Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7321/21.7YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: EMPREITADA
ACEITAÇÃO DA OBRA
EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP202511247321/21.7YIPRT.P1
Data do Acordão: 11/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não cabe ao recorrido nem ao tribunal de recurso aferir (por via de interpretação e suprimento de absolutas lacunas de alegação) quais os pontos da matéria de facto que são objeto de discordância, mas antes ao recorrente indicá-los de forma clara.
II - A substituição do recorrido e do tribunal ao recorrente no cumprimento desse ónus é vedada pela letra da lei e corresponderia a aceitar-se uma derrogação do disposto no artigo 640º, número 1 a), passando o ónus ali previsto, na prática, a deixar de ser exigido ao recorrente, já que o seu incumprimento levaria ao suprimento da sua omissão e deixaria de ser cominado com a rejeição da sua pretensão.
III - No contrato de empreitada a aceitação pode ser expressa, presumida – nos termos do artigo 1218.º, número 5 do Código Civil – ou tácita –, nos termos do artigo 217.º do Código Civil.
IV - A mera receção da obra sem imediata reclamação de vícios não aparentes, ou o pagamento de parte do preço total da mesma não correspondem a manifestações inequívocas de aceitação, nem correspondem a factos que com toda a probabilidade a revelem, sobretudo quando se demonstra que acabou por ser apresentada reclamação escrita relativa a defeitos e quando não se sabe se o pagamento feito pelo comitente se destinava a saldar o preço da parte da obra onde ocorreram tais defeitos.
V - Para que a exceção de não cumprimento de contrato se aplique é preciso que as obrigações não cumpridas por ambos os contratantes sejam correspetivas e, portanto, sinalagmáticas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 7321/21.7YIPRT.P1, Juízo Local Cível de Santo Tirso, Juiz 1.

Recorrente: AA

Recorrida: A..., Ldª

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta: Teresa Sena Fonseca

Segundo adjunto: José Nuno Duarte

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1- Em 28-01-2021 o recorrente apresentou no Balcão Nacional de Injunções pedido de notificação da recorrida para pagamento de 13003,54 €. Alegou que, a seu pedido, confecionou peças vestuário que lhe entregou tendo a mesma pago apenas parte do preço devido. Enumerou as faturas emitidas, as notas de crédito descontadas e os valores pagos pela requerida.

2- Citada em 08-02-2021, a requerida deduziu oposição alegando em suma que entregou à requerente as fichas técnicas dos produtos a confecionar bem como os consumíveis necessários ao corte e confeção e que acordou com ela que a entrega dos produtos confecionados deveria ser feita até 07-07-2020. A requerente, contudo, apenas entregou parte das peças encomendadas entre 13 e 16 de julho tendo elas defeitos relativos às suas dimensões. Por isso diz ter recebido reclamação de uma das compradoras finais desses artigos tendo-lhe esta devolvido os produtos e desistindo da sua compra. A requerida, por sua vez, deu disso conhecimento à requerente, tendo ficado com produtos insuscetíveis de venda. Alegou ainda que, não obstante ser titular de notas de crédito emitidas pela requerente, esta lhe faturou valores que tais notas titulavam, bem como que desconhecia a que produtos se referiam três das faturas emitidas e juntas ao requerimento inicial.

Conclui nada dever à requerente, invocando a exceção de não cumprimento e, ainda, a compensação do seu crédito indemnizatório- que liquidou em 13.609,99 € - alegadamente decorrente dos prejuízos sofridos com os defeitos das peças confecionadas pela requerente. Para tanto deduziu reconvenção.

3- Remetidos os autos ao Tribunal a quo para seguirem a forma de processo comum, foi ordenada a notificação do requerente para se pronunciar sobre as matérias da exceção/reconvenção, tendo o mesmo apresentado articulado em 14-06-2021 em que alegou que os eventuais erros nos tamanhos de peças por si produzidas só podem dever-se aos ficheiros de corte que lhe enviou a requerida, em formato digital, sendo neles que o software das máquina de corte e confeção se baseavam para o executar. Impugnou o alegado prazo para entrega das peças à requerida, mas alegou que ocorreu uma interrupção da produção por erro do plano de corte enviado pela mesma. Alegou ainda que a requerida tinha uma funcionária para efetuar o controlo de qualidade das peças, nunca tendo assinalado qualquer defeito, que a requerida tampouco denunciou aquando da receção das faturas relativas aos bens que ora diz terem defeito, faturas essas que pagou na sua quase totalidade, não tendo pago os valores titulados por faturas referentes a serviços prestados posteriormente.

4 – Por despacho de 05-07-2021 foi julgada inadmissível a reconvenção.

5 – Foram admitidos os requerimentos de prova, nomeadamente a pericial, tendo o respetivo relatório sido junto a 19-12-2023.

6 – O autor requereu a prestação de esclarecimentos ao relatório pericial por requerimento de 15-01-2024 e a ré opôs-se a tal pedido por entender que por via dele se pretendia ampliar o objeto da perícia não invocando o requerente qualquer imprecisão ou obscuridade do relatório.

7- Por despacho de 06-03-2024 foi o autor convidado a completar o seu pedido de esclarecimentos de forma a que dele resultasse quais os concretos quesitos/repostas a que se dirigia a sua pretensão.

8 – Em 14-03-2024 o autor juntou novo pedido de esclarecimentos retificado, tendo sido ordenada ao perito a prestação dos mesmos, por despacho de 03.04-2024, que teve resposta do perito em 18-04-2024.

9 – A audiência de julgamento realizou-se em três sessões, que tiveram lugar em 05-11-2024, 18-11-2024 e 07-01-2025.

10 – Em 16-04-2025 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente tendo condenado a ré a pagar ao autor 1.160,13 €.


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II - O recurso:

É desta sentença que recorre o autor, alegando a sua nulidade e pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

(…)


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A ré contra-alegou defendendo a confirmação da sentença de primeira instância.

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III – Questões a resolver:

Em face das conclusões do recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1 – A nulidade da sentença;

2 – A contradição entre o que foi julgado provado sob a alínea 8 dos factos provados e por não provado na alínea 5.

3 – Impugnação da matéria de facto julgada provada na alínea 16 e não provada nas alíneas 5 e 24.

4 - A aceitação e o pagamento parcial da obra pela recorrida;

5- A improcedência da exceção de não cumprimento.


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IV – Fundamentação:

1. A nulidade da sentença.

Na última das conclusões de recurso a recorrente alega que a sentença é nula por não especificar alguns dos factos que sustentam a decisão e por ser obscura e ininteligível. Invoca o disposto no artigo 615º, número 1 a) e c) do Código de Processo Civil.

O primeiro desses preceitos prevê que a sentença seja nula quando não contenha a assinatura do juiz. Ora a sentença está assinada, pelo que não ocorre tal nulidade.

Quanto à alegada falta de especificação de factos que sustentam a decisão, não só o recorrente não alegou a omissão de pronúncia sobre qualquer dos factos essenciais alegados por qualquer das partes - limitando-se a discordar da decisão de facto quanto a concretos pontos -, como, a existir tal omissão, ela não seria fundamento da nulidade da sentença, tal como prevista no artigo 615.º, número 1 b) do Código de Processo Civil, mas sim da sua anulação, à luz do artigo 662.º, número 2 c) do mesmo Diploma. Desse preceito decorre, contudo, que tal anulação só deve ser declarada quando dos autos não resultem já os elementos que permitam a este Tribunal alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Finalmente quanto à alegada obscuridade/ininteligibilidade da sentença - apenas referida no final das alegações e das respetivas conclusões -, não está fundada em qualquer concreta alegação, sendo mera afirmação conclusiva, sem suporte. Das alegações de recurso resulta, ademais, que o recorrente bem compreendeu a sentença e a sua motivação de facto e de direito, dela discordando.

Acompanham-se a este propósito as pertinentes considerações de Abrantes Geraldes[1] “Não se compreende a atração que é revelada em múltiplos recursos de apelação e de revista pela arguição de “nulidades” da sentença da 1ª instância ou do acórdão da Relação e que, com muita frequência apenas têm subjacente o inconformismo em relação à decisão da matéria de facto ou à respetiva integração jurídica. Se essa “técnica” se instalou numa altura em que o prazo para a interposição de recurso apenas se contava a partir da notificação da decisão sobre arguição de nulidades, visando ampliar o prazo para a interposição do recurso e subsequente apresentação das respetivas alegações, agora nenhum benefício se alcança (…).

Ora é absolutamente infundada a conclusão a que o recorrente chega no final das alegações de que a sentença é nula por ininteligibilidade (não tendo o mesmo alegado em que medida tal nulidade ocorre), sendo claro que o seu intuito é o da sua revogação, por dela discordar.

Pelo que improcede esta primeira via recursória, não padecendo a sentença de qualquer nulidade.


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2- Da alegada contradição entre o facto dado por provado na alínea 8 e o julgado não provado na alínea 5.

Têm tais alíneas (respetivamente dos factos provados e não provados) os seguintes teores:

“8. Foram entregues ao Requerente, pela Requerida, as fichas técnicas dos modelos e produtos a confecionar, incluindo as malhas”; e

“5. (…) as peças encomendadas, no que respeita a modelos, tamanhos e quantidades foram confecionadas de acordo com os planos de corte fornecidos pela Requerida, que continham todos esses parâmetros”.

É manifesto que o teor destas duas alíneas não é contraditório. A contradição que a recorrente lhe aponta é assente na seguinte alegação que a mesma formula como uma questão: “(…) se foi a recorrida quem forneceu esses planos de corte (através de ficheiro informático inviolável), pergunta-se em que momento é que o recorrente deixou de lado esses ficheiros e utilizou outros para fazer a encomenda ? Quais, quando, como, porquê? Como é que isso é possível?”. Ora a questão assim colocada não se reconduz à alegação da contradição entre os dois factos assinalados, mas à não prova, segundo a recorrente, de que deixou de usar os planos/parâmetros fornecidos pela recorrida ou de que os usou indevidamente.

Segundo Alberto dos Reis[2], referindo-se à decisão da matéria de facto então consubstanciada nas respostas aos quesitos, “as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente”. Também assim tem vindo a ser entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores, entre eles o Supremo Tribunal de Justiça que em acórdão de 04-07-2024 afirmou[3] que “Ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto quando o julgador dá como provada matéria incompatível entre si, que não pode ser afirmada ao mesmo tempo, ou ainda quando, em relação ao mesmo facto, o julga simultaneamente provado e não provado”.

Assim não ocorre entre os factos provado e não provado que a recorrente convoca, podendo ocorrer que a requerida tenha entregue fichas técnicas dos modelos e produtos a confecionar, mas que os mesmos tenham sido cortados e/ou confecionados de modo que não tenha respeitado esses modelos e parâmetros. Apenas assim não será se se puder concluir - que é o que pretende a recorrente -, que o corte e confeção das peças tinha necessariamente de ter seguido tais modelos e parâmetros por os mesmos estarem fixados em software entregue pela requerida que não podia ter sido modificado não podendo interferir qualquer fator externo aos ficheiros na produção do vestuário. Essa, contudo, é questão relativa à impugnação da decisão sobre a matéria de facto e não ao apontado vício, por contradição, de tal decisão.

Pelo que também improcede esta via recursória.


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3. Impugnação da matéria de facto.

Antes de mais cumpre esclarecer a razão da fixação do objeto do recurso nesta parte, já que o recorrente, além de indicar claramente três concretos pontos da matéria de facto que pretende impugnar também discorre sobre meios de prova relativos a factos que não indicou claramente quais fossem.

Transcreveu nos pontos a 9 a 7 das alegações várias passagens do seu depoimento e dos das testemunhas BB, CC e DD que entende que levam à conclusão de que a recorrida fiscalizou a obra. Afirmou ainda que não podia ter sido dado por não provado que a recorrida/a recorrente não fiscalizaram a obra, mas também alegou, a dado passo, que não podia ter sido dado por provado que o não fez/fizeram.

Nas duas primeiras conclusões de recurso afirmou que “Foi realizada fiscalização da obra pelo que o Tribunal não podia ter julgado como não provado esse facto”. Em momento nenhum indicou o recorrente o concreto ponto da matéria de facto a que se queria referir mencionando algumas vezes que o mesmo estava dado por não provado e, noutras, que constava dos provados.

Ora dos factos não provados não consta qualquer referência à fiscalização da execução da obra requerida. Apenas da alínea 10 dos factos provados consta como provado que a requerente subcontratou os serviços de confeção a terceiros, “não tendo sido realizada a fiscalização da obra no momento da sua confeção”. Tal matéria, provada, relativa à não fiscalização dos trabalhos de confeção (e não de corte) foi alegada pela negativa no artigo 10º da contestação.

Tal ponto dos factos provados, contudo, não é um dos indicados nas conclusões de recurso (nem no corpo das alegações) pelo recorrente que a este propósito apenas repete que pretende que passe a provado um facto não provado (que já se viu inexistir).

Ora, não cabe ao tribunal de recurso aferir (por via de interpretação e suprimento de absolutas lacunas de alegação) quais os pontos da matéria de facto que são objeto de discordância, mas ao recorrente, indicá-los de forma clara. A tanto obriga o artigo 640.º, número 1 a) do Código de Processo Civil quando impõe que o recorrente indique, sob pena de rejeição, “os concretos pontos da matéria de facto que julga incorretamente julgados”. Tal indicação deve ser feita por via da referência à numeração desses pontos ou, pelo menos, da transcrição precisa do seu teor.

O Supremo Tribunal de Justiça tem - nesta matéria relativa ao (in)cumprimento dos ónus do recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto -, vindo a adotar um entendimento que visa privilegiar a justiça material em detrimento de uma decisão meramente formal de rejeição da impugnação. Nessa senda foi proferido o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14-11-2023[4] – que decidiu que “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.

Tal jurisprudência, todavia, é apenas relativa ao (in)cumprimento do ónus previsto no artigo 640.º, número 1 c) do Código de Processo Civil nas conclusões de recurso, desde que tal ónus tenha sido cumprido em sede de alegações.

Dela não se pode, pois, retirar a dispensa de indicação, de forma clara, nas conclusões de recurso de qual (ais) o(s) concreto(s) pontos que querem impugnar, o que deve ser feito por indicação da sua numeração por ser essa a forma de os identificar que não suscita quaisquer dúvidas interpretativas.

Menos ainda é defensável que o recorrente sequer tenha que fazer referência a tais concretos pontos nas alegações.

Ora, no presente recurso, o recorrente não indicou de forma clara, nem nas conclusões nem em nenhum momento das alegações, qual o facto não provado que visa impugnar quando se refere à fiscalização da obra. Pelo que quanto a essa concreta questão não foi devidamente cumprido o ónus a que alude o artigo 640º, número 1 do Código de Processo Civil.

Acresce que o recorrente afirma, na segunda conclusão do recurso, que devia ter sido julgado provado que a obra foi fiscalizada na sua execução, facto esse que não foi alegado em qualquer articulado. A ré, como vimos, alegou que não pôde fiscalizar a confeção das peças de vestuário cujo corte e confeção encomendou ao autor porque este subcontratou os trabalhos de confeção e o autor apenas alegou - nos artigos 24 a 26 da sua resposta - que nunca houve qualquer problema com a fiscalização da obra e que todos os modelos produzidos foram colocados à disposição da demandada para controlo de qualidade. Não alegou, contudo, como agora quer que fique provado, que a ré procedeu de facto à fiscalização dos trabalhos de execução da obra, o que é coisa diversa da alegação de que colocou à sua disposição modelos para controlo de qualidade. Aliás, este concreto facto, tal como alegado pelo autor, foi dado por não provado na alínea 3 da sentença e contra a sua não prova não se insurgiu o recorrente. Pelo que até por não ter sido alegado teria de improceder a pretensão do recorrente de ver dado como provado que a ré procedeu à fiscalização dos produtos durante o processo de corte e confeção.


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O mesmo raciocínio que acima se desenvolveu a propósito da falta de concreta indicação dos pontos da matéria de facto que se querem impugnar vale para as alegações feitas sob os pontos 10 e 11, a que se referem as conclusões 3 a 5 do recurso, relativas à alegada prova da reclamação dirigida ao autora pela ré e da reclamação dirigida a esta pela cliente B.... A este propósito o recorrente, novamente sem indicar de que pontos da matéria de facto discorda, afirmou apenas que não tendo sido apresentada prova documental de que qualquer dessas reclamações foi efetuada as mesmas não podem ser dadas por provadas.

Não indicou os concretos pontos de facto que visava impugnar nem por via da sua numeração na sentença nem por transcrição do seu teor.

Como se afirma em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2022[5], com referência aos ónus impostos ao recorrente que pretende impugnar a matéria de facto, “O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.(…)

Os requisitos formais, impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso.

Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objecto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.

Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos.”.

Também Abrantes Geraldes[6] defende que sendo as conclusões de recurso que delimitam o seu objeto, “segundo a regra geral que se extrai do artigo 635.º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não pode deixar de ser enunciada nas conclusões”. Afirma este autor ser compreensível a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto (sem sequer se prever qualquer convite ao aperfeiçoamento) no caso de incumprimento dos ónus pelo impugnante já que “pretendendo o recorrente a modificação da decisão de um tribunal de 1ª instância mediante uma pretensão dirigida a um Tribunal Superior que nem sequer intermediou a produção da prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas”, Afirma ainda tal autor que “As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.

Não obstante acompanharmos tudo o que vem de ser transcrito, também se concorda com o mesmo autor quando este afirma que não deve ser “sacrificado o direito das partes no altar de uma jurisprudência formal a um ponto em que seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara nem na letra nem no espírito do legislador” devendo a aferição do cumprimento dos ónus ser compaginada com princípios de proporcionalidade e razoabilidade.

Todavia, no caso, o recorrente incumpriu de forma flagrante a indicação nas alegações (e também nas suas conclusões) dos concretos pontos da matéria de facto que pretendia impugnar relativos às questões da fiscalização da obra e das reclamações recebidas pela ré e por si mesmo. Tal omissão obrigaria a recorrida e este Tribunal a enveredar por uma via interpretativa da sua efetiva pretensão que, além e poder conduzir a resultados diferentes do por ele almejado, se traduziria na substituição das suas obrigações pela imposição de outras, mais onerosas, à contraparte e ao tribunal de recurso. Tal substituição é vedada pela letra da lei e corresponderia a uma derrogação do disposto no artigo 640º, número 1 a), passando o ónus ali previsto, na prática, a deixar de ser exigido ao recorrente.

Ora tal não pode ser admitido, nem em nome da prevalência do mérito sobre a forma, pois não pode aceitar-se que o artigo 640.º do Código de Processo Civil passe a ser lido como um mero elenco de “recomendações” ao recorrente que, a não serem cumpridas, para nada relevam.

Pelo que apenas se conhecerá da impugnação da matéria de facto quanto aos concretos pontos que o recorrente indicou nas alegações e respetivas conclusões, em cumprimento dos respetivos ónus: a matéria de facto julgada provada na alínea 16 e não provada nas alíneas 5 e 24.


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Quanto a estes pontos o recorrente indicou as alíneas dos factos provados e não provados que quer ver alteradas, o sentido pretendido dessa alteração, as razões da sua discordância e alguns dos meios de prova em que a sustenta tendo indicado e transcrito as passagens da prova gravada que entende relevante. Pelo que foram cumpridos os ónus a que alude o artigo 640.º número 1 e número 2 a) do Código de Processo Civil, muito embora o recorrente tenha argumentado de forma confusa – passando de umas para outras dessas alíneas sem indicação clara dos meios de prova a que se referia quanto a cada uma delas - e, em parte, truncada (referindo nomeadamente algumas passagens de depoimentos gravados sem identificação dos depoentes). Não obstante, em relação a cada uma das referidas alíneas da matéria de facto impugnadas é possível compreender o raciocínio em que o recorrente alicerça a discordância bem como identificar alguns dos meios de prova que no seu entender deveriam levar a diferente decisão.

Pelo que nessa parte se conhecerá da impugnação da matéria de facto, com recurso aos meios de prova concreta e corretamente indicados pelo recorrente a propósito de cada facto.

As alíneas da matéria de facto impugnadas têm o seguinte teor:

“16. A cliente final “B..., BV.”, que explora a marca “...”, acabou por desistir da compra de todos os produtos, procedendo à respetiva devolução junto da Requerida”

5. (…) as peças encomendadas, no que respeita a modelos, tamanhos e quantidades foram confecionadas de acordo com os planos de corte fornecidos pela Requerida, que continham todos esses parâmetros.

24. (…) o Requerente não teve ou tem qualquer controlo sobre os modelos, tamanhos e quantidade das peças produzidas.


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Relativamente à prova da alínea 16 não se descortina, na motivação da decisão de facto, quais os concretos meios de prova em que se sustentou o Tribunal a quo para afirmar que a cliente da ré lhe devolveu todas as peças encomendadas que já lhe haviam sido entregues. A fls. 19 da sentença lê-se apenas, relativamente à questão do cancelamento da encomenda (e não da devolução dos bens já entregues à cliente final) que “resultou comprovado, pela conjugação dos testemunhos de EE e de FF, prestados de forma segura, escorreita e, por conseguinte, credível, com as missivas trocadas entre requerida e o cliente que explora a marca “...”, o cancelamento da encomenda, por impossibilidade de garantir as peças contratadas. De resto, afigurou-se normal tal resultado, atentas as relevantes desconformidades de tamanho das peças confecionadas, relativamente aos respetivos modelos. Sendo que, esse cancelamento provocou o cancelamento da encomenda realizada pela requerida, junto do requerente”. Mas, no final dessa mesma página 19 da sentença, pode ler-se que “apenas uma das faturas alegada pelo requerente não resultou comprovada no sentido de se ater aos negócios aqui em discussão, como não se conheceu, com rigor, as datas dos negócios e/ou o número das peças recebidas e/ou devolvidas – com efeito, a requerida sustentou as suas alegações, neste particular, em documentos particulares, da sua lavra, internos ao funcionamento da sua atividade comercial, mas sem respaldo em qualquer outro elemento probatório, desde logo documental ou testemunhal, porquanto nenhuma das testemunhas conseguiu aferir, com devido rigor, as quantidades entregues ou não entregues, ou os valores/preços acordados com o requerente, apenas sobressaindo os valores constantes das faturas” (sublinhado nosso).

O recorrente, a propósito desta alínea, sustenta a sua discordância no facto de não existir nos autos “sequer uma nota de devolução dos produtos alegadamente defeituosos” (ponto 6 das alegações) e que não foi junto aos autos qualquer documento comprovativo de que a referida cliente da ré desistiu da compra de todos os produtos tendo cancelado toda a encomenda (segundo parágrafo do ponto 11 das alegações)

Afirma, ainda, no ponto 21 das alegações, que do depoimento da testemunha “no momento 00.21.45 ao 00.22.02” resulta que apenas algumas das peças apresentavam defeito. Não identifica, todavia a que concreta testemunha se refere.

Compulsados os autos não se vê, de facto, nenhum documento que titule a devolução à requerida de qualquer encomenda pela cliente B..., BV tendo apenas sido juntos pela requerida, em 9-02-2023:

a) documentos comprovativos de envios pela ré de bens produzidos pelo autor para uma cliente sedeada em Amesterdão, datados de 19-05-2020 e referentes a encomendas cuja confirmação data de 20-03-2020;

b) 4 emails de 22 e de 24 de julho de 2020 provenientes da referida cliente e dirigidos à requerida, a dar conta de que parte dos bens entregues – mais concretamente alguns dos tamanhos das peças identificadas pelas referências 54494, 54496, 54480 e 45484 - teriam desconformidades de dimensões e que haviam encolhido após lavagem – respetivamente documentos 13, 14, 15 e 16.

Dos três últimos emails, apesar de não traduzidos, compreende-se que a cliente da ré, aquando do seu envio, ainda ponderava formas de aceitar os produtos entregues, alterando a identificação do tamanho das peças (de L para M, por exemplo). E em nenhum desses escritos é feita qualquer referência ao cancelamento da encomenda ou à devolução dos bens recebidos.

As referências de produtos mencionadas nesses emails correspondem, nos documentos referidos em a) a apenas uma parte dos bens enviados à referida cliente, estando ali identificados da seguinte forma:

54 494: dress, 07/07/2020, unidades 135, preço unitário 19,85 €, preço total 2 679, 75 €

55 496: “pants, dark grey”, 07/07/2020, 65 unidades, preço unitário 16,55 €, total de 1 075, 75 €;

54 480: tshirt long sleeve 07/07/2020 25+79+24+55 unidades, preço unitário 10, 60, total de 1 939, 8 € (265 €+ 837, 40 € 254, 40 € + 583 €)

54 484: tshirt long sleeve 07-07-2020 unidades 26+51+69+18 preço unitário 11, 35, total 1 861, 40 € (295, 10 €+ 578, 85 € + 783,15 € + 204, 30 €).

Ou seja, o preço total das peças enviadas à cliente final correspondentes às referências sobre as quais esta apresentou reclamação escrita, era de 7 756, 70 € de acordo com documentos juntos pela própria requerida.

Destes, e como já se viu, a reclamação da cliente apenas se referia a parte dos tamanhos enviados.

Na cópia dos emails referidos em b) (juntos pela ré) encontram-se manuscritos os seguintes dizeres:

Documento 13, relativo à referência 54 494: “peças 144, reclamação do cliente ref. fatura número ... de 23-09-2020, valor 708, 48€”;

Documento 14, relativo à referência 54 496: “peças 62, reclamação do cliente ref. fatura final número 17 de 12-08-2020, valor 228, 78 €”

Documento 15 referente à referência 54 480; “peças 200, reclamação do cliente ref. fatura número... de 12-08-2020, valor 590, 40 €”;

Documento 16 relativo à referência 54 484: “Peças 180, reclamação do cliente ref. fatura número ... de 12-08-2020, valor 509, 22 €”

Ou seja, a própria ré apôs, em apontamento feito sobre tais emails, dizeres de que resulta que o valor total das faturas atinentes às referências das peças alvo de reclamação era, no total, de 2 036, 88 €.

Do cotejo desses documentos com as faturas emitidas pela autora à ré que estão enumeradas no ponto 3 dos factos provados resulta que os valores parciais das obras a que se referiam essas reclamações são os refletidos nas faturas que correspondem às elencadas nas alíneas a), b), c) e ac).

A absoluta falta de documentos comprovativos da devolução pela sua cliente de qualquer das peças que a ré encomendou ao autor e a existência de documentos que apenas referem reclamações relativas a alguns dos tamanhos de algumas das referências identificativas dessas peças dificilmente poderia ser suprida por via de prova testemunhal, atenta a natureza deste negócio, celebrado entre profissionais do ramo.

Estamos, com relação ao negócio que a ré celebrou com a cliente final B... perante uma compra e venda de peças de vestuário que a ré terá enviado para tal cliente, sedeada em Amesterdão. Esta, por sua vez, teria de as ter devolvido por qualquer transporte internacional, dada a sede da ré ser em ..., Santo Tirso. Os quatro emails desta cliente que titulam reclamações escritas revelam o que era de esperar neste tipo de negócio: um mínimo de organização e formalidade na reclamação de desconformidade de produtos, reclamação essa que não se esperava, neste tipo de negócios, que fosse meramente verbal. Ora a falta de junção de outras reclamações quanto aos demais produtos que a ela se destinaram, de notas de devolução ou, sequer, de guias de transporte comprovativas de que tal devolução tenha ocorrido, é de molde a fazer crer que tal devolução não aconteceu de facto, pois tratam-se de documentos que a ré teria que ter na sua posse e facilmente poderia ter junto.

Acresce que em nenhum dos emails de que constam tais reclamações (documentos números 13 a 16 juntos a 09-02-2023) a referida cliente sequer conjetura a possibilidade de devolver tais peças deles decorrendo que reclamou apenas quanto a alguns dos tamanhos de parte das peças que lhe foram entregues pela ré e nalguns deles a cliente discorre mesmo sobre a possibilidade de transformar peças que deveriam ser tamanho M e S e outras que deveriam ser de tamanho L em M.

Pelo que deve reconhecer-se inteira razão ao recorrente na forma como sustenta a impugnação desta alínea.

A este respeito a recorrida, em contra-alegações, convoca o depoimento de FF na parte em que a mesma refere as reclamações da cliente da ré. Ora tal testemunha, como resulta da transcrição feita pela própria recorrida, confirmou que a sua cliente não apresentava reclamações por telefone, mas sim por email, como já vimos ser de esperar em face da qualidade das intervenientes no negócio, que o desenvolvem de forma profissional, no exercício do comércio. A referida testemunha descreveu, além disso, várias desconformidades dos produtos que não estão minimamente referidos em qualquer dos emails dessa cliente.

Quanto aos documentos a que a motivação da decisão da matéria de facto brevemente se refere (relativos às reclamações feitas pela ré à autora) são os datados de 12.03.2020, 07.12.2020 e 10.12.2020.

Ora tais documentos são os que foram juntos a 09-02-2023, sob os números 18 a 20 e deles resulta que em 12/03/2020 a recorrida enviou ao recorrente uma mensagem a referir tentativas de contacto telefónico frustradas por não atendidas e a necessidade de conversarem sobre a encomenda para cliente “C...” por ter sido recebida reclamação desta.

A 10 de dezembro ocorreu envio de email de reclamação constante de documento escrito datado de 07-12-2020 que foi enviado naquela data ao autor, em anexo ao referido email. Dessa reclamação consta que a ré se insurgia contra o facto de teriam sido fabricadas peças em excesso quanto a certos modelos e em falta quanto a outros bem como que algumas das peças “não cumpriam com os níveis de qualidade necessários” e, ainda, que a sua cliente proprietária da marca ... rejeitara todas as peças que lhe tinham sido entregues.

Este último documento é o único que refere a rejeição de “todas as peças”, mas é da autoria da ré e não está confirmado por qualquer outro meio de prova documental que a ré facilmente poderia ter apresentado se existisse. E de tudo o que acima se referiu, nomeadamente do depoimento da testemunha FF, convocado pela própria ré decorre que, a ter ocorrido reclamação relativa a toda a encomenda e cancelamento/devolução da mesma, tal estaria claramente vertido em mais do que um documento da autoria dessa cliente e até nalgum documento emitido pela transportadora contratada para a alegada devolução.

Mais, conjugando os meios de prova vindos analisar com o teor do relatório pericial que o Tribunal a quo deu como provado, resulta que apenas foram analisadas pelos peritos as peças produzidas pelo autor a que correspondiam as referências 54 494, 54 496, 54 480 e 54 484 que são exatamente aquelas a que correspondem às reclamações escritas da cliente final que acima referimos. A própria ré, portanto, apenas forneceu aos peritos[7] algumas das peças que foram fabricadas pelo autor com destino à sua cliente B..., o que também reforça a ideia de que apenas quanto a elas ocorreram defeitos e a sua consequente reclamação.

Para que não permanecessem dúvidas sobre a inexistência de devolução da totalidade das peças produzidas para tal cliente por banda desta, foram ainda ouvidos, no uso dos poderes deveres previstos no artigo 640.º, número 2 b) do Código de Processo Civil os depoimentos de:

- EE, trabalhador da ré que referiu que a ré verificou defeitos em algumas peças por amostragem e afirmou que das peças produzidas para a cliente da marca ... existiam erros quanto a alguns tamanhos e que esse produto “ficou na empresa” tendo tal encomenda sido “cancelada” pois a ré não chegou a despachá-la. O que é absolutamente contraditório com o alegado pela própria ré – de que a cliente devolveu tais produtos - e com os teores dos emails acima sumariados em que tal cliente dava conta de concretos defeitos quanto a algumas das peças que, portanto, efetivamente recebeu;

- GG, diretor financeiro de grupo empresarial a que pertence a ré nada sabia em concreto sobre a alegada devolução/cancelamento da encomenda desta cliente; e

- HH, diretor comercial do mesmo grupo, descreveu os defeitos da encomenda de forma diversa da constante dos emails acima analisados, e referiu que a cliente de Amesterdão tinha recebido apenas algumas amostras e que delas reclamou por causa de medidas tendo a ré negociado com aquela para que aceitasse a encomenda, o que não conseguiu. De novo esta afirmação contraria o alegado na contestação em que foi expressamente afirmado que a cliente procedeu à devolução da encomenda à ré (artigos 23 e 29 desse articulado).

Por tudo o exposto não se alcança como poderia o Tribunal a quo ter concluído que a prova foi de molde a convencer que “A cliente final “B..., BV.”, que explora a marca “...”, acabou por desistir da compra de todos os produtos, procedendo à respetiva devolução junto da Requerida.”.

Deve, pois, tal facto passar a não provado.

Tendo em conta que a alínea 17 dos factos provados “O que levou ao cancelamento da encomenda” é logicamente sequencial à que ora foi dada por não provada e que dos meios de prova vindos de analisar se conclui que não está demonstrado o cancelamento da encomenda por banda dessa cliente, também o teor dessa alínea deve passar a não provado sob pena de ocorrer contradição entres factos provados e não provados e entre aqueles e a motivação da decisão de facto.

Pelo que nos termos do disposto no artigo 662.º, número 1 do Código de Processo Civil o teor dessas alíneas passará a não provado.

E, em face dos elementos de prova vindos de analisar, aditar-se-á à alínea 15 dos factos provados o concreto teor das reclamações apresentadas pela cliente da ré, tal como decorre dos documentos que titulam tal reclamação, por se entender que tal matéria acaba por consistir numa resposta restritiva ao facto alegado pela ré de que tal cliente devolveu toda a encomenda e a cancelou, já que apenas se provou que ocorreu reclamação quanto a parte da mesma.

Assim, a alínea 15 dos factos provados passará a ter o seguinte teor:

Os referidos defeitos foram reclamados pela potencial compradora dos produtos à Requerida relativamente a algumas das peças com as referências:

- 54494: 144 peças referidas na fatura número ... de 23-09-2020 no valor 708,48€;

- 54496: 62 peças referidas na fatura número... de 12-08-2020, no valor 228,78 €;

- 54480: 200 peças referidas na fatura número... de 12-08-2020 no valor 590,40 €;

- 54484: 180 peças referidas na fatura número ... de 12-08-2020 n valor 509,22 €.


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Quanto às alíneas 5 e 24 dos factos não provados relacionam-se com a causa dos defeitos dos produtos fabricados pelo autor, mais concretamente à questão, alegada pela requerente de que as peças foram confecionadas de acordo com os planos de corte fornecidos pela ré, planos esses que continham todos os parâmetros de produção, não tendo a autora como controlar/alterar os modelos, tamanhos e quantidade das peças produzidas dado o suporte informático fornecidos pela ré.

Para sustentar a prova destas duas alíneas o recorrente alegou que as testemunhas AA, CC, EE e FF foram unânimes em referir que os ficheiros informáticos em causa não podiam ser alterados.

Relembremos que está provado, sob a alínea 8 que foram entregues ao requerente, pela requerida, as fichas técnicas dos modelos e produtos a confecionar, incluindo as malhas, pelo que tal é incontroverso.

Quanto à alegada impossibilidade de controlo dos ficheiros informáticos com os parâmetros de confeção por banda da autora, AA declarou ter subcontratado tal confeção desde logo por não ter a máquina necessária a execução da mesma com recurso a tais ficheiros informático (não tinha máquinas que os “lessem”), tendo encaminhado tais ficheiros para a empresa que procedeu à confeção. Mais sublinhou que o grande problema das peças que a perícia refere é o de encolherem após a lavagem o que, no seu entender decorre da qualidade da malha fornecida pela ré.

CC confirmou que o ficheiro informático enviado pela ré é lido pelas máquinas de corte não podendo os operários, nem que quisessem, fazer qualquer alteração para o que alegou que nem dominavam o software usado.

EE, trabalhador da ré, referiu-se às características da malha que podiam ser responsáveis pelo encolhimento das peças e confirmou que o ficheiro informático é entregue à empresa à qual é solicitada a confeção (no caso o autor) tendo admitido que a modelagem que resulta dos parâmetros previstos em programa informático é da responsabilidade da ré e que não pode ser alterada por terceiros a não ser que tenham um programa idêntico ao seu.

FF, também trabalhadora da ré, admitiu que apenas algumas peças produzidas pela autora tinham defeito, outras não, não conseguindo quantificar umas e outras e afirmou que a estabilização da malha também podia interferir com os tamanhos finais das peças, sobretudo após lavagem, pelo que o plano de corte já era feito de acordo com as características da malha. Não referiu se era ou não possível à autora alterar os parâmetros introduzidos nos ficheiros informáticos.

Destes meios de prova resulta assim que o autor não tinha qualquer controlo sobre os modelos, tamanhos e quantidade das peças constantes dos ficheiros enviados pela ré.

O que não significa, contudo, que as peças produzidas tenham respeitado todos esses parâmetros já que se desconhece se no processo de fabrico foram devidamente usados tais ficheiros informáticos bem como se ocorreu, nesse processo, a interferência de outros elementos eventualmente adulteradores do resultado final, como os relativos à qualidade da malha, ao tratamento que a mesma devia ter antes do fabrico ou à forma como é introduzida nas máquinas de corte e costura. Nos esclarecimentos prestados por escrito o perito concluiu que os defeitos encontrados podiam decorrer de problemas de estabilidade dimensional do tecido quando lavado e seco em casa apesar de também ter verificado que havia peças com desconformidades de medidas antes da lavagem.

Pelo que apenas em parte procede a pretensão recursória, passando a dar-se como provado que o autor não tinha qualquer controlo sobre os modelos, tamanhos e quantidade das peças constantes dos ficheiros enviados pela ré, mas permanecendo como não provado que as peças encomendadas, no que respeita a modelos, tamanhos e quantidades foram confecionadas de acordo com os planos de corte fornecidos pela Requerida.


*

Em face da procedência parcial da impugnação da matéria de facto passam a ser os seguintes os factos;

A) Provados

1. O Requerente exerce a atividade de confecionados de vestuário, com fins lucrativos.

2. No exercício da sua atividade, o Requerente prestou serviços de confeção de vestuário para a Requerida, a pedido desta.

3. Esses serviços foram especificados nas faturas que emitiu e entregou à Requerida, que têm as datas, números e valores seguintes:

a) 12-8-2020, n.º 17, …. 228,78 (“...”)

b) 12-8-2020, n.º 18, …. 590,40 (“...”)

c) 12-8-2020, n.º 19, …. 509,22 (“...”)

d) 12-8-2020, n.º 20, …. 2.600,00

e) 12-8-2020, n.º 21, …. 3.198,00 (“...”)

f) 12-8-2020, n.º 22, …. 2.656,80 (“...”)

g) 12-8-2020, n.º 23, …. 1.888,36

h) 12-8-2020, n.º 24, …. 1.945,37 (crédito de 53,14)

i) 12-8-2020, n.º 25, …. 796,30

j) 02-09-2020, n.º 26, …. 356,70

k) 02-09-2020, n.º 27, …. 912,17

l) 02-09-2020, n.º 28, …. 400,37

m) 02-09-2020, n.º 29, …. 684,86

n) 02-09-2020, n.º 30, …. 732,71

p) 02-09-2020, n.º 32, …. 258,30

q) 05-09-2020, n.º 35, …. 507,74

r) 10-09-2020, n.º 36, …. 713,40

s) 10-09-2020, n.º 37, …. 41,13

t) 10-09-2020, n.º 38, …. 668,38

u) 10-09-2020, n.º 39, …. 1.363,90

v) 10-09-2020, n.º 40, …. 1.677,60

x) 10-09-2020, n.º 41, …. 371,95

z)17-09-2020, n.º 43, …. 2.656,80 (“...”)

aa) 17-09-2020, n.º 45, …. 159,90

ab) 17-09-2020, n.º 46, …. 1.052,39

ac) 23-09-2020, n.º 47, …. 708,48 (“...”)

ad) 23-09-2020, n.º 48, …. 593,48

ae) 23-09-2020, n.º 49, …. 760,14

af) 23-09-2020, n.º 50, …. 671,58

ag) 23-09-2020, n.º 51, …. 1.604,04

ah) 23-09-2020, n.º 52, …. 446,98

ai) 23-09-2020, n.º 53, …. 44,28

aj) 23-09-2020, n.º 54, …. 43,91

ak) 23-09-2020, n.º 55, ….. 27,06

al) 24-09-2020, n.º 56, …. 1.357,92

4. Esse valor global foi objeto de abatimentos pelas notas de crédito que têm as datas, números e valores seguintes:

a) 12-8-2020, n.º 1 …. 2.600,00

b) 10-9-2020, n.º 2 …. 1.363,90

c) 11-9-2020, n.º 3 …. 2.656,80

d) 11-9-2020, n.º 4 …. 53,14.

5. A Requerida fez 2 pagamentos ao Requerente, por transferência bancária:

a) 3-9-2020, de 11.016,93 €

b) 17-9-2020, de 4.441,03 €

6. A Requerida nunca solicitou qualquer correção de defeitos das encomendas.

7. A Requerida explora atividades de produção, distribuição, investigação e desenvolvimento, e serviços de consultoria, promoção, entre outros, no ramo têxtil.

8. Foram entregues ao Requerente, pela Requerida, as fichas técnicas dos modelos e produtos a confecionar, incluindo as malhas.

9. Em data não concretamente apurada, a Requerida forneceu ao Requerente os consumíveis necessários para o trabalho adjudicado de corte e confeção.

10. Para a execução da obra, o Requerente procedeu à subcontratação dos serviços de confeção a terceiros, não tendo sido realizada a fiscalização da obra, no momento da sua confeção.

11. O Requerente entregou a obra à Requerida, de forma parcelar.

12. A Requerida efetuou reclamação, por escrito, junto do Requerente, relativamente a atrasos, assim como da desconformidade da matéria entregue.

13. No âmbito da sua atividade comercial, a Requerida adjudicou ao Requerente uma obra de produtos têxteis, relativamente ao produto “...” e nos termos e condições da seguinte tabela:

14. Foram ainda detetados diversos defeitos nos produtos rececionados, associados com incongruências das dimensões em comparação com as fichas técnicas dos modelos.

15. Os referidos defeitos foram reclamados pela potencial compradora dos produtos à Requerida relativamente a algumas das peças com as referências:

- 54 494: 144 peças referidas na fatura número ... de 23-09-2020 no valor 708, 48€;

- 54 496: 62 peças referidas na fatura número... de 12-08-2020, no valor 228, 78 €;

- 54 480: 200 peças referidas na fatura número... de 12-08-2020 no valor 590, 40 €;

- 54 484: 180 peças referidas na fatura número ... de 12-08-2020 n valor 509, 22 €.

16. Por carta datada de 23.01.2020, veio o Requerente interpelar a Requerida ao pagamento do quantitativo de Euro 11.807,67, a título de facturas vencidas.

17. No dia 07.12.2020, a Requerida endereçou carta ao Requerente informando-o que, devido ao atraso na entrega e aos defeitos verificados nos produtos faturados e ora reclamados, esse valor deveria ser-lhe integralmente creditado, bem como o valor de todos os prejuízos por si suportados.

18. O Requerente emitiu as faturas abaixo referenciadas, para cobrança dos serviços prestados, que eram para o cliente que explora a marca “...”, e nos seguintes termos:

19. A Requerida enviou, em formato digital, os planos de corte que eram elaborados pelo gabinete de modelagem da Requerida, os quais continham os modelos, tamanhos e quantidades a produzir.

20. A Requerida disponibilizou os planos de corte do modelo entre o dia 17 e o dia 30 de junho de 2020.

21. Constam do teor do relatório pericial realizado em 18.12.2023, as seguintes apreciações conclusivas:

Face ao exposto, os resultados obtidos nos ensaios realizados na perícia permitem responder da seguinte forma ao objetivo considerado na sua realização, mais precisamente, análise ao alegado nos artigos 18, 19, 20 e 21 da oposição.

18. Assim, e no que concerne aos artigos "DRESS" (modelo 54.494), as dimensões dos artigos são demasiado curtas, (Doc. 13, que se junta e se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos efeitos legais)

As peças evidenciavam valores de medidas à largura inferiores aos indicados na tabela de medidas (cf. tabelas a VII).

Este facto foi detetado em todas os tamanhos, traduzindo-se em peças de um tamanho pequeno para a largura do corpo (cf. tabelas II a VII).

Relativamente aos valores das medidas do comprimento das peças constataram, em média, diferenças relativas ao valor da tabela de medidas, de 1,7 cm no tamanho XS; 2,2 cm no tamanho S; 1,4 cm no tamanho M; 1,3 cm no tamanho L; 2,1 cm no tamanho XL e 1,5 cm no tamanho XXI- (cf. tabelas II a VII).

Relativamente aos valores das medidas do comprimento das mangas das peças constataram-se, em média, diferenças relativas ao valor de tabelas de medidas, o seguinte (cf. tabelas II a VII):

Medida de comprimento da manga: 1,75 cm no tamanho L; 3,6 cm no tamanho XL e 2,75 cm no tamanho XXL;

Medida de comprimento de manga desde o centro das costas: 3,9 cm no tamanho XS; 2,55 cm no tamanho S; 2,9 cm no tamanho M; 2,1 cm no tamanho L; 2,4 cm no tamanho XL e 1,35 cm no tamanho XXL.

Para além destas medidas foram detetadas diferenças significativas nos valores médios das medidas do decote das peças, comparativamente ao valor indicado na tabela de medidas, mais precisamente (cf. tabelas II a VII):

Profundidade do decore da frente: 2,6 cm;

Largura do decote: 1,65 cm.

Após lavagem e secagem doméstica de uma das peças de tamanho M (peça ne 5), nas condições indicadas na sua etiqueta de conservação e limpeza detetou-se que esta apresentava encolhimentos muito significativos após realização destes tratamentos, com especial destaque para as medidas (cf. tabela XVII):

Comprimento da costa da costa a partir do ponto mais alto: -8,8%;

-6,7%.

19. No respeitante aos artigos "SKIRT" (modelo ...), a costura não é plana, e o tamanho XL é demasiado curto, e concretamente nas seguintes dimensões:

• 2,5 cm na cintura; 3,5 cm no quadril;

• 4,5 cm no fundo

3,5 cm no comprimento.

(Doc. 14, que se junta e se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos efeitos legais)

Da análise das dimensões efetuadas às peças de tamanho XL (cf. tabela IX) constatou-se que apenas era mais curta na medida da cintura (medida da largura de 1h cinta no topo), mais precisamente, em média, 1,25 cm.

Relativamente às restantes medidas, verificou que eram superiores, mais precisamente:

Quadril (medida 1h anca a 20 cm): +1,5 cm;

Fundo (medida 1/2 fundo): +0,25 cm;

Comprimento medida do comprimento da frente ao centro): +1,75 cm.

Ou seja, as medidas obtidas da análise das peças de tamanho XL são reveladoras de que foram produzidas tendo como base as medidas de um tamanho superior.

Após lavagem e secagem doméstica de uma das peças de tamanho M (peça ne 3), nas condições indicadas na sua etiqueta de conservação e limpeza, detetou-se que apresentava encolhimentos muito significativos após realização destes tratamentos, com especial destaque para as medidas (cf. tabela XVIII):

quadril (medida 1/2 anca a 20 cm): -12,9%;

Fundo (medida 1/2 fundo): -8,8%;

Comprimento medida do comprimento da frente ao centro): -6,3%.

Após lavagem e secagem doméstica de uma das peças de tamanho XL (peça ne 1), nas condições indicadas na sua etiqueta de conservação e limpeza, detetou-se que esta apresentava encolhimentos muito significativos após realização destes tratamentos, com especial destaque para as medidas (tabela XIX):

Quadril (medida 1/2 anca a 20 cm): -9,3%;

Fundo (medida 112 fundo): -9,1%;

Comprimento medida do comprimento da frente ao centro): -6,6%.

20. Quanto aos artigos "TOP" (modelo ...), o tamanho M apresenta um encurtamento de 4 cm nas mangas.

Relativamente às medidas das mangas das peças de tamanho M verificou-se para cada uma das medidas o seguinte (cf. tabela X):

Medida do comprimento da manga:

Cor 823/5474: As peças apresentavam uma diferença média de 1,6 cm, relativamente à tabela de medidas;

Cor 824/5402: As peças não apresentavam diferenças, relativamente à tabela de medidas;

Cor 825/5477: As peças apresentavam uma diferença média de 2,25 cm, relativamente à tabela de medidas;

Cor 826/5496: As peças apresentavam uma diferença média de 3 cm, relativamente à tabela de medidas.

Medida de comprimento de manga a partir do centro das costas:

Cor 823/5474: As peças apresentavam uma diferença média de 3,2 cm, relativamente à tabela de medidas;

Cor 824/5402: As peças apresentavam uma diferença de 1,0 cm, relativamente à tabela de medidas;

Cor 825/5477: As peças apresentavam uma diferença média de 3,0 cm, relativamente à tabela de medidas;

Cor 826/5496: As peças apresentavam uma diferença média de 5,2 cm, relativamente à tabela de medidas.

21. Quanto aos artigos "ROOLNECK", o mesmo apresenta um tamanho demasiado curto ao nível da largura, e que em termos de comprimento e de mangas também apresentava 3 cm a menos. (Doc. 16, que se junta e se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos efeitos legais)

Quanto a este artigo detetaram-se valores de medidas à largura (medida de peito) inferiores aos indicados na tabela de medidas, mais precisamente (cf. tabelas XI a XVI):

Medida de 1/2 peito: no caso do tamanho M nas cores 824/5402 e 826/5496 e em todas as cores do tamanho XL XXI;

Medida do ombro: nas cores 823/5474 e 825/5477 do tamanho XXL.

Relativamente aos valores das medidas do comprimento das peças constataram, em média, diferenças relativas ao valor da tabela de medidas, de:

Tamanho XS: 2,5 cm na cor 823/5474 e 3,0 cm na cor 826/5496;

Tamanho S: 2,7 cm na cor 823/5474 e 2,0 cm na cor 826/5496;

Tamanho M: 3,0 cm na cor 823/5474 e 3,5 cm na cor 826/5496;

Tamanho L: 2,0 cm na cor 824/5402 e 2,5 cm na cor 826/5496;

Tamanho XL: 2,2 cm na cor 823/5474 e 3,5 cm na cor 826/5496;

Tamanho m: 2,0 cm na cor 823/5474; 2,5 cm na cor 825/5477 e cm na cor 826/5496.

No que diz respeito aos valores das medidas do comprimento das mangas das peças constataram-se, em média, diferenças relativas ao valor de tabelas de medidas, o seguinte:

Medida de comprimento da manga:

Tamanho XS: 4,75 cm na cor 823/5474; 4,25 cm na cor 825/5477 e 5,5 cm na cor 826/5496;

Tamanho S: 3,2 cm na cor 823/5474; 2,8 cm na cor 825/5477 e 4,0 cm na cor 826/5496; Tamanho M: 2,7 cm na cor 823/5474; 1,8 cm na cor 825/5477 e 3,5 cm na cor 826/5496;

Tamanho L: 2,25 cm na cor 824/5402 e 2,25 cm na cor 826/5496; Tamanho XL: 3,25 cm na cor 824/5402 e 2,0 cm na cor 826/5496.

Medida de comprimento de manga desde o centro das costas:

Tamanho XS: 4,6 cm na cor 823/5474; 2,85 cm na cor 825/5477 e 5,1 cm na cor 826/5496;

Tamanho S: 4,5 cm na cor 823/5474; 2,8 cm na cor 825/5477 e 5,3 cm na cor 826/5496;

Tamanho M: 4,3 cm na cor 823/5474; 3,0 cm na cor 825/5477 e 5,5 cm na cor 826/5496;

Tamanho L: 2,9 cm na cor 823/5474 e 4,2 cm na cor 826/5496;

Tamanho XL: 3,9 cm na cor 823/5474 e 4,4 cm na cor 826/5496;

Tamanho XL: 3,35 cm na cor 823/5474; na cor 824/5402 e 3,6 cm na cor 826/5496.”

22. Consta do teor dos esclarecimentos, prestados por escrito, relativamente ao relatório pericial, elaborado em 18.12.2023:

De facto, constatou-se que, quando lavadas e secas em condições domésticas e de acordo com as condições indicadas nas etiquetas de conservação e limpeza, as peças apresentavam uma alteração significativa de algumas das suas medidas (encolhimento das peças). Neste sentido, este resultado pode, de facto, ser indicador de que esta alteração das medidas da peça após lavagem doméstica possa estar relacionado com um problema de estabilidade dimensional do tecido quando lavado e seco em condições domésticas.

No entanto, também se observou que, mesmo sem lavar, as peças já apresentavam medidas que não estavam de acordo com as medidas referidas no dossier técnico, o que contradiz o referido anteriormente, e poderá também indiciar que a causa do problema de diferenças de medidas das peças pode não estar apenas relacionado com problemas de estabilidade dimensional do tecido após lavagem e secagem doméstica.

Assim, o esclarecimento da causa dos encolhimentos significativos após lavagem e secagem e se a causa desses encolhimentos é também a causa das diferenças nos valores das medidas das peças, por ter influência na modelagem e no corte das peças, apenas seria possível fazer-se através de uma análise técnica pormenorizada da qualidade do tecido utilizado na produção das peças, no que concerne às características técnicas dos fios, parâmetros técnicos de construção e estabilidade dimensional, em conjugação com a produção de protótipos de peças, com os tecidos e os moldes utilizados na produção das peças originais, por forma a avaliar a eventual alteração das suas medidas verificadas após confeção.

23. O autor não tinha qualquer controlo sobre os modelos, tamanhos e quantidade das peças constantes dos ficheiros enviados pela ré


*

B) Não provados:

1. Que, os serviços contratados pela Requerida foram especificados nas faturas que a Requerente emitiu e entregou à Requerida, que têm as datas, números e valores seguintes:

- 22-01-2021, n.º 4 … 1.294,88.

2. Que, a Requerida tivesse aceitado todos os artigos confecionados pelo Requerente, não tendo havido por parte desta qualquer reclamação escrita no que respeita qualquer defeito de que padecessem ou atraso nas entregas.

3. Que, todos os modelos produzidos foram colocados à disposição da Requerida para controlo de qualidade.

4. Que, a Requerida tenha aceitado as faturas referidas no facto provado n.º 3, sem fazer qualquer tipo de reclamação.

5. Que, as peças encomendadas, no que respeita a modelos, tamanhos e quantidades foram confecionadas de acordo com os planos de corte fornecidos pela Requerida.

6. Que, a adjudicação referida no facto provado n.º 13 ocorreu no dia 26.03.2020.

7. Que, o Requerente entregou a obra à Requerida, entre os dias 13 e 16 de julho de 2020.

8. Que, a Requerida reclamou junto do Requerido, de forma verbal.

9. Que, à data da receção da mercadoria, os colaboradores da Requerida puderam apurar as seguintes quantidades recebidas do Requerente:

2941

ROOLNECK

54.484

823210141410454

180

824 81086234
825614181812472
82624444220

2942

BLUSA

54.486

877104850514212213

325

87826376125
87924454120
880216141813467
TOTAL1182

11. Que, as partes convencionaram que a entrega dos artigos confecionados, e devidamente embalados, seria efetuada até ao dia 07.07.2020.

12. Que, o fornecimento dos consumíveis necessários para o trabalho adjudicado foi realizado, pela Requerida, durante a última semana de maio de 2020 e a primeira semana de junho de 2020.

13. Que, se constatou que as quantidades entregues não correspondiam às acordadas, na medida em que foram entregues peças a mais de uns modelos e a menos de outros:

ARTIGO

MODELO

QUANTIDADE ENCOMENDADAQUANTIDADE ENTREGUE
DRESS54.494135144 (+10)
SKIRT54.4936562 (-3)
BLUSA54.482284270 (-14)
TOP54.48183200 (+17)
ROOLNECK54.484164180 (+16)
BLUSA54.486351325 (-26)
TOTAL11821182

14. Que, a confeção encomendada ao Requerente integra produtos de marca de prestígio, não podendo os mesmos ser-lhe devolvidos com vista à eventual revenda, mesmo a preços baixos.

15. Que, por se referir a vestuário sazonal, não foi igualmente possível proceder à substituição dos produtos defeituosos.

16. Que, para a produção dos suprareferidos produtos, a Requerida para além daquilo que seria suposto pagar ao Requerente, despendeu ainda da quantia de € 10 355,30, na aquisição de material para lhe ceder e de modo a que esta pudesse executar/concluir a obra, e conforme o quadro infra exposto:

QUANTIDADE

ENTREGUE

PREÇO VENDA/€FACTURAÇÃO €MARGEMCUSTO TOTAL€PREJUIZO

14419,852 858,4028,87%2 218,05640,35
6216,551 026,1027,86%802,52223,58
27021,455 791,5019,32%4853,75937,75
20010,62120,0016,12%1 825,70294,30
18011,352043,0014,92%1 777,76265,24
32516,555 378,7519,92%4 485,28893,47
1181 19 217,75 15 963,063.254,69

17. Valor que, até à presente data, foi totalmente suportado pela Requerida.

18. A par disso, a Requerida viu-se privada da obtenção de lucros com a venda das peças referentes à obra adjudicada ao Requerente.

19. Que, com o comércio das referidas peças, a Requerida esperava obter um lucro de Euro 3.254,69, e em conformidade com o seguinte quadro:

QUANTIDADE

ENTREGUE

PREÇO VENDA/€FACTURAÇÃO €MARGEMCUSTO TOTAL€PREJUIZO

14419,852 858,4028,87%2 218,05640,35
6216,551 026,1027,86%802,52223,58
27021,455791,5019,32%4853,75937,75
20010,62120,0016,12%1 825,70294,30
18011,352 043,0014,92%1777,76265,24
32516,555 378,7519,92%4485,28893,47
1181 19 217,75 15 963,063.254,69

20. Que, afim de, extrajudicialmente se obter um acordo sobre as questões a envolver as encomendas defeituosas, a Requerida efetuou múltiplas tentativas no sentido de entrar em contacto com o Requerente.

21. Que, contudo, tais tentativas quedaram votadas ao fracasso, tendo o Requerente deixado de atender as chamadas telefónicas da Requerida.

22. Que, se encontra por creditar o montante referente à Nota de Crédito n.º ..., no montante de € 247,11.

23. Que, relativamente à fatura n.º ..., datada de 22/01/2021, e no valor de € 1 294,88, o certo é que a mesma somente foi comunicada à Requerida no passado dia 26/01/2021.

24. Que, o plano de corte entregue no dia 30 de junho de 2020 continha um erro na medida das carcelas que levou à interrupção do processo produtivo, com prejuízos para o Requerente.

25. Que, não foi convencionado qualquer prazo para a entrega.

26. Que, as faturas identificadas nos artigos 55 e 56 da contestação dizem respeito a peças confecionadas pelo demandante que as entregou à Demandada sem qualquer reclamação por parte desta.

27 - A cliente final “B..., BV.”, que explora a marca “...”, acabou por desistir da compra de todos os produtos, procedendo à respetiva devolução junto da Requerida.

28 - O que levou ao cancelamento da encomenda.


*

4 - A aceitação da obra pela recorrida;

A fundamentação de direito do recurso sustenta-se em duas grandes ordens de razões:

- a de que a ré aceitou a obra cujo pagamento agora recusa invocando alegados defeitos que nunca antes reclamara; e

- a de que a ré pagou o valor dessas encomendas estando em dívida e a ser cobrado por via desta ação o preço de outras encomendas, pelo que não pode proceder a exceção de não cumprimento que serviu de base à sua absolvição parcial.

As partes não discutem a qualificação do contrato que entre si estabeleceram como de empreitada, que se afigura correta.

Ficou provado que no âmbito dessa relação contratual - pela qual a ré entregava ao autor materiais para que ele confecionasse produtos finais de acordo com modelos por ela também entregues -, foram confecionadas várias peças de vestuário, solicitadas em diferentes encomendas e entregues em diversos momentos. Foram, assim, celebrados vários contratos de empreitada entre autor e ré sendo que a discussão da causa acabou por se centrar no único relativamente ao qual a ré provou ter ocorrido a realização da obra com alguns defeitos: o respeitante às peças de vestuário a confecionar para a cliente final da ré B... com sede em Amesterdão.

Ora, a propósito da empreitada dessa obra em concreto ficou provado (e ninguém discute em sede de recurso) que as faturas emitidas pelo autor ascendiam apenas ao valor de 7 8911, 68 €, como resulta da alínea 20 dos factos provados. Neste valor, alegadamente em dívida, estão incluídas as faturas número ... (no valor de 708, 48 €), número 17, (no valor de 228, 78), número 18 (no valor de 590, 40 €) e número 9 (no valor de 509, 22 €) a que se referem as reclamações da cliente final da ré dadas por provadas na alínea 15 dos factos provados. Do teor do relatório pericial que o Tribunal a quo deu como provado resulta que apenas foram analisadas as peças produzidas pelo autor a que correspondiam as referências 54 494, 54 496, 54 480 e 54 484 que são exatamente aquelas a que correspondem as reclamações da cliente final como resulta do facto provado número 15.

Pelo que apenas quanto a esta parte do preço das faturas que é cobrado se poderia discutir a exceção de não cumprimento do contrato invocada e julgada parcialmente procedente.

Lá iremos, deixando desde já claro que, quanto aos demais valores faturados, não está provada qualquer matéria de facto que possa sustentar o seu não pagamento.

Quanto à alegada aceitação da obra - que o recorrente sustenta no seu pagamento -, não resulta da matéria de facto qualquer correspondência possível entre os pagamentos parcelares feitos pelas várias empreitadas, as notas de crédito emitidas pelo autor e as faturas que o autor quer cobrar. Desde logo os valores pagos pela ré ao autor em 3 de setembro de 2020 (11016,93 €) e em 17-09-2020 (4441,03 €), que resultam da alínea 5 dos factos provados não se referem parcelarmente a qualquer fatura, devendo deduzir-se que visavam pagar o preço de várias, relativas a diferentes entregas de peças confecionadas. Pelo que não pode concluir-se, como pretende o recorrente, que do pagamento do preço de qualquer das empreitadas resulta a aceitação da mesma sem reservas.

A alegada aceitação da totalidade das obras realizadas pela ré decorria ainda, segundo o recorrente, do facto de mesma nunca ter reclamado de qualquer defeito, o que só invocou depois de proposto o processo especial de injunção, como forma de se furtar às suas obrigações.

Assim não foi de facto. Provou-se, nas alíneas 12 e 17 que a ré efetuou reclamação de defeitos tendo-o feito por escrito pelo menos em 7-12-2020. Ora apenas em 22 de janeiro de 2021 o recorrente enviou à recorrida carta de interpelação ao pagamento e fatura no valor de 1 239, 88 € relativa à produção de vestuário (40 blusas) da marca ..., alegando que a ré já as levantara (e também que a mesma não entregara materiais e acessórios necessários à conclusão, apesar de as mesmas já deverem ter sido entregues há cinco meses). O requerimento inicial, por sua vez, deu entrada no Balcão Nacional de Injunções em 28-01-2021. Pelo que improcede essa via argumentativa.

A aceitação da obra pelo comitente não se confunde com a entrega da obra e nem com o seu pagamento. Do artigo 1218.º do Código Civil resulta que o dono da obra deve verificar a mesma antes de a aceitar, devendo tal verificação ocorrer dentro do prazo usual ou que se julgue razoável. Não foi alegada a verificação da obra e sua aceitação expressa nem que a primeira não tenha ocorrido no prazo habitual ou necessário. Diga-se, a este propósito, que o recorrente viu improceder a sua pretensão de que fosse considerado que a ré procedeu à fiscalização da obra durante toda a sua execução, o que, aliás, também não alegara nesses precisos termos.

A falta de verificação da obra no prazo a que alude o número 2 – que não foi alegada e não se provou -, ou a não comunicação dos defeitos importa a aceitação da obra, nos termos do artigo 1218º, número 5 do Código Civil. A aceitação, enquanto declaração negocial, pode ser expressa ou tácita.

A este propósito pode ler-se em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-01-2024 que “I – A aceitação da obra não deve confundir-se com a entrega material da mesma, porque importa a declaração negocial do comitente de que a obra foi efetuada, nos termos contratuais, a seu contento, correspondendo, simultaneamente, à entrega material, acrescida do reconhecimento de que a obra foi realizada, nos termos acordados.

II – Da pura entrega material da coisa, sem ter sido, previamente, verificada ou vistoriada, não se pode concluir ter a obra sido concluída sem defeito, porquanto ela não representa uma declaração de execução tácita, conforme ao contrato, no que respeita à inexistência de vícios, podendo, quando muito, tratar-se de uma aceitação presumida”.[8] Também o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 08-02-2024[9] afirmou que “No contrato de empreitada, a aceitação da obra pode ser tácita, deduzida de factos que “com toda a probabilidade, a revelam” (n.º 1 do artigo 217.º do Código Civil). IV. A aceitação que a recorrente entende resultar do pagamento parcial das facturas ... e ... só lhe aproveitaria se fosse total – justamente porque só assim permitiria considerar vencida a totalidade do crédito invocado.

No caso, não estando sequer provados factos de que possa decorrer que a ré pagou a totalidade ou, sequer, parte das faturas relativas à obra em que veio a verificar a existência de defeitos, nem estando alegado que a obra foi verificada no ato de entrega ou que não foi verificada no prazo usual ou necessário, bem como estando provado que a ré reclamou de defeitos da obra não pode considerar-se ter ocorrido qualquer declaração negocial tácita de aceitação, já que a mesma tinha que poder ser deduzida “de factos que, com toda a probabilidade, a revelam”, como decorre do artigo 217º, número 1 do Código Civil.

Ora, até pelo número de peças confecionadas, pelo facto de se destinarem a um terceiro (cliente da ré), por terem sido entregues de forma parcelar e porque os defeitos provados – relativos às dimensões do vestuário -, eram difíceis de detetar no ato de entrega, não pode concluir-se ter ocorrido aceitação da obra, o que não decorre do mero facto de os defeitos não terem sido logo de imediato reclamados aquando da sua receção.


*

5- A improcedência da exceção de não cumprimento.

O recorrente alega ainda que não podia ter improcedido a sua pretensão na medida em que a ré ficou com os produtos por si confecionados, não os tendo pago e não tendo provado que os mesmos tinham defeitos a si imputáveis.

A sentença considerou que não obstante a execução da obra pelo autor a mesma tinha defeitos que justificaram a devolução da encomenda pelo cliente da ré pelo que a esta cabia o direito de excecionar o não cumprimento da obrigação de pagamento do respetivo preço.

A exceção de não cumprimento fora invocada em sede de contestação, tendo sido apenas com base nessa forma de defesa que veio a improceder parte do pedido, pois foi julgada inadmissível a reconvenção e a sentença também concluiu não estarem verificados os requisitos da exceção de compensação, com o que a recorrida se conformou.

Estabelece o artigo 428.º número 1 do Código Civil que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.

A exceptio non adimpleti contractus ocorre, pois, apenas nos contratos bilaterais, como é o dos autos.

Para que a exceção de não cumprimento de contrato se aplique, não basta que o contrato crie obrigações para ambas as partes, sendo também preciso que as obrigações não cumpridas sejam correspetivas e, portanto, sinalagmáticas.

As prestações essenciais que decorrem do contrato de empreitada, nos termos do artigo 1207.º do Código Civil:

Da parte empreiteiro, a de realizar a obra;

Da parte do comitente (seja ele o dono da obra ou um empreiteiro que se encontre a subcontratar a obra ou parte dela), a de pagar o respetivo preço

São estas as prestações que definem o contrato objeto dos autos.

Às mesmas somam-se outras, acessórias, que decorrem também da lei, como sejam a de realização da obra sem defeitos, ou da sua reparação pelo empreiteiro e a de verificação da obra e comunicação dos defeitos mesmos pelo comitente.

Tendo presentes estas obrigações correspetivas, deve recordar-se que não ficou provado que concreto número de peças tinha defeito ou que as mesmas tenham sido totalmente devolvidas pela cliente da ré a esta ou por esta ao autor.

Deve ainda sublinhar-se que não se encontra nos factos provados qualquer matéria de que decorra a conclusão a que o Tribunal a quo chegou a dado passo da fundamentação da sentença, de que a ré “resolveu o contrato”. Apenas se provou que a ré reclamou da existência de defeitos em 07-12-2020 tendo informado o autor que lhe devia ser creditado o valor total que fora interpelada a pagar, bem como o valor correspondente aos prejuízos que alegou ter suportado e que disse que iria liquidar.

Nessa missiva, única que está provada como tendo sido remetida pela ré ao autor, nada consta sobre a pretensão da ré de resolver qualquer dos contratos de empreitada celebrados com o autor, mas apenas a denúncia de defeitos - que só em parte ficaram provados -, e a comunicação da ré de que não pretendia pagar o valor cobrado e de que enviaria ao autor a demonstração dos prejuízos sofridos.

Do artigo 432.º, número 2 do Código Civil decorre que, para que opere a resolução do contrato o contratante que queira invocá-la deve restituir à parte contrária o que dela tenha recebido. O que os factos provados demonstram não ter sido feito, permanecendo a ré com pelo menos parte dos produtos que recebeu e desconhecendo-se quais os que veio a entregar aos seus clientes finais, já que não se provou que lhe foram todos devolvidos e/ou que todas as encomendas tenham sido canceladas.

A ré tampouco alegou ter comunicado ao autor qualquer declaração de resolução do contrato apenas se tendo provado que lhe comunicou defeitos de alguns produtos e que, por via deles, se entendia no direito de não pagar nenhuma das faturas relativas a obras realizadas que ainda estavam, nessa data, por pagar.

Estabelecido que é infundada a referência da sentença à resolução contratual cumpre conhecer apenas do bom fundamento da sentença quanto ao motivo que levou à absolvição do réu de parte do pedido: a exceção de não cumprimento do contrato.

Socorremo-nos das palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[10] para afirmar “a exceptio não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assente o esquema do contrato bilateral”.

Ainda segundo Pires de Lima e Antunes Varela, o mecanismo previsto no artigo 428º do Código Civil “(…) vale tanto para o caso de falta integral do cumprimento, como para o de cumprimento parcial ou defeituoso, desde que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé consagrado nos artigos 227.º e 762.º, n.º 2”[11]

A consagração desse princípio da boa-fé na execução dos contratos obriga a que a aplicação do instituto em causa em situações de incumprimento parcial ou de cumprimento defeituoso seja proporcional.

Assim tem sido quase unanimemente entendido na jurisprudência. Como se pode ler em sumário de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2008[12]No caso de cumprimento parcial ou defeituoso a exceptio deve ser correspondente à inexecução parcial ou à execução defeituosa, podendo o devedor recusar a sua prestação na parte proporcional ao incumprimento do outro contraente. É que só assim se garante o equilíbrio sinalagmático.”.

Para que a exceção de não cumprimento possa atuar será então necessário concluir que as prestações sejam correspetivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra.

Assim, e em conclusão, a exceção do não cumprimento do contrato apenas pode ser aceite como fundamento para o não cumprimento de uma (contra)prestação desse contrato, quando por via desse não cumprimento se assegure o equilíbrio entre as obrigações no âmbito dos contratos sinalagmáticos. Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2008 [13], “uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito”.

No caso está apenas provado que foram detetados diversos defeitos nos produtos rececionados pela ré que o autor fabricou, não se sabendo em quantos, estando tais defeitos associados a incongruências das dimensões das peças de vestuário em face da encomenda (alínea 14 dos factos provados). A ré, contudo, não devolveu tais bens ao autor, tendo ficado com os mesmos na sua posse. Não ficou provado qual o valor relativo dos bens com defeito no total da encomenda feita (alínea 13 dos factos não provados) e nem que os mesmos não tenham qualquer valor (alíneas 14 e 15 dos factos não provados).

Sabemos, contudo, em face do facto dado por provado na alínea 15, que apenas foram encontrados defeitos em parte das peças a que correspondiam as referências 54 494, 54 496, 54 480 e 54 484 que são exatamente aquelas a que correspondem às reclamações feitas pela cliente final da ré. E o valor das faturas relativas à produção de tais referências de vestuário em que se verificou existirem defeitos é, no total de 2 036, 88 €, assim calculado: 708, 48 € da fatura número ..., + €228, 78 € da fatura número... + 590, 40 € da fatura número... + 509, 22 € da fatura número ....

Sucede que nem este valor se pode considerar como totalmente perdido pela ré, pois nem se provou em qual concreto número de peças se verificava a existência de defeitos (que se sabe existirem apenas nalguns dos tamanhos de vestuário relativos a cada modelo), nem o seu valor no cômputo total da obra feita e entregue.

A ré recebeu tais bens e não os devolveu à autora.

A proporcionalidade da reação do contraente consistente na exceção de não cumprimento deve ser encontrada com recurso às regras que obrigam os contraentes a agir de boa-fé no cumprimento dos contratos, como resulta do artigo 762.º do Código Civil. Trata-se da consagração do princípio neminem laedere em matéria de execução do contrato.

Ora está provado que o valor total das faturas emitidas pelo autor relativas a trabalhos efetivamente executados e entregues e não pagas pela ré é de 13 003, 96 € assim calculado 35 135, 34 € de preços faturados – (6 673, 84 € de notas de crédito emitidas pelo autor a favor da ré + 15 457, 96 €).

A ré invocou defeitos em algumas das peças recebidas cujo preço total faturado era de 2 036, 88 € e ficou com tais peças, não as tendo restituído ao autor.

Nos termos do artigo 342.º, número 2 do Código Civil, cabia à ré a prova dos factos de que dependia a exceção de não cumprimento, ou seja, daqueles que permitiram concluir pela existência de um sinalagma entre a obrigação não cumprida pelo autor e aquela que se quer escusar a cumprir.

Como se afirmou acima, o autor cumpriu a obrigação principal do contrato de empreitada, que foi a de realização da obra. A ré, contudo, não quer cumprir a obrigação principal correspetiva: a de pagamento do preço.

Não nos parece de afastar totalmente a possibilidade de o devedor se escusar ao pagamento do preço da obra quando a mesma apresente defeitos que justifiquem a sua não aceitação. Embora não esteja em causa o incumprimento da obrigação do empreiteiro de executar a obra, a sua execução com defeitos pode equiparar-se nalguns casos, do ponto de vista dos interesses do comitente, à sua não execução.

Neste sentido tem vindo a ser decidido pelos Tribunais superiores, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, em 08-09-2015 proferido acórdão[14] em que afirmou que a “excepção do não cumprimento do contrato é um instituto que pode ser adoptado, para além da situação do não cumprimento definitivo da prestação, igualmente, nas hipóteses de cumprimento defeituoso ou do não cumprimento parcial, onde goza a designação da «exceptio non rite adimpleti contratus», mostrando-se, consequentemente, paralisado o direito da autora, enquanto esta não corrigir as várias deformidades e vícios que a obra ainda regista”.

Todavia, e como acima se assinalou, não é qualquer defeito que justifica o não pagamento do preço da obra efetivamente realizada, até porque o dono da obra tem ao seu dispor, quanto à verificação de defeitos, uma miríade de soluções legais de reação.

Pelo que, ainda que se siga este entendimento – que foi o que seguiu o Tribunal a quo - de que o cumprimento defeituoso em sede de empreitada também pode sustentar a recusa do pagamento do preço, teria de se verificar, no caso, a exigida proporcionalidade entre as prestações que, de acordo com a boa fé, deve orientar a conduta dos contratantes.

Ora, no caso, terá havido incumprimento de um dos deveres do contrato por banda do empreiteiro, incumprimento esse consistente na produção de parte da obra com defeito, mas a obra foi de facto executada e entregue.

Nos termos do disposto nos artigos 1221º e 1223º do Código Civil à ré cabiam, em face dos apurados defeitos que denunciou: o direito de exigir a sua reparação; na sua impossibilidade, o de pedir a reconstrução; assim não ocorrendo (nomeadamente por não poder ser feita ou já não interessar ao dono da obra), a redução do preço; ou, como última medida, a resolução do contrato.

A ré, contudo, não pretendeu exercer qualquer desses direitos na ação, nem antes dela, não tendo requerido a reparação dos defeitos, a construção de novas peças, a redução do preço ou a resolução do contrato. Quer extrajudicialmente quer em sede de contestação defendeu-se em primeira linha com a invocação da exceção de não cumprimento.

O exercício de qualquer desses direitos não excluía a possibilidade de a mesma ser indemnizada nos termos gerais. A ré pretendeu reclamar tal indemnização por via reconvencional, o que lhe foi indeferido. E, também sem sucesso, excecionou a compensação do crédito do autor com o seu alegado crédito indemnizatório. A ré não recorreu subordinadamente, nem para o caso de procedência do recurso, pelo que nessa parte se deve manter o decidido. De todo o modo, sempre deve sublinhar-se que não logrou provar os factos em que sustentava o seu alegado crédito indemnizatório.

Restaria, portanto, a possibilidade de se considerar que a mesma tinha o direito a não cumprir o contrato, no que tange à sua obrigação de pagamento do preço da obra que foi efetivamente executada e lhe foi entregue.

Ora esta via de defesa não pode proceder, dada a desproporção entre a obrigação que não quer cumprir - a de pagar o preço de empreitadas num total de 13 003, 54 -, e o cumprimento defeituoso que se provou - e que se refere apenas a alguns dos tamanhos de peças de vestuário cuja execução total tinha o custo (faturado) de 2 036, 88 €. A ré recebeu toda a obra correspondente a tal preço e apenas se provou que uma parte dela tinha alguns defeitos, não se sabendo se os mesmos a tornariam impossível de ser utilizada.

A esse respeito foi julgado não provado que a obra consistia em confeção de marca de prestígio e de peças sazonais o que impedia a sua substituição e/ou revenda a preços mais baixos (alíneas 14 e 15 dos factos não provados) bem como não se provou que a ré não tenha tido qualquer lucro com a revenda dessas peças (alínea 19 dos factos não provados), que não devolveu à autora.

Quanto à origem dos defeitos apurados também se provou apenas que poderiam proceder em parte da estabilidade dimensional do tecido (que foi fornecido pela ré) havendo alguns outros decorrentes da sua execução com medidas diferentes das encomendadas, como resulta da alínea 24 dos factos provados.

Pelo que não pode considerar-se que a expressão dos defeitos concretamente apurados que pudesse ser de imputar ao autor corresponda, de forma proporcional e sinalagmática, à recusa de pagamento da totalidade do preço de várias das obras efetuadas a pedido da ré. Não tendo o mesmo peticionado a mera redução do preço, mas apenas defendido a legitimidade da recusa do seu pagamento, deve a ação proceder.

Pelo que será a ré condenada no pagamento da totalidade do pedido, face à inocorrência de fundamento para a também arguida exceção de não cumprimento do contrato.

Deve ainda a ré, como peticionado, pagar ao autor os juros devidos pela mora no cumprimento, à luz dos artigos 804.º, número 1, 805.º número 1 e 559º do Código Civil, desde a citação da ré em 08-02-2021 (como pedido), sendo aplicáveis as taxas de juros legais previstas para as relações comerciais, à luz do artigo 102º do Código Comercial, até ao efetivo pagamento.


*

As custas da ação e do recurso serão a suportar pela ré, por ter decaído em ambos, à luz do artigo 527.º, número 1 do Código de Processo Civil.

V – Decisão:

Julga-se procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e condenando a ré a pagar à autora a quantia de 13003,54 € acrescida de juros às taxas legais sucessivamente aplicáveis às obrigações comerciais desde 08-02-2021 e até efetivo pagamento.

Custas da ação e do recurso pela ré/recorrida.


Porto, 24-11-2025
Ana Olívia Loureiro
Teresa Fonseca
José Nuno Duarte
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[1] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, página 183, nota de rodapé número 318).
[2] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Aditora, Volume IV, página 553.
[3] STJ 3037/21.2T8PNF.P1.S1
[4] AUJ 220/2023 de 14-11-2023
[5] STJ 1786/17.9T8PVZ.P!.S1
[6] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição, páginas 197 a 203.
[7] Resulta de fls. 3 do relatório pericial que o perito se deslocou às instalações da ré para recolha das amostras para análise. E de fls. 4 desse relatório resultam as referências das peças analisadas.
[8] TRC 243/19.3 T8CDR. C1
[9] STJ 4307/18.2YIPRT.L1.S1
[10] Código Civil Anotado Tomo I, Coimbra Editora, 4ª edição, página 406.
[11] Op. Cit, ainda página 406.
[12] https://jurisprudencia.pt/acordao/133739/
[13] https://jurisprudencia.pt/acordao/133739/
[14] STJ 477/07.3TcGMR.G1.S1. No mesmo sentido, entre outros, o acórdão STJ 2786/18.0T8LSB.L1.S1 de 12-01-22 e