Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19079/16.7T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
TÍTULO EXECUTIVO
AUTO DE PENHORA
Nº do Documento: RP2023042019079/16.7T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O auto de penhora e os despachos determinativos da notificação do fiel depositário para apresentar os bens penhorados proferidos numa acção executiva (entretanto extinta por deserção da instância), na qual se decidiu dar cumprimento ao disposto no art. 854º, nº 2, do anterior Código de Processo Civil e se determinou o arresto de um imóvel daquele para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas, não constituem título executivo para a instauração ulterior de uma outra execução para entrega de coisa certa relativamente àqueles bens.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 19079/16.7T8PRT-B.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – J4)


Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Deolinda Varão
2ª Adjunta: Isoleta Costa
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA deduziu, por apenso à Execução nº 19079/16.7T8PRT, do Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, oposição mediante embargos de executado contra a aí exequente BB.
Para além de impugnar o valor da causa, invocou inexistir título executivo e as excepções de litispendência e de ilegitimidade passiva, impugnando ainda a factualidade do requerimento executivo.
Tendo falecido a exequente/embargada, foram habilitados como seus herdeiros CC e DD, os quais contestaram (articulado de 05/07/2018), defendendo a manutenção do valor da causa, que existe título executivo (questão sobre a qual se pronunciaram nos artigos 9º a 18º da contestação) e que não ocorrem as invocadas excepções. Pedem ainda a condenação da embargante como litigante de má fé, em multa e indemnização.
A embargante respondeu, defendendo não existir litigância de má fé da sua parte.
Foram realizadas diligências com vista à fixação do valor da causa, tendo sido proferido despacho, em 01/07/2022, onde se manteve o valor inicial.
Nessa mesma data foi dispensada a realização da audiência prévia, “passando-se a proferir os despachos previstos nos arts. 595.º, n.º 1, e 596.º, n.º 1, do CPC”.
Foi elaborado despacho saneador, onde se julgaram improcedentes as excepções de litispendência e de ilegitimidade passiva e se conheceu do mérito da causa, por se entender que o estado dos autos o permitia, decidindo-se:
“Pelo exposto, considerando verificada a falta de válido título executivo contra a aqui executada/embargante, julgo procedentes os presentes embargos de executado, com a consequente e oportuna extinção da execução quanto à aqui executada/embargante.
Absolvo a aqui executada/embargante do respetivo pedido de condenação como litigante de má-fé.”.
Desta decisão vieram os embargados interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões (!), que se transcrevem:
«A) Os aqui Recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, porquanto, o Tribunal a quo comete um erro na apreciação crítica da prova fática e, para além disso, erro crasso na aplicação do Direito;
B) Os Apelantes não concordam, nem tão pouco concebem qual o alcance e a razão de tal “inusitada” e perplexa decisão produzida nos presentes autos 6 (seis) anos após a instauração do processo executivo em 28-09-2016 e, ainda, subsequentemente aos Embargos de executada deduzidos em 23-03-2018;
C) A Decisão ora em crise apresenta-se NULA, constituindo manifestamente uma “decisão surpresa”, porquanto, além do mais, viola os princípios, nomeadamente, o da igualdade das partes (art. 4º, do CPC), do contraditório (art. 3º, nº 3, CPC) da prevalência da decisão de mérito (art. 6º, nº 2, CPC), do direito à tutela jurisdicional (art. 20, nº 1, CRP), do direito de acesso à justiça (art. 2º, CPC) pois a mesma desconsidera a aquisição processual de factos e, ainda, contraria a admissibilidade de prova requeridos pelas partes;
D) A decisão recorrida quando decide Dispensar a audiência prévia, viola o preceituado nos artigos 591º, nº 1, al. b), 592º, nº 1, al. b) e 593º, todos, do Código Processo Civil;
E) Igualmente, a Sentença em crise quando decide - “O Mérito da Causa” [V], viola quer o princípio da igualdade das partes (artigo 4º, do CPC), quer do princípio do contraditório (artigo 3º, nº 3, CPC);
F) A decisão em crise sem que para tanto desse cumprimento ao preceituado no artigo 3º, nº 3, do CPC, decide de mérito dos autos, desconsiderando toda a tramitação ocorrida nos autos principais (processo executivo) e nos autos de Embargos de executado, os quais, um e outro, vieram a ser tramitados ao longo de mais 6 (SEIS) ANOS;
G) Nos autos executivos, desde a data da sua instauração, em 28 de Setembro de 2016, até à data em que foi proferida a decisão em crise (01-07-2022), foram praticados 13 (treze) actos e despachos/decisões judiciais;
H) Nos presentes autos de Embargos de executado desde a data da sua instauração, em 23 de Abril de 2018, até à data em que foi proferida a decisão em crise (01-07-2022), foram praticados 30 (trinta) actos e proferidos doutos despachos/decisões judiciais;
I) O Tribunal a quo na sentença em crise decide conhecer do mérito da causa, alegadamente invocando não existir título executivo (falta de válido título executivo contra a aqui executada/embargante) e, ainda “erro procedimental e de competência”, sem que para tanto, às partes tenha sido dada a oportunidade de debater essas mesmas questões, ainda sem que tais questões tenham sido discutidas nos articulados ou sequer aflorada na tentativa de conciliação realizada 22-10-2019 ou, ainda, tenha sido dado oportunidade às partes de as discutir e abordar em sede de Audiência Prévia, atento o preceituado nos artigos 591º, nº 1, al. b), 592º, nº 1, al. b) e 593º, todos do Código Processo Civil;
J) A decisão recorrida não era, não podia, nem devia ser previsível para qualquer dos pleiteantes, atento TODOS os actos, despachos/decisões e diligências que ao longo de toda a ocorrida tramitação foram realizados nos autos executivos e - retenha-se -, em particular, no âmbito dos presentes autos de Embargos, ademais, a relativa à determinação oficiosa por parte do Tribunal para a realização de prova pericial (despacho de 21-04-2020);
K) Antes da prolação da decisão recorrida, o Mt. Juiz no âmbito das suas competências e atribuições, máxime (artigo 6º do CPC) fez tramitar os autos principais, fazendo-o ainda por várias vezes, nomeadamente com referência às sobreditas aludidas datas (06-11-2019; 21-04-2020; 06-10-2021; 24-01-2022 e 04-07-2022) em que nos mesmos autos, além do mais, prolatou os mais diversos Doutos despachos;
L) A omissão do convite às partes para tomarem posição sobre as questões SÒMENTE levantadas na sentença ora recorrida, gera NULIDADE da mesma, nos termos do artigo 615º, nº 1, al d), do Cód. Proc. Civil, por excesso e/ou omissão de pronúncia que aqui se invoca para todos efeitos legais;
M) A decisão ora em crise, da forma desconcertante e expedida como veio a ser proferida, sem conhecimento prévio das partes, constitui uma decisão surpresa com violação do princípio do contraditório (artº 3, nº 3, do CPC);
N) O princípio do contraditório, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, proíbe a prolação de decisões surpresa, mesmo que de conhecimento oficioso, e garante a participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e que, em qualquer fase do processo, apareçam como potencialmente relevantes para a decisão;
O) O princípio do contraditório, no plano das questões de direito, exige que antes da prolação da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie;
P) O princípio contraditório encontra raízes em princípios constitucionais como o direito de acesso ao direito e à justiça, o direito a um processo equitativo e justo, ainda, a tutela jurisdicional efectiva, estes que proíbem as situações de indefesa ou violações de princípios de igualdade ou proporcionalidade;
Q) Como bem tem sido decido pelo Tribunal Constitucional, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório. (Vide Acórdão 86/88 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º volume, p. 741 e ss.);
R) A prolação de uma decisão judicial tem de ser o termo de um debate igual e entre as partes com efectiva possibilidade de pronúncia das mesmas quanto ao sentido que entendem dever ser o da decisão;
S) In casu, o Tribunal a quo de forma desconcertante, em total violação do princípio do contraditório, proferiu uma decisão surpresa, que é ilegal, e cometeu uma nulidade, pois omitiu a prática de actos a que lei obriga, com enorme impacto na decisão desta mesma causa. Neste sentido vide Acórdão do STJ de 13-10-2020, proc. 392/14.4T8CHV.G1.S1, in www.dgsi.pt – “ 1. A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma (…)”;
T) O Tribunal a quo não podia negar aos Exequentes/aqui recorrentes o direito de se pronunciarem sobre todas as questões suscitadas na decisão recorrida (falta de válido título executivo contra a aqui executada/embargante e, ainda “erro procedimental e de competência”), nomeadamente, convidando os mesmos a corrigir o seu articulado, nos termos dos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 3, do CPC;
U) O Tribunal a quo não só violou a norma do n.º 3, do artigo 3.º do Código de Processo Civil, como ainda praticou uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil;
V) Todos os sobreditos vícios estão cobertos pela própria sentença recorrida, sendo esta nula, desde logo, por excesso e/ou omissão de pronúncia, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil;
W) In casu a decisão em crise violo[u] o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa;
X) Decidido como se decidiu, o Mtº juiz do Tribunal a quo fez uma má interpretação do Direito, violando, nomeadamente os artigos 3.º, n.º 3, 608º, nº 2 e 615º, nº 1, al. d), todos, do Código Processo Civil e o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa;
Y) A decisão em crise viola, entre outros, os princípios da igualdade das partes (art. 4º, do CPC), do contraditório (art. 3º, nº 3, CPC), da prevalência da decisão de mérito (art. 6º, nº 2, CPC), do direito à tutela jurisdicional (art. 2º do CPC e 20º, nº 1, da CRP), do princípio do direito de acesso à justiça, tendo em conta que os presentes autos encontram-se a tramitar desde o ano de 2016, não tendo nenhum dos 4 (quatro) juízes que ao longo de 6 (seis) anos vieram a tramitar, quer os autos executivos quer os restantes apensos (habilitação de herdeiros e embargos de executado), não tiveram QUALQUER DÚVIDA quanto à agora propalada “existência de um válido e suficiente título executivo”;
Z) Desde o ano de 2016 até ao dia 01-07-2022, pelos Dignos Juízes que tramitaram os sobreditos autos executivos e apensos foram pelos mesmos proferidos 12 (doze) despachos e uma sentença;
AA) O Mt.º Juiz do Tribunal a quo que proferiu a decisão ora em crise, foi o mesmo que veio a proferir Doutas decisões no âmbito destes mesmos presentes autos de Embargos, o que fez nas datas e com teores, como se passa a transcrever:
(…)
BB) Não se compreende de todo a verdadeira razão porque o mesmo Senhor Juiz que proferiu os sobreditos doutos despachos, somente em Julho de 2022 tenha vindo a constatar uma possível inexistência de um[a] válido e suficiente título executivo;
CC) A decisão recorrida carece de qualquer fundamento legal, porquanto os despachos juntos com o Requerimento executivo, constituem válidos e suficientes títulos executivos, atento o preceituado no art. 703º, nº 1, al. d), do Cód. Proc. Civil – “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”;
DD) Os despachos proferidos no âmbito da execução ordinária nº 3204/14.5T8PRT do Juízo de Execução do Porto – J7, têm força executiva contra a aqui executada, pois encontram-se preenchidos os pressupostos legais previstos nos artigos 703º, nº 1, al. d), 704º e 705º todos do Código Processo Civil;
EE) O Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, fez uma interpretação errada do preceituado nos sobreditos artigos 703, nº 1, al. d), 704º e 705º, todos, do CPC, pois tal interpretação vai contra a letra e espírito da lei. E neste mesmo sentido, atente-se o princípio basilar do direito – princípio interpretativo do efeito útil - “Ut res magis valeat quam pereat”, ou seja, a norma jurídica deve ser interpretada no sentido de poder desencadear todos os seus efeitos;
FF) O decidido quanto a propalado erro procedimental e de competência para a tramitação da execução, pelas razões já supra explicitadas, tais ditos erros carecem de fundamento, porquanto, tendo em conta toda a tramitação que ocorreu nos autos, o pretenso “indeferimento liminar do requerimento executivo” não ocorreu, como, aliás, bem se constata dos 12 (doze) sucessivos Doutos despachos proferidos, pelo que as considerações vertidas na sentença recorrida apresentam-se manifestamente despropositadas e extemporâneas, tendo conta os princípios conformadores do nosso sistema jurídico, como seja, e nomeadamente, o da prevalência da decisão de mérito (art. 6º, nº 2, CPC), do direito à tutela jurisdicional (art. 20, nº 1, da CRP), do direito de acesso à justiça (art. 2º, CPC), da oficiosidade e da cooperação (art.s 6º, 7º e 411º, do CPC), os quais privilegiam a decisão de fundo em detrimento das questões formais, e o princípio da economia processual que impõe que o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios aos quais acresce o princípio interpretativo do efeito útil - “Ut res magis valeat quam pereat”;
GG) Se o Tribunal na oportunidade e atempadamente “tivesse entendido/conhecido” do dito “erro procedimental e de competência” - o que, e reitera-se, não aconteceu -, tendo em conta os princípios basilares supra elencados o mesmo tribunal deveria ter dado cumprimento ao preceituado nos artigos 6º, nº 2 e 560º, nº 1, ambos do CPC;
HH) Mal andou a decisão em crise ao argumentar nos termos que o fez, pois ao momento, os presentes autos tramitaram ao longo de 6 (seis) anos sendo que, neste particular, o vertido na mesma decisão traduz-se por um manifesto tipo de “venire contra factum proprium non valet”, como seja, no caso, apresenta-se um impedimento de pôr em causa um facto criado pelo próprio Tribunal;
II) No âmbito do vertido no ponto “Análise dos Factos e Aplicação da Lei”, na parte em que se apresenta declarado “ (…) ficando os interessados remetidos para os meios comuns, em especial para a ação declarativa de reivindicação/condenação, a instaurar e a tramitar autonomamente.”, tal mesmo afinamento - após conhecer-se como se conhece a mais que longa tramitação dos autos executivos em questão e, ainda, a expressa confissão por parte da Executada quanto ao descaminho dos bens em causa, por sua responsabilidade, enquanto fiel depositária dos mesmos -, e aqui com todo o devido respeito, além de subverter toda a lógica da razão, apresenta-se como ofensa ao princípio da economia processual e, consequentemente, como pura lógica de sonegação da própria Justiça;
JJ) O Tribunal a quo, tendo decidido como decidiu, por erro de interpretação, de aplicação do direito e de determinação das normas aplicáveis, violou os artigos 2º, 3º, nº 3, 4º, 6º, nº 2, 7º, 411º, 590º, nº 3, 591º, nº 1, al. b), 592º, nº 1, al. b), 593º, nº 3, 608º, nº 2, 615º, nº 1, al. d), 703º, nº 1, al. d), 704º, 705º, todos, do CPC e, ainda, artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, e sempre com o Douto suprimento do omitido, deve o presente recurso ser considerado procedente e, consequentemente, ser alterada a Decisão recorrida em conformidade, com o que assim se fará a mais lídima,
JUSTIÇA!».
A embargante apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida, aduzindo que não houve violação do princípio do contraditório pois a questão da falta de título executivo já tinha sido debatida nos articulados e os embargos foram julgados procedentes apenas e só por falta de título executivo.
O recurso foi admitido e, no mesmo despacho, proferido em 16/11/2022, decidiu-se:
“Por outro lado, quanto à invocada questão da nulidade da sentença, com o devido respeito pela posição assumida no recurso, atenta a concreta natureza e tramitação destes autos, o teor da decisão recorrida e face ao disposto nos arts. 613.º, 615.º, n.º 1, e 617.º, n.º 1, do CPC, sendo taxativa a enumeração das nulidades da decisão, cremos que, por falta de suficiente e adequado fundamento, e tal como já defendeu a executada/embargante na sua resposta, não se verificam as nulidades invocadas pelos recorrentes.
Assim, indefere-se o requerido a tal respeito, contudo V. Exas., Venerandos Desembargadores, farão, como sempre, justiça.”.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) apreciar da nulidade da sentença;
b) apurar da falta, ou não, de título executivo;
c) averiguar do denominado “erro procedimental e de competência para a tramitação executiva inicial”.
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Vejamos a primeira questão.
Invocam os recorrentes a nulidade da sentença por conhecer de questão de que não podia tomar conhecimento, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), do C.P.C., com o fundamento de que foi violado o princípio do contraditório, tendo sido proferida uma “decisão surpresa” sem que as partes fossem convidadas a pronunciar-se, nomeadamente em sede de audiência prévia, cuja realização foi dispensada.
Manifestamente sem razão.
Na verdade, a decisão recorrida conheceu da questão de falta de título executivo, tendo julgado procedentes os embargos precisamente com fundamento nessa falta.
Esta questão foi expressamente invocada pela embargante no seu articulado de oposição à execução.
E sobre a mesma os embargados, ora recorrentes, pronunciaram-se expressamente no seu articulado de contestação, concretamente nos arts. 9º a 18º (como consta no relatório).
Portanto, não houve nenhuma “decisão-surpresa”.
Aliás, tendo a questão sido expressamente invocada nos embargos, o tribunal estava obrigado a conhecê-la, sob pena de omissão de pronúncia (cfr. art. 608º, nº 2, do C.P.C.).
Quanto ao denominado “erro procedimental”, o tribunal nada decidiu nessa parte, limitando-se a acrescentar à fundamentação de direito que, ainda que não ocorresse o vício de falta de título executivo, sempre existiria esse outro “vício”, mas apenas como argumento lateral, sem daí retirar quaisquer consequências, pelo que, o facto de tal questão não ter sido anteriormente aflorada nos autos em nada interfere com a decisão proferida – o que releva é a decisão e não os eventuais argumentos que tenham sido esgrimidos na motivação da sentença sem constituírem fundamento do seu dispositivo.
Por outro lado, quanto à dispensa da audiência prévia, ocorre que, no caso, nem sequer havia lugar à sua realização, nos termos do disposto no art. 592º, nº 1, al. b), do C.P.C., que determina que a audiência prévia não se realiza quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados.
Ora, na situação dos autos, embora na sentença recorrida se tenha indicado a questão como de conhecimento de mérito, estamos perante uma excepção dilatória.
Na verdade, a existência de título executivo configura um pressuposto processual necessário para a instauração da execução e o seu prosseguimento. Sem título não há execução.
“O título executivo é um pressuposto da ação executiva na medida em que confere ao direito à prestação invocada um grau de certeza e exigibilidade que a lei reputa de suficientes para a admissibilidade de tal ação” (Ac. da R.G. de 29/09/2022, com o nº de proc. 1039/21.8T8VNF.G1, publicado em www.dgsi.pt).
Se é certo que situações há em que o título incorpora o próprio direito do credor e dele não se pode dissociar, pois sem título não há direito que possa ser exercido (como sucede, por exemplo, com os títulos de crédito, que incorporam a própria obrigação cartular, que não existe sem aquele), casos em que a falta de título poderá consubstanciar uma excepção de direito material, porque é a própria obrigação exequenda que não subsiste, nas restantes situações o título executivo funciona apenas como documento que demonstra o direito, não sendo este afectado pela falta ou algum vício daquele, tendo somente que ser accionado por outro meio que não a acção executiva. Nestas situações, a falta de título, porque respeita à falta do pressuposto necessário ao prosseguimento da execução, constitui uma excepção dilatória, que preclude a apreciação de mérito da existência e/ou da validade do direito invocado pelo exequente (cfr. Ac. da R.G. de 28/09/2010, com o nº de proc. 3917/09.3TBBRG.G1, publicado no mesmo sítio da Internet).
É esse o caso dos autos: trata-se de uma execução para entrega de coisa certa, os bens descritos no auto de penhora com remoção realizada na execução ordinária nº 388/99 do Tribunal Judicial de Valongo, tendo a exequente indicado como título executivo esse auto e os despachos judiciais proferidos naquela execução.
Ou seja, o alegado título executivo pretende apenas funcionar como documento demonstrativo do direito dos exequentes à entrega dos bens em causa, não sendo este direito posto em causa pela circunstância de se considerar que não existe título executivo.
Donde, não havia lugar à realização de audiência prévia no caso.
Como quer que seja, tendo havido nos articulados o debate da questão em causa, tornava-se desnecessário facultar de novo às partes a discussão de facto e de direito (que já tinha ocorrido) quanto à invocada falta de título executivo e, consequentemente, marcar uma audiência prévia para essa finalidade.
Anote-se ainda que não se pode concluir por qualquer imprevisibilidade da decisão decorrente da circunstância de a execução estar pendente há mais de seis anos e de nela e nos embargos terem sido praticados diversos actos processuais, incluindo despachos judiciais proferidos.
Na verdade, essa situação não foi mais do que o prover ao andamento regular do processo, certo que a citação da executada só ocorreu cerca de dois anos depois da instauração da execução e que os actos praticados nos embargos tiveram como finalidade habilitar o juiz a proferir a decisão de saneamento do processo, incluindo diligências tendentes à avaliação dos respectivo bens para determinar o valor da causa (não se tratando da realização de qualquer prova pericial com vista à instrução do processo, ao contrário do que resulta da alegação dos recorrentes), incidente deduzido pela embargante, as quais sofreram vicissitudes decorrentes de não ser possível a visualização dos bens. Não podendo as partes, nomeadamente os exequentes, olvidar que o processo ainda não estava na fase do saneamento e que ainda havia que ser proferido o despacho saneador, no qual havia necessariamente que se conhecer da questão da falta de título executivo, expressamente invocada pela embargante.
Finalmente, também não se verifica que, ao contrário do defendido pelos recorrentes, tenha sido dada prevalência à forma em detrimento do mérito quando não o deveria ter sido.
Pois, nos termos do disposto no art. 608º, nº 1, do C.P.C., sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 278.º, a sentença conhece, em primeiro lugar, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.
E de acordo com o art. 278º, nº 3, do C.P.C., as exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
Ou seja, as excepções dilatórias insupríveis (como é o caso da falta de título executivo na situação dos autos) são conhecidas antes das questões de direito material, só assim não sucedendo se a excepção se destinasse a tutelar o interesse da parte a quem a decisão de mérito deva ser favorável. Quer dizer, no caso, como a falta de título executivo é uma excepção que se destina a tutelar o interesse da executada/embargante, a mesma só não deveria obter procedência se a decisão de mérito dos embargos devesse ser favorável à embargante, se mesmo considerando existir título executivo os embargos fossem procedentes (portanto, precisamente o contrário do que pretendem os recorrentes).
Verifica-se, assim, que a sentença recorrida conheceu de questão que lhe foi expressamente colocada, e que lhe cabia conhecer, tendo julgado procedentes os embargos com base no respectivo fundamento – pode-se concordar ou não com a decisão tomada e/ou com os seus fundamentos, pode-se entender que existiu erro de julgamento ou que a decisão não é correcta e é injusta, mas isso não significa que tenha existido excesso de pronúncia.
Saber se a decisão proferida sobre a questão poderia ou não ter sido no sentido em que o foi contende com o mérito da decisão e não com a existência de qualquer nulidade da mesma.
É de concluir, pois, que não ocorre a nulidade invocada pelos recorrentes.
Não merece, portanto, provimento o recurso nesta parte.
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Apreciemos agora a segunda questão, tendo em conta os factos dados como provados na decisão recorrida (transcrição):
«1.- A exequente deu à execução como título executivo o auto de penhora com remoção realizada na execução ordinária n.º 388/99-do Tribunal Judicial de Valongo (que depois foi renumerada, passando a execução ordinária n.º 3204/14.5T8PRT-do Juízo de Execução do Porto-J7) e os despachos judiciais aí proferidos e constantes do processo executivo a que este está apenso; conforme tudo consta dos documentos juntos e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
2.- A presente execução para entrega de coisa certa foi instaurada no dia 25/09/2016, sendo a aqui executada/embargante citada por carta entregue no dia 28/03/2018.
3.- A exequente instaurou a execução através do requerimento executivo que se encontra junto, nele indicando como título executivo outro título com força executiva, fazendo constar, do local destinado à exposição dos Factos o seguinte:
“BB, casada, com NIF ... e domicílio sito à Av. ..., ... Valongo, vem nos termos do art. 859º e seguintes, do C.P. Civil, propor a presente acção executiva para entrega de COISA CERTA contra:
AA, advogada, com NIF ... e domicílio à Rua ..., ... Vila Nova de Famalicão,
O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
I – DO TÍTULO EXECUTIVO:
1. No 3º Juízo do extinto Tribunal Judicial de Valongo correu termos Execução Ordinária, sob Processo nº 388/99, na qual foi Executada a aqui Requerente e Exequente EE.
2. No âmbito dos supra identificados autos, em 11-06-2001, foi efectuada penhora com arrobamento e remoção dos bens encontrados nos estabelecimentos comerciais da aqui Requerente (situados à Av. ..., ..., em Valongo) cuja relação de bens penhorados consta do termo do “Auto de Penhora com arrobamento e remoção” elaborado por oficial de justiça. (Cfr. Doc. 1 cujo integral teor aqui de dá por reproduzido)
3. Na referida diligência de Penhora, com remoção, ficou fiel depositária de todos os bens penhorados a mandatária (substabelecida) do aí exequente, a Dra. AA, com escritório sito na Rua ..., ..., em Valongo.
4. No referido auto de penhora foi a mesma Dra. AA expressamente advertida, pelo oficial de justiça, que os bens então ficavam à sua guarda e que devia apresenta-los quando lhe fosse exigido, tendo a mesma declarado que a remoção dos bens penhorados se efectuava para o seu escritório sito na ..., ..., em Valongo.
5. Ocorre que, por extinção dos aludidos autos executivos (Proc. 388/1999), no âmbito dos quais foi ordenada e efectuada a supra referida penhora dos bens da aqui Requerente, por douto despacho de 11-12-2008 foi decretado o levantamento da dita penhora. (Cfr. doc. 2 cujo integral teor aqui de dá por reproduzido)
6. Na sequência, ainda, por douto despacho de 18-05-2009, foi ordenada a notificação da fiel depositária dos bens cuja penhora foi levantada para, em 10 dias, apresentar tais bens à executada/aqui Requerente. (Cfr. doc. 3, cujo integral teor aqui de dá por reproduzido)
7. Não obstante o que lhe foi notificado, e não tendo a aludida fiel depositária, aqui executada, dado cumprimento ao então doutamente ordenado, veio novamente o Tribunal, em 18-05-2011, ordenar a notificação da mesma, para no prazo de 10 dias, efectuar a entrega dos referidos bens (à ora exequente), sob pena de, não o fazendo, ser dado cumprimento ao disposto no art. 854º do CPC. (Cfr. doc. 4, cujo integral teor aqui de dá por reproduzido)
8. O persistente incumprimento por parte da fiel depositária, ora executada, levou a que o Tribunal, agora por douto despacho de 20-03-2013, tivesse decretado o arresto de bens da mesma, nos termos do estatuído no nº 2, art. 854º do CPC, conforme consta de certidão judicial que, igualmente, ora se junta. (Cfr. doc. 5, cujo integral teor aqui de dá por reproduzido)
9. Da tramitação dos supra aludidos autos executivos, não obstante a deserção entretanto operada, decorre dos actos praticados pela fiel depositária, aqui Executada e, bem assim, do conhecimento e subsequentes doutas promoções judiciais havidas, de que se cita e se faz prova (Doc.s de 1 a 5 que ora se junta), decorre a condenação implícita da mesma fiel depositária, ora Executada, na obrigação de entregar os referidos bens à aqui Exequente.
10. O acto de arrolamento decretado em sede dos sobreditos autos executivos (Processo nº 388/99) acompanhado das demais decisões judiciais nos mesmos doutamente proferidas, e a que ora se alude, formou a legítima expectativa fundada na lei de que o incumprimento da fiel depositária quanto à obrigação de entrega dos bens pertencentes à aqui Exequente, confere força executiva.
11. No presente, e atento o incumprimento reiterado da aqui Executada, torna-se necessário recorrer à presente via executiva para obter da mesma a entrega coerciva das coisas de que ficou fiel depositária e que são pertença da aqui Exequente.
12. Com efeito, o direito da Exequente encontra-se já abundante e legalmente reconhecido pela Executada, de modo a que aquela encontra-se munida de um título executivo.
13. Título, aliás, que, nos termos do art. 703º n.º 1, al. d), conjugado com o art. 6º, ambos do C.P. Civil, por sua natureza constitui instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda e que, por isso mesmo, é dado à presente execução.
II – DA OBRIGAÇÃO EXEQUENDA:
14. Como se vem de dizer, até à presente data, e não obstante a aqui executada, sempre ter reconhecido ter sido fiel depositária dos bens penhorados pertencentes à Exequente e os ter removido para o seu escritório, até presente data não deu cumprimento às obrigações a que se vinculou, com seja, a restituição de tais bens à sua legitima proprietária, aqui Exequente.
15. Por isso mesmo, à Exequente só lhes resta o recurso à presente demanda por forma a coercivamente obrigar a Executada a cumprir, com o que lhe foi doutamente ordenado por doutas decisões transitadas em julgado.
16. Sendo que, desde já, nada obsta a que voluntariamente a Executada possa entregar, como deve, os aludidos bens, pertencentes à Exequente, constantes do auto de penhora de 11-06-2001. (Cfr. Doc. 1)
17. E a não se dar o caso, deverá ser-lhe fixado o prazo de 20 (vinte) dias destinados à efectiva entrega desses mesmos bens, no bom estado de conservação verificado à data da penhora.
Com efeito,
18. Com a presente demanda pretende-se que Executada pratique o acto necessário à satisfação de um direito e interesse legítimo da Exequente, como seja, a restituição dos bens que indevidamente foi desapossada, sob pena de a mesma ter que responder pela totalidade dos prejuízos, como seja, entre outros, o valor pago na aquisição, para substituição, de bens destinados à comercialização no seu estabelecimento comercial.
Nestes termos e nos mais de Direito (art. 859º, do C.P. Civil) deve a Executada ser condenada a entregar à Exequente os bens dos quais ficou fiel depositária, constantes no auto de penhora, nos autos de execução que, sob processo n.º 388/99, no Tribunal Judicial de Valongo (posteriormente sob n.º 3204/14.5T8PRT, Porto – Inst. Central – 1ª Secção de Execução – J9) correram termos.”.
4.- Em 06/01/2016, foi proferido despacho judicial no apenso-A (procedimento cautelar/oposição ao arresto) da anterior execução n.º 388/99 (renumerada como execução n.º 3204/14.5T8PRT) que veio a decretar a caducidade do arresto do bem imóvel da aqui executada, com o seu levantamento, tendo a decisão transitado em julgado no dia 26/01/2016, estando há muito extinta e arquivada tal execução desde 05/01/2018, conforme tudo consta da certidão judicial junta aos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido.».
Da análise da certidão judicial do processo referido no ponto 1 dos factos provados, junta em 06/01/2020, retira-se ainda a seguinte factualidade, com relevo para o recurso em apreciação:
1. Por despacho de 11/12/2008 foi ordenado o levantamento da penhora sobre os bens descritos no auto de penhora referido nos factos provados;
2. Por despacho de 18/05/2009 foi determinada a notificação da fiel depositária para, em 10 dias, apresentar os bens e os entregar à executada;
3. Por despacho de 18/05/2011 foi determinada a notificação da fiel depositária para, em 10 dias, diligenciar no sentido de entregar os bens, sob pena de não o fazendo poder ser dado cumprimento ao disposto no art. 854º do C.P.C.;
4. Em 20/03/2013 foi proferido despacho com o seguinte teor:
«BB, executada nos presentes autos, na sequência do levantamento da penhora sobre os bens identificados no auto de fls. 30 e seguintes (fls. 200), da notificação da respectiva fiel depositária para proceder à entrega dos mesmos e da informação por esta prestada de que não sabe onde tais bens se encontram, pelo que não pode proceder à sua entrega, veio, a fls. 248, requerer o arresto em bens da fiel depositária.
Notificada novamente para entregar os bens, com a advertência de que, caso não procedesse à mesma, poderia ser dado cumprimento ao disposto no artigo 854.° do Código de Processo Civil (fls. 273), veio a fiel depositária dizer, uma vez mais, que não sabe onde se encontram os bens, acrescentando ter levado a cabo diligências tendentes a encontrá-los.
Aliás, já pelo requerimento de fls. 112 a fiel depositária explicara que no dia em que a penhora foi realizada os bens ficaram no escritório da até aí mandatária do exequente e que, mais tarde, este os levou consigo, comprometendo-se perante si a entregá-los quando tal lhe fosse solicitado. Atentas estas explicações e as recentes diligências que empreendeu e se revelaram infrutíferas, alega a fiel depositária justo impedimento.
Finalmente, notificada para indicar os bens da fiel depositária cujo arresto requerera, veio a executada indicar, a fls. 334 e seguintes, o bem imóvel aí identificado.
Cumpre apreciar.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 854.º do Código de Processo Civil, o depositário é obrigado a apresentar, quando lhe for ordenado, os bens que tenha recebido, estabelecendo o n.º 2 que, se não os apresentar dentro de cinco dias e não justificar a falta, é logo ordenado arresto em bens do depositário suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas. Neste caso, ao mesmo tempo, é executado no próprio processo para o pagamento daquele valor e acréscimos.
O referido arresto será levantado, de harmonia com o n.º 3, quando o pagamento seja feito ou os bens sejam apresentados, acrescidos do depósito da quantia de custas e despesas, que será imediatamente calculada.
Tal como expressamente afirma o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 20 de Janeiro de 2009, disponível em www.dgsi.pt, a responsabilidade civil consagrada no n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil visa garantir quer o direito do exequente a ser pago pelo valor dos bens penhorados ou arrestados quer o direito de propriedade do titular dos mesmos bens, designadamente nas situações em que é ordenado o levantamento da penhora ou do arresto e a entrega dos bens ao proprietário.
Ora, é precisamente, este último o caso dos autos, na medida em que a não entrega por parte da fiel depositária dos bens cuja penhora foi levantada coloca em causa o direito de propriedade da executada sobre os mesmos, direito esse que merece tutela jurídica.
Por outro lado, afirmando a fiel depositária que não entrega os bens que foram colocados à sua guarda por já não os ter consigo, dúvidas não existem de que é o regime do arresto previsto no n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil o aplicável in casu. O já citado Tribunal da Relação distinguiu, no seu acórdão de 21 de Outubro de 1999, disponível em www.dgsi.pt, a situação em que o depositário, tendo consigo os bens, se recusa a entregá-los quando tal lhe é ordenado da situação em que não os apresenta por já não os ter consigo, concluindo que, no primeiro caso, o meio a utilizar contra o depositário que não entrega os bens é a execução para entrega de coisa certa e, no segundo caso, o meio a utilizar é o disposto no artigo 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Sucede, porém, que, embora a fiel depositária tenha incumprido o dever de apresentar os bens após isso mesmo lhe ter sido ordenado, apresentou uma explicação para o seu comportamento, alegando que, no dia em que a penhora foi realizada, os bens ficaram no escritório da até aí mandatária do exequente e que, mais tarde, este os levou consigo, comprometendo-se perante a depositária a entregá-los quando tal lhe fosse solicitado. Mais alegou que, não obstante ter tentado contactar o exequente, não teve sucesso, pelo que não tem os bens em seu poder e, como tal, não se encontra em condições de poder cumprir o que lhe foi ordenado.
Não obstante a fiel depositária ter avançado com a referida explicação, certo é que a mesma não é de molde a afastar a sua responsabilidade enquanto depositária. Com efeito, é obrigação do depositário guardar a coisa depositada e apresentá-la quando tal lhe for ordenado. Ora, a depositária nomeada nos presentes autos não cumpriu nenhum dos deveres que tal cargo implicava, uma vez que, segundo a própria alega, não guardou os bens nem manteve sobre eles controlo. Assim, uma vez ordenada a respectiva apresentação, não se encontrava em condições de o fazer.
Estas circunstâncias não são mitigadas pelas diligências que a depositária afirmou ter recentemente empreendido, uma vez que não apagam o facto de há muito ter perdido o controlo sobre bens que lhe incumbia guardar.
Também o facto de, desde Março de 2002 (fls. 107), a depositária ter requerido a sua substituição enquanto fiel depositária, por tal cargo implicar um ónus que para si é excessivo, na medida em que não está relacionada com o processo, não é capaz de atenuar a sua responsabilidade. Na verdade, enquanto advogada, a depositária bem sabia os deveres que tal cargo importava, sendo que a apreciação da sua disponibilidade para os assumir devia ter sido feita antes da sua nomeação. Uma vez nomeada depositária, tinha de assumir o encargo de guardar os bens, sendo que a sua substituição não dependia apenas de uma manifestação da sua vontade.
Ora, não tendo a depositária alegado terem os bens em causa sido retirados do seu poder sem o seu consentimento, nomeadamente, por terem os mesmos sido furtados, facto, esse sim, ao qual seria alheia a sua vontade, não se vislumbra qualquer justo impedimento que afaste a sua responsabilidade civil, independentemente, diga-se, do destino que a depositária tenha dado aos bens.
Assim sendo, não tendo a depositária procedido à entrega dos bens que se encontravam à sua guarda nos cinco dias posteriores à data em que foi notificada para o fazer e não se mostrando suficiente a explicação que apresentou para a sua conduta, cumpre dar cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil.
Atentos os motivos expostos, determino o arresto da fracção autónoma designada pela letra D, pertencente ao prédio sito na Rua ..., ..., Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n.º ...81 e inscrito na matriz urbana sob o n.º ...82.
D.N.».
Pretendem os recorrentes que os documentos que a exequente inicial juntou (auto de penhora e despachos proferidos na anterior execução) são título executivo para a execução ora instaurada para entrega de coisa certa, tendo sido alegado no requerimento executivo que deles (e da tramitação daquela acção) “decorre a condenação implícita da mesma fiel depositária, ora Executada, na obrigação de entregar os referidos bens à aqui Exequente”, sendo “instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda”, “nos termos do art. 703º n.º 1, al. d), conjugado com o art. 6º, ambos do C.P. Civil”.
Os títulos executivos “são os documentos (escritos) constitutivos ou certificativos de obrigações que, mercê da força probatória especial de que estão munidos, tornam dispensável o processo declaratório (ou novo processo declaratório) para certificar a existência do direito do portador” (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª ed. revista e actualizada, 1985, págs. 78 e 79).
Nos termos do art. 10º, nº 5, do C.P.C. (equivalente ao art. 45º, nº 1, do anterior C.P.C.), toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva, determinando o art. 703º do C.P.C. (equivalente ao art. 46º do anterior C.P.C.) que só os títulos executivos aí enumerados podem servir de base à execução, ou seja, estamos perante uma enumeração taxativa.
Regem, pois, os princípios da legalidade e da tipicidade no que concerne à formação dos títulos executivos: “quando os particulares pretendam enveredar pela exigência coerciva de obrigações, têm de se sujeitar às normas que regem o acesso à acção executiva, só o podendo fazer quando estejam na posse de documento a que a lei reconheça força executiva” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, 2ª ed., Almedina, pág. 16).
No caso os recorrentes, como o fizera a exequente inicial no requerimento executivo, invocam a al. d) do nº 1 do art. 703º do C.P.C., que se refere aos documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva (posto que, realmente, no caso não se trata de sentença, nem de documentos exarados ou autenticados por notário ou outras entidades com competência para tal, nem de títulos de crédito).
Esta alínea “é uma previsão meramente remissiva, já que a determinação de títulos exequíveis depende da consideração de outras disposições legais”. “Estão a coberto de tal disposição tanto documentos emitidos por entidades públicas como por entidades privadas, desde que respaldados em lei que especificamente confira o atributo de exequibilidade” (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 29 – sublinhado nosso) – exemplos destes títulos são a injunção, as actas de assembleias de condóminos, a certidão da liquidação da conta de custas juntamente com a sentença transitada em julgado …
Ora, relativamente ao caso concreto, não se vê que exista qualquer disposição legal específica que atribua força executiva aos documentos apresentados na execução para efeito de servirem como título executivo numa execução para entrega de coisa certa.
Com efeito, o que dispunha o art. 854º do anterior C.P.C., em vigor à data (a que genericamente corresponde o actual art. 771º do C.P.C.) é que se o depositário não apresentasse os bens dentro de cinco dias e não justificasse a falta, seria logo ordenado arresto em bens daquele suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas, bem como seria o mesmo executado no próprio processo para o pagamento daquele valor e acréscimos.
Isto é, o que a lei prevê é a execução para pagamento de quantia certa no próprio processo em que foi incumprida a obrigação de apresentação dos bens. Não se prevê qualquer procedimento coercivo para entrega dos bens, mas para garantia do respectivo valor (“o valor do depósito”) e acréscimos – sendo esse o conteúdo do título executivo formado nesse processo.
Além do mais, dos despachos proferidos na anterior execução não decorre qualquer condenação da ora executada/embargante na entrega dos bens à exequente (então executada). O que existiu foi a sua notificação para apresentar os bens, com a cominação de que a não entrega daria lugar ao procedimento previsto no art. 854º do C.P.C. então vigente (e não a qualquer providência executiva tendente à entrega coerciva dos bens).
Note-se que não há condenações implícitas: as decisões condenatórias têm de ser expressas e isentas de dúvidas (como todos os restantes títulos executivos). As sentenças contêm uma expressa “declaração do juiz”, que, nas acções de condenação, reveste “a forma duma determinação, ordem ou comando”: a sentença condenatória é “a que contém uma ordem de prestação”, determinando o cumprimento de uma obrigação cujo inadimplemento “certifica ou declara” (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, 1993, Coimbra Editora, págs. 56 e 62).
Aliás, do despacho que decretou o arresto do imóvel da fiel depositária, ora embargante, resulta claramente que o que estava em causa (e determinou o decretamento do arresto) era a garantia da responsabilidade daquela pelo pagamento das quantias correspondentes ao valor do depósito (os bens que lhe haviam sido confiados) e dos respectivos acréscimos e não a entrega coerciva dos bens, posto que se tratava de uma situação em que a mesma já não tinha os bens consigo e não de uma situação de recusa de entrega dos bens.
Portanto, é de concluir que, efectivamente, os recorrentes não dispõem de título executivo que permita instaurar e prosseguir uma execução para entrega de coisa certa, não merecendo provimento o recurso nesta parte.
*
Resta apreciar a terceira questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, do qual resulta a confirmação da procedência dos embargos de executado com a consequente extinção da execução por falta de título executivo, mostra-se prejudicado o conhecimento de quaisquer outras questões que sobre aquela não tenham precedência lógica – cfr. art. 608º, ex vi do art. 663º, nº 2, do C.P.C..
Com efeito, verificando-se a falta de título executivo, que, como decorre do que já se disse, é o pressuposto fundamental para o prosseguimento da execução, é desnecessário averiguar de quaisquer outras questões que com este pudessem interferir, designadamente o denominado “erro procedimental e de competência para a tramitação executiva inicial”.
Para além do mais, no caso, como se referiu aquando do tratamento da primeira questão, o tribunal recorrido nada decidiu no que a esse assunto respeita, pois o mesmo foi aflorado já depois de concluir pela falta de título executivo e pela consequente procedência dos embargos, e como argumento lateral, extra, acrescentando-se que, ainda que não ocorresse o vício de falta de título executivo, sempre existiria esse outro “vício”, mas sem que daí fossem retiradas quaisquer consequências ao nível decisório.
Ora, o recurso abarca a “parte dispositiva da sentença”, a interposição do mesmo “deve ser dirigida contra a decisão em si, e não à respectiva motivação”, a qual, “para efeitos de delimitação do objeto do recurso, só ganha realce através da norma do art. 636.º que permite à parte recorrida, apesar da sua concordância com o resultado, introduzir nas contra-alegações a reponderação do modo como o tribunal resolveu determinadas questões de facto ou de direito com interferência naquele resultado se, a final, vier a ser dada razão ao recorrente” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 134).
O que significa que, não tendo a aludida questão sido fundamento da decisão final que veio a ser proferida pelo tribunal recorrido, também não caberá conhecer da mesma em sede de recurso, não merecendo acolhimento a pretensão recursiva nesta parte.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pelos exequentes/embargados habilitados e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelos recorrentes (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 20/4/2023.
Isabel Ferreira
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa