Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
128/13.7PEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CRIME DE DANO COM VIOLÊNCIA
COISA ALHEIA
CRIME DE COACÇÃO
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RP20150204128/13.7PEGDM.P1
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O crime de dano com violência (artº 214ºCP) tem natureza pública.
II – No conceito de “coisa alheia ” inclui-se a coisa que não seja propriedade exclusiva do agente desde que não se trate de “ res nullius” abrangendo os casos de coisa comum corresponde a situações de compropriedade ou de mão comum, em que a mesma deve ser considerada alheia em relação a cada um dos titulares dessa propriedade conjunta ou comunhão.
III – Para que ocorra a consumação no crime de coacção é necessário a adequação da acção (violência ou ameaça com mal importante), a adopção pelo coagido de comportamento conforme á imposição do coactor, e entre este comportamento e a acção de coacção existe uma relação de efectiva causalidade.
IV – Tal consumação verifica-se logo com o início da execução da conduta coagida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal 128/13.7PEGDM.P1
Gondomar
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação do Porto.
2ª Secção criminal.

I-Relatório.
No Processo Comum Singular com o n.º 128/13.7PEGDM do 1º juízo criminal do Tribunal Judicial de Gondomar foi submetido a julgamento o arguido B…, melhor identificado a fls. 210.
Por sentença de 27 de Fevereiro de 2014, depositada no mesmo dia, foi o arguido condenado nos seguintes termos:
«Por todo o exposto, julga-se a acusação procedente, por provada e, em consequência, decide-se:
1.º Condenar o arguido B… pela prática de um crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão;
2.º Condenar o arguido B… pela prática de um crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º, 73.º, 154.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão:
3.º Em cúmulo jurídico, decide-se aplicar ao arguido a pena única de 3 (três) anos e 2 (dois) meses de prisão;
4.º Mais se decide suspender a execução da pena de prisão aplicada, pelo período pelo período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses, sob a condição de o arguido pagar à lesada C…, no prazo de 1 (um) ano, a indemnização fixada na presente sentença;
4.º Condenar o arguido nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s – cfr. art.ºs 513.º e 514.º, ambos, do Código de Processo Penal.
5.º Julgar o pedido de indemnização civil formulado pela demandante C… parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, condenar o arguido B… a pagar àquela a quantia total de € 7.000 (sete mil euros), sendo € 4.000 (quatro mil euros) a título de danos patrimoniais e € 3.000 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora legais contados, à taxa legal, desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento, indo no mais absolvido.
6.º Condenar demandante e demandado nas custas cíveis, em função do respectivo decaimento.»
*
Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, apresentando a motivação de fls. 242 a 278, que remata com as seguintes conclusões:
A. Nos termos do n.º 3 do art. 412.º, alínea a), do C.P.P. considera a recorrente incorrectamente julgada como provada a matéria dada como assente nos itens 1. a 4, 11. a 15. 19. 24. a 29.;
B. Da análise dos depoimentos das testemunhas e dos vários documentos referidos verifica-se a inexistência de prova cabal e consistente da prática dos crimes.
C. Considerou o tribunal a quo provada a data de separação do arguido e da ofendida - Janeiro de 2011 e em processo de divórcio desde junho de 2012, ora tal não resulta de qualquer prova dos autos, nem testemunhal, nem documental, mesmo a ofendida não logrou delimitar no tempo tal separação de facto nem a data em que se iniciou o processo de divórcio (vide suporte digital ao minuto 02:00 a 4:00 do depoimento prestado no dia 07-04-2014 com inicio às 14:30:47 e termo às 15:37:41);
D. Entendemos que não resulta ainda aprovado que a data de entrega de um suposto papel com o contacto do advogado do arguido foi quinze dias antes do dia 03 de Fevereiro de 2013 à irmã daquela.
E. Desde logo existem discrepâncias no depoimento da ofendida e da irmã quanto ao papel que foi entregue: a assistente refere que "foi 15 dias antes" "post it amarelo pela irmã" (vide suporte digital ao minuto 21:04 a 21:09 do depoimento prestado no dia 07-04-2014 com inicio às 14:30:47 e termo às 15:37:41), enquanto que a irmã refere que lhe foi entregue: "papel normal, era uma folha branca" (vide suporte digital ao minuto 32:09 do seu depoimento prestado no dia 07-04-2014 com inicio às 16:25:14 e fim às 17:07:36).
F. E principalmente pelas testemunhas de defesa foi referido que efectivamente houve necessidade de celebração e empréstimo para a sociedade da qual o arguido é sócio, e que se mostrava necessário a assinatura da assistente (porque casados na comunhão de adquiridos) inclusive que haviam contactado com a ofendida para obtenção a sua assinatura, mas tal negócio e contacto ocorreu em Setembro de 2012, sendo que conseguiram superar tal falta de assinatura junto do Banco tendo sido celebrado o referido contrato sem a sua assinatura, tendo sido aprovado em Dezembro de 2012.
G. A assistente admite que foi contactada apenas uma vez por uma funcionária da empresa: "ligou-me uma senhora do escritório ... C…" (16:01 a 16: 10 do depoimento prestado no dia 07-04- 2014 e gravado em suporte digital). Sendo que questionada a funcionária a mesma descreveu de forma sincera e credível tal contacto, o teor da conversa e os contornos do mesmo: "fizemos alguns pedidos de PMEs (3:26) em Setembro de 2012 que era preciso assinaturas de todos (4:49 a 4:58) que precisavam que assinasse (05:23)" ao que a assistente respondeu que "assinava a PME se Sr. B… assinasse o divórcio", como ela não assinou : "falei com o gerente metemos outra papelada (07: 16), e "em Dezembro de 2012 aprovado sem a assinatura da C… (07:33) "a partir daí sempre a dizer que em processo de divorcio e juntavam a certidão" (08: 11) "já em Dezembro tiveram OK" (08:45) "já dinheiro em Dezembro de 2012 (08:56), e (06:20 a 06:56 do depoimento prestado em 22-04-2014 com inicio ás 14:45:00 e termo ás 15:05:08 gravado em suporte digital).
H.- Pelo que em Fevereiro de 2013 há muito que havia ocorrido o pedido de assinatura de contrato com instituição bancária, e mostrando-se o contrato assinado não havia qualquer necessidade ou sentido em solicitar á ofendida a sua assinatura.
I. Pelo que é completamente falso que exista qualquer relação entre os factos ocorridos no dia 03 de Fevereiro de 2013, e o pedido efectuado pelo arguido à irmã da ofendida para que falasse com o advogado pelo que não pode ser dado como provado tal facto nem os que com este se relacionem.
J. De igual modo não resulta provado que as palavras "diz à tua irmã para ter muito cuidado na rua, a atravessar e estrada, pode-lhe acontecer alguma coisa de mal", tivessem sido proferidas no sentido que iria agredi-la, ou quando é que as mesmas foram proferidas. Nem a irmã nem o filho da ofendida conseguiram situar tais expressões, sendo que tanto a ofendida como a irmã da ofendida referiram que o filho e sobrinho lhe havia referido que o pai proferiu tais expressões várias vezes ("o meu filho começou a transmitir isso desde que disse que não voltava mais para aquela casa (21:46 a 22:04) e "quando vinha do pai dizia à mãe ... quando vinha da escola dizia-me a mim"(31 :44), mas o próprio filho apenas refere que foi uma vez, não tendo qualquer dúvida de tal facto: "o meu pai chegou a dizer-me ... um único ... uns meses antes (05: 58, 06:23 a 06:47 do depoimento prestado a 07-04- 2014 com inicio ás 15:44:18 e termo às 17:07:36 gravado em suporte digital)
K. Quanto aos factos ocorridos no dia 03 de Fevereiro de 2013, não foi visionado por nenhuma testemunha, para além da assistente, como se terá iniciado tal situação, nomeadamente se houve troca de palavras que tenham originado tal situação, até porque a situação entre o casal era de conflito, o que decorre até das expressões imputadas ao arguido: "(…) ela que não me pique".
L. Sendo que a assistente disse em sede de audiência que o arguido dias antes lhe havia pedido o carro - Citroen, pelo que existia um conflito relativamente ao uso do veículo, reclamando o arguido a sua posse e uso, pelo que o mesmo poderia até estar a ser usado pela assistente, mas tal uso não era pacífico, nem de boa-fé, isto porque, a assistente quando saiu de casa levou aquele veículo, pelo que em momento algum foram efectuadas partilhas, nem sequer verbais, havia um conflito claro pelos bens, especificamente quanto aos veículos.
M. As declarações da assistente são claras: "não dei meu carro para o fim de semana"(16:45)." o pai queria o carro"(06:23), aliás mesmo quanto ao jipe ainda não está determinada a propriedade sendo que a assistente a dado momento do referiu: "... não sabia o paradeiro do jipe ... requeri a apreensão ... o carro está em meu nome" (29:59 a 30:31)
N. Aliás tal coadunam-se com as palavras que são imputadas ao arguido após a ocorrência dos factos a 03 de Fevereiro: «estão feitas as partilhas", o que é demonstrativo que teria havia uma discussão recente, até simultânea, quanto á propriedade daqueles bens.
O. A considerar os embates existentes, e mesmo considerando que terá ocorrido um embate frontal, não resulta de qualquer depoimento que tenha ocorrido qualquer outro embate, pelo que não se concebe que o veiculo Citroen tenha sofrido danos, nomeadamente os alegados: retrovisor direito, todas as luzes partidas, sem frisos do lado direito (vide fotos do veiculo que se encontram junto aos autos) e amolgado na parte de traz e lateral direita. Pelo que os danos que o veiculo que são reclamados não decorreram certamente todos do acidente ocorrido.
P. Não resultaram ainda provados os danos morais invocados pela assistente, a quem incumbia fazer prova dos mesmos.
Q. Das declarações da assistente ficou demonstrado que esta não tinha qualquer receio do arguido.
R. Mesmo quanto à pretensa tentativa de coação, a assistente não teve qualquer receio do arguido, isto porque mesmo após a alegada coação não tinha medo o arguido, fazia a sua vida normalmente, indo inclusive buscar o seu filho a casa dos avós paternos, quando sabia que era local frequentado pelo recorrente.
S. A dado momento das suas declarações refere que "tenho medo perante o que aconteceu (18:53), "até aquela data não valorizou as ameaças (04:40), aliás se o recorrente tinha a personalidade violenta a esposa não tinha essa opinião, atenta a forma como falava com ela, sempre o confrontando pessoalmente: "não tenho medo das tuas chantagens" (19:57), "eu não devo ter falado português" (20:22); o quê, vai-me tirar o carro (01:00:44 a 01:00:53) - de notar a entoação daquela neste momento das suas declarações.
T. Aliás no próprio dia do acidente foi ao local buscar o veículo, quando poderia ter ido outra pessoa, e esteve novamente no local passado uma semana, sempre na companhia do actual companheiro, conforme se pode confirmar pelas declarações da irmã: "minha irmã, namorado da irmã, já namorava (24: 16 a 24:30) U. Sendo que neste último caso até referiu nas suas declarações que foi lá com a sua irmã e cunhado, por ter medo do que podia acontecer, mas questionada a sua irmã a mesma nega tal deslocação: "não foram mais nenhuma vez (25: 13 a 25:26).
V. Não resultou provado que a assistente nas noites a seguir não dormia, que o sono não era reparador, que apresentava sonolência, irritabilidade ou incapacidade de raciocinar, mas resulta sim provado que a assistente á data dos factos já residia com outra pessoa, sendo que nunca deixou de trabalhar.
W. Alega a assistente que psicologicamente ficou muito afectada e que ainda hoje não rege a sua vida de forma livre, mas não seria então expectável que necessitasse de acompanhamento psicológico profissional ou medicação adequada a tal fobia, até porque trabalha em local privilegiado para obter tal acompanhamento, e não se encontra junto ao processo qualquer documento que prove tal, facto pelo qual deveria ter sido improcedente o pedido de indemnização civil
X. Entende o recorrente que o tribunal a quo não fez uma aplicação/interpretação das normas aplicáveis.
Y. A tipicidade do crime de dano exige também que a Coisa seja "alheia". Na perspectiva do agente do crime de dano, a coisa é alheia quando não lhe pertence, quando a titularidade da coisa se encontra atribuída a outrem.
Z. Considerou provado o tribunal a quo que "(…)a assistente tinha a posse e o domínio sobre o objecto ainda a não partilhado formalmente, porém, provou-se que o veículo já havia sido materialmente objecto de partilha. A assistente fazia uso exclusivo do carro, tal como faz um real proprietário, ao passo que o arguido fazia uso exclusivo do Jeep que á data conduzia. "
AA. Ora conforme já alegado não se pode dar como provado tal facto, isto porque a assistente apesar de ter a posse do veículo a mesma não era de boa-fé, e consentida pelo recorrente, facto admitido pela assistente quando referiu que tinha havido mantido uma discussão com o recorrente porque o mesmo queria o uso do veículo, pelo que as partilhas não se encontravam efectuadas, facto corroborado pela frase dita pelo recorrente após a ocorrência dos factos em 03 de Fevereiro, e das quais se pode depreender que existia um conflito relativo aos veículos, seu uso e posse, a qual não era pacifica.
BB. Entendemos, assim e com o devido respeito que o tribunal ao considerar com tal fundamento que se está perante coisa alheia não fez justiça, isto porque o bem é um bem comum, uma vez que ainda não foi efectuada qualquer partilha.
CC. Não podemos assim aceitar que o tribunal a quo aceite o carácter alheio da coisa objecto do dano.
DD. Ao interpretar a norma contida no artigo 214.º (ex vi 212.º) do Código Penal, no sentido de considerar alheia a destruição por um dos cônjuges de uma coisa pertencente ao casal, o tribunal errou, pois, como já se disse, tal preceito legal deve ser interpretado no sentido de que não é alheia, para os efeitos de punição criminal, a coisa que também pertence ao cônjuge.
EE. Ao decidir como o fez, a sentença recorrida violou o disposto nas normas dos artigos 124.º n.º1 e 125.º, ambas do CPP; 32.º, n.ºs 1 e 5; 205º, n.ºs 1 e 2 e 208.º todos da CRP; 31, 32.º, 34.º e 212.º, n.º 1 do CPP.
FF. Acresce que resulta do tipo de ilícito do art. 212.º que as condutas típicas previstas correspondem a formas diferenciadas de lesão à propriedade, tendo como elemento objectivo o destruir, no todo ou em parte; danificar, desfigurar ou tornar inutilizável coisa alheia.
GG. Por seu lado o crime de dano com violência configura uma forma dependente e qualificada das infracções previstas nos art.ºs 212º e 213º.
HH. Entre dano com violência e estas últimas medeia uma relação de continuidade quanto aos elementos estruturais da factualidade típica.
II. O que impõe uma remissão, de princípio, para a disciplina daqueles perceitos. Ora remete o artigo 212.º e 213º do C.P. para o artigo 207.º n.º 1 alínea a) do mesmo diploma, ora resultou provado que o recorrente e a assistente á data da ocorrência dos factos que integram o crime de dano eram casados;
JJ. Pelo que não tendo a assistente deduzido acusação particular deve ser declarada a nulidade insanável prevista no art.º 119.º n.º 1 alínea b) do CPP devendo ser julgada nula a acusação deduzida pelo Ministério Público, bem como a omissão da advertência ao ofendido para se constituir assistente, por violação do disposto no artigo 68.º n.º 2 e 246.º n.º 4 do CPP.
KK. Vem imputada ao arguido a prática de um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 23º, 73º, 154º/1 e 155º/1 a). do C. Penal.
LL. Por medo deve entender-se o temor ou receio de que o mal ameaçado ou prometido venha efectivamente a acontecer. Inquietação é a intranquilidade, o desassossego que a ameaça provoca no destinatário. Há prejuízo na liberdade de determinação quando o ameaçado fica constrangido pela ameaça, em vez de agir de acordo com a sua livre vontade actua antes por forma a não desagradar o ameaçador, ainda que isso lhe custe» - Simas Santos e Leal Henriques, loco cit..
MM. Ora, revista a factualidade apurada, resulta que não houve qualquer intranquilidade ou temor por parte da assistente, a entrega do hipotético papel e as hipotéticas palavras proferidas pelo recorrente em nada alteraram o dia a dia daquela, que continuou a sua rotina diária, não se sentindo ameaçada com tais palavras, por não as tomar por verdadeiras ou como uma ameaça conforme resulta do seu depoimento, aliás a assinatura do contrato veio a demonstrar-se que nem sequer não viria a ser necessária.
NN. Pelo que não estão verificados os elementos tipificadores do crime de coação sob a forma tentada.
OO. Ao interpretar a norma contida no artigo 154.º n.º 1 e 2 do Código Penal, no sentido de considerar verificados os elementos tipificadores do crime o tribunal a quo errou.
PP. Ao decidir como o fez, a sentença recorrida violou o disposto nas normas dos artigos 124.º n.º 1 e 125.º, ambas do CPP; 32.º, n.ºs 1 e 5; 205.º, n.ºs 1 e 2 e 208.º todos da CRP; 31º, 32º, 34º e 212º, n.º 1 do CPP.
QQ. Entendemos que perante as divergências de depoimento da assistente das declarações da testemunha F…, e perante as declarações das testemunhas de defesa e da própria assistente sempre se colocam dúvidas quanto á responsabilidade criminal do agente, quanto ao crime de coação, pelo que deverá o tribunal decidir no sentido mais favorável àquele, aplicando o princípio in dúbio pro reo, que deve ser aplicado sem qualquer restrição.
RR. Ora por tudo o já exposto ao tribunal a quo deviam ter-se levantado dúvidas quanto á prática de tal crime, o que daria lugar a uma absolvição por falta de prova inequívoca.
SS. Sendo que a valoração da prova cabe exclusivamente ao julgador que goza da prerrogativa da livre apreciação da prova consagrada no art.º 127.º do C.P.P., contudo tal não se pode confundir com a apreciação arbitrária da prova.
TT. Ao não aplicar tal princípio violou o tribunal a quo o disposto no art.º 32, n.º 2 da C.R.P..
UU. Os princípios jurídico penais da indisponibilidade da tutela penal da proporcionalidade impedem que a pena seja colocada ao serviço exclusivo da eficácia pela eficácia.
VV. Assim a pena não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas, acima de tudo, deve dará satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada.
WW. O tribunal não pode atender, como factor agravante para a determinação da medida da pena, à falta de recuperação dos valores em causa, porquanto esse facto é inerente à própria lesão da propriedade.
XX. Considerou também o tribunal que a culpa do arguido se manifesta em grau muito elevado, tendo actuado com dolo intenso, na sua forma mais grave.
YY) O facto do arguido, nos pedlso quais foi condenado, poder ter actuado com dolo directo, que corresponde á forma normal do agir humano, não agrava a ilicitude. Dificilmente seria concebível a prática de um tal tipo de crime com outra modalidade de dolo.
ZZ. Pelo que as penas parcelares impostas são excessivas, bem como a privação da liberdade.
AAA. O tribunal a quo não teve em consideração os ensinamentos de Kohlrausch, que refere que "na determinação da pena, o tribunal deve considerar principalmente que meios são necessários para que o Réu leve de novo uma vida ordenada e conforme a lei."
BBB. Pelo que deve a pena privativa de liberdade ser revogada, e aplicada pena subsidiária não privativa da liberdade, sendo que se considera particularmente desadequada a aplicação de pena de prisão no caso do crime de coação.
CCC. Pelo que deve a pena privativa de liberdade ser revogada, e aplicada pena subsidiária não privativa da liberdade.
Termina Pedindo que seja dado provimento ao recurso revogando-se acórdão sob recurso, e em consequência substituí-lo por um outro que a absolva o recorrente dos crimes pelos quais vem acusado.
Caso assim não se entenda, o que não se concebe: a) Deve ainda o acórdão sob recurso ser revogado e substituído por um que reduza as penas parcelares aplicadas por se mostrarem excessivas e desproporcionais, bem como aplicando pena não privativa da liberdade ao recorrente D….»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação do Porto, por despacho constante de fls. 285.
O Digno Magistrado do MP, junto do tribunal a quo, ofereceu a sua resposta conforme a fls. 290 a 295 dos autos, onde pugnou pelo não provimento do recurso.
Nesta Relação, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto Público emitiu douto Parecer, no sentido do não provimento do recurso.
Cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente não respondeu.
Colhidos os vistos, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.-Questões a decidir.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
- Nulidade insanável do artigo 119º, n.º1 al. b), do C.P., por falta de acusação particular quanto ao crime de dano com violência.
- Impugnação da matéria de facto provada sob os pontos 1 a 4, 11 a 15, 19, 24 a 29 por erro de julgamento e por violação do princípio in dubio pro reo - als. QQ a TT.
- Qualificação jurídica dos factos, do crime de dano e do crime de coacção.
- Medida das penas parcelares que tem por excessivas. E medida da pena única, pugnando pela aplicação de uma pena subsidiária não privativa da liberdade.
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2. Factos provados
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, tal como constam da sentença sob recurso.
«Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos:
1.º O arguido e C… estão separados de facto desde Janeiro de 2011 e em processo de divórcio desde Junho de 2012, e têm um filho menor, E…, nascido no dia 26 de Agosto de 2002.
2.º Em data não concretamente apurada mas num dos quinze dias que antecederam o dia 3 de Fevereiro de 2013, junto à escola do filho, em Gondomar, o arguido entregou a F…, irmã de C…, um papel com o contacto do seu advogado e disse-lhe para entregar tal papel a C… para que esta entrasse em contacto com ele e viesse a assinar um contrato de empréstimo do Estado às pequenas e médias empresas.
3.º Volvidos uns dias sem que C… assinasse o referido contrato, o arguido abeirou-se novamente de F… quando a encontrou na escola e disse-lhe “diz à tua irmã para ter muito cuidado na rua, a atravessar a estrada, pode-lhe acontecer alguma coisa de mal”, querendo com tal expressão dizer que quando pudesse iria agredi-la fisicamente.
4.º Durante esses dias, o arguido disse, pelo menos uma vez, ao filho de ambos, E…, referindo-se a C… “ela que tenha muito cuidado a atravessar a rua, que tenha muito cuidado a sair do metro, ela que ande com os olhos bem abertos, ela que não me pique”, querendo com tal expressão dizer que quando pudesse iria agredi-la fisicamente.
5.º No dia 3 de Fevereiro de 2013, pelas 15:00 horas, quando C… chegou a casa dos sogros, sita na Rua …, em …, Gondomar, conduzindo o seu veículo da marca Citroen, com a matrícula ..-..-QU, foi surpreendida pelo arguido que, tendo aguardado pela sua chegada ao local e conduzindo o jipe com a matrícula ..-..-BQ, irrompeu na sua direcção, imprimindo ao veículo uma velocidade acelerada e embateu com a parte da frente do seu veículo na parte frontal do veículo de C…, com ela no interior, sentada no lugar do condutor e com o cinto de segurança colocado.
6.º Com o embate os vidros estilhaçaram e a chapa do veículo ficou amolgada.
7.º Assustada, C… desprendeu-se do cinto de segurança e tentou sair rapidamente do veículo mas foi impedida pelo arguido que havia recuado o veículo por si conduzido e invertido o sentido de marcha do mesmo e irrompeu novamente na sua direcção, embatendo com a frente do jipe na porta da frente do lado esquerdo do veículo de C….
8.º Com o embate, C… foi projectada para o lugar da frente do lado direito do veículo, causando-lhe traumatismo cervical e lombar.
9.º Após, o arguido estacionou o jipe nas proximidades, disse-lhe “estão feitas as partilhas”, e entrou em casa, sendo que o arguido não mais conduziu o jipe até hoje.
10.º Como consequência directa do comportamento do arguido, C… teve que ser assistida no Serviço de urgência do Hospital Santo António no Porto sofreu no abdómen equimose arroxeada localizada na face posterior da região abdominal à direita da linha média com 4 cm de diâmetro, o que determinou oito dias de doença, com um dia de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.
11.º Como consequência directa do comportamento do arguido, o veículo Citroen ficou amolgado na face lateral esquerda e na parte da frente, ficou com as luzes partidas, sem espelho retrovisor direito e amolgado na parte de traz e lateral direita, obrigando a uma reparação orçada em valor situado entre € 4.000 e € 4.500,00. 12.º O JIPE ficou amolgado na parte da frente.
13.º Atento as circunstâncias em que os anúncios do arguido foram proferidos, C… sentiu um profundo e justificado receio, passando a temer que o arguido venha a agredi-la novamente o que a impede de reger a sua vida da forma que lhe apraz.
14.º Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, no propósito de constranger C… a assinar um contrato, contra a vontade desta, fazendo-a temer pela sua integridade física, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
15.º Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, no propósito concretizado de destruir e inutilizar os veículos com as matrículas ..-..-QU e ..-..-BQ, fazendo-os incorrer num acidente de viação violento, ciente que estando C… no interior de um dos veículos e sem possibilidade de reagir, atingi-la-ia na sua integridade física e colocar-lhe-ia em perigo de vida, pretendendo mesmo assim atingi-la no seu corpo e ofendê-la na sua integridade física, muito embora soubesse que não podia fazê-lo.
16.º O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
17.º O arguido e a assistente casaram-se entre si no dia 12 de Outubro de 1997, tendo o casamento sido dissolvido pelo divórcio decretado por sentença datada de 22 de Outubro de 2013.
18.º À data dos factos, o arguido e a ofendida ainda não tinham partilhado os bens comuns do casal e aquela estava no local para ir buscar o filho a casa dos avós paternos.
19.º À data dos factos e pelo menos desde a separação de ambos, o arguido passou a fazer uso exclusivo e frequente do jipe com a matrícula ..-..-BQ e a ofendida passou a fazer uso diário, exclusivo e frequente do veículo de marca Citroen, com a matrícula ..-..-UQ.
20.º A ofendida nunca assinou o contrato a que alude o facto provado em 2.º.
Do pedido de indemnização civil:
21.º Em consequência do embate acima aludido, os vidros do veículo conduzido pela ofendida ficaram estilhaçados e o veículo amolgado.
22.º E a ofendida ficou com ferimentos.
23.º A ofendida teme pela sua integridade física e sente-se, por isso, inquieta.
24.º A ofendida sente-se perturbada psicologicamente.
25.º Nas noites que se seguiram em que conseguiu dormir, revelava sono muito agitado, mexendo-se, virando-se, acordando subitamente a intervalos curtos, sobressaltada.
26.º De manhã, o sono demonstrava não ter sido reparador.
27.º Durante o dia, a ofendida apresentava grande sonolência, irritabilidade, incapacidade para raciocinar com facilidade e lentidão de reflexos, bocejando constantemente.
28.º Em virtude do acontecido, a ofendida tem medo do que o arguido lhe pode fazer, não tendo coragem de sair de sua casa, fazendo-a recear pela sua integridade física, vivendo em constante sobressalto, evitando sair do interior da sua casa desacompanhada.
29.º Em consequência directa da conduta do arguido, ficou o veículo conduzido pela ofendida amolgado, obrigando a uma reparação estimada no valor entre € 4.000 e € 4.500.
Condições económicas do arguido:
30.º B… residia morada indicada no processo, numa zona urbanizada, numa moradia, T3, adquirida através de empréstimo bancário. Desde há cerca de dois anos passou a viver sozinho nessa habitação, devido a ter-se separado da esposa e esta ter ido viver para a casa dos pais dela.
31.º Encontra-se divorciado a partir de outubro/2013 e o filho menor, com 11 anos de idade, mantém-se à guarda da ex-cônjuge, embora passe alguns dias com o pai e avós paternos de acordo com o regulado quanto às responsabilidades parentais.
32.º B… andava a estudar com vista à aquisição do 3.º Ciclo do Ensino Básico e atualmente encontra-se no 10.º Ano de Escolaridade, à noite, integrado no Ensino Recorrente.
33.º Tal como o faz atualmente, trabalhava na empresa familiar de transportes/distribuição “G…”, sendo ele e dois irmãos os sócios-gerentes, auferindo um vencimento de 485,00€ mensais.
34.º O arguido é tido como respeitador, prestável e trabalhador no seu meio sócio residencial. O casal era tido como normativo e sem evidências de problemas, pelo que foi com surpresa que viram a separação.
35.º A família do arguido também ficou surpreendida, pois não enquadram os acontecimentos referidos no processo no percurso de vida do arguido, que se pautou pela adoção de comportamentos e estilo de vida de acordo com os padrões, regras e valores socialmente vigentes.
36.º B… teve um percurso de vida adaptado em termos familiares e profissionais. Encontra-se positivamente integrado em termos sociais, não havendo outras referências de dissociabilidades para além das que possam emergir da atual situação jurídico-penal.
37.º Nada consta do certificado do registo criminal do arguido.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS
A) Que na sequência dos factos descritos a ofendida tenha perdido os sentidos.
B) Que com o segundo embate, o veículo Citroen tenha caído desgovernado para o outro lado da rua.
C) Que o arguido não se tem coibido, até à presente data, de reafirmar tais expressões proferidas, nomeadamente junto do filho de ambos.
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C) MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida e analisada na audiência de discussão e julgamento, valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente:
O arguido não quis prestar declarações, nem quanto aos factos que lhe são imputados, nem quanto à sua situação sócio-económica. O arguido fez assim uso de um direito que lhe assiste e pelo qual não pode ser prejudicado, porém, não pudemos colher a sua versão dos factos, nem, por conseguinte, a sua motivação pessoal.
C…, ofendida nos presentes autos, veio descrever de forma sincera, circunstanciada e objectiva todos os factos da acusação, tendo sido credível e consistente. Esclareceu ainda que à data dos factos ainda não tinham formalmente feito as partilhas, mas que o uso dos veículos já tinha sido distribuído por ambos, tendo o Jeep ficado para o arguido e o Citroen para a ofendida. Mais referiu que no dia 3 de fevereiro de 2013, deslocou-se a casa dos sogros para ir buscar o filho que tinha estado de visita ao pai e aos avós e no momento em que o arguido embateu com o Jeep no veículo onde se encontrava, tinha acabado de estacionar e estava a tirar o telemóvel da mala para dizer ao filho que já ali se encontrava para o levar. Esclareceu também, com relevo para a decisão da causa, que não assinou o contrato pretendido pelo arguido porque já estava separada e foi aconselhada pela sua advogada a não assinar nada. Mais salientou que as ameaças proferidas pelo arguido, transmitidas através da irmã e do filho ocorreram algumas semanas antes do sucedido a 3 de Fevereiro de 2013.
No que concerne ao momento em que as ameaças a que aludem os factos provados em 2.º a 4.º, o que disse a ofendida coincidiu com o que veio atestar a irmã F… e com o filho menor do arguido e da ofendida, conforme infra explicitaremos. Na verdade, no que toca ao momento em que os factos foram cometidos, verificou-se que apesar de o contrato para as PME’s que o arguido pretendia que a ofendida assinasse, ter sido preparado alguns meses antes (de acordo com as testemunhas de defesa, sensivelmente em Setembro de 2012), isso não exclui a possibilidade de os factos terem sido cometidos em janeiro de 2013. É que, conforme afirmaram as testemunhas de defesa, já há algum tempo que vários elementos da família do arguido, sócios-gerentes da empresa daquele e a própria funcionária que aqui testemunhou, tentaram convencer a ofendida a assinar o contrato o que esta não quis por estar separada de facto desde pelo menos Maio de 2012. Segundo atestaram as testemunhas de defesa, pelo menos o pai do arguido telefonou algumas vezes à nora para a tentar convencer a assinar o contrato; também a funcionária da empresa efectuou um telefonema à ofendida com o mesmo objectivo, tendo o comportamento do arguido que se seguiu revelado que estava algo desesperado com essa situação, daí que tenha proferido as ameaças com o propósito de forçar a ofendida a assinar esse contrato. Essas insistências implicaram que tivesse decorrido algum tempo desde que o contrato foi elaborado, pelo que, à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, seja consistente e aceitável que os factos tenham ocorrido cerca de quinze dias antes do dia 3 de fevereiro de 2013.
Veio depor o filho do arguido e da ofendida, E…, de 11 anos, que confirmou que pelo menos por uma vez, e no período temporal a que se refere a acusação, recebeu um recado do pai para ser transmitido à mãe, nos precisos termos que se mostram descritos no facto provado em 4.º. O menor disse ipsis verbis o conteúdo desse recado que confirmou ter transmitido à mãe. Esclareceu que tal ocorreu por uma vez, não se recordando que tenha sido mais do que um, donde termos inscrito no facto provado que tal aconteceu pelo menos uma vez.
Quanto à situação que teve lugar no dia 3 de Fevereiro de 2013, as testemunhas H…, vizinho e testemunha presencial de parte dos factos e I…, vizinha e testemunha presencial de parte dos factos vieram confirmar integralmente a versão da ofendida, designadamente no que tange ao segundo embate e momentos posteriores, uma vez que não assistiram ao primeiro. Fizeram-no de forma desinteressada, séria, objectiva e de modo que nos pareceu muito sincero. Mostravam-se, ainda, algo perplexos com os factos a que assistiram. Esclareceram que após o segundo embate, viram o arguido a subir a rua onde o carro da ofendida se encontrava estacionado e aventaram a possibilidade de o arguido pretender embater ainda uma terceira vez no veículo daquela. Assim, a testemunha H… ainda ajudou a ofendida, com esta ainda no interior do veículo, a empurrar o carro para um local mais seguro. Ambas as testemunhas descreveram os factos desta forma e de forma consentânea com o que havia sido dito pela ofendida. Também estas duas testemunhas confirmaram que a ofendida estava atordoada e ferida, mas não chegou a perder os sentidos, donde a inserção nos factos não provados das alíneas A) e B).
A testemunha F…, irmã da assistente, veio descrever os factos 1.º a 4.º dos factos provados, tendo-o feito de forma sincera e espontânea e cremos que apesar de ter feito uma descrição de forma emotiva, manteve a objectividade e, principalmente, a sinceridade, pois tudo o que não sabia relativamente ao que aconteceu com a irmã, disse claramente que não sabia, sem efabular as circunstâncias em que tudo aconteceu. Designadamente, quanto aos factos decorrentes do pedido de indemnização civil, no âmbito do qual confirmou uns factos, mas relativamente ao que não tinha conhecimento, respondeu que não sabia. Cremos que o seu depoimento foi sincero e credível e, também, compatível com o afirmaram as demais testemunhas da acusação e com o que asseverou a assistente.
Do mesmo modo, se apelarmos às regras da experiência comum, os depoimentos acima identificados demonstraram uma realidade compatível com o normal acontecer e com as vivências naturais das pessoas.
Assim sendo, cremos ter ficado indelevelmente provados os factos constantes da acusação, com excepção dos que acima especificamente identificamos.
Como testemunha do pedido de indemnização civil, veio depor J…, colega de trabalho da ofendida, que confirmou as consequências e os danos que advieram para a ofendida dos factos cometidos pelo arguido, o que fez de forma serena, sincera e credível. O seu depoimento revelou-se consistente com o que foi dito pela ofendida e pela irmã desta, F…. Foi, ainda, plenamente compatível com o teor do relatório médico-legal de fls. 20 a 22. Este depoimento foi conjugado com as regras da experiência comum que ditam que as lesões sofridas pela ofendida são susceptíveis pela sua natureza de causar dores e os incómodos invocados.
Do mesmo modo, os factos descritos quer na acusação, quer no pedido de indemnização civil, tiveram assento no teor dos documentos seguintes: Participação de acidente de fls. 8 a 11; Prints de fls. 47 e 48; Orçamento de fls. 53 (valor orçado para a reparação do veículo da ofendida e atesta o valor mínimo da reparação); Registo fotográfico, de fls. 54 a 60 (fotos do veículo da ofendida), e 95 (fotos do Jeep, antes e depois do embate); por fim, os registos relativos ao estado civil e a paternidade, no Assento de casamento do arguido de fls. 80 e 81, com averbamento do divórcio, decretado por sentença de 22/10/2013 e Assento de nascimento do filho menor de ambos, E…, de fls. 85 e 86, com averbamento da regulação do das responsabilidades parentais exercidas por ambos os progenitores.
Como testemunhas de defesa vieram depor K…, empregada de escritório na empresa que pertence ao arguido e aos irmãos; L…, irmão do arguido e sócio-gerente da empresa “G…, Lda.” e M…, pai do arguido, que atestaram essencialmente as circunstâncias relativas ao contrato que o arguido pretendia que fosse assinado. As testemunhas foram credíveis, porém, o seu depoimento não afasta o cometimento pelo arguido dos factos de que vinha acusado. Por outro lado, não justifica, nem faz compreender a sua ocorrência. Os factos descritos por estas testemunhas não vieram infirmar a acusação, nem abalar a sua credibilidade, sendo com ela cronologicamente e histórica e naturalisticamente consistente.
As condições económicas do arguido resultaram das suas próprias declarações que, nesta parte, pareceram credíveis e do relatório social de fls. 188 a 190.
Os antecedentes criminais resultam da análise do teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 173.
Os factos não provados resultaram da circunstância de sobre os mesmos não ter sido produzida melhor prova, designadamente o facto não provado em C).»
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3. Por seu turno, da fundamentação jurídica da decisão recorrida, com interesse para o caso, importa destacar o seguinte:
«D) Enquadramento Jurídico-Penal.
Do crime de dano com violência.
Cumpre agora proceder ao enquadramento jurídico-penal da factualidade descrita.
O arguido vem acusado da prática de um crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
Dispõe o n.º 1 do referido art.º 214.º, n.º 1, al. a) que:
“1. Se os factos descritos nos artigos 212.º e 213.º forem pratica dois com violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, o agente é punido:
a)No caso do art.º 212.º, com pena de prisão de 1 a 8 a 8 anos; (…)”.
O bem jurídico protegido com a presente incriminação é complexo: o património da pessoa, acompanhado de um bem pessoal, consubstanciado na integridade física de uma pessoa.
Este tipo de ilícito representa, pois, um crime material e de dano.
Suscita-se neste caso a questão controvertida de saber se o veículo danificado que, à data dos factos, era exclusivamente usado pela assistente, na altura ainda casada com o arguido, pode ser considerado ou não uma “coisa alheia” em relação ao arguido.
Alheio, será todo o bem de que o agente não lhe pertença, ou seja, de que não é titular exclusivo do respectivo direito de propriedade.
De acordo com o disposto no art. 1305.º, n.º 1 do Código Civil, só “O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposições das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
No sentido que nós propugnamos, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 27/06/2007, processo 0712547, em que foi Relator Joaquim Gomes que escreve neste sentido: o veículo era “um bem comum do casal, que não se confunde com o património pessoal de cada um dos cônjuges, estando sujeito, de resto, à administração conjunta do casal, sendo integrador daquelas situações de “indisponibilidade relativa”, ou seja, por parte de apenas um deles – cfr. art. 1678.º, n.º 2, 1687.º, ambos do Código Civil. (…) Assim e conforme jurisprudência corrente, de que é exemplo o Ac. da R. C. de 2005/Nov./30 [CJ V/47], “A danificação, dolosa, de bens pertencentes ao património comum do casal por um cônjuge, consubstancia um crime de dano, tendo em conta que é alheia ao património pessoal do agente a coisa objecto do comportamento típico” – neste sentido já se tinha pronunciado o Ac. R. P. de 2001/Jun./20[9]; em sentido distinto o Ac. R. L. de 1991/Nov./06 [CJ V/147].”
No nosso caso, a assistente tinha a posse e o domínio sobre o objecto ainda não partilhado formalmente, porém, provou-se que o veículo já tinha sido materialmente objecto de partilha. A assistente fazia uso exclusivo do carro, tal como o faz um real proprietário, ao passo que oarguido fazia uso exclusivo do Jeep que à data conduzia.
Pode dizer-se que estando ambos casados sob o regime de comunhão de adquiridos o património pessoal não se confunde como “bolo comum” e, nessa medida, o bem não fazia parte do património pessoal do próprio, pelo que, aceitamos, neste caso, o carácter alheio da coisa.
Assim, com a sua actuação o arguido preencheu todos os elementos objectivos típicos do crime de ofensa à integridade física simples.
Os factos considerados provados permitem-nos concluir que o arguido quis ofender o corpo e a saúde do ofendido, pondo em causa o bem estar físico.
Fê-lo de forma livre e consciente sabendo que as agressões que levava a cabo eram susceptíveis de estragar, danificar, tornar não utilizável a coisa alheia e, ainda, quis com a sua actuação ofender o corpo e a saúde da pessoa da ofendida. Mais sabia que essa sua conduta era censurável e punível por lei.
Assim, estão provados factos que configuram o preenchimento do elemento subjectivo do tipo, na modalidade de dolo directo (art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal).
Assim, inexistem causas excludentes da ilicitude ou da culpa, pelo que se conclui que o arguido B… praticou um crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.
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Do crime de coacção na forma tentada:
Dispõe o artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
Este artigo visa proteger, prima facie, a liberdade de decisão e de acção. Dentro deste espírito visa, em segunda mão, proteger a tranquilidade individual de cada pessoa. Ou seja, existe uma conexão íntima entre a liberdade de decisão e a tranquilidade individual.
O tipo de crime em causa é um crime de resultado e exige que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido coagida a praticar, a omitir ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade – cfr. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra editora, 1999, pág. 358.
Os elementos objectivos do tipo de crime em causa, previsto no n.º 1 do art.º 154.º do C.P., são:
- O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa;
- A conduta coagida (acção, omissão, tolerância) pode ser qualquer uma, com ou sem relevância jurídica ou sequer social;
- O meio de coacção, poderá ser a violência ou um mal importante (ameaça), a si, a terceiro ou a uma coisa.
A principal distinção entre os conceitos de violência e de ameaça reside na actualidade ou no carácter futuro do mal.
A consumação do crime verifica-se com o início da execução da conduta coagida, isto é, quando se destina à prática de uma acção, quando o coagido inicia essa acção; quando a conduta for a omissão ou a tolerância, quando o coagido é impedido de agir ou de reagir.
No caso em apreço, o arguido ameaçou a ofendida, uma vez através da irmã e outra através do filho de ambos, dizendo-lhe, respectivamente, o seguinte: “diz à tua irmã para ter muito cuidado na rua, a atravessar a estrada, pode-lhe acontecer alguma coisa de mal” - querendo com tal expressão dizer que quando pudesse iria agredi-la fisicamente – e, através do filho, que “ela que tenha muito cuidado a atravessar a rua, que tenha muito cuidado a sair do metro, ela que ande com os olhos bem abertos, ela que não me pique” -, querendo com tal expressão dizer que quando pudesse iria agredi-la fisicamente.
Acontece, porém, que a ofendida, apesar da ameaça, não assinou o contrato, circunstância que impediu o arguido de concretizar até ao fim os seus intentos.
Tais factos permitem concluir que o arguido tentou forçar a ofendida a agir, mas não conseguiu, por esta não ter sido temerária, mesmo sob a ameaça.
O crime não se consumou, mas foram praticados actos de execução do mesmo, sendo certo que só não se consumou por razões alheias à vontade do arguido.
Neste caso em concreto, mostram-se também verificados os pressupostos da punibilidade da tentativa, prevista no n.º 2 do citado art.º 154.º do Código Penal.
Não obstante, a ameaça proferida era de molde a provocar na ofendida medo, que era justificado e suficiente para impor a assinatura do contrato em causa.
Mostram-se, pois, preenchidos, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime em apreciação, relativamente aos actos de execução levados a cabo pelo arguido.
O arguido agiu de forma livre e consciente de que cometia tais actos.
Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei
Em sede de culpa, o arguido é imputável e agiu com liberdade de decisão.
Agiu com dolo directo.
Assim sendo, por todo o exposto, e porque não existem causas de exclusão da ilicitude nem da culpa, conclui-se que o arguido B… praticou, como autor material, um crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 154.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal.
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Escolha e determinação da medida da pena:
O crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, n.º 1, al. a), do Código Penal é cominado com pena de prisão de 1 a 8 anos e o crime de coacção, p. e p. pelo art.º 154.º n.º 1, do Código Penal é punido com pena de prisão de até 3 anos ou com pena de multa.
Acontece que o arguido foi condenado pela prática do crime de coacção na forma tentada, o que implica uma atenuação especial da respectiva moldura penal, nos termos conjugados nos art.ºs 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, do Código Penal. Dispõe este último artigo que o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço e o limite mínimo é reduzido ao mínimo legal estabelecido no art.º 41.º, n.º 1, do Código Penal, que é um mês
Operando desse modo tal atenuação, alcançamos, para o crime de coacção uma pena de prisão que deverá situar-se entre 1 mês e 2 anos e a pena de multa entre 10 dias e 240 dias.
Por outro lado, uma vez que o crime de coacção estatui uma alternativa entre pena de prisão e pena de multa, importa em primeiro lugar proceder à escolha entre a pena privativa da liberdade e a pena pecuniária.
Neste contexto, rege o art.º 70.º do Código Penal que estabelece que “o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
Encontramos plasmada neste preceito a preferência do legislador pela pena não privativa da liberdade, reconhecendo-se que quem cumpre uma pena de prisão fica desinserido da sociedade e do meio familiar, sai estigmatizado e não é compensado com uma efectiva socialização.
Actuam, por conseguinte nesta escolha, as necessidades dos fins das penas, que são, segundo dispõe o n.º 1 do art.º 40.º do Código Penal “a protecção de bens jurídicos” (prevenção geral) “e a reintegração do agente na sociedade” (prevenção especial). Actua-se no âmbito da prevenção geral positiva ou de integração quando se reforça na comunidade o sentimento da validade e da segurança face às normas jurídicas violadas, e no da prevenção especial positiva ou de socialização quando a pena é dirigida à ressocialização ou reintegração do agente e perante a qual o julgador efectua um juízo de prognose quanto aos efeitos desta na futura conduta do delinquente.
Verifica-se que no caso em apreço, o arguido não apresenta antecedentes criminais. Porém, constata-se, pela natureza dos factos, relacionados com partilhas e com uma situação de divórcio conflituosa, pela forma violenta como os factos foram cometidos, designadamente, pela circunstância de, por um lado, ter sido usado o filho menor de 11 anos como núncio de uma mensagem com conteúdo ameaçador e, por outro, pelo facto de a ofendida se encontrar naquele local para levar o filho que tinha ido fazer a visita ao pai e aos avós paternos, circunstâncias que conjugadas com a violência dos actos cometidos e, por fim, porque os factos descritos em 4.º dos factos provados constituírem uma concretização de ameaças anteriormente proferidas, evidenciam uma personalidade agressiva e violenta e demandam exigências de prevenção especial com grande expressão.
Deste modo, cremos que apenas uma pena de prisão será suficiente, necessária e adequada para acautelar o cumprimento e a eficácia dos fins visados pelas penas.
Com efeito, as necessidades de prevenção geral são também muito elevadas em face do crescente número de casos no nosso país de violência exercida na sequência de divergências entre casais e na sequência de divórcios.
Posto isto, articulando as finalidades de punição acima identificadas, verifica-se que a pena de multa é insuficiente para fazer sentir ao arguido B… a censurabilidade da sua conduta, e para lhe incutir o valor da auto-responsabilização e, consequentemente, para lhe fazer sentir o significado da punição, pelo que, tudo ponderado, entende-se que é de aplicar ao arguido, relativamente ao crime de coacção na forma tentada, uma pena de prisão.
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Determinação da medida concreta da pena:
A determinação da medida das penas, dentro dos limites supra definidos, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tal como decorre do artigo 71º do Código Penal em conjugação com o supra referido art.º 40.º do mesmo diploma legal.
O quantum de culpa constituirá sempre o limite máximo da pena a aplicar, em nome do princípio segundo o qual, não pode haver pena sem culpa e a medida da culpa determinará a medida da pena - art. 40º, n.º 2 Código Penal.
Mais se atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, designadamente as enunciadas no n.º 2 daquele artigo 71º. Assim sendo, relativamente à conduta do arguido Gabriel Jorge de Sousa Ramos, o tribunal teve em consideração o seguinte:
Contra o arguido impende:
- A intensidade do dolo, na sua modalidade mais grave, que é directo, relativamente a ambos os crimes;
- Quanto à ilicitude, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, considera-se a mesma de grau muito elevado, considerando a conduta global do arguido e a personalidade evidenciada. A conduta assumiu um elevado grau de violência e é veementemente censurável, pelo modo de execução. Por outro lado, as consequências do crime em concreto não revelaram especial gravidade, ainda que em termos psicológicos seja de grande significado;
Na verdade, o arguido pelo nível de inserção sócio profissional que mantém, tinha todas as condições, quer em termos de instrução, quer em termos de vivência, atenta a sua idade, para se abster de cometer actos de tamanha violência.
A favor do arguido impende:
- O facto de estar bem inserido social, profissional e familiarmente;
- O comportamento anterior do arguido é bom em face da ausência de antecedentes criminais;
- A sua condição sócio-económica, relativamente estável, apurada em sede de audiência de julgamento, conforme o retrata o relatório social; e
A prevenção geral exige uma pena afastada dos limites mínimos e a prevenção especial exige uma pena que faça sentir convenientemente ao arguido a censurabilidade da sua conduta.
Assim, tudo visto e ponderado tem-se por adequado, proporcional e suficiente aplicar à arguida B…, as seguintes penas parcelares:
- pelo crime de dano com violência, a pena de 3 (três) anos de prisão;
- pelo crime de coacção na forma tentada, a pena de 6 (seis) meses de prisão.
A moldura de cúmulo situar-se-á entre os 3 e os 3 anos e 6 meses de prisão, tendo em consideração o disposto no art.º 77.º do Código Penal. Esta norma manda atender, para se obter a pena única, à personalidade do agente e aos factos. Os factos são muito graves e demandam a aplicação de uma pena exemplar, mas tendo presente a anterior conduta normativa do agente.
Ponderadas as concretas circunstâncias, entende-se ser adequado, proporcional e necessário aplicar ao arguido B… a pena única de 3 anos e 2 meses.
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Pena de substituição:
O arguido não apresenta antecedentes criminais e compareceu à audiência.
O arguido tem emprego, exercendo actividade de motorista numa empresa familiar, da qual é sócio-gerente e está integrado social e familiarmente.
Coloca-se, pois, perante tais circunstâncias, a possibilidade de a execução da pena de prisão aplicada ao arguido poder ser suspensa.
À partida, o percurso do arguido parece permitir que se efectue um juízo de prognose favorável em face da sua integração na sociedade e na família.
Julgamos, pois, perante tal factualidade, ser adequado suspender a pena de prisão aplicada, concluindo-se que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Em conformidade, ao abrigo do n.º 1 do art.º 50.º do Código Penal determina-se a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 3 (três) anos e 2 (dois) meses.
Impõe-se, no entanto, que a suspensão da execução da pena seja acompanhada de uma injunção, parecendo-nos adequado, necessário e proporcional, neste caso, que a suspensão fique condicionada ao pagamento, no prazo de 1 (um) ano da indemnização a pagar à ofendida C….
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4.- Apreciação do recurso.
4.1.- Nulidade insanável do artigo 119º, n.º1 al. b), do C.P., por falta de acusação particular quanto ao crime de dano com violência.
Sustenta o recorrente, nas suas conclusões FF a JJ que o crime de dano com violência configura uma forma dependente e qualificada das infracções previstas nos art.ºs 212º e 213º; que entre dano com violência e estas últimas medeia uma relação de continuidade quanto aos elementos estruturais da factualidade típica. Mais argumenta que tal, impõe uma remissão, de princípio, para a disciplina daqueles preceitos e que o artigo 212.º e 213º do C.P. remetem para o artigo 207.º n.º 1 alínea a) do mesmo diploma. Assim, tendo resultado provado que o recorrente e a assistente eram à data da ocorrência dos factos que integram o crime de dano, casados, e não tendo a assistente deduzido acusação particular, deve ser declarada a nulidade insanável prevista no art.º 119.º n.º 1 alínea b) do CPP, devendo ser julgada nula a acusação deduzida pelo Ministério Público, bem como a omissão da advertência ao ofendido para se constituir assistente, por violação do disposto no artigo 68.º n.º 2 e 246.º n.º 4 do CPP.
Vejamos.
A presente questão foi suscitada pelo recorrente em audiência de julgamento, e decidida pelo tribunal a quo da seguinte forma:
«Em sede de audiência e discussão e julgamento veio o arguido alegar que à data dos factos arguido e ofendida ainda eram casados e tratando-se o crime de dano um crime de natureza particular, nos termos do art.º 212,º, n.º 3 e 4, do Código Penal, devia a denunciante ter-se constituído assistente atempadamente e ter deduzido acusação particular, conforme requerimento ditado para a acta. Invoca uma nulidade insanável prevista no art.º 119.º do Código de Processo Penal que determinará que o procedimento criminal contra o arguido referente ao crime de dano seja julgado extinto.
O Ministério Público pronunciou-se, conforme consta da acta de julgamento, consignando que o crime de dano com violência é um crime de natureza pública e, por isso, não depende de queixa nem de acusação particular. Conclui pela não verificação da invocada nulidade.
Cumpre apreciar e decidir.
O artigo 214.º do Código Penal, ao contrário do que dispõem os art.ºs 212.º e 213.º, n.º 3 do mesmo diploma legal não remete para o regime estatuído no art.º 207.º do CP. Este último normativo estabelece no n.º 1, al. a), que o crime previsto no art.º 203.º (furto simples) e no art.º 205.º, n.º 1 (abuso de confiança simples), assumem natureza particular, quando o agente do crime for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges.
Os crimes de furto simples e de abuso de confiança simples são crimes de natureza semi-pública, conforme o ditam os art.ºs 203.º, n.º e 205.º, n.º 3, do Código Penal.
Por sua vez, o crime de dano simples, previsto no art.º 212.º é igualmente de natureza semi-pública, conforme estatui o seu n.º 3.
Acontece que, conforme bem aduz o Digno Magistrado do Ministério Público o art.º 213.º, n.º 3, do Código Penal remete expressamente para o art.º 207.º, assim como o faz o art.º 207.º relativamente aos crimes de furto e abuso de confiança, porém, o art.º 214.º não faz essa remissão. Mais se acrescenta que o art.º 204.º, que regula o crime de furto qualificado e o crime de abuso de confiança agravado/qualificado, previsto nos n.ºs 4 e 5 do art.º 205.º, não mereceram a remissão para o art.º 207.º. Com efeito, mesmo admitindo que o legislador efectuou a remissão no caso do crime de dano qualificado (art.º 213.º, n.º 3), não o fez no caso do crime de dano com violência.
Por outro lado, o crime de furto qualificado é um crime público e não contém qualquer remissão para o art.º 207.º.
Ora, analisando e interpretando sistemicamente as normas que vimos invocando, constata-se que o legislador não pretendeu remeter para o art.º 207.º os crimes nas suas formas agravadas e/ou qualificadas ou, quando o quis fazer, fê-lo expressamente.
Relativamente ao crime de dano com violência, o legislador não efectuou essa remissão, sendo certo que, à luz da interpretação sistémica acima considerada, o legislador tê-lo-ia feito à semelhança dos crimes de furto simples, abuso de confiança simples e de dano simples e dano qualificado.
Deste modo, concluímos sem qualquer margem de dúvidas, que o crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, é um crime público e, por isso, não está dependente de queixa, nem de acusação particular.
Em conformidade com o supra exposto, decide-se julgar totalmente improcedente a invocada excepção de nulidade invocada pelo arguido.
(…)»
Coloca-se, portanto, a questão de saber se o Ministério Público tinha ou não legitimidade para deduzir acusação pública pelo referido crime de dano.
Pelo que resulta dos autos o crime de dano imputado ao arguido é o p. e p. pelo artigo 214º, do C.P., e teria sido praticado em 03 de Fevereiro de 2013, em altura em que, apesar de haver separação de facto do casal, aquele ainda era cônjuge da ofendida C… (casaram entre si em 12.10.1997, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença datada de 22.10.2013). A acusação deduzida nos autos é pública.
Decorre do transcrito que a posição do tribunal a quo se resume a entender que a remissão para o artigo 207º, n.º1 al. a) prevista nos artigos 212º, n.º4 e 213º, n.º3, não é operante no caso de crime de dano com violência, previsto no artigo 214º do C.P.
E, afigura-se-nos que a posição sufragada pelo Tribunal a quo é acertada.
Com efeito, em primeiro lugar há que ter em conta o elemento literal, de onde decorre que, ao invés do que ocorre com os crimes p. e p. pelos artigos 212º e 213º do CPP, não há no artigo 214º, do mesmo diploma, qualquer remissão para os artigos 206º e 207, ou 206º e al. a) do artigo 207- que estabelece no seu n.º 1, al. a), que o crime previsto no art.º 203.º (furto simples) e no do n.º1 do art.º 205.º (abuso de confiança simples), depende de acusação particular, quando o agente do crime for cônjuge, ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao 2.º grau da vítima, ou com ela viver em condições análogas às dos cônjuges.
Em segundo lugar, os crimes de furto simples e de abuso de confiança simples são crimes de natureza semipública, como resulta dos números 3 dos artigos 203º e 205º do Código Penal, assim como tem natureza semipública, o crime de dano simples, previsto no art.º 212.º, atento o estatuído no seu nº3 e em relação a estes três crimes verifica-se que o legislador fez uma remessa para a totalidade do art. 207 do CP; já o mesmo não acontece, nem no abuso de confiança qualificado (artigo 205, n.ºs 4 e 5), onde não há qualquer referência ao artigo 207º, nem no dano qualificado (art. 213º do CP), onde há apenas uma remissão específica para a al. a) do art. 207º, e não há qualquer remissão para qualquer parte desse artigo, no caso do artigo 214º do CP, inculcando a ideia de que, no dano, o facto de acrescer ao (comum) bem jurídico protegido, património ou bens conexos (como o significado cultural, artístico e histórico da coisa), os bens jurídicos vida, integridade física e liberdade de acção ou decisão, como acontece no artigo 214º do CP, conferem uma gravidade claramente acrescida à do tipo base e mesmo à do tipo qualificado, conferindo-lhe o legislador natureza pública plena [(veja-se que o crime p. e p. pelo artigo 213º do CP, já tem natureza pública, excepcionado o caso de intercederem, entre o agente e a vítima, as relações de parentesco descriminadas no artigo 207º, n.º1 al. a)] por estarmos em presença de bens jurídicos eminentemente pessoais que contendem com a segurança e tranquilidade dos cidadãos, ou se quisermos com a paz pública, cujo indispensável acautelamento não pode depender do juízo ou opinião dos ofendidos ou seus representantes, e dos consequentes entraves ao livre exercício da acção penal, que sempre estão presentes nos crimes particulares por razões que contendem com as consequências melindrosas que a prossecução penal pode fazer recair sobre as vítimas das infracções – vide Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Curso de Processo Penal 1, Reimpressão, 1981, pág. 124,
Assim, entendemos tal como entendeu o tribunal a quo, que o crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, do Código Penal, é um crime público, mesmo no caso de interceder entre o agente e a vítima, uma das relações de parentesco previstas no artigo 207º, n.º1 al. a) do CP, e, por isso, não está dependente de queixa, nem de acusação particular.
Não se verifica, assim, a excepcionada nulidade insanável.
Improcede a questão.
*
4.2.- Impugnação da matéria de facto provada sob os pontos 1 a 4, 11 a 15, 19, 24 a 29 por erro de julgamento e pro violação do princípio in dubio pro reo.
Vejamos, então, o reexame da matéria de facto.
Atento o disposto no artigo 428.º, n.º 1, do Código Processo Penal, as Relações conhecem de facto e de direito, acrescentando o artigo 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Assim e de acordo com o artigo 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”.
Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.” Ou de acordo com jurisprudência fixada, basta para efeitos do disposto no artigo 412º, n.º3 al. b) do CPP «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas» na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações.
Por sua vez, decorre do artigo 410.º, n.º 2, que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum:” algum dos vícios adiante assinalados relativamente à insuficiência da decisão [a)], à contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão [b)] ou erro notória na apreciação da prova [c)].
Para se proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados, a prova que impõe decisão diversa, identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova. Tudo sem deixar de ter presente que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (ac. STJ de 22.06.2006 Rec. n.º 1426/06).
Por outro lado, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas somente a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (ac. do STJ de 10.01.2007). Daí que o reexame esteja sujeito ao ónus de impugnação, sendo através da impugnação que se fixam os pontos de controvérsia e se possibilita o seu conhecimento pelo Tribunal da Relação (ac. STJ de 08.11.2006).
Como é sabido nos termos do artigo 127.º, do CPP, o tribunal aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência, sem prejuízo de diferentes disposições da lei. Em conformidade, o princípio da livre apreciação da prova não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, antes está vinculado às regras da experiência e da lógica, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e “in dubio pro reo”. Assim a decisão da matéria de facto só é susceptível de ser alterada, em sede de recurso, quando o juízo (vertido na motivação) correspondente ao julgamento dessa matéria corresponda, de um modo objectivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
Procederemos, então ao conhecimento das questões em análise partindo essencialmente das argumentações que a seguir se indicam e desde logo se apreciam.
O recorrente sustenta no essencial, em relação ao artigo 1º da matéria de facto provada que o Tribunal considerou provada a data da separação do arguido e da ofendida – janeiro de 2011 – e em processo de divórcio desde junho de 2012, mas sem qualquer prova documental ou testemunhal, sustentando que mesmo a ofendida não logrou delimitar no tempo tal separação de facto nem a data em que se iniciou o processo de divórcio.
Mais sustenta que não resultou provado que a data de entrega de um suposto papel com o contacto do advogado do arguido foi quinze dias antes do dia 03 de fevereiro de 2013, nem que haja qualquer relação entre os factos ocorridos no dia 03 de Fevereiro de 2013 e o pedido efectuado pelo arguido à irmã da ofendida para que falasse com o advogado pelo que não poderá ser dado tal facto nem os que com ele se relacionam, tudo com fundamento nos depoimentos da irmã da ofendida e das testemunhas de defesa, mormente da testemunha K….
Argumenta ainda que de igual modo não resulta provado que as palavras “Diz à tua irmã para ter muito cuidado na rua, a atravessar a estrada, pode-lhe acontecer alguma coisa de mal”, tivessem sido proferidas no sentido que ira agredi-la, ou quando é que as mesmas foram proferidas e fundamenta a sua pretensão no depoimento do filho de ambos, arguido e ofendida e no depoimento da irmã da ofendida.
Relativamente aos factos ocorridos no dia 03 de Fevereiro de 2013, refere que não foi visionado por nenhuma testemunha como teve início a situação, pois diz que a situação do casal era de conflito, o que decorre até das expressões imputadas ao arguido: “(…) ela que não me pique”.
E o recorrente continua assim, com argumentações genéricas, entremeando o seu discurso com escassíssimos extractos dos depoimentos usados, não poucas vezes, infiéis ao que foi dito, e especulando quer sobre discussões quanto à propriedade dos veículos, simultâneas com a ocorrência dos factos a 03 de Fevereiro de 2013; pretendendo uma visão espartilhada e seccionada da prova sem apelo às regras da experiência comum, como é o caso, da prova dos danos morais decorrentes dos factos ocorridos a 03 de Fevereiro de 2013.
Quanto à matéria contida no artigo 1º dos factos provados, compulsados os documentos juntos aos autos, nomeadamente a certidão de fls. 80, 81 e 85, 86 e os depoimentos ouvidos em audiência, assiste razão ao recorrente neste ponto específico no que concerne ao momento da separação do arguido e da ofendida (o que aliás decorre também da motivação, nomeadamente a fls. 216 onde consta que a ofendida está separada de facto do arguido “desde pelo menos Maio de 2012”, sendo que só isso decorre, com certeza, do depoimento da ofendida. Sendo que da certidão supra referida apenas consta a data do divórcio, com sentença de 22 de Outubro de 2013, e trânsito a 25.10.2013 e a data do casamento, 12 de Outubro de 1997, casamento católico, sem convenção antenupcial. O processo de divórcio, no entanto já corria em data anterior a Dezembro de 2012, visto que para o processo da segunda PME, junto da N…, que não necessitou da assinatura da ofendida, já foi entregue documentação referente ao pedido de divórcio, segundo o depoimento da testemunha K….
Assim, é manifesto que atendendo quer aos documentos quer aos depoimentos prestados impõe-se uma alteração deste artigo da matéria de facto, nos seguintes termos:
Artigo 1º: O arguido e C… estão separados de facto desde pelo menos Maio de 2012, e em processo de divórcio desde data não concretamente apurada de 2012, sendo que o divórcio que dissolveu o seu casamento foi decretado por sentença transitada em julgado em 25 de Outubro de 2013, e têm um filho menor, E…, nascido no dia 26 de Agosto de 2002.
Quanto ao demais.
Quanto à data da entrega do “suposto papel” com o contacto do advogado do arguido, para que a ofendida estabelecesse contacto com ele, resulta tal entrega inequivocamente provada como sendo uma ou duas semanas antes do dia 03 de Fevereiro de 2013, com base quer no depoimento da ofendida quer no depoimento da sua irmã F…, sendo que, quanto ao papel, a ofendida falou num “post-it” amarelo e a sua irmã num papel, só a advogada da defesa é que falou em folha branca, a testemunha falou em papel normal, e depois referiu “um quadrado”, o que se coaduna com a noção de “post-it”.
Quanto à objecção de que nenhuma testemunha visionou como teve início a situação no dia 03 de Fevereiro de 2013, tal é perfeitamente despiciendo, decorre do depoimento da ofendida e do depoimento da irmã e do filho do casal desavindo, que a ofendida foi ao local buscar o filho que se encontrava em casa dos avós paternos onde também estava o arguido, que a ofendida estava dentro do carro, após ser voluntariamente abalroada por duas vezes, pelo arguido, também decorre do seu depoimento e do depoimento da testemunha I… e da testemunha H…, pelo que a versão dos factos e do seu início decorre das suas declarações, não contrariadas por qualquer prova, antes confirmada pelas declarações das referidas testemunhas, aliás, de forma muito pormenorizada e conferindo grande veracidade às declarações da ofendida. Por outro lado, depois do que ouvimos na gravação da prova produzida em audiência vir dizer que “a situação do casal era de conflito, o que decorre até das expressões imputadas ao arguido: “(…) ela que não me pique”, é pretender transferir para a ofendida o odioso da situação quando a atitude do arguido no dia 03 de Fevereiro atingiu uma gravidade que nem sequer está bem espelhada nos factos provados, já que a ofendida se aprestava para sair do Citroen …, já com as pernas de fora e a porta do seu lado entreaberta, quando se apercebe (para seu bem) que o arguido vai de novo investir com o jeep contra o carro que conduzia, mas agora, contra a porta do lado da condutora e só a sua rapidez de reacção impede resultado mais desastroso para a sua pessoa.
Quanto ao argumento de que não resultou provado que as palavras “Diz à tua irmã para ter muito cuidado na rua, a atravessar a estrada, pode-lhe acontecer alguma coisa de mal”, tivessem sido proferidas no sentido que iria agredi-la ou a data em que as mesmas foram proferidas, está o recorrente completamente desprovido de razão. Sobre a data em que foram proferidas já anteriormente explicamos que assim não é; quanto à intenção com que foram proferias, resulta ela clara quer do depoimento da ofendida, quer mesmo da preocupação do arguido em mandar o recado pelo seu filho, quando se encontravam desavindos e já só se falavam por intermédio de terceiras pessoas (é o que nos dizem as regras da experiência), quer mesmo dos posteriores acontecimentos, que fazem luz sobre a personalidade do arguido e das suas “maquinações”. Aliás veja-se que a irmã da ofendida, F…, posteriormente a 03 de Fevereiro de 2013, falou com o arguido e perguntou-lhe se queria matar a irmã? E ele respondeu-lhe “a cadeia foi feita para os homens não foi feita para os cães.”
Quanto aos danos sofridos pelo veículo e aos danos sofridos pela ofendida quer enquanto sofrimentos físicos quer morais, resultam os mesmos à saciedade das declarações da ofendida, e dos depoimentos das testemunhas, I…, H… e irmã da ofendida F…, e da amiga da arguida de nome J…, mormente no seu confronto com as regras da experiência, dado que os danos sofridos por um e outra são consequências perfeitamente normais do acontecido. A ofendida só foi ao local dos factos depois de vir do hospital por assim lhe ter sido pedido pelo serviço de reboque do seguro que precisava dos dados da ofendida e da sua assinatura pelo que, ao contrário do pretende o recorrente, “não podia ter sido outra pessoa a ir buscar o veículo”.
Impõe-se referir, finalmente, que o sócio gerente da firma G…, Lda. L…, disse em audiência que a PME, que conseguiram, aquela que fizeram em finais do ano de 2012 ou princípios do ano de 2013 (pois, a que pretenderam fazer em Setembro precisava da assinatura dos cônjuges e a ofendida recursou-se a assinar), foi feita com “um processo de pré-divórcio”, pelo que não é líquido que a questiúncula relativa às PME’s, que surgiu entre o arguido e ofendida por causa da recusa de assinatura da PME pela ofendida, estivesse completamente ultrapassada em Dezembro de 2012 e muito menos em Setembro de 2012.
Finalmente, quanto à questão da “partilha” verbal ou consensual entre os cônjuges sobre os automóveis de que o casal era proprietário e que o arguido contesta no seu recurso, basta lembrar que no dia 03.02.2013, quando o casal se encontrava definitivamente separado há cerca de oito meses, a ofendida conduzia e ocupava o veículo Citroen … e o arguido conduzia o Jeep …, e ainda que o pai do arguido depôs em audiência no sentido de ultimamente (referindo-se a datas anteriores aos acontecimentos de 03.02.2013) e antes do seguro do jeep caducar, era ele (testemunha) quem mais conduzia o jeep, tudo não obstante os referidos automóveis terem sido comprados na vigência do casamento, respectivamente em 01.02.2001 e 04.05.2009, estarem registados no nome da ofendida, sendo que o casamento de arguida e ofendida vigorou entre 12.10.1997 e 25.10.2013 e foi celebrado sem convenção antenupcial. Ora daqui decorre, segundo as regras da experiência comum, que os cônjuges à data da separação de alguma forma acordaram atribuir a cada cônjuge o carro que habitualmente usavam no dia a dia, como alias depôs a ofendida em audiência.
Pelo exposto, nenhuma prova foi apresentada pelo arguido/recorrente que imponha decisão diversa da tomada pelo tribunal a quo quanto a este grupo de factos havendo apenas que alterar o artigo 1º dos factos provados, nos termos que deixamos redigidos.
Sustenta o recorrente nas suas conclusões QQ a TT que, perante as divergências de depoimento da assistente das declarações da testemunha F…, e perante as declarações das testemunhas de defesa e da própria assistente sempre se colocam dúvidas quanto à responsabilidade criminal do agente, relativamente ao crime de coação, pelo que deverá o tribunal decidir no sentido mais favorável àquele, aplicando o princípio in dubio pro reo, que deve ser aplicado sem qualquer restrição. Mais argumenta que ao tribunal a quo deviam ter-se levantado dúvidas quanto à prática de tal crime, o que daria lugar a uma absolvição por falta de prova inequívoca. Ao não aplicar tal princípio violou o tribunal a quo o disposto no art.º 32, n.º 2 da C.R.P.
Vejamos.
O recorrente defende que foi violado o princípio in dubio pro reo, decorrência do princípio da presunção da inocência.
Quanto a este último princípio dir-se-á que a presunção de inocência se não confunde com convicção de inocência - cfr. Souto Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, in Revista do MP, Ano 11, n.º 42, págs. 31 e segs.- e influi intra processualmente, no essencial, com a distribuição do ónus da prova. Também se sabe que, no nosso processo penal a incidência deste princípio tem que ser temperada com o princípio de investigação oficiosa, a cargo do juiz. Nada nos permite fazer qualquer reparo, nesta sede, ao procedimento do tribunal recorrido.
A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados. Como não é manifestamente o caso, o recorrente só pode pretender que, apesar de o coletivo da primeira instância não ter tido dúvidas sobre o que considerou provado, deveria tê-las tido.
A violação daquele princípio adviria então, não do facto de, na dúvida, se ter decidido contra o arguido, mas apenas do facto de, sem ter tido dúvidas, o coletivo ter decidido contra o arguido. Dúvidas que, como se disse, se as não teve, devia tê-las tido.
Tal raciocínio está viciado, pois o “in dubio” é condição prévia do “pro reo”.
Como refere ROXIN, "o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida" – in "Derecho Procesal Penal", Editores del Puerto, Buenos Aires, pag. 111.
Na verdade, o princípio in dubio pro reo complementa o da presunção da inocência mas não é uma tradução deste. Emanação do princípio da presunção de inocência é, entre o mais, o estabelecimento de regras de produção de prova e portanto de formação da convicção do julgador. Diz respeito ao "intervalo" da produção de prova, enquanto o in dubio tem o seu campo de ação depois de concluída a produção de prova. Dispõe, na verdade, o princípio do in dubio, que "a dúvida insanável sobre factos deve favorecer o arguido. (...) O princípio do in dubio pro reo não é, pois, um princípio de direito probatório, mas antes uma regra de decisão na falta de uma convicção para além da dúvida razoável sobre os factos" – cf. P.P. Albuquerque, in Comentário do CPP, pág. 61.
Visto que da motivação extravasada na sentença não decorre que ao tribunal tenha surgido qualquer dúvida sobre a prova dos factos em causa, tanto basta, para que tenhamos por não violado o referido princípio.
Improcede, portanto, a questão excepcionada a alteração da redacção do artigo 1º dos factos provados.
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4.3.- Qualificação jurídica dos factos, relativos ao crime de dano e ao crime de coacção.
Sustenta o recorrente que o tribunal ao interpretar a norma contida no artigo 214.º (ex vi 212.º) do Código Penal, no sentido de considerar alheia a destruição por um dos cônjuges de uma coisa pertencente ao casal, errou, pois, tal preceito legal deve ser interpretado no sentido de que não é alheia, para os efeitos de punição criminal, a coisa que também pertence ao cônjuge.
Vejamos.
O crime de dano:
Dispõe o artigo 214º do CP. que “se os factos descritos nos artigos 212º e 213º forem praticados com violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, o agente é punido: a) no caso do artigo 212º, com pena de prisão de um a oito anos;
Em comentário ao preceito, escreve o Prof. Costa Andrade – in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 254 a 259 - que "o crime de Dano com violência configura uma forma dependente e qualificada das infracções previstas nos arts. 212.º e 213.º Entre Dano com violência e estas últimas medeia uma relação de continuidade quanto aos elementos estruturais da factualidade típica. O que impõe uma remissão, de princípio, para a disciplina daqueles preceitos e para os respectivos comentários. Trata-se, por outro lado, de uma qualificação ditada pela especificidade da conduta, sobreponível, já o vimos, à acção típica do Roubo. Por vias disso, cabe também remeter para o regime e o comentário ao crime de Roubo para acertar o sentido, o alcance e as implicações práticas da expressão "violência contra uma pessoa, ou ameaça com perigo iminente para a vida ou a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir."
Por seu turno, na mesma Obra, Conceição Ferreira da Cunha, comentando o artigo 210.º do CP, que tipifica o crime de Roubo, escreve que "não basta que se tenha conseguido subtrair uma coisa móvel alheia ou se tenha conseguido a sua entrega; não basta ainda que, no intuito de se conseguir tal resultado último (o fim do roubo, é, no fundo, o furto (...), se tenha empregue violência, ameaça ou se tenha colocado outrem na impossibilidade de resistir; é necessário que se possa afirmar um nexo de imputação entre o conseguir a coisa móvel alheia e os meios utilizados e, assim, que esses meios tenham provocado um efectivo constrangimento à entrega do bem ou um efectivo constrangimento à tolerância da sua subtracção".
A questão controversa no caso em apreço, passa por saber se o veículo Citroen usado pela ofendida no dia dos factos e propriedade comum do casal do arguido e da assistente, na altura casados entre si, pode ser considerado ou não uma “coisa alheia” em relação ao arguido.
“Coisa” será todo o bem corpóreo materialmente apreensível e susceptível à acção destruidora ou modificativa do homem – vide “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II (1999), p. 208;
Por sua vez, a qualificação da coisa como “alheia”, exige que o bem em causa não seja da propriedade exclusiva do agente, desde que não se trate de “res nullius”.
Assim, em casos de “coisa comum”, correspondente a situações de compropriedade ou, de um modo geral, de propriedade de mão comum, a mesma deve ser tida como “alheia” em relação a cada um dos respectivos titulares dessa propriedade conjunta ou de comunhão – neste sentido o citado “Comentário Conimbricense”, pág. 212; Ac. R.C. de 18.01.1989 [BMJ 383/316] e acs. da R.P. 03.10.2001 e de 27.06.2007 todos divulgados em www.dgsi.pt.
Dos factos provados resulta que no dia 3 de Fevereiro de 2013, pelas 15:00 horas, a C… conduzia o seu veículo da marca Citroen, com a matrícula ..-..-QU, foi surpreendida pelo arguido que, tendo aguardado pela sua chegada ao local e conduzindo o jipe com a matrícula ..-..-BQ, irrompeu na sua direcção, imprimindo ao veículo uma velocidade acelerada e embateu com a parte da frente do seu veículo na parte frontal do veículo de C…, com ela no interior, sentada no lugar do condutor e com o cinto de segurança colocado.
À data dos factos, o arguido e a ofendida ainda não tinham partilhado os bens comuns do casal… À data dos factos e pelo menos desde a separação de ambos, o arguido passou a fazer uso exclusivo e frequente do jipe com a matrícula ..-..-BQ e a ofendida passou a fazer uso diário, exclusivo e frequente do veículo de marca Citroen, com a matrícula ..-..-UQ.
Dos referidos factos, em conjugação com o facto de à data de 03 de Fevereiro de 2013, arguido e ofendida estarem casados entre si, no regime da comunhão de adquiridos (vide sentença, subsunção jurídica, o que se coaduna com a certidão de assento de casamento a fls. 80 e 81) e sendo tal bem móvel património comum, como se infere dos factos provados (vide fls. 47, veículo registado em nome da ofendida desde 01.02.2001, dentro da vigência do casamento), não se pode considerar o mesmo como bem próprio ou exclusivo do arguido.
Trata-se, portanto de um bem comum do casal, que não se confunde com o património pessoal de cada um dos cônjuges, estando sujeito, portanto, à administração conjunta do casal, sendo integrador daquelas situações de “indisponibilidade relativa”, ou seja, à disposição do bem apenas por um dos cônjuges – cfr. art. 1678.º, n.º 2, 1687.º, ambos do Código Civil.
Assim e conforme jurisprudência corrente, de que é exemplo o Ac. da R. C. de 2005/Nov./30 [CJ V/47], “A danificação, dolosa, de bens pertencentes ao património comum do casal por um cônjuge, consubstancia um crime de dano, tendo em conta que é alheia ao património pessoal do agente a coisa objecto do comportamento típico” – neste sentido já se tinha pronunciado o Ac. R.P. de 2001/Jun./20, embora em sentido distinto o Ac. R. L. de 1991/Nov./06 [CJ V/147].
Assim sendo o Citroen danificado, património comum do casal, deve considerar-se coisa alheia, relativamente a qualquer dos cônjuges, para efeitos do cometimento do crime de dano.
Por outro lado, para efeitos da verificação do crime de dano, tal como no crime de roubo, verifica-se existir um nexo de imputação entre a violência contra as pessoas e o dano, de tal modo que pode dizer-se que a violência foi causal do dano, que, a violência é instrumental do dano causado.
Com efeito, no caso, a violência contra a ofendida iniciou-se com o arremeter do carro que o arguido conduzia contra o carro em cujo interior se encontrava a ofendida, por duas vezes, e é em consequência e, portanto, como causa do dano, que a ofendida sofre as lesões físicas provadas. As referidas e provadas ofensas à integridade física não aconteceram por acaso estranho à actuação do dano.
Em conformidade, mostram-se verificados os elementos constitutivos do crime de dano com violência, em questão.
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Quanto ao crime de coação na forma tentada.
Sustenta também, o recorrente, que vista a factualidade apurada, não houve qualquer intranquilidade ou temor por parte da assistente, a entrega do hipotético papel e as hipotéticas palavras proferidas pelo recorrente em nada alteraram o dia-a-dia daquela, que continuou a sua rotina diária, não se sentindo ameaçada com tais palavras, por não as tomar por verdadeiras ou como uma ameaça conforme resulta do seu depoimento. Conclui dizendo que não estão verificados os elementos constitutivos do crime de coação sob a forma tentada.
Vejamos o direito e os factos.
Artigo 154.º (coacção)
1 - Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
São requisitos objectivos do crime de coacção:
1.-Que o agente constranja por (meios de coacção) meio de violência ou de ameaça com mal importante.
2.- Outra pessoa a adoptar um determinado comportamento:
i.-a prática de uma acção;
ii.- a omissão de uma acção;
iii.- suportar uma actividade;
O sujeito passivo do crime de coacção pode ser qualquer pessoa.
A ameaça é caracterizada como um mal futuro cuja ocorrência depende da vontade do agente, aos olhos do homem comum, mas tendo em conta as características individuais do ameaçado.
No caso em apreço o arguido ameaçou a ofendida, uma vez através da irmã e outra através do filho de ambos, dizendo-lhe respectivamente: “diz á tua irmã para ter muito cuidado na rua, a atravessar a estrada, pode-lhe acontecer alguma coisa de mal”, “ela que tenha cuidado a atravessar a rua, que tenha muito cuidado a sair do metro, ela que ande com os olhos bem abertos, ela que não me pique”.
Como provado o arguido agiu com o propósito de constranger C… a assinar um contrato, contra a vontade desta, fazendo-a temer pela sua integridade física, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
Tais ameaças têm por objecto a integridade física da ofendida e poderão ser consideradas uma ameaça com mal importante?
«…Só deverá considerar-se mal importante aquele mal que é nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a fazer “dobrar” a vontade do ameaçado. Há portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado. Daqui resultam duas equações: mal importante é igual a mal adequado a constranger o ameaçado, e mal adequado é igual a mal que, tendo em conta as circunstâncias concretas (idade, pobreza, dependência económica do coagido face ao ameaçante, sensibilidade individual e social do ameaçado, etc) do ameaçado, é visto pelo homem comum como susceptível de coagir o ameaçado. Em conclusão, o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo-individual…» vide Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Pág. 573, 2ª edição.
Ora apelando ao juízo do homem comum e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, em que a ameaça é feita perante terceiros, com incumbência de ser transmitida à ofendida, por duas vezes, uma delas, o filho do arguido e da ofendida, e outra a irmã, com teores muito parecidos, afigura-se-nos claro que a ameaça proferida é uma ameaça com mal importante e adequada a constranger a ofendida a fazer o que o arguido pretendia.
Sendo a coacção um ”crime de resultado”, para a sua consumação exige-se, consequentemente, que a pessoa objecto da acção de coacção tenha, efectivamente, sido constrangida a praticar a acção, omitir a acção ou a tolerar a acção.
Para haver consumação, não basta a adequação da acção (isto é, a adequação do meio utilizado: violência ou ameaça com mal importante) e a adopção, por parte do destinatário da coacção, do comportamento conforme à imposição do coactor, mas é ainda necessário que entre este comportamento e aquela acção de coacção haja uma relação de efectiva causalidade.
A consumação do crime verifica-se com o início da execução da conduta coagida; isto é, com o início da adopção do comportamento pretendido pelo agente.
Como resulta dos factos provados a ofendida apesar da ameaça não assinou o contrato relativo à PME.
Debruçando-nos sobre a situação sub judice, afigura-se-nos claro e inequívoco:
- que o arguido pretendia constranger a ofendida sua mulher a assinar o contrato relativo à PME, portanto a uma acção.
- E concretizou esse seu propósito enviando os recados já mencionados pela irmã da ofendida e filho de ambos; essas palavras, proferidas para a irmã da ofendida e filho de ambos, consubstanciam objectivamente uma ameaça com mal importante, já que nas circunstâncias que ficaram provadas as expressões proferidas pelo arguido sugerem abertamente, no critério do homem comum, que se a ofendida não assinasse o contrato, devia temer pela sua integridade física, o que se consubstancia numa ameaça com a prática de um crime, idónea a provocar o constrangimento da visada.
Concluímos, portanto, que o arguido praticou com a sua actuação, actos de execução do crime de coacção, na forma tentada, porque não obstante o arguido ter feito o que lhe competida para constranger a ofendida, esta não se deixou determinar pelo constrangimento provocado, e não assinou o contrato da PME.
Improcede, portanto a questão.
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4 4.- Medida das penas parcelares, que tem por excessivas. E pena única pugnando pela aplicação de uma pena subsidiária não privativa da liberdade.
Sustenta o recorrente, nas suas conclusões UU) a CC) que as penas parcelares impostas são excessivas, bem como a privação da liberdade, pelo que deve a pena privativa da liberdade ser revogada, e aplicada pena subsidiária não privativa da liberdade, entendendo particularmente desadequada a aplicação de pena de prisão no caso do crime de coacção.
Impõe-se referir que interpretar as conclusões de recurso nesta sede não é uma tarefa linear, pelo que apelamos ao facto de na motivação tal capítulo ter sido encimado sob o título “B) DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA E CÚMULO JURÍDICO”.
Posto isto, vejamos.
Ao crime de dano - artigo 214º, n.º1 do Código Penal - cabe a pena abstracta de prisão de um a oito anos.
E ao crime de coacção – artigo 154º, n.ºs 1 e 2 e artigos 22º, 23º, e 73º do CP – cabe a pena abstracta-concreta de prisão de 1 mês a 2 anos ou pena de multa entre 10 e 240 dias [fazendo–se incidir sobre a pena abstracta de prisão até 3 anos ou multa (de 10 a 360 dias), a redução de um terço no limite máximo e reduzindo o limite mínimo ao limite legal].
O tribunal a quo fundamentou as operações de escolha e medida da pena do seguinte modo:
«Escolha e determinação da medida da pena:
O crime de dano com violência, p. e p. pelo art.º 214.º, n.º 1, al. a), do Código Penal é cominado com pena de prisão de 1 a 8 anos e o crime de coacção, p. e p. pelo art.º 154.º n.º 1, do Código Penal é punido com pena de prisão de até 3 anos ou com pena de multa.
Acontece que o arguido foi condenado pela prática do crime de coacção na forma tentada, o que implica uma atenuação especial da respectiva moldura penal, nos termos conjugados nos art.ºs 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, do Código Penal. Dispõe este último artigo que o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço e o limite mínimo é reduzido ao mínimo legal estabelecido no art.º 41.º, n.º 1, do Código Penal, que é um mês
Operando desse modo tal atenuação, alcançamos, para o crime de coacção uma pena de prisão que deverá situar-se entre 1 mês e 2 anos e a pena de multa entre 10 dias e 240 dias.
Por outro lado, uma vez que o crime de coacção estatui uma alternativa entre pena de prisão e pena de multa, importa em primeiro lugar proceder à escolha entre a pena privativa da liberdade e a pena pecuniária.
Neste contexto, rege o art.º 70.º do Código Penal que estabelece que “o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
Encontramos plasmada neste preceito a preferência do legislador pela pena não privativa da liberdade, reconhecendo-se que quem cumpre uma pena de prisão fica desinserido da sociedade e do meio familiar, sai estigmatizado e não é compensado com uma efectiva socialização.
Actuam, por conseguinte nesta escolha, as necessidades dos fins das penas, que são, segundo dispõe o n.º 1 do art.º 40.º do Código Penal “a protecção de bens jurídicos” (prevenção geral) “e a reintegração do agente na sociedade” (prevenção especial). Actua-se no âmbito da prevenção geral positiva ou de integração quando se reforça na comunidade o sentimento da validade e da segurança face às normas jurídicas violadas, e no da prevenção especial positiva ou de socialização quando a pena é dirigida à ressocialização ou reintegração do agente e perante a qual o julgador efectua um juízo de prognose quanto aos efeitos desta na futura conduta do delinquente.
Verifica-se que no caso em apreço, o arguido não apresenta antecedentes criminais. Porém, constata-se, pela natureza dos factos, relacionados com partilhas e com uma situação de divórcio conflituosa, pela forma violenta como os factos foram cometidos, designadamente, pela circunstância de, por um lado, ter sido usado o filho menor de 11 anos como núncio de uma mensagem com conteúdo ameaçador e, por outro, pelo facto de a ofendida se encontrar naquele local para levar o filho que tinha ido fazer a visita ao pai e aos avós paternos, circunstâncias que conjugadas com a violência dos actos cometidos e, por fim, porque os factos descritos em 4.º dos factos provados constituírem uma concretização de ameaças anteriormente proferidas, evidenciam uma personalidade agressiva e violenta e demandam exigências de prevenção especial com grande expressão.
Deste modo, cremos que apenas uma pena de prisão será suficiente, necessária e adequada para acautelar o cumprimento e a eficácia dos fins visados pelas penas.
Com efeito, as necessidades de prevenção geral são também muito elevadas em face do crescente número de casos no nosso país de violência exercida na sequência de divergências entre casais e na sequência de divórcios.
Posto isto, articulando as finalidades de punição acima identificadas, verifica-se que a pena de multa é insuficiente para fazer sentir ao arguido B… a censurabilidade da sua conduta, e para lhe incutir o valor da auto-responsabilização e, consequentemente, para lhe fazer sentir o significado da punição, pelo que, tudo ponderado, entende-se que é de aplicar ao arguido, relativamente ao crime de coacção na forma tentada, uma pena de prisão.
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Determinação da medida concreta da pena:
A determinação da medida das penas, dentro dos limites supra definidos, far-se-á em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tal como decorre do artigo 71º do Código Penal em conjugação com o supra referido art.º 40.º do mesmo diploma legal.
O quantum de culpa constituirá sempre o limite máximo da pena a aplicar, em nome do princípio segundo o qual, não pode haver pena sem culpa e a medida da culpa determinará a medida da pena - art. 40º, n.º 2 Código Penal.
Mais se atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, designadamente as enunciadas no n.º 2 daquele artigo 71º. Assim sendo, relativamente à conduta do arguido Gabriel Jorge de Sousa Ramos, o tribunal teve em consideração o seguinte:
Contra o arguido impende:
- A intensidade do dolo, na sua modalidade mais grave, que é directo, relativamente a ambos os crimes;
- Quanto à ilicitude, entendida como juízo de desvalor da ordem jurídica sobre um comportamento, por este lesar e pôr em perigo bens jurídico-criminais, considera-se a mesma de grau muito elevado, considerando a conduta global do arguido e a personalidade evidenciada. A conduta assumiu um elevado grau de violência e é veementemente censurável, pelo modo de execução. Por outro lado, as consequências do crime em concreto não revelaram especial gravidade, ainda que em termos psicológicos seja de grande significado;
Na verdade, o arguido pelo nível de inserção sócio profissional que mantém, tinha todas as condições, quer em termos de instrução, quer em termos de vivência, atenta a sua idade, para se abster de cometer actos de tamanha violência.
A favor do arguido impende:
- O facto de estar bem inserido social, profissional e familiarmente;
- O comportamento anterior do arguido é bom em face da ausência de antecedentes criminais;
- A sua condição sócio-económica, relativamente estável, apurada em sede de audiência de julgamento, conforme o retrata o relatório social; e
A prevenção geral exige uma pena afastada dos limites mínimos e a prevenção especial exige uma pena que faça sentir convenientemente ao arguido a censurabilidade da sua conduta.
Assim, tudo visto e ponderado tem-se por adequado, proporcional e suficiente aplicar à arguida B…, as seguintes penas parcelares:
- pelo crime de dano com violência, a pena de 3 (três) anos de prisão;
- pelo crime de coacção na forma tentada, a pena de 6 (seis) meses de prisão.
A moldura de cúmulo situar-se-á entre os 3 e os 3 anos e 6 meses de prisão, tendo em consideração o disposto no art.º 77.º do Código Penal. Esta norma manda atender, para se obter a pena única, à personalidade do agente e aos factos. Os factos são muito graves e demandam a aplicação de uma pena exemplar, mas tendo presente a anterior conduta normativa do agente.
Ponderadas as concretas circunstâncias, entende-se ser adequado, proporcional e necessário aplicar ao arguido B… a pena única de 3 anos e 2 meses.»
Concordamos que no presente caso, dada a proximidade dos comportamentos do arguido e as características de pré-ordenação dos seus comportamentos, a pena de multa no crime de coacção não serve as finalidades da punição, tal como foi entendido pelo tribunal a quo.
A finalidade das penas é “a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade” [art. 40º n.º 1, do Cód. Penal] e a determinação da sua medida combina os critérios da culpa e prevenção, cometendo àquela «a função (única, mas nem por isso decisiva) de determinar o limite máximo inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.»- vide Figueiredo Dias, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril/Dezembro 1993, pág. 186 e segs. e Anabela Rodrigues, Revista cit., “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Ano 12, n.º 2 Abril/Junho de 2002, págs. 147/182.
Assim, a culpa e a prevenção são os dois parâmetros que norteiam a indagação da medida da pena, conforme resulta claro da previsão do artigo 71º, n.º 1, do Código Penal.
E, uma tal tarefa não se satisfaz com argumentos genéricos e abstractos, antes tendo que assentar em concreta análise dos factos e personalidade do seu agente, não só a que neles se evidencia mas também a resultante do respectivo percurso evolutivo, quando conhecido, pois que “…o substrato da culpa, e portanto também o da medida da pena, não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível…” mas reside, isso sim, “…na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizada naquilo que chamamos a atitude da pessoa perante as exigências do dever-ser” - Figueiredo Dias, in “Liberdade, Culpa, Direito Penal”, Coimbra Editora - 1983, págs. 183 e 184.
Posto isto, vejamos os factores concretos de determinação da medida da pena.
«O grau de ilicitude do facto mostra-se elevado, pois os comportamentos do arguido demonstram um profundo desrespeito pela integridade física da sua, então, cônjuge, sendo que a conduta no dano assumiu um elevado grau de violência, pois que arremessou o seu carro contra o da ofendida por duas vezes.
O dolo com que actuou surgiu na sua modalidade mais grave – dolo directo. Sendo que os seus comportamentos imbricam-se um no outro, inculcando a ideia de um certo planeamento.
As exigências de prevenção geral são acentuadas, visto que se traduzem em comportamentos muito comuns por ser ofendida ou vítima a cônjuge em processo de divórcio.
As exigências de prevenção especial são também prementes, visto que o arguido, embora primário, o que no caso nem sequer é sinónimo de bom comportamento, praticou dois crimes num período de tempo muito curto - cerca de 15 dias -, e, além disso, não interiorizou o desvalor da sua acção, pois não demonstrou qualquer arrependimento.
A favor do arguido, a sua inserção social, profissional e familiar, sendo que tinha à data dos factos 41 anos de idade. A sua condição sócio-económica relativamente estável. A ausência de antecedentes criminais.
Assim, entendemos que as penas encontradas pelo tribunal a quo para sancionar as condutas do arguido se mostram proporcionais e adequadas às exigências de prevenção especial e geral que o caso requer, pelo que não havendo uma desproporção da quantificação efectuada não há que proceder a qualquer intervenção correctiva - “observados os critérios legais de dosimetria concreta da pena, nomeadamente os do artigo 71º do Código Penal, há uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar, só sendo admissível correcção perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada [cfr. acórdão deste STJ de 04-03-2004, CJSTJ 2004, tomo 1, 220] -.
Pelo exposto, improcede a pretensão de redução da medida das penas.
Pretende o recorrente que a pena privativa da liberdade deve ser revogada, e aplicada pena subsidiária não privativa da liberdade.
Impõem-se apenas duas observações, visto que não alcançamos plenamente o que pretende o recorrente, em face do facto de a pena única que lhe foi imposta ter sido suspensa na sua execução.
Visto que tendo o arguido praticado no âmbito destes autos dois crimes, impõe-se determinar a pena única para efeitos, do artigo 77º, n.º1, do CP.
Nos termos do n.º2 do citado artigo 77º «A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».
Assim, atentas as penas parcelares atrás concretamente determinadas, a moldura abstracta dentro da qual há-de ser encontrada a pena única varia entre 3 anos de prisão e 3 anos e seis meses de prisão.
“Na medida da pena (única) são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
Atendendo ao referido critério enunciado no artigo 77º, n.º1, 2ª parte, do CP, e considerando em conjunto os factos provados e a personalidade do recorrente neles espelhada, de onde resulta o carácter ocasional dos seus provados comportamentos, e uma personalidade intolerante e prepotente, cremos que a pena única encontrada de 3 anos e dois meses de prisão se mostra adequada, necessária e proporcional (não excessiva) às exigências de prevenção que o caso encerra.
Por outro lado, a pena imposta ao arguido/recorrente foi pelo tribunal a quo suspensa na sua execução, pelo que não se compreende o pedido de que seja “aplicada pena subsidiária não privativa da liberdade”.
Improcede, a pretensão de alteração da medida das penas parcelares e da medida da pena única.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes nesta secção do Tribunal da Relação do Porto em alterar a redacção do ponto 1º dos factos provados, nos termos exarados na apreciação da questão e no mais negar provimento ao recurso interposto.
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Sem custas dado o parcial provimento.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.

Porto, 04 de Fevereiro de 2015
Maria Dolores Silva e Sousa - Relatora
Fátima Furtado – Adjunta