, na douta sentença recorrida não se analisou a questão da violação do direito de propriedade da Recorrente, mercê da oneração causada pelo registo da ação (e somente durante o período em que o mesmo esteve ativo), na perspetiva de que tal consubstanciasse um ato lícito.
XX. Questão que, necessariamente, teria de ser analisada tendo presente o conteúdo do direito de propriedade e a validade das restrições a este direito absoluto.
YY. Assim, e não obstante se creia – conforme acima sustentado – que se verifica, in casu, o requisito da ilicitude (em termos de permitir a responsabilização da Recorrida no contexto da responsabilidade civil subjectiva), deverá, por via subsidiária, admitir-se igualmente a hipótese de a conduta da Recorrida se subsumir ao conceito de responsabilidade por factos lícitos, por interpretação extensiva de normas que a contemplam.
ZZ. Esta análise deverá, desde logo, partir da interpretação a dar ao artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa e ao artigo 1305.º do Código Civil, contexto em que novamente relevam os ensinamentos de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira acima transcritos.
AAA. Resulta inequivocamente desses ensinamentos que o direito de propriedade é absoluto, apenas cedendo às restrições, maiores ou menores, que a lei imponha.
BBB. Não obstante, não existe, no nosso ordenamento jurídico, uma norma especial que consagre a responsabilidade civil por factos lícitos em casos idênticos ao dos autos.
CCC. Assim, seja por interpretação extensiva, tendo em conta a unidade do sistema jurídico e o pensamento legislativo, seja por integração de lacuna, ao abrigo respetivamente dos artigos 9.º e 10.º do Código Civil, é de considerar aplicável ao presente caso a disciplina consignada no n.º 3 do artigo 1347.º do Código Civil.
DDD. Este dever de indemnização também se extrai do disposto no já citado n.º 2 do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, interpretado à luz do princípio a maiori ad minus.
EEE. Face ao exposto, a douta sentença recorrida é nula por não se ter pronunciado sobre a questão da responsabilização da Recorrida ao abrigo do instituto da responsabilidade por factos lícitos – não obstante a tanto estivesse obrigada ao abrigo do n.º 3 do artigo 5.º do CPC - , o que constitui a omissão consignada na alínea d) do artigo 615.º do mesmo diploma legal.
FFF. Por fim, mas não menos importante, a douta sentença recorrida, ao julgar a ação improcedente e ao não ordenar o prosseguimento dos autos, incorreu em clara violação dos artigos 61.º e 62.º da CRP, dos artigos 1305.º e 1347.º, n.º 3 do CC, bem como do artigo 596.º, n.º 1, do CPC.» (sic)
Pugna, assim, a A. pela revogação/anulação do saneador-sentença, devendo os autos baixar à 1ª instância para prosseguiram a normal tramitação, com audiência final e nova sentença.

A R. produziu contra-alegações que sintetizou assim:
«A. O Tribunal a quo, em sede de Despacho Saneador Sentença julgou improcedente a ação proposta pela ora Recorrente, determinando a absolvição da aqui Recorrida do pedido de indemnização contra si apresentado por consequência de uma alegada perturbação do direito de propriedade da Recorrente.
B. Entendeu o Ilustre Tribunal a quo não se encontrarem verificados elementos bastantes para a imputação da responsabilidade civil por culpa in agendo, nem tão pouco os requisitos de imputabilidade de uma litigância de má-fé, pelo que determinou improcedente a pretensa da lide.
C. Em oposição à douta Sentença, alega a Recorrente que o Tribunal a quo errou ao decidir pela absolvição da Recorrida porque a sua decisão se circunscreveu, no essencial, à constatação da não verificação dos pressupostos do abuso de direito, assim repudiando a aplicabilidade do instituto da Responsabilidade Civil.
D. Para tal, a Recorrente defende que o exercício do direito de ação da Recorrida em sede do processo n.º 5978/08.3TBMTS que dá origem aos presentes autos, é ilícito por ocasião de dois motivos, por um lado, constitui a violação de um direito absoluto da ora Recorrente e, por outro, sendo um direito inferior a este, a não cedência do cenário de conflito de direitos constitui também a uma violação ilícita do direito de propriedade da Recorrente que se viu restringido na pendência da referida ação.
E. Ora, conforme supra se demonstra, cumpre desde logo notar que a Recorrente reitera a sua pretensão de indemnização por danos sofridos na sua esfera jurídica mas não logra demonstrar a existência de um único dano concreto, invocando apenas uma genérica limitação do seu direito de propriedade.
F. No entanto, e conforme a própria Recorrente confessa, a única limitação ao pleno gozo e exercício do seu direito de propriedade resultou de uma decisão própria de suspensão das diligências de licenciamento ou de venda durante a pendência do registo da ação.
G. Ora, pelo exposto, resulta claro que a existir uma qualquer limitação do direito de propriedade da Recorrente, esta não nasce da instauração da ação de reivindicação da propriedade pela Recorrida, mas sim de um facto auto-imputável à Recorrente, resultante de uma decisão conscienciosa de não promover qualquer do negócio jurídico em torno do imóvel.
H. Ademais, sempre se dirá que a ação de reivindicação da propriedade não foi inicialmente proposta contra a ora Recorrente, desconhecendo a Recorrida, à data de propositura, da celebração do negócio entre a aquela e as D…, proprietárias originais do imóvel, pelo que se infere que o exercício do direito de ação pela aqui Recorrida não constituiu uma investida direta contra a esfera jurídica da Recorrente.
I. No entanto, caso assim não se considere e se entenda que o exercício do direito de ação pela Recorrida constitui elemento limitativo do direito de propriedade da ora Recorrente – o que não se concede, e apenas por cautela de patrocínio se equaciona – sempre se terá que ter em consideração que a referida limitação não nasce da verificação de um facto ou comportamento ilícito.
J. Ponderado que o requisito da ilicitude se verifica em função de uma avaliação do comportamento do agente, apenas se terá como preenchido quando o comportamento perpetrado pelo mesmo seja censurável ou contrário à lei.
K. Ora, uma vez que a propositura da ação pela aqui Recorrida (então autora) constituiu um exercício de um seu direito legítimo no qual levou a juízo a discussão de uma questão controvertida pertinente e de decisão complexa, cuja improcedência apenas se ocasionou por uma divergência de interpretação jurídica, não pode o comportamento da Recorrida ser qualificável como abusivo do direito ou ilícito.
L. Ademais, e no que à colisão de direitos se reporta, sempre dirá que a pretensão da Recorrida nos autos do processo n.º 5978/08.3TBMTS se fundamenta no exato mesmo direito a que a Recorrente se arroga, isto é, no direito de propriedade sobre o imóvel dos referidos autos, pelo que inexiste a possibilidade de graduar os direitos em função da sua relevância e, consequentemente, inexiste também a alegada obrigação de ressarcir eventuais danos provocados na esfera jurídica do titular do direito prevalecente.
M. Nestes termos, pelo que ora se encontra sumariamente exposto, entende a Recorrida inexistir qualquer ilicitude na sua conduta, não se encontrando, assim, preenchido o requisito da ilicitude necessário para a aferição e imputação da responsabilidade civil extracontratual ao agente.
N. A título final, e em estreia nos presentes autos, vem a Recorrente invocar uma nova hipótese de responsabilização da ora Recorrida, através do instituto jurídico da Responsabilidade Civil por Factos Lícitos.
O. No entanto, conforme resulta da letra da lei e é entendimento unânime da doutrina e jurisprudência nacional, a obrigação de indemnizar por ocasião de uma conduta lícita do agente – isto é, independentemente da culpa – apenas existe nos casos expressamente especificados na lei.
P. Assim, inexistindo uma previsão legal que expressamente impute a obrigação de indemnizar por ocasião da simples instauração da ação judicial, e não sendo possível uma interpretação extensiva ou analógica da lei vigente para subsunção do litígio dos presentes autos às disposições legais taxativas, não poderá a Recorrida ser condenada ao pagamento de uma indemnização por ocasião de um responsabilidade por factos lícitos.» (sic)
Defende, deste modo, a recorrida a negação da apelação e a confirmação do julgado.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A. (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do Código de Processo Civil[2]).

Impõe-se-nos apreciar e decidir as seguintes questões[3]:
a) Nulidade do saneador-sentença, por omissão de pronúncia;
b) Verificação dos pressupostos da responsabilidade por atos ilícitos e a obrigação de indemnizar da R. a favor da A.;
c) Na eventual não verificação da ilicitude do ato, saber se ocorre responsabilidade por ato lícito da R.;
*
*
III.
Os factos dados como provados na 1ª instância:[4]
1- A ora Ré “C…, Lda.” intentou acção declarativa de condenação contra, além do mais, “D…, SA”, que correu termos no 3º Juízo Cível de Matosinhos sob o nº 2120/07.1TBMTS, peticionando a execução específica do contrato-promessa celebrado entre ambas em 2 de Agosto de 2001, referente, entre outros, ao prédio urbano sito na Avenida …, nºs …/…, Matosinhos, descrito na CRP de Matosinhos sob o n.º 912 e inscrito na matriz sob o art.º 4546º, tal como se mostra descrita na sentença proferida nesses autos, constante de fls. 345 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
2- De acordo com os fundamentos de tal acção, a ali 1ª Ré (“D…, SA”) havia recebido da ali A. a totalidade do preço do negócio, momento a partir do qual esta passou a exercer os direitos e deveres inerentes a um normal proprietário, tendo ambas considerado os prédios em questão como sendo já propriedade da ora demandada e a vendedora outorgado a favor da adquirente uma procuração irrevogável, conferindo-lhe os poderes necessários para vender a quem entendesse os ditos prédios; não obstante, aquela Ré protelou a celebração do contrato definitivo e encontrava-se a negociar a venda dos prédios a terceiros – mesmo doc.;
3- Em 15 de Março de 2007, pela AP. 26, foi registado na competente CRP o arrolamento do sobredito prédio a favor da ora Ré, tal como se mostra consignado na certidão predial de fls. 37 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido (cfr., em especial, fls. 40);
4- A acção aludida em 1) foi julgada improcedente, por ter sido entendido inexistir mora da ali Ré, tendo considerado provada, porém, a realização do contrato-promessa, o pagamento do preço total de € 7.930.886,56 e a outorga da procuração indicados em 2), bem como o registo provisório da aquisição do prédio a favor da ora Ré – mesmo doc.;
5- Pela AP. 63, de 10 de Maio de 2007, a “D…, SA” constituiu hipoteca voluntária sobre o prédio acima identificado a favor de “E…”, tal como se mostra consignado na certidão predial de fls. 37 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido (cfr., em especial, fls. 40);
6- Pela AP. 77, de 6 de Junho de 2008, a “D…, SA” constituiu hipoteca voluntária sobre o prédio acima identificado a favor de “F…, SA” – mesmo doc., a fls. 41;
7- Pela AP. 1, de 31 de Julho de 2008, foi registada, como provisória por natureza, a aquisição por compra, por “B…, Lda.”, ora A., do prédio acima identificado – mesmo doc., a fls. 42;
8- Em 4 de Setembro de 2008, a ora Ré “C…, Lda.” intentou acção declarativa de condenação contra “D…, SA”, “E…” e “G…, SA”, que correu termos no 3º Juízo Cível de Matosinhos sob o nº 5978/08.3TBMTS, peticionando, além do mais, o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio acima identificado, bem como o cancelamento da hipoteca indicada em 5), tal como consta do instrumento de fls. 85 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
9- Tal acção foi registada na CRP pela AP. 93, de 25 de Setembro de 2008, tal como se mostra consignado na certidão predial de fls. 37 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido (cfr., em especial, fls. 45-46);
10- Posteriormente, a ora Ré requereu a intervenção principal provocada, pelo lado passivo, da aqui A. “B…, Lda.” e de “F…, SA”, atentos os actos jurídicos mencionados em 6) e 7), que deles só terá tomado conhecimento após a propositura da acção, nos termos constantes do instrumento de fls. 150 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
11- Nesse momento, requereu igualmente a ampliação do pedido primitivo, passando a abranger a condenação dos chamados a reconhecerem o direito de propriedade da aí A. sobre o prédio em apreço, bem como a nulidade dos negócios de constituição de hipoteca e de compra e venda aludidos em 6) e 7) – mesmo doc.;
12- O incidente de intervenção principal provocada e a ampliação do pedido foram admitidos por despacho proferido em 9 de Maio de 2009 – cfr. instrumento de fls. 172-173, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
13- Em contestação/ reconvenção, a ora A. pugnou pela improcedência dos pedidos deduzidos pela ora Ré e pela procedência do pedido reconvencional, concretamente a declaração de que a mesma é legítima proprietária do sobredito prédio, nos termos constantes do instrumento de fls. 179 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
14- Em 19 de Abril de 2011, foi proferida decisão que admitiu liminarmente o pedido reconvencional deduzido pela ora A., julgou improcedentes os pedidos formulados pela aqui Ré e determinou o prosseguimento dos autos para apreciação do pedido reconvencional, nos termos constantes do instrumento de fls. 217 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
15- Tal decisão considerou que a então A. era efectivamente possuidora do imóvel em questão, mas que não estavam reunidos os pressupostos legais para a usucapião do imóvel por via da acessão na posse dos seus antepossuidores – mesmo doc.;
16- A ora Ré interpôs recurso da sentença, o qual veio a ser julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26 de Janeiro de 2012, nos termos constantes do instrumento de fls. 258 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
17- Tal decisão reconheceu igualmente a qualidade de possuidora da ali A. sobre o imóvel em apreço, mas, discorrendo sobre as divergências doutrinais a esse respeito, entendeu que tal posse não era susceptível de ser somada às anteriores, com vista à usucapião do imóvel por acessão na posse – mesmo doc.;
18- Desse aresto foi interposto recurso de revista excepcional, o qual foi admitido com o fundamento de que o acórdão recorrido se mostrava em contradição com outro proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que havia apreciado situação de facto idêntica à desses autos, tal como consta do instrumento de fls. 422 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
19- O recurso de revista excepcional foi julgado improcedente, tendo o STJ considerado que o contrato-promessa referido em 1), 2) e 4) não era meio translativo idóneo da posse, nos termos constantes do instrumento de fls. 290 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
20- Nessa sequência, a ora Ré apresentou requerimento de confissão do pedido reconvencional deduzido nessa acção pela ora A., e de dispensa do pagamento do remanescente de taxa de justiça aí devida, nos termos constantes do instrumento de fls. 325 e ss., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
21- Tal confissão foi homologada pela sentença de fls. 377, datada de 4 de Março de 2013, cujo teor se dá por inteiramente reproduzido;
22- A presente acção foi instaurada em 30 de Setembro de 2014, com os fundamentos explicitados supra no relatório da presente sentença.
*
Quanto a matéria não provada, o tribunal recorrido fez constar o seguinte:[5]
Não houve outros factos provados ou não provados com relevância para a boa decisão da causa, ou que não estejam em oposição ou não tenham ficado já prejudicados pelos que foram dados como provados, sendo conclusiva, de direito ou irrelevante para a boa decisão da causa a demais matéria alegada pelas partes.
*
*
IV.
Conhecendo das questões…
1. Nulidade do saneador-sentença, por omissão de pronúncia
Do art.º 608º, cuja leitura deve ser correlacionada com a citada al. d) do nº 1 do art.º 615º, resulta o princípio geral de que a sentença deve corresponder à ação, no sentido de que o juiz deve pronunciar-se sobre tudo o que se pedir e só sobre o que for pedido e de que o juiz deve tomar por base todos os elementos de facto oferecidos pelas partes em apoio das suas pretensões e só com base nesses elementos.[6] Só há identidade entre a questão posta pelas partes e a questão resolvida pelo juiz quando uma e outra reunirem três elementos comuns: sujeitos, objeto (as pretensões jurídicas a que as partes aspiram) e o facto jurídico ou causa jurídica. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir[7]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[8]
Assim, o juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sob pena de omissão de pronúncia. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita.
A nulidade invocada há de resultar da violação do referido dever.
Não confundamos questões com argumentos ou considerações, ou ainda com factos e interpretação e aplicação das regras de Direito.
Tal como os factos não constituem a questão cujo conhecimento é imposto ao tribunal, o juiz não está obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a sua procedência. O referido dever não implica abordar de forma detalhada todos os argumentos, considerações ou juízos de valor trazidos pelas partes.
Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fática, há erro de julgamento, não o errore in procedendo próprio da nulidade.[9]
Os fundamentos de Direito, tais como os fundamentos de facto, não constituem, pois, a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal e, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a sua procedência, o facto de não lhes fazer referência --- eventualmente porque não considerou tais factos ou argumentos jurídicos relevantes no tratamento da questão --- não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Com ou sem os fundamentos jurídicos que a recorrente possa ter por relevantes para a decisão da causa, a 1ª instância não omitiu o tratamento e a solução das questões suscitadas na ação, atenta a sua causa de pedir e pedido.
A questão que estava para decidir e foi decidida era saber se a R. devia ser responsabilizada pelo pagamento de uma indemnização a favor da A. em sede de responsabilidade civil, em razão da instauração da ação e do respetivo registo no proc. nº 5978/08.3TBMTS que correu termos no Tribunal de Matosinhos.
O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Ao afastar, fundamentadamente, a responsabilidade civil extracontratual, o tribunal fê-lo, certamente, por entender que tal forma de responsabilidade seria a única a merecer discussão quanto aos respetivos pressupostos. Para decidir a questão da atribuição da indemnização, não tinha o juiz que abordar todas as formas possíveis de responsabilidade, designadamente a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual por atos lícitos.
Ao não discutir esta última, fê-lo certamente por considerar não ser aplicável ao caso, na sua liberdade de indagação e aplicação das regras de Direito.
Admitindo que errou, justifica-se a reapreciação dos fundamentos da decisão, ou seja, da aplicação do Direito, sem que esteja em causa a sentença qua tale, que --- bem ou mal --- decidiu a questão, e até de forma fundamentada. Ou seja, pode haver errore in judicando ou erro judicial, a abordar em sede de recurso, mas não o indispensável errore in procedendo, próprio das nulidades da sentença. A questão da ação foi decidida.
Com efeito, não ocorre o apontado vício da nulidade da sentença.
*
2. Verificação dos pressupostos da responsabilidade por atos ilícitos e a obrigação de indemnizar da R. a favor da A.
Percorrendo as alegações da recorrente, esta defende, sobretudo, que a atuação da recorrida, ao instaurar e fazer registar uma determinada ação judicial, restringe o seu direito (absoluto) de propriedade, sendo, por isso, ilícita e fonte de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, designadamente por culpa in agendo, independentemente do não preenchimento do requisito da ilicitude através do conceito de abuso de direito.
Sempre estaria em causa uma situação de colisão entre aquele direito real da recorrente e o direito de ação da recorrida, devendo prevalecer o primeiro, por ser superior, por aplicação do nº 2 do art.º 335º do Código Civil.
A A. assenta o pedido de indemnização que deduz contra a R. no exercício da ação que esta contra aquela deduziu no processo nº 5978/08.3TBMTS que correu termos no 3° Juízo Cível do Tribunal de Matosinhos. Na expressão da A., a instauração daquela ação e o respetivo registo obstaram a que ela lograsse vender ou rentabilizar durante mais de quatro anos um determinado bem imóvel que lhe pertence, causando também a depreciação do seu valor, o que constitui um prejuízo que a R. deve reparar.

Façamos uma análise, ainda que breve, sobre o exercício do direito de ação.
O art.º 20º, nº 1, da Constituição da República, consagrando, no essencial, o chamado direito à jurisdição, dispõe que “a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Do subsequente nº 5 resulta que “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Este normativo constitucional vai ao encontro do que dispõe o art.º 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, o art.º 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o art.º 14° do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
O direito de acesso ao direito não é apenas instrumento da defesa dos direitos e interesses legítimos. É também elemento integrante do princípio material da igualdade e do próprio princípio democrático, já que este não pode deixar de exigir também a democratização do direito.[10]
No direito de acesso aos tribunais que o referido nº 1 também prevê, inclui-se o direito de acção[11], ou seja, o direito subjetivo de levar determinada pretensão (juridicamente relevante) ao conhecimento de um órgão jurisdicional, solicitando a abertura de um processo, com o consequente dever (direito ao processo) do mesmo órgão de sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada (art.º 205º, nº 1, da Constituição).
A proteção jurídica através dos tribunais implica a garantia de uma proteção eficaz. Neste sentido, ela engloba a exigência de uma apreciação, pelo juiz, da matéria de facto e de direito, objeto do litígio ou da pretensão do particular, e a respetiva «resposta» plasmada numa decisão judicial vinculativa (em termos a regular pelas leis de processo).[12]
Nas palavras de Lebre de Freitas[13], o direito de ação exerce-se mediante a dedução de pretensões (ou pedidos, como o código continua a preferir chamar-lhes), pelas quais o autor (ou o réu reconvinte, ou ainda o terceiro interveniente principal ativo ou oponente) se afirma titular dum direito ou outro interesse legítimo e, consequentemente, solicita uma providência processual para a respetiva tutela. A disponibilidade da tutela jurisdicional exprime-se, antes de mais, pela liberdade de decisão sobre a instauração do processo (art.º 3º, nº 1). Não podendo o tribunal substituir-se nunca às partes na iniciativa destas, ao autor cabe dar início à instância, mediante a propositura da ação; por seu lado, o R. pode deduzir reconvenção ao abrigo do art.º 266º numa situação de litígio relacionado com o prefigurado na ação.
O direito de ação, como vertente fundamental do direito à jurisdição, é, pois, o direito de recorrer aos tribunais pedindo a tutela de um interesse protegido pelo direito material. Ao mesmo tempo que um ónus, no sentido decorrente do texto, a ação traduz um direito do particular (que se considera lesado e não pode agir por sua força): o de provocar a atividade dos tribunais para que, reconhecendo o seu direito, se lhe conceda a tutela judiciária adequada.[14]
Já Alberto dos Reis afirmava que “o Estado tem … de abrir o pretório a toda a gente, tem de pôr os seus órgãos jurisdicionais à disposição de quem quer que se arrogue um direito, corresponda ou não a pretensão à verdade e à justiça”.[15]
Pode, não obstante existir um interesse material, organizado ou não em direito subjetivo, faltar o interesse processual ou interesse em agir, isto é, o interesse em recorrer aos tribunais para tutela do primeiro. A exigência do interesse processual baseia-se fundamentalmente na necessidade de não sobrecarregar os tribunais com ações inúteis --- razão de ordem pública que justifica o seu conhecimento oficioso --- enquanto exigência dum interesse sério, uma necessidade justificada, razoável, fundada para o recurso a juízo, mas não mais do que isso.[16]
Pode dizer-se que o autor só tem interesse em agir quando não dispõe de quaisquer outros meios (extrajudiciais) de realizar aquela pretensão. E isso acontece, ora porque tais meios, de facto, não existem, ora porque, existindo, o autor os utilizou e esgotou sem sucesso. Este interesse processual respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentado em juízo. A instauração de uma ação inútil sempre causa ao réu prejuízos e incómodos injustificados.
A falta do interesse processual, quando exigido, constitui exceção dilatória inominada, como tal geradora de absolvição da instância. Mas, à pretensão, basta a afirmação do direito ou interesse, independentemente da sua existência, que é já uma questão de mérito.[17] O conflito de interesses não é ainda o litígio, nele apenas contido potencialmente; o litígio resulta da pretensão formulada em juízo, independentemente de ela ser contestada ou de o réu se recusar a satisfazê-la. Por isso, o direito de ação é atualmente entendido, de modo pacífico, como um direito público totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a tutela judiciária, afirmando-se como existente: ainda que ela na realidade não exista, a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à emissão da sentença.
Ninguém duvida do interesse em agir da aqui R., na qualidade de autora na ação nº 5978/08.3TBMTS, tal como configurou o litígio na respetiva petição inicial. A ação prosseguiu os seus termos e culminou com uma sentença de mérito que lhe negou o direito a que ali se arrogou peticionando, além do mais, o reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio acima identificado, bem como o cancelamento da hipoteca indicada no ponto 5 dos factos provados.
A questão coloca-se agora ao nível da justificação da ação em função da materialidade dos factos nela alegados pela autora e discutidos, do Direito aplicável e do Direito efetivamente aplicado, mais concretamente, se a interposição da ação, com o registo subsequente, pelas suas caraterísticas concretas, pode, desde logo, constituir um ato ilícito para efeitos de responsabilidade civil aquiliana ou delitual.
O direito de ação, como observámos, é essencialmente diferente do direito que através dela se pretende acautelar. Aquele é necessariamente exercido antes de se saber se o direito substantivo existe ou não, sem averiguação prévia sobre tal existência. Uma coisa é o direito de poder provocar a atividade jurisdicional do Estado, para que este aprecie os direitos concretos ou incertos entre as partes, mediante uma decisão fundamentada, e outro é o direito substantivo que, por exemplo, o autor se arroga contra o réu e pretende que lhe seja reconhecido pelo tribunal. Direito este material, que pode existir ou não, no momento da propositura da ação. Nunca pode a demonstração da sua existência ser um requisito prévio para o exercício do direito de ação, sob pena de se cair num absurdo, pois que só quando o tribunal emite a sentença é que se pode saber se a pretensão do autor era ou não fundada, ou, correlativamente, se a defesa do réu era ou não conforme o Direito[18].
Daí que, salvo casos excecionais, sendo o direito de ação, com consagração constitucional, inerente ao Estado de direito e um veículo para a discussão do direito subjetivo, não é por se decidir na ação que este direito afinal não existe, que deixa de se reconhecer que o direito de ação foi plena e corretamente exercido. Outros fatores de responsabilidade terão de advir. O exercício do direito de ação não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial. Exigir isso, seria fechar a porta a todos os interessados: aos que não têm razão e aos que têm.[19]
Eis a questão fulcral: em que situações excecionais se deve dizer que o exercício do direito de ação é ilícito?
Admitida a autonomia do direito da ação, que só por si não funciona como uma causa de exclusão da ilicitude, podendo ser exercido contra a lei, a doutrina e a jurisprudência mais recentes têm agrupado tais situações sob dois temas jurídicos essenciais:
a) O exercício abusivo dentro dos contornos da cláusula geral do abuso de direito (art.º 334º do Código Civil) -- é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito --- de que a litigância de má fé é um afloramento; e
b) Responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo, pressupondo que a atuação processual ilícita sancionada tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se coloque, destacando-se a culpa por danos patrimoniais prolongados (de que é exemplo o art.º 374º, nº 1), por danos morais e por atuações processuais complexas ou com intervenção de terceiros. Em qualquer caso, a ação em que foram praticados os atos danosos há de mostrar-se decidida com trânsito em julgado.

Desenvolvendo um pouco estes dois pontos, correlacionando-os com o caso concreto e começando pela al. a)…
A priori legítimo, se exercido de forma que ofenda manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, em suma, o sentimento jurídico socialmente dominante, o direito torna-se ilegítimo, daí advindo a paralisação dos respetivos efeitos, tudo se passando como se não existisse na esfera patrimonial do titular, sobrando apenas a sua aparência.
Pode entender-se, juridicamente, por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica --- por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde --- e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[20].
Uma das funções essenciais do Direito é sem dúvida assegurar expetativas. A tutela das expetativas das pessoas é essencial a uma ordenação que pretenda ter como efeito a estabilidade e a previsibilidade das ações. Como se sabe, a confiança é um poderoso meio de redução da complexidade social, limitando a quantidade e a variedade de informação que tem de ser elaborada pela pessoa na sua vida social, e desempenhando uma função de desoneração da formação de expetativas em cada caso e a partir do nada.
A utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respetivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo.
O instituto do abuso do direito relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça.
A parte que abusa do direito, atua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
O exercício do direito de ação, em concreto, deve obedecer a uma exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa fé ou admita ter razão. Se litiga com má fé, exerce uma atividade ilícita e, como tal, incorre em responsabilidade civil processual subjetiva com base na culpa (art.° 542° do Código de Processo Civil), por um exercício abusivo do direito de ação ou de defesa.
A litigância de má fé surge como um instituto processual, de tipo público que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de atuações processuais. Antes corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objetivos muito práticos e restritos.
No essencial, não relevam todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as atuações tipificadas nas diversas alíneas do citado art.º 542º, nº 2; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (art.ºs 542º, nº 1 e 543º).
Resulta do art.º 542º, nº 2, al.s a) e b) que litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou tiver alterado a verdade dos factos relevantes para a boa decisão da causa.
A questão da má fé material não pode ser vista com a linearidade que por vezes lhe é atribuída, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil e tem foros de garantia constitucional. Por isso, terá de haver uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos.
Incorre em culpa grave ou erro grosseiro a parte que vai para Juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão.[21]
A boa fé no direito substantivo das obrigações é essencialmente e antes de mais a consideração dos interesses dos outros, a lealdade na celebração e execução dos negócios jurídicos (art.º 227º e 762º, nº 2, do Código Civil).
Na litigância de má fé haverá sempre que ponderar o princípio da culpa na ação dos litigantes sob pena de fazer recear a qualquer interessado o direito de recorrer livremente aos tribunais para fazer valer os seus direitos; ou melhor, os direitos de que se julga titular e dos quais pretende ser convencido ou convencer terceiros, justamente através daqueles órgãos de soberania.
A incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem até levar consciências honestas a afirmarem um direito de que não são titulares ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir.[22]
A nossa lei processual contém previsões específicas da responsabilidade pela conduta processual, remetendo umas vezes para a litigância de má fé, outras para a responsabilidade em geral. De entre aquelas várias previsões, merece destaque a do art.° 390º, nº 1, (art.º 374º, nº 1, do código atualmente em vigor), por constituir uma concretização e reafirmação ao processo das regras gerais da responsabilidade civil contidas nos art.ºs 483° e 798° do Código Civil, ou seja, por configurar verdadeiramente situação de culpa in agendo.[23]
Passando então à referida al. b) --- a responsabilidade de que trata a ação --- as hipóteses de concretização da culpa in agendo centram-se nos casos em que a atuação processual ilícita tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se coloque, de que são exemplo a culpa por danos patrimoniais prolongados ou por danos morais. Além disso, a culpa in agendo pressupõe que a ação em que foram praticados os atos danosos se mostre decidida por decisão transitada em julgado.[24]
Refere-se no acórdão da Relação de Lisboa de 13.7.2010[25], a este propósito, que independentemente da verificação de uma situação de abuso de direito ou da figura da litigância de má fé, o exercício do direito de ação pode envolver responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo. Qualquer direito subjetivo pode ser exercido de forma ilícita, por implicar a violação direta, necessária, eventual ou negligente de outras normas.
A violação de direitos subjetivos cai sob o art.º 483º, nº l, do Código Civil. Pode ocorrer, por exemplo, a violação do direito ao bom-nome e reputação (uma ação caluniosa), do direito ao património e à iniciativa económica (um pedido de insolvência sem que se verifiquem os pressupostos legais, mas que conduza à total paragem da entidade requerida, do direito de propriedade (qualquer invocação que o contradiga, impedindo o seu pleno desfrute).
Diz-se ali, citando Menezes Cordeiro[26], que nas duas últimas hipóteses acima referidas, enquadráveis na responsabilidade aquiliana, não há presunção de culpa, cabendo ao interessado alegar e provar todos os factos constitutivos da responsabilidade (art.° 487°, n° l, do Código Civil). A responsabilidade pela ação efetiva-se, em regra, através de uma ação própria. Até por razões processuais, não é viável enxertar, numa ação em curso, uma nova matéria: ela poderá implicar sujeitos diferentes e distintos pedidos e causas de pedir.
Acrescenta aquele Professor[27] que as hipóteses de concretização da culpa in agendo centram-se, como dissemos já, nos casos em que a atuação processual ilícita sancionada tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se ponha, destacando-se a culpa por danos patrimoniais prolongados.
E havendo que distinguir entre a improcedência por falta de requisitos para a própria ação, a improcedência por razões de processo ou fundo e a procedência com consequências ilícitas, nas duas primeiras situações, a conclusão de que o direito prefigurado pelo direito de ação não existia, não significa que o autor não tivesse direito à discussão judicial. Na terceira, há a considerar o direito de ação e o próprio direito de fundo, que fez vencimento. Em todos aqueles casos há que conjugar os direitos do autor com o direito de fundo da outra parte, à luz das regras sobre colisão de direitos (art.º 335º do Código Civil), sendo que, no caso da procedência da ação, a margem é muito mais curta porque o direito de ação do autor se mostra mais justificado.[28]
Retomando o caso concreto, a R., na qualidade de autora, tentou, por via de uma primeira ação, instaurada através do proc. nº 2120/07.1TBMTS, a execução específica do contrato-promessa celebrado no dia 2.8.2001, onde figurava como promitente-compradora e D…, S.A., como promitente-vendedora do prédio urbano. Esta ação foi julgada improcedente por se ter concluído que a ré não havia incorrido em mora. No entanto, ficou ali provado que a autora (aqui R.) pagara a totalidade do preço do referido bem (€ 7.930.886,56) e outorgara uma procuração irrevogável, conferindo-lhe os poderes necessários para vender a quem entendesse os ditos prédios. Beneficiou ainda a R. de registo provisório da aquisição do prédio a seu favor.
Além disso, a 15.3.2007, foi registado na competente Código do Registo Predial o arrolamento do sobredito prédio a favor da ora R.
Negada a execução específica do contrato, nada impedia a R. de continuar a defender o direito de propriedade sobre o prédio, não sendo juridicamente descabida a instauração da ação nº 5978/08.3TBMTS, pela qual, formulando um pedido diferente do que presidira à ação anterior, visou o reconhecimento do direito de propriedade através da alegação da sua posse e da verificação dos demais requisitos que considerou relevantes para a aquisição originária daquele direito real por usucapião e o cancelamento do registo de uma hipoteca voluntária efetuado em 10.5.2007 que a promitente-vendedora constituíra a favor de um terceiro (E…). Note-se que numa e noutra ações a aqui A. não foi demandada e apenas foi chamada a intervir na segunda demanda, quando a aqui R. se terá apercebido de que, após a propositura da ação, a promitente-vendedora constituíra outra hipoteca voluntária sobre o prédio, a favor do F… e registara, como provisória, a aquisição do mesmo, por compra e venda, a favor da aqui A., B…, Lda. Só então se apercebeu do seu interesse em agir contra esta sociedade, ampliando o pedido primitivo de modo a abranger a condenação desta chamada a reconhecer o direito de propriedade da aí autora sobre o prédio, assim como a nulidade dos negócios de constituição de hipoteca e de compra e venda aludidos nos pontos 6 e 7 dos factos provados.
A aqui R. viu aquela ação ser julgada improcedente, com trânsito em julgado, após apelação e revista excecional, não lhe sendo reconhecida a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio com o invocado fundamento da usucapião. No entanto, foi-lhe ali reconhecida a posse do imóvel em questão, que durava desde a data da celebração do contrato-promessa, ou seja, desde 2.8.2001. O fracasso da ação ficou a dever-se a uma posição doutrinária seguida nas instâncias e no Supremo Tribunal de Justiça quanto à interpretação da norma do art.º 1256º do Código Civil relativa à acessão da posse. Entendeu-se ali que a posse da autora (aqui R.) não podia ser somada às posses anteriores com vista à usucapião do imóvel, porque o contrato-promessa da sua venda em que a ali autora figurava não era meio translativo idóneo da posse.
E porque a posição doutrinária e jurisprudencial não é única sobre a matéria em causa[29], o acórdão da Relação do Porto que tratou da questão reconheceu igualmente a qualidade de possuidora da ali autora sobre o imóvel em apreço, mas, discorreu sobre as divergências doutrinais a esse respeito, optando por considerar que a posse da aqui R. não era suscetível de ser somada às anteriores, com vista a usucapião. O Supremo Tribunal de Justiça não só viria a admitir o recurso de revista excecional dentro dos parâmetros apertados previstos no art.º 672º, como reafirmaria a decisão por entender também que o contrato-promessa não era meio translativo idóneo da posse.
Acaso se tivesse seguido uma posição doutrinária diferente, não estaria fora de hipótese a ali autora obter ganho de causa. A autora era possuidora do prédio, até tinha pago a totalidade do seu elevado preço e ficara desde a promessa autorizada, por procuração irrevogável, a vendê-lo a quem entendesse.
Com toda a evidência, a instauração daquela ação não foi um ato descabido, irrazoável, condenado ao insucesso, menos ainda se dirá que a ali autora sabia bem que a ação não teria sucesso, que era inviável, iníqua e muito menos que agiu motivada pela intenção de causar algum prejuízo à (ali) interveniente principal, aqui A.
Na realidade, a R. exerceu ali o direito de ação na normalidade da defesa de um direito subjetivo de que, razoavelmente, se julgou ser titular, reagindo contra uma situação que, objetivamente, pode mesmo ser considerada injusta para quem, beneficiando de um contrato-promessa de compra e venda de um bem de elevado valor, tendo pago o respetivo preço e entrado na respetiva posse, mesmo com autorização para o vender a quem tivesse por conveniente, vê o mesmo imóvel ser onerado por hipoteca e ser vendido a um terceiro.
Nestas circunstâncias e tendo o direito de ação a autonomia a que já nos referimos relativamente ao direito subjetivo que através dela se defende ou se pretende ver reconhecido, seria um absurdo jurídico limitar o exercício da ação à certeza deste direito.
Já ensinava Alberto dos Reis[30] que o litigante pode até ignorar se tem ou não o direito que, pela ação ou recurso pretende exercer. Na verdade, o vencimento ou perda das causas depende às vezes de bem pouco; quantas a omissão duma formalidade ou diligência judicial; ou o não ter sido satisfeita no prazo legal, fazem perder uma causa fundada na mais evidente e clara justiça? Quantos pontos de direito há opinativos, que nem a lei, nem a prática de julgar têm fixado?
Faz todo o sentido acreditar que a R., autora na ação nº 978/08.3TBMTS considerava seriamente a possibilidade de que o direito substantivo lhe assistia e de que obteria ganho de causa, o que afasta totalmente qualquer laivo de má fé material na litigância ou abuso no exercício do amplamente reconhecido, mesmo ao nível constitucional, direito de ação.
Tratando da responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo, não vemos, pelas circunstâncias da ação e do seu exercício, atrás referidas, como se possa apontar a verificação daquele seu pressuposto.
Reafirmamos a autonomia do direito de ação relativamente ao direito material que nela se discute, não podendo antecipar-se a sua verificação. A ação justifica-se pela necessidade da aqui R. ter tido de recorrer aos Tribunais para defesa do seu interesse legítimo, sendo que agiu em condições de absoluta normalidade. Não havendo certezas sobre o sentido da decisão do caso --- se houvesse estava encontrada a negação, por desnecessidade, do próprio direito de ação em geral --- todas as condições dos factos em causa e as variáveis da aplicação do Direito apontam para a inexistência de ilicitude e de culpa da aqui R. no exercício do direito de ação.
A ali autora (aqui R.) tinha efetivamente direito à discussão judicial que empreendeu na ação nº 978/08.3TBMTS. Negar-se-lhe aquele direito, nas condições, de facto e de Direito em que o exerceu, seria negar o direito de ação na generalidade das situações da vida, tornando-as estáticas, paralisadas, em absoluta contradição com a dinâmica das relações jurídicas.
O direito de ação não exclui diretamente qualquer direito material em discussão nessa ação, sendo aquele até essencial à definição do direito e à consolidação da sua titularidade. Assim aconteceu.
E a seriedade da ali autora na litigância que empreendeu naquela ação foi de tal ordem que, na sequência da decisão desfavorável do Supremo Tribunal de Justiça na revista excecional, apresentou requerimento de confissão do pedido reconvencional que nessa ação a ré (aqui A.) deduziu no sentido de que se lhe reconhecesse --- por oposição ao direito que a ali autora invocou --- a qualidade de legítima proprietária do mesmo imóvel.
Não havendo qualquer abuso ou má fé da aqui R. no exercício do direito de ação naquele processo, nem culpa in agendo, antes um exercício normal daquele direito, não há ilicitude de conduta da R. enquanto pressuposto de responsabilidade aquiliana, seja ela relativa a um qualquer dano típico de resultado ou final, seja até por um dano relevante de perda de chance ou oportunidade perdida de venda ou de rentabilização do imóvel em virtude da instauração daquela ação e do respetivo registo.
Improcede assim, desde logo por falta do pressuposto “ilicitude do ato ou conduta” da R., o fundamento da responsabilidade civil aquilina, caindo assim, com base nessa fonte de responsabilidade, o dever de indemnizar por culpa in agendo.
*
3. Responsabilidade por ato lícito da R.
Subsidiariamente, defende a recorrente a verificação de responsabilidade por ato lícito, seja por interpretação extensiva, seja por integração de uma lacuna legal, ao abrigo dos art.ºs 9º e 10º, com referência ao art.º 1347º, todos do Código Civil.
Já verificámos que a interposição da ação nº 5978/08.3TBMTS foi lícita no caso, como é normalmente.
Sabendo-se que dentro da categoria da responsabilidade civil extracontratual, para além de ocorrer por factos ilícitos e pelo risco, ela pode respeitar a factos lícitos, vejamos se assim acontece no caso.
Justificando este tipo de responsabilidade, Antunes Varela[31] escreve: “O acto (lesivo) pode ser lícito, porque visa satisfazer um interesse colectivo ou o interesse qualificado de uma pessoa de direito privado. Mas pode, ao mesmo tempo, não ser justo (no plano da justiça comutativa ou no da justiça distributiva) que ao interesse colectivo, ou ao interesse qualificado da pessoa colectiva ou singular, se sacrifique, sem nenhuma compensação, os direitos de um ou mais particulares ou os bens de uma outra pessoa”.
Dada a especificidade do interesse que justifica a existência de responsabilidade por atos lícitos (interesse coletivo ou o interesse qualificado de uma pessoa de direito privado, na expressão daquele distinto professor), tal forma de responsabilidade só existe nos casos previstos na lei. Almeida Costa[32] aponta claramente no sentido de que se trata de uma responsabilidade excecional, cujo princípio não está sequer formulado no Código Civil.[33]
Entendeu o legislador não estabelecer um regime comum, antes optando por regular cada uma das situações admitidas como geradoras deste tipo de responsabilidade, em conformidade com a sua especificidade.
Menezes Cordeiro[34] considera que tal forma de responsabilidade representa uma imputação pelo sacrifício por danos voluntariamente provocados que não tem lugar ao abrigo da cláusula geral do art.º 483°, n° l, que apenas visa atos ilícitos, mas antes se verifica nos termos de previsões normativas específicas que determinam tal imputação. A especificidade impõe-se, aqui, por força do artigo 483°, n° 2, do Código Civil: não há imputação sem culpa a não ser nos casos expressamente previstos na lei.
Acrescenta este insigne professor que a imputação pelo sacrifício tem como pressuposto uma permissão de agir em áreas que, normalmente, estariam vedadas.
No caso, acontece precisamente o oposto: como vimos, o exercício do direito de ação é normalmente lícito e só excecionalmente é exercido de uma forma abusiva, com litigância de má fé ou com culpa in agendo. Quando excecionalmente assim acontece, há responsabilidade, seja na forma especificamente prevista nos art.ºs 542º e seg.s do Código de Processo Civil, seja na forma de responsabilidade civil por atos ilícitos (art.ºs 483º e seg.s do Código Civil).
A lei não prevê responsabilidade civil para o (legítimo) exercício do direito de ação enquanto ato lícito, como acontece especificamente com a ação em estado de necessidade (art.º 339º, nº 2, do Código Civil), no âmbito dos direitos reais, nos art.ºs 1322º, nº 1, 1347º, nº 3, 1348º, nº 2, 1349º, nºs 1 e 3, do Código Civil e, no âmbito do direito público, com as expropriações. Não a prevendo especificamente, ela não existe.
Ora, as normas excecionais, como é a do art.º 1347º, nº 2, do Código Civil, cuja aplicação analógica a recorrente reivindica, não a comportam, sendo expressamente proibida pelo art.º 11º do Código Civil. O recurso à analogia pressupõe a existência de uma lacuna da lei, isto é, pressupõe que uma determinada situação não está compreendida nem na letra nem no espírito da lei. Terá que se ter esgotado todo o processo interpretativo dos textos sem se ter encontrado nenhum que contemplasse o caso cuja regulamentação se pretende, o que não acontece aqui.[35] Não podemos transpor para a exceção o que o legislador quis que fizesse parte da regra.
A recorrente apela ainda à interpretação extensiva do citado art.º 1347º, mas esta interpretação apenas se justifica quando haja necessidade de estender as palavras da lei, reconhecendo que elas atraiçoaram o pensamento do legislador que, ao formular a norma, disse menos do que efetivamente pretendia dizer, mas contemplando o caso.
O direito de ação não está, minimamente sequer, contemplado no texto do art.º 1347º do Código Civil, que respeita a relações jurídicas de vizinhança, especificamente, à construção no prédio do titular de instalações ou depósitos prejudiciais (de substâncias corrosivas ou perigosas), se for de recear que possam ter sobre o prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei.
Dado que os casos de responsabilidade civil por atos lícitos estão especificamente previstos na lei, não se prevendo como tal o direito de ação, a conclusão a tirar é apenas uma: o legislador não quis que o exercício do direito de ação, quando lícito, desse lugar a indemnização.
Improcede também esta terceira questão da apelação.
A sentença, douta, merece confirmação.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), pelo que não ocorre nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, se o juiz decidiu a questão sem aplicar as normas jurídicas que o recorrente considera aplicáveis.
2. O direito de ação, com proteção constitucional, é atualmente entendido, de modo pacífico, como um direito público totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a tutela judiciária, afirmando-se como existente, ainda que ela, na realidade, não exista; a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à emissão da sentença.
3. Salvo casos excecionais, sendo o direito de ação inerente ao Estado de direito e um veículo para a discussão do direito material subjetivo, não é por se decidir na ação que este direito afinal não existe que deixa de se reconhecer que o direito de ação foi plena e corretamente exercido.
4. Situações excecionais, justificativas de responsabilidade, são aquelas em que o direito de ação é exercido com abuso de direito, de que é afloramento a litigância de má fé, e as que caraterizam a culpa in agendo.
5. Por falta de disposição legal específica, quando lícito, o exercício do direito de ação não é fonte de responsabilidade civil (por atos lícitos).
*
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante, por ter decaído no recurso.
*
Porto, 24 de novembro de 2016
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
____________
[1] Pela sua fidelidade aos autos, evitando esforço improfícuo, segue-se de perto o relatório da sentença.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Seguindo ordem e precedência lógica.
[4] Por transcrição.
[5] Por transcrição.
[6] Atualmente, sem prejuízo do disposto no art.º 5º, nº 2.
[7] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[8] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.7.2006, proc. 06A1838, in www.dgsi.pt.
[10] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra, 3ª edição revista, pág. 162 (anot. ao art.º 20º).
[11] Além do direito a prazos razoáveis de ação ou de recurso, do direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas.
[12] J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Almedina, 1991, pág. 666.
[13] Código de Processo Civil anotado, Coimbra, 1999, Vol. 1º, pág. 3 (anot. ao art.º 2º).
[14] A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1985, pág. 5, nota 1.
[15] Código de Processo Civil anotado, vol. II, pág. 259.
[16] A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 181.
[17] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil…, Coimbra, 3ª edição, pág.s 34 e 35, notas 17 e 21, citando doutrina nacional e estrangeira.
[18] Neste sentido, Vaz Serra, Abuso de Direito (em matéria de responsabilidade civil, BMJ 85/271, citado no acórdão da Relação de Lisboa de 16.12.2003, proc. 8263/2003-7, in www.dgsi.pt.
[19] Referido acórdão da Relação de Lisboa de 16.12.2003, citando Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. II, 3ª edição, 1981, pág. 259.
[20] Castanheira Neves, “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2003, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64.
[21] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anot., Volume II, pág. 262.
[22] Idem, ob. e vol. cit., pág. 263.
[23] Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, pág. 137.
[24] Acórdão da Relação de Lisboa de 8.2.2007, proc. 10806/2006-6, in www.dgsi.pt.
[25] Proc. 1259/08.0TVLSB.L1-8, in www.dgsi.pt, citado na decisão recorrida.
[26] Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, pág. 139.
[27] Ob. cit., pág. 145.
[28] Como também se refere no citado acórdão da Relação de Lisboa de 13.7.2010.
[29] Cf., entre outros o acórdão da Relação do Porto de 7.10.2008, in www.dgsi.pt.
[30] Citado no referido acórdão de 16.12.2003.
[31] Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, pág. 669.
[32] Direito das Obrigações, Almedina, 1979, pág. 422.
[33] Em sentido semelhante, acórdão da Relação de Évora de 20.12.2012, proc. 1353/11.0TBABT-A.E1, in www.dgsi.pt.
[34] Direito das Obrigações, 2º vol., AAFDL, 1980, pág.s 393 e 394.
[35] P. Lima e A. Varela, Código Civil anot., 2ª edição revista a atualizada., vol. I, pág. 48.