Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1712/21.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO MULTI-RISCOS
ÂMBITO DA RESPECTIVA COBERTURA
INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO
FURTO
ARROMBAMENTO
Nº do Documento: RP202210241712/21.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Celebrado contrato de seguro entre as partes e alegada a verificação de risco coberto, incumbe à Autora fazer a prova dos factos constitutivos do direito à prestação por parte da Ré (responsabilidade contratual- cfr. arts. 798º e ss. do CC), desde logo, a prova dos factos que, atentas as cláusulas do contrato de seguro celebrado, determinariam o pagamento da indemnização pelos danos, ou seja, a prova do sinistro, dos danos e do nexo de causalidade entre o sinistro e esses danos.
II - Em matéria de interpretação do contrato de seguro deve-se atender ao sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto, adoptando o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados na apólice ou, quando seja o caso, o sentido técnico dos termos que claramente se apresentem em tal conteúdo.
III - Tendo ficado estipulado que o âmbito de cobertura do contrato de seguro abrangia “os danos sofridos pelos bens seguros em consequência de furto ou roubo, tentado, frustrado ou consumado, quando: a) Praticado com arrombamento – das portas exteriores, telhado, janelas ou paredes, sobrado ou tecto do imóvel” pode o intérprete socorrer-se da doutrina e jurisprudência que vem sendo formulada sobre iguais definições - que são muito próximas – estabelecidas no Código Penal no art. 202º, em especial na al. d) (arrombamento), que incluem, no seu âmbito, o arrombamento perpetrado em lugar fechado dependente da casa, sendo que este pode ser qualquer espaço circundante, que a rodeia, não acessível ao público.
IV - Nessa medida, tal como aí se conclui, deve entender-se que se os autores de um furto se introduziram em lugar fechado dependente da estação de serviço e oficina (espaço circundante, vedado por portão, portão esse que arrombaram por estroncamento do respectivo canhão), entrando nas instalações da autora, contra a vontade desta, e tendo furtado do interior dessas instalações bens incluídos no âmbito do contrato, estão demonstrados os factos que, atentas as cláusulas do contrato de seguro celebrado, permitem afirmar a cobertura do seguro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO Nº 1712/21.0T8VFR.P1
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Sumário (elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC):
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Comarca de Aveiro - Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira - Juiz 3
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.

I. RELATÓRIO.
Recorrente: X... - Companhia de Seguros, S. A.;
Recorrida: B... Unipessoal, Lda;
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B... Unipessoal, Lda intentou a presente acção declarativa sob a forma comum contra a X... - Companhia de Seguros, S. A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 10.433,70 (dez mil, quatrocentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de indemnização pela totalidade dos danos patrimoniais sofridos na sequência de sinistro, acrescida de juros de mora contados à taxa legal em vigor, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo multirrisco negócios, tendo como objecto o mobiliário, mercadorias e equipamentos da Autora, titulado pela apólice nº ..., além do mais, com cobertura furto.
Mais alegou que, no dia 12 de Fevereiro de 2020, as instalações da Autora foram furtadas, com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão, por parte de desconhecidos, o que foi comunicado à GNR, que lavrou o auto de notícia, culminando o procedimento criminal com o arquivamento do inquérito.
Alegou ainda que, a Autora ficou lesada em diversos materiais e matérias, que os autores dos crimes fizeram ilegitimamente seus, ascendendo tais danos ao montante de € 10.433,70; a Autora accionou o seguro, tendo a Ré declinado a sua responsabilidade mediante a missiva datada de 3 de Junho de 2020.
A Ré contestou, confirmando a existência do contrato de seguro, impugnando o furto no interior da zona de estação de serviços e oficina e respectivos danos.
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Atendendo ao valor da acção, proferiu-se apenas despacho saneador.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, observando-se o legal formalismo.
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De seguida, foi proferida a sentença que constitui o objecto do presente Recurso, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão:
“… III – DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, julgo a acção parcialmente provada e nessa medida procedente, e em consequência:
-Condeno a Ré X... - Companhia de Seguros, S. A. a pagar à Autora B... Unipessoal, Lda a quantia de € 9.679,03 (nove mil, seiscentos e setenta e nove euros e três cêntimos), acrescida dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.
- No mais, julgo a acção não provada e por isso improcedente, absolvendo a Ré do demais peticionado pela Autora … “.
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É justamente desta decisão que a Recorrente/Ré veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“Em Conclusão
A. Por total ausência de prova produzida que lhe possa servir de fundamentação ou motivação de facto, os factos provados 5 e 6 devem ser alterados e julgados NÃO PROVADOS;
B. A motivação de convicção do Tribunal quanto aos factos julgados provados 5 e 6 não tem qualquer sustentabilidade em face da prova produzida, seja a documental, seja a testemunhal invocada;
C. Deve ser proferida Decisão que altere o julgamento da matéria de fato, julgando os factos provados 5 e 6 como NÃO PROVADOS, ou que os elimine dos factos provados;
D. Ao ignorar o clamoroso não cumprimento do ónus de prova que competia à autora, a Sentença proferida violou de forma ostensiva o disposto pelo artigo 342º do Código Civil;
E. Deve ser proferida Decisão que julgue a acção totalmente improcedente, por não preenchimento dos requisitos exigidos pelo clausulado do contrato de seguro para accionamento da garantia de cobertura Furto ou Roubo, reconhecendo o não reenchimento dos requisitos de constituição de responsabilidade contratual imputável á ré;
F. Deve sempre, em qualquer hipótese, ser proferida douta Decisão que, revogando a douta Sentença recorrida, decida pela improcedência do pedido quanto ao valor do equipamento mencionado sob a alínea t) do Ponto 8º dos factos Provados;
G. A autora peticiona a condenação da ré a indemniza-la, para o que carece de legitimidade, manifestamente, e terminando a peticionar para si própria indemnização cujos pressupostos inexistem. É que, salvo melhor opinião, o terceiro proprietário do equipamento nenhum fundamento tem para peticionar da ré o pagamento do respectivo valor, pois não celebrou com ela qualquer contrato, e o seu eventual empobrecimento não foi feito à custa de enriquecimento da autora.;
H. Do mesmo modo, a autora não demonstra qualquer dano efectivo, ou sequer expectativa de dano (não alega nem demonstra que a proprietária do equipamento lhe tenha reclamado seja o que for…).
I. Assim sendo, por faltar um dos pressupostos essenciais da responsabilidade civil, o dano, necessariamente tem de improceder totalmente a pretensão da autora, por inexistência de interesse em agir, falecendo-lhe consequentemente legitimidade, sob pena de consagração de violação do estabelecido pelo artigo 30º, CPC;
Termos em que, e melhores de Direito, doutamente supridos, deve ser proferido douto Acórdão que, revogando a Sentença proferida, decida pela total improcedência da presente acção, absolvendo a ré do pedido, nos termos e com as consequências legais (…)”
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A Autora veio apresentar contra-alegações, onde pugna pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
“– CONCLUSÕES –
I. A recorrente foi condenada ao pagamento de € 9.679,03 (nove mil seiscentos e setenta e nove euros e três cêntimos), acrescida dos correspondentes juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da citação até efectivo e integral pagamento, porquanto ter celebrado com a Recorrida um contrato de seguro onde a primeira assumia o risco de furto, entre outros, nas instalações da Recorrida.
II. Furto esse que aconteceu a 12 de Fevereiro de 2020.
III. Em sede de audiência de discussão e julgamento, foi feita prova cabal dos factos geradores da obrigação de indemnizar por parte da recorrente.
IV. Com tal prova, o Tribunal a quo ponderou “toda a prova produzida no seu conjunto e em confronto, analisada segundo as regras da experiência comum”, designadamente toda a prova documental junto aos autos bem assim a prova testemunhal apresentada.
V. Desde a data do furto em questão, a recorrida tem procurado alhear-se sempre às suas obrigações contratuais e legais, seja em sede de inquérito criminal, seja em sede de acção declarativa.
VI. O Tribunal de 1ª Instância na sentença recorrida, indicou os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou foram por si credibilizados na formação da sua convicção.
VII. O Tribunal recorrido indicou o concreto meio de prova gerador do convencimento, apontando acima de tudo a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu a convicção sobre a realidade dos factos em julgamento.
VIII. Com o recurso apresentado, a recorrente não fez, de forma alguma, a necessária demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum ou de presunções naturais, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.
IX. Por isso, como se mostrou nas nossas alegações de recorrida, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem à mesma e, não quando o julgador optou, fundamentadamente, por uma das versões. Mesmo esta não sendo a versão mais agradável à recorrente.
X. Pugnando a recorrida, por isso, pela total improcedência do recurso apresentado.
XI. Como se melhor explica nas Nossas Alegações supra, com esta iniciativa recursiva apresentada pela recorrente, não só esta suscita um articulado meramente dilatório como também incumpre o ónus de especificação ao não transcrever ou especificar o exacto momento dos testemunhos inadvertidamente atacados, devendo o recurso ser imediatamente rejeitado, cfr. art. 640.º n.º 2 al. a) do Código de Processo Civil.
Nestes termos, nos das disposições legais mencionadas e nos melhores de Direito que V.ªs Ex.ªs douta e sabiamente suprirão, deverá ser aceite, por tempestivo e legal, as presentes contra-alegações da Recorrida, sendo em consequência e após os ulteriores termos:
a) Imediatamente rejeitado o recurso apresentado pela recorrente, por não se verificar o legal e impositivo ónus de especificação.
Caso assim não se entenda:
b) Deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente.
E em consequência.
c) A sentença recorrida ser totalmente confirmada, por legal e decidida em plena concordância com a legis artis. (…)”.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso- cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca a seguinte questão que importa apreciar:
1- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Devem os pontos 5 e 6 dos factos provados serem considerados não provados;
1.1. rejeição da impugnação (questão levantada pela recorrida)
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2. saber se, sendo modificada a matéria de facto no sentido propugnado pela Recorrente, a presente acção tem de improceder.
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3. independentemente da alteração fáctica propugnada deve a sentença recorrida ser revogada na parte relativa à condenação no pedido quanto ao valor do equipamento mencionado sob a alínea t) do Ponto 8º dos factos Provados;
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
“II – FUNDAMENTAÇÃO
A)
Os factos provados
1. A Autora tem por objecto social a manutenção e reparação de veículos automóveis
2. A actividade comercial da Autora é prestada na sede fiscal daquela pessoa colectiva, ou seja, na Rua ..., ..., Santa Maria da Feira.
3. No exercício da sua actividade, a Ré celebrou com a Autora um contrato de seguro, denominado “Multirriscos Negócios”, em vigor à data do sinistro, titulado pela apólice nº ..., tendo por objecto o mobiliário, mercadorias e equipamentos, local do risco Rua ..., ..., Santa Maria da Feira, com cobertura, além do mais, furto.
4. Os valores de capitais seguros para cada um dos objectos acima mencionados eram os seguintes:
- Mobiliário, limite de capital seguro € 3.788,51;
- Mercadorias, limite de capital seguro € 1.082,43;
- Equipamentos, limite de capital seguro € 54.121,61, com uma franquia de 5% do valor dos prejuízos indemnizáveis, num mínimo de € 150,00, a cargo da segurada.
5. A 12 de Fevereiro de 2020, as instalações da Autora foram objecto de subtracção com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão por parte de desconhecidos.
6. … o que foi comunicado à Guarda Nacional Republicana, Posto Territorial ..., que lavrou o auto de notícia, relatório fotográfico e respectivos aditamentos, dando origem ao NUIPC 000135/20.3GDVFR.
7. O procedimento criminal culminou com o arquivamento do inquérito por serem desconhecidos os autores dos crimes.
8. Em face do referido em 5), desconhecidos amolgaram a respectiva porta, e entraram no interior da zona de estação de serviço e oficina, subtraindo os seguintes equipamentos/materiais e matérias consumíveis:
a) 1 aparelho de soldar MIG 250A 400V, no valor de € 1.028,00;
b) 1 pistola de encher pneus GAV PRO MOD 60G, no valor de € 39,21; c) 1 estrado com rodas/banco, no valor de € 89,97;
d) 1 foco de trabalhar COB-LED BAT.26 W5*, no valor de € 174.75; e) 1 máquina de corte pneumática, no valor de € 219,52;
f) 1 Kit compressómetro p/ motores diesel, no valor de € 361,99; g) 1 carro de ferramentas, no valor de € 493,00;
h) 5 litros de solução aquosa, no valor de € 77,28;
i) 0.5 litros de G2 BASICO SILBER, no valor de € 141,40; j) 0.5 litros de G2 BASICO SILBE, no valor de € 139,79;
k) 0.5 litros de G3 BASICO PERLWEI, no valor de € 173,88; l) 0.5 litros de G1 BASICO WEISS, no valor de € 78,19;
m) 1 litro de G1 BASICO SCHNEE WEISS, no valor de € 141,40; n) 0.5 litros de G2 BASICO VIOLET, no valor de € 139,79;
o) 1 litro de G1 BASICO SCHWARZ, no valor de € 141,40; p) 3 cordões ESPUMA ZAPHIRO HD, no valor de € 45,99;
q) 1 cordão ESPUMA ZAPHIRO 13MMX50M, no valor de € 13,30;
r) 50 unidades TIRA 3M51418 P320 70MMX396MM, no valor de € 51,60; s) 2 detergentes LIMPA CARROÇARIAS 10L, no valor de € 48,49;
t) 1 COLORSPECTOFOTOMETRO, no valor de € 6.800,50.
9. A Ré remeteu à Autora uma carta datada de 3 de Junho de 2020, nos termos da qual consta, além do mais, o seguinte:
“Os danos participados não têm enquadramento na cobertura de furto ou roubo.
Concluímos que o evento ocorrido não está garantido pela sua apólice. Esta conclusão é baseada no facto das circunstâncias em que ocorreu o mesmo não se encontrarem previstas na cobertura furto ou roubo.
Dos elementos recolhidos, não nos foi possível verificar qualquer vestígio nos acessos da estação de serviços que permita identificar e caracterizar a ocorrência, com qualquer um dos pressupostos consignado pela garantia de furto ou roubo.
Não vamos poder pagar-lhe a indemnização…”.
10. Em resposta, o Ilustre Mandatário da Autora enviou à Ré uma carta datada de 15 de Junho de 2020 e um e-mail datado de 22 de Abril de 2021 juntos aos autos, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido.
11. Consta nas condições gerais e em especial no campo “5. Furto ou Roubo” o seguinte:
“O que está seguro
1. Pagamento, até ao limite do valor fixado nas Condições Particulares de indemnizações por danos sofridos pelos bens seguros em consequência de furto ou roubo, tentado, frustrado ou consumado, quando:
a) Praticado com arrombamento – das portas exteriores, telhado, janelas ou paredes, sobrado ou tecto do imóvel – escalamento ou chaves falsas;
b) Praticado por quem se introduza furtivamente ou a ocultas no local do risco ou nele se haja escondido para o efeito;
c) Praticado com usurpação de título, uniforme ou insígnia de empregado público, civil ou militar, ou alegando falsa ordem de autoridade pública;
d) Praticado com violência contra as pessoas que trabalhem ou se encontrem no local do risco, ou através de ameaças com perigo eminente para a sua integridade física ou vida, ou pondo-as, por qualquer forma, na impossibilidade de resistir;
2. Para efeitos desta garantia entende-se por:
* Arrombamento: O rompimento, fractura ou destruição no todo ou em parte de qualquer elemento ou mecanismo que sirva para fechar ou impedir a entrada exterior ou interior no estabelecimento seguro, ou lugar fechado dele dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer objectos;
* Escalamento: A introdução no estabelecimento seguro, ou em lugar fechado dele dependente, por telhados, portas, janelas ou paredes ou por qualquer construção que sirva para fechar ou impedir entrada ou passagem e, bem assim, por abertura subterrânea não destinada a entrada;
* Chaves falsas:
*As imitadas, contrafeitas ou alteradas;
* As verdadeiras quando, fortuita ou sub-repticiamente, estejam fora do poder de quem tiver o direito de as usar;
* As gazuas ou quaisquer instrumentos que possam servir para abrir fechaduras ou outros dispositivos de segurança
12. O equipamento “colorspectofotómetro” era propriedade de L..., Lda, e que estava em poder da Autora mediante acordo epigrafado Acordo Comodato.
13. Nos termos do acordo referido em 12), a Autora, na qualidade de segunda outorgante, obrigou-se a restituir tal equipamento à L..., Lda, na qualidade de primeira outorgante, logo que lhe seja solicitado pela (segunda) (cfr. cláusula 3º als. g) e i) do contrato em apreço).
B)
Os factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente os que a seguir se enunciam:
1. Em face do referido em 5), foram subtraídos à Autora no interior da zona de estação de serviço e oficina os seguintes bens:
a) 1 bobine de soldar HYUNDAI 15 kgs., no valor de € 33,15;
b) 1 chave de caixa ¼ - 10mm, no valor de € 1,10.
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Inexistem outros factos provados ou não provados, essenciais ou instrumentais, com relevo para a decisão da presente causa, considerando as várias soluções plausíveis de direito. Com efeito, o demais alegado pelas partes nos seus articulados encerra matéria puramente conclusiva, repetida e/ou de direito e/ou sem relevância para a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos, delimitados pelo seu objecto, razão pela qual o Tribunal não se pronuncia sobre a mesma (em sede de resposta à matéria de facto supra – factos provados e factos não provados).
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
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Comecemos por apreciar a questão da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pela Recorrente.
Pretende esta alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto quanto aos pontos 5 e 6 dos factos provados, considerando que a resposta dada a essa factualidade deve ser alterada para não provado.
A Recorrida levanta, no entanto, a questão da rejeição do Recurso, alegando que aquela não cumpriu os ónus de Impugnação da matéria de facto que o legislador impõe, nomeadamente, porque a Recorrente não refere com exactidão as passagens da prova gravada em que se funda o seu recurso, deixando de referir qual ou quais as passagens em concreto que do registo de gravação impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, por referência ao dia e hora da produção de prova.
Acrescentam que a ser admitida, deve, de qualquer forma, a impugnação da matéria de facto ser julgada improcedente e, em consequência, ser mantida integralmente a sentença proferida.
Cumpre decidir.
Importa dizer que, de facto, nesta matéria, como é consabido, o art. 640º, nº 1 do CPC determina que, «quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Na sequência, o n.º 2 do mesmo art. 640º concretiza que:
a)- quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
À luz do regime exposto, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes[1], “quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:
-em quaisquer circunstâncias, o recorrente tem de indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
-quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles meios de prova que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados;
-relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
- o recorrente deve ainda deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos”.
Avançando, desde já, para a apreciação do argumento utilizado – que contende com as exigências relativas à indicação dos meios de prova e da identificação das passagens da gravação – pode-se dizer que, compulsada a peça processual apresentada pela Recorrente, se atinge, sem grande esforço, que a mesma cumpriu de uma forma suficiente os aludidos requisitos processuais (embora tenha apenas indicado a localização genérica concretiza sumariamente a parte do depoimento que considera relevante para a impugnação que pretende deduzir).
Nessa medida, pode-se liminarmente concluir que a Recorrida não tem razão quando pede a rejeição da Impugnação da matéria de facto com este fundamento.
De qualquer forma, importa dizer que mais recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[2] tornou-se mais flexível e maleável, no que respeita ao cumprimento dos mencionados ónus, principalmente em relação aos de natureza essencialmente formal ou secundária, como é o caso da especificação exacta dos pontos da gravação (artigo 640º, nº 2, alínea a) do CPC).
Com efeito, tem vindo a consolidar-se a jurisprudência que acentua a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências formais, constantes do nº 2 do art. 640º, do CPC.
Há, pois, que fazer uma interpretação desta norma mais consentânea com as exigências dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
Sobre estes ónus, e sobre as consequências do seu não cumprimento total ou parcial, pode-se ler no acórdão do STJ proferido, em 29.10.2015 (relator: Lopes do Rego), o seguinte:
“1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do n.º 1, do artigo 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do artigo 640º, n.º 2, alínea a), do CPC).
“2. Este ónus de indicação exacta” das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, complemente tal indicação […] com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso.”
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Ainda no mesmo acórdão refere-se que:
“[n]a interpretação da norma que consagra este ónus de indicação exacta a cargo do recorrente que impugna prova gravada, não pode deixar de se ter em consideração a filosofia subjacente ao actual CPC, acentuando a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, carecidos de uma interpretação funcionalmente adequada e compaginável com as exigências resultantes do princípio da proporcionalidade e da adequação - evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais.[…]
Por outro lado, esta ideia base, segundo a qual não deve adoptar-se uma interpretação rígida e desproporcionadamente exigente de ónus ou cominações de natureza essencialmente formal ou secundária – devendo adoptar-se interpretação conciliável com as exigências de um princípio fundamental de proporcionalidade e adequação – vem encontrando acolhimento claro na jurisprudência recente deste Supremo, nomeadamente a propósito do grau de exigência e intensidade do ónus do recorrente que presentemente nos ocupa.”
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Em idêntico sentido, decidiu o Acórdão do STJ de 22.09.2015 (relator: Pinto de Almeida):
“[…] II – Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o Recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à respectiva fundamentação.
III - Na delimitação do objecto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida (artigo 640.º, n.º 1, do CPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda (artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC).
IV - A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afectada.
V - Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º 1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º 2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão.
VI - Se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável”.
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Destas considerações jurisprudenciais resulta, assim, que importa aqui efectuar uma distinção essencial.
No que respeita aos ónus constantes nas alíneas do n.º 1, do artigo 640º, do CPC, ou seja, quando não for cumprido o ónus “primário” ou “fundamental” de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, há lugar à rejeição do recurso, total ou parcial.
Já quanto aos referidos ónus secundários – tendentes, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes - artigo 640º, n.º 2, alínea a), do CPC - deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, precisa e concreta - não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento.
Nesta conformidade, e quanto a estes últimos ónus (do nº 2 do citado art. 640º do CPC), a decisão de rejeição do recurso com tal fundamento não se deve cingir a considerações teoréticas ou conceituais, de mera exegética do texto legal e dos seus princípios informadores, mas contemplar também uma ponderação do critério legal nas circunstâncias e modo como os depoimentos foram prestados e colhidos, bem como face ao grau de dificuldade que a indicação das passagens da gravação efectuada acarrete para o exercício do contraditório e para a própria análise crítica por parte do tribunal de recurso.
Tal sucede, por exemplo, quando, como acontece no caso concreto, a Recorrente pretende pôr em causa a resposta positiva dada a determinados factos, alegando que não foi produzida qualquer prova sobre esses pontos da matéria de facto. Na verdade, neste tipo de impugnação da matéria de facto, em princípio, não pode a parte indicar qualquer passagem da gravação de onde possa resultar o resultado probatório pretendido, podendo obviamente limitar-se a deduzir a sua pretensão, alegando a ausência de elementos probatórios que apontem no sentido do julgamento de facto efectuado pelo Tribunal Recorrido.
Finalmente, importa dizer que se bem que a Recorrente tenha sido relativamente sintética na indicação dos depoimentos que invoca como fundamento da sua Impugnação, a verdade é que, tendo em conta o exposto, tem que se considerar que acaba por preencher este ónus secundário de Impugnação, já que se nos afigura que tal conduta não dificultou, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório (como se pode verificar das contra-alegações apresentadas), nem o exame pelo presente tribunal, surgindo a rejeição do recurso, com este fundamento, como uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável - até tendo em conta os relevantes interesses aqui em discussão.
Assim, compulsado o Recurso interposto, pode-se concluir que, como resulta do corpo das alegações e das respectivas conclusões, a Recorrente acaba por impugnar a decisão da matéria de facto, tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, pois que, além de fazer referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida, indica, de uma forma suficiente, os depoimentos que julga poderem ser pertinentes para a Impugnação da matéria de facto que pretende deduzir (nomeadamente, na impugnação dos pontos da matéria de facto em que invoca como fundamento a prova produzida).
Pode-se, assim, concluir que a Recorrente logrou cumprir, de uma forma suficiente, este ónus secundário que sobre ela recaía, não se mostrando, por essa via, prejudicado o princípio do contraditório, e, nessa medida, o conhecimento da Impugnação que a mesma pretendeu deduzir (não sendo caso de rejeitar a Impugnação que pretendeu deduzir).
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Importa, pois, entrar na apreciação desta questão da Impugnação da matéria de facto.
A Ré/ Recorrente pretende impugnar a decisão da matéria de facto, defendendo que devem ser dados como não provados os factos constantes dos pontos 5 e 6 da matéria de facto.
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Aí ficaram mencionados como matéria de facto provada os seguintes factos:
“5. A 12 de Fevereiro de 2020, as instalações da Autora foram objecto de subtracção com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão por parte de desconhecidos.
6. … o que foi comunicado à Guarda Nacional Republicana, Posto Territorial ..., que lavrou o auto de notícia, relatório fotográfico e respectivos aditamentos, dando origem ao NUIPC 000135/20.3GDVFR.”
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A Recorrente não concorda com a decisão sobre estes pontos da matéria de facto, justificando a sua discordância com o entendimento de que não teria sido produzida qualquer prova sobre estes pontos da matéria de facto.
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Quanto a esta matéria de facto impugnada, o Tribunal fundamentou a sua decisão da seguinte forma:
“C) A motivação da convicção do Tribunal
Para a formação da sua convicção o Tribunal considerou e ponderou toda a prova produzida no seu conjunto e em confronto, analisada segundo as regras da experiência comum, designadamente os seguintes elementos:
Factos dos pontos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 9º, 10º, 11º e 12º:
- no acordo admitido pelas partes vertido nos respectivos articulados;
- no teor dos documentos juntos aos autos, designadamente certidão registral, condições contratuais da apólice, auto de notícia, relatório fotográfico, despacho de arquivamento, cartas, e-mails, acordo de comodato e respectivo anexo, todos devidamente analisadas;
- no depoimento das testemunhas AA e BB, Guardas da GNR, que confirmaram o teor do auto de notícia junto aos autos e explicaram a configuração do espaço laboral da Autora.
Facto do ponto 8º:
- aditamento ao auto de notícia e facturas, todos devidamente analisadas.
- no depoimento de CC, Guarda da GNR, que confirmou o teor do aditamento ao auto de notícia junto aos autos.
- no testemunho de DD, administrativa da Autora, a qual explicou, de modo espontâneo e descomprometido, o assalto ocorrido na oficina, notando que o portão de acesso ao parque exterior junto à Rua ... estava aberto e que o outro portão de acesso ao interior a fechadura estava no chão, com indícios de arrombamento; mais explicando que a porta de quatro folhas da cabine de serviços rápidos e acesso à oficina estava amolgada, faltando produtos que se encontravam na cabine de serviços rápidos, especificando que se tratavam de produtos de pintura, detergente e máquinas, confirmando o teor da falta de bens dos docs. 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18, os termos dados como provados.
- o depoimento de EE, averiguador do sinistro, foi ponderado na parte em que explicou a configuração do espaço comercial da Autora e as diligências realizadas no âmbito da averiguação.
- ora no que concerne às declarações de parte do legal representante da Autora, FF, cumpre dizer que falou de forma que se nos afigurou espontânea, serena e natural, sendo que, pese embora a sua particular posição em relação à Autora, por ser seu sócio-gerente, não se denotou no respectivo discurso qualquer pretensão parcial em relação aos factos que relatou, e bem assim não se descortinou nas suas declarações que procurasse ampliar os factos sobre que depôs, nem que pretendesse, por qualquer forma, favorecer a Autora. Relatou, de forma circunstanciada e sem que fossem detectadas quaisquer contradições, os bens subtraídos tais como resultaram provados e o acordo comodato respeitante ao equipamento.
Regista-se que o Tribunal para além de ter procurado atender aos factos essenciais para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, atendeu ainda aos factos complemento ou concretização do que as partes alegaram e resultaram da instrução da causa, tal como lhe é permitido (cfr. artº 5º, nº 2, al. b), do Código de Processo Civil) – como é o caso dos factos 2º (morada da sede), 8º (“… desconhecidos amolgaram a respectiva porta, e entraram no interior da zona de estação de serviço e oficina, subtraindo os seguintes equipamentos/materiais e matérias consumíveis…” e facto 13º, sujeito ao contraditório, atento o depoimento da testemunha DD nos termos acima expendidos, e bem assim atento o teor do aditamento ao auto de notícia, facturas e acordo de comodato junto aos autos.
No que respeita à matéria fáctica não provada para além do que ficou supra exposto, importa esclarecer quanto à mesma que não foi apresentada prova testemunhal ou documental suficiente para a considerar como provada.
Na verdade, as testemunhas ouvidas não fizeram alusão segura a tal materialidade fáctica.”
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Como é sabido, guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada - quando nessa prova se funde o recurso -, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento do recurso da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Conforme decorre do exposto, a impugnação deduzida pela Recorrente dirige-se apenas à parte factualidade onde o Tribunal Recorrido considerou ter-se provado que a 12 de Fevereiro de 2020, as instalações da Autora foram objecto de subtracção com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão por parte de desconhecidos (sendo que o ponto 6 apenas se refere à comunicação desses factos à GNR).
Insurge-se a recorrente, designadamente, contra o facto de se ter considerado provado que tal furto foi realizado “por estroncamento de canhão”, factualidade que se torna decisiva no caso concreto, tendo em conta o âmbito de cobertura do contrato de seguro aqui em jogo.
A questão que é colocada pela recorrente não tem razão de ser.
Os pontos 5 e 6 dos factos provados não dizem respeito à porta da estação de serviço e oficina, mas ao portão exterior que estava encerrado e que dava acesso ao parque exterior que, por sua vez, dava acesso à estação de serviço e à oficina.
Ora, como a própria recorrente reconhece esse “portão que se encontraria encerrado e que terá sido danificado por estroncamento do seu fecho. Mas este estroncamento é do fecho do portão exterior, de acesso à zona de parqueamento, de onde terão sido furtadas viaturas – que não estão em causa nestes autos presentes – e que foi o facto impulsionador daqueles autos de inquérito criminal mencionados no facto provado 6”.
O facto que se refere à porta da estação de serviço e oficina é o ponto 8 – facto não impugnado pela recorrente - onde, conforme decorre da prova produzida, apenas se pode considerar provado que “(…) desconhecidos amolgaram a respectiva porta, e entraram no interior da zona de estação de serviço e oficina”.
Sendo este claramente o sentido da decisão sobre a matéria de facto proferido pelo tribunal recorrido – o que também decorre de uma forma clara da fundamentação apresentada – a impugnação deduzida pela recorrente tem que se considerar improcedente, sem necessidade de mais alongadas considerações, pois que as alterações pretendidas pela recorrente decorrem já da matéria de facto provada.
Ou seja, conforme decorre dos pontos impugnados, as instalações da Autora foram objecto de subtracção com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão do portão exterior de acesso à zona de parqueamento que se encontrava fechado por parte de desconhecidos (v. que essa substração também se encontra provada no ponto 8 – não impugnado pela recorrente).
De resto, compulsada a prova produzida (prova documental e declarações de parte do legal representante da Autora e prova testemunhal) também se torna fácil de concluir que o julgamento do tribunal recorrido não padece de qualquer erro quanto a esta matéria de facto aqui impugnada.
Para tanto, basta ter em consideração as fotografias e os autos policiais juntos aos autos de onde decorre esta factualidade, sendo que a prova pessoal produzida corrobora inteiramente estes elementos documentais.
Improcede a impugnação deduzida pela recorrente.
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Aqui chegados, importa verificar se, tendo em conta a matéria de facto considerada provada (com o sentido atrás explanado), se deve manter a apreciação de mérito proferida pela Decisão Recorrida.
A recorrente entende que, tendo em conta essa factualidade considerada provada – não está provado que o portão interior foi objecto de arrombamento – não teria a Autora direito a ser indemnizada, uma vez que os factos descritos não se incluiriam no âmbito do contrato de seguro celebrado, onde se prevê o:
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“1. Pagamento, até ao limite do valor fixado nas Condições Particulares de indemnizações por danos sofridos pelos bens seguros em consequência de furto ou roubo, tentado, frustrado ou consumado, quando:
a) Praticado com arrombamento – das portas exteriores, telhado, janelas ou paredes, sobrado ou tecto do imóvel – escalamento ou chaves falsas;
(…)
2. Para efeitos desta garantia entende-se por:
Arrombamento: O rompimento, fractura ou destruição no todo ou em parte de qualquer elemento ou mecanismo que sirva para fechar ou impedir a entrada exterior ou interior no estabelecimento seguro, ou lugar fechado dele dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer objectos; (…).
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O tribunal recorrido, por seu lado, entendeu que, tendo em conta os factos considerados provados nos pontos 5 e 6 e 8, se podia concluir que os danos ocorridos nas instalações da Autora estão cobertos pelo seguro multirrisco em causa.
Salvo o devido respeito pela opinião contrária, julga-se que esta decisão é de manter.
É que, contrariamente ao que defende a recorrente, os factos considerados provados nos aludidos pontos são enquadráveis na cláusula 6ª, 5 (furto ou roubo), nº 1, al. a) e nº 2 do contrato de seguro celebrado.
Não é o facto do arrombamento (“arrombamento por estroncamento de canhão”) ter ocorrido no portão exterior que dá acesso ao parque exterior das instalações da Autora (e que, por sua vez, dá acesso às instalações de estação de serviço e oficina da Autora) que impede esse preenchimento, não se exigindo que tal arrombamento se reporte à porta que dava acesso à estação de serviço e oficina onde os objectos foram efectivamente encontrados pelos indivíduos que levaram a cabo o furto.
Já transcrevemos atrás as cláusulas contratuais que aqui definem o âmbito de cobertura do contrato de seguro.
Ora, podemos constatar que as definições que no contrato se mencionam são muito próximas daquilo que está estabelecido no Código Penal no art. 202º, em especial na al. d) (arrombamento)[3]:
“Artigo 202.º
Definições legais
Para efeito do disposto nos artigos seguintes considera-se: (…)
d) Arrombamento: o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente;”
Sendo assim, e embora se trate aqui de responsabilidade civil, entendemos ser pertinente – como efectuou o citado ac. da RG de 14.11.2013 - procurar na doutrina e na jurisprudência conceitos que definam “arrombamento” (em termos penais) no sentido de interpretar o contrato de seguro.
Antes de o fazermos, importa ter aqui em consideração de que forma deve a interpretação de um contrato de seguro ser efectuada.
Na verdade, neste âmbito do contrato de seguro, importa atender a que o tipo de cláusula que aqui se pretende interpretar (integrada nas condições gerais e especiais) deve ser qualificada no âmbito das cláusulas contratuais gerais.
Ora, essa constatação constitui um ponto relevante, em sede de interpretação do contrato aqui em discussão, na medida em que é pacífico que se trata de um contrato de adesão, que contém cláusulas contratuais gerais, as quais devem obediência às regras estabelecidas no DL 446/85, de 25 de Outubro (alterado pelo Decreto-Lei 220/95, de 31 de Agosto, com declaração de rectificação nº 114-B/95, de 31 de Agosto, DL 249/99, de 07 de Julho e DL 323/2001, de 17 de Dezembro).
De facto, com excepção das cláusulas constantes das condições particulares, o contrato de seguro celebrado não foi negociado pelas partes, limitando-se a Autora a aderir à subscrição do mesmo[4] - o que se julga ser pacífico para ambas as partes.
Ora, é dentro destas balizas contratuais (e legais) que o âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado deve ser averiguado, averiguação essa que, como é óbvio, passa pela interpretação do respectivo clausulado contratual.
A tarefa, pois, que incumbe aqui realizar é a de interpretação do contrato, tendo em conta as cláusulas contratuais mais relevantes já atrás mencionadas, e todas as circunstâncias que o legislador manda atender nesta sede interpretativa.
Vejamos quais são essas circunstâncias.
É conhecida a regra legal essencial na interpretação dos contratos: a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236º, nº 1, do CC).
É generalizadamente aceite que o legislador consagrou a doutrina da impressão do destinatário, de cariz objectivista, valendo a declaração com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Assim, do citado preceito legal resulta que, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do tráfico jurídico, se dá prioridade, em tese geral, ao ponto de vista do declaratário, mas a lei, no entanto, não se basta com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste) e, por isso, concede primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia.
“Há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, ….e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo” [5], sendo que o declaratário normal corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias, de instrução, inteligência e diligência normais.
Por outro lado, no domínio da interpretação de um contrato podem surgir como elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações: "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos"[6]; ou, dito de outra maneira, “… os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc…”[7].
Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art. 237º do CC).
Nos negócios formais, acresce que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº 1, do CC)[8].
Também em matéria de interpretação, o contrato de seguro não se afasta destas regras gerais do direito civil, previstas nos citados arts. 236º e 237º do Código Civil.
No regime jurídico contratual português impera, como é sabido, a regra da autonomia da vontade, permitindo-se às partes que fixem livremente o conteúdo dos contratos que celebrem, dentro dos limites da lei (arts. 397º e 405º do CC).
A esta regra não escapa o contrato de seguro, entendendo o legislador que tal contrato se regula pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da LCS[9].
Em matéria de interpretação, o contrato de seguro também se rege assim pelas regras gerais do direito civil, previstas nos arts. 236º e ss. do CC.
Assim, “… o declaratário corresponde à figura do tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos ou técnicos, tendo em consideração, em matéria de interpretação do contrato, o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto, vale dizer ao “âmbito do contrato” nas suas vertentes da “definição das garantias, dos riscos cobertos e dos riscos excluídos”, adoptando o sentido comum ou ordinário dos termos utilizados na apólice ou, quando seja o caso, o sentido técnico dos termos que claramente se apresentem em tal conteúdo…”[10].
Como refere José Vasques[11], os conceitos e linguagem utilizados na apólice e outros escritos relativos ao contrato de seguro, a complexidade dos clausulados dos contratos, a necessidade de articular as condições gerais e particulares, a consideração de outros elementos anteriores ou posteriores à apólice são algumas das fontes de dificuldade na interpretação do contrato de seguro.
No caso concreto, ainda nesta sede interpretativa, como já referimos em cima, as cláusulas que aqui se pretendem interpretar, no sentido de apurar o âmbito de cobertura do contrato de seguro, assumem a natureza de cláusulas contratuais gerais.
Daí que a sua interpretação não se baste pelas referidas normas do Código Civil, havendo que ponderar ainda as regras especiais previstas no DL 446/85, mais concretamente, nos seus arts 10º e 11º.
Ora, apesar de se prever naquele primeiro preceito legal que as cláusulas contratuais gerais são interpretadas “…de harmonia com as regras gerais de interpretação dos negócios jurídicos…” (remetendo para os art. 236º e ss. do CC), logo aí se específica que tal deve ser efectuado “…dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam as cláusulas”.
Assim, como esclarece Menezes Leitão[12], “… a interpretação e integração das cláusulas contratuais gerais é sujeita a regras especiais, desfavoráveis a quem as predispõe, já que embora lhes sejam aplicáveis as regras gerais relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, a lei determina que a sua interpretação e integração tem de ocorrer no contexto de cada contrato singular em que se incluam (…), o qual pode alterar o objectivo de quem procedeu à sua preparação. Por outro lado, para a interpretação das cláusulas contratuais gerais é irrelevante a intenção do seu predisponente, já que o seu conteúdo é determinado com base no critério do contraente indeterminado que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real (…)”.
Prevalece, assim, na interpretação, a realização de uma justiça individualizadora face ao dever de observar o contexto de cada contrato singular, ali se incluindo as circunstâncias da sua celebração.
Segundo Ana Prata[13], deverão, neste âmbito, ser tidas em consideração, designadamente, a) as negociações preliminares entre as partes; b) as práticas estabelecidas entre as partes; c) o comportamento das partes posterior à conclusão do contrato; d) a natureza e a finalidade do contrato; e) o sentido comummente atribuído às cláusulas e expressões no ramo de comércio em causa; f) os usos, etc.; enfim, todos factores conducentes ao apuramento da “compreensão real” que as partes tiveram ou da que “pessoa razoável da mesma condição” possa ter tido.
Em situações de ambiguidade, as cláusulas gerais têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real. E, na dúvida, deve prevalecer o sentido mais favorável ao aderente (citado art.º 11º).
Citando doutrina, o acórdão da Relação do Porto de 17.1.2008[14] regista, desta forma, os seguintes regimes interpretativos:
“- cláusulas gerais de alguns contratos aprovados por Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal e cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários se limitem a subscrever ou aceitar: é-lhes aplicável o regime interpretativo previsto pelo art. 10.º e segs. do decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro;
- claúsulas contratuais gerais elaboradas com prévia negociação individual: é-lhes aplicável o regime geral de interpretação do negócio jurídico.
A apólice integra condições gerais, especiais, se as houver, e particulares. O regime interpretativo das cláusulas contratuais gerais aplica-se às condições gerais e especiais elaboradas sem prévia negociação individual, mas não às cláusulas particulares, as quais não participam dos requisitos das cláusulas predispostas por apenas uma das partes, pelo que se lhes aplicam as regras de interpretação típicas do negócio jurídico.”
Destas considerações resulta, então, que, quando se trata de interpretar cláusulas contratuais duvidosas relativas a condições gerais da apólice, tem-se entendido que deve prevalecer a sua interpretação restritiva, impondo-se o princípio do “in dubio contra proferentem ou contra stipulatorem” por serem cláusulas típicas de contrato de adesão, merecendo o aderente protecção especial.
Efectivamente, no seguimento da convocação e aplicação dos princípios da boa-fé (arts. 227º, nº 1 e 762º, nº 2, do CC) e da confiança, a lei responsabiliza o declarante pelo sentido da sua declaração, fazendo-o responder pelo sentido que a outra parte teve de considerar querido ao captar as intenções daquele, ou seja, pela aparência da sua (do declarante) vontade. Deveria então o declarante ter-se exprimido de uma forma, tanto quanto possível, clara e correcta.
Como assim, nas palavras de Ana Prata[15], “…esta solução faz recair o risco da ambiguidade da cláusula sobre o respectivo predisponente, nos casos em que aquela não seja susceptível de fixação de um sentido unívoco por um aderente de comum diligência, o mesmo é dizer que faz impender sobre aquele um ónus de clareza”… “Não impensadamente se qualifica a posição do predisponente das cláusulas gerais como ónus de expressão clara e unívoca, pois que, aqui, diversamente do que sucede no artigo 5.°, a consequência é apenas a desvantagem para aquele de uma interpretação mais favorável ao aderente”.
Aqui chegados, importa reverter para o caso concreto (e para a interpretação do contrato de seguro celebrado, tendo em conta estas regras interpretativas explanadas).
Para o efeito, como fomos avançando, importa voltar então à referida busca da definição de arrombamento (em termos de direito penal) na Doutrina e na Jurisprudência[16].
Para o Ac. da Relação de Lisboa de 23/11/1988 (CJ XIII, T. 5, pág. 143) “no C.P. de 1982, tal como no anterior, o conceito de arrombamento como circunstância qualificativa do crime de furto abrange tanto o arrombamento interior como o exterior, e tanto o anterior como o contemporâneo ou o posterior”.
Não há arrombamento nem escalamento quando o agente entra na casa pela porta que está apenas encostada ou fechada, mas não trancada. Mas há escalamento quando o agente entra por uma janela que se encontra apenas encostada ou fechada, mas não trancada (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal…, Pá. 548 nota 15.).
A propósito do conteúdo jurídico-penal material do que deva entender-se por "casa" e "lugar fechado dela dependente", escreve Faria Costa, em anotação ao art. 202° C. P. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 14, que: "... casa será, portanto, todo o espaço físico, fechado, que histórico-culturalmente se encontra adaptado à habitação - a ser habitado por uma ou mais pessoas ... ou a outras normais actividades da vivência dos homens em comunidade (assim, nesta perspectiva, tem todo o sentido falar-se, v. g., de casa para comércio; de casa para repartição pública; de casa da Justiça; de casa de saúde, etc., etc.). Um espaço físico, com as características anteriores, possuidor de uma autonomia funcional ligada ao modo de viver comum, historicamente situado. O que implica, bom é de ver, que não é, nem de longe nem de perto, necessário que a casa esteja habitada; basta que seja um espaço, com as qualidades já referidas, apto a ser habitado ou apto a que nele se desenvolvam as actividades humanas para que foi criado. A "solidez" do conceito que aqui procuramos edificar não se prende tanto com a solidez ou a fixidez das paredes, mas antes com a finalidade que se quer, indesmentivelmente, prosseguir.".
Neste sentido casa é, pois, todo o espaço físico, fechado, destinado a habitação ou a actividades de vivência do ser humano - tribunais, hospitais, câmaras municipais, sede de partido político, sede de associações, para o exercício de comércio ou indústria, etc. - não sendo necessário que esteja habitada; basta que seja um espaço apto a ser habitado ou utilizado para as actividades para que foi criado.
E no que concerne sobre o que se deve considerar como "lugar fechado dependente da casa", diz-nos o supra referido autor (in ob. cit.) que "mais não é do que o recinto que dá acesso à casa e que não precisa de ser vedado. É o pátio, o jardim ou o terraço ligado à casa e com passagem para ela como já reconheciam os comentaristas do C. P. de 1886 (OSÓRIO IV ISO). Esta noção ainda continua a ser altamente operatória olhando mesmo para as novas realidades urbanísticas. (...)".
Quanto ao arrombamento, o mesmo consiste, assim, no rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de qualquer elemento ou mecanismo, que servir para fechar ou impedir a entrada, exterior ou interior, no local seguro ou lugar fechado dele dependente ou de móveis destinados a guardar quaisquer objectos.
Para o Ac. do STJ de 15/12/1998, BMJ, n.º 482, pág. 85), o arrombamento supõe a existência de uma casa. A casa é um espaço físico fechado que serve para habitação ou qualquer outra actividade humana… Assim, o conceito de casa inclui o estabelecimento comercial ou industrial.
O lugar fechado dependente da casa pode ser qualquer espaço circundante, que a rodeia, não acessível ao público. São exemplos desses lugares as garagens, as arrecadações, os sótãos, quer sejam comuns quer privados, desde que sejam fechados, bem como os pátios ou os jardins murados… excluídos os veículos automóveis (Assento do S.T.J. n.º 7/2000).
Para Paulo Pinto de Albuquerque (obra citada, pág. 548) “o arrombamento consiste na quebra da oposição física à entrada do agente representada pela fechadura. A fechadura, seja ela mecânica, eléctrica ou electrónica, é forçada, ou mesmo destruída pelo agente para aceder ao interior da casa”.
Nesse mesmo sentido se explicita no ac. da RP de 13.6.2012 (relator: Joaquim Gomes), in dgsi.pt o seguinte:
“(…) No Código Penal de 1982 o crime de furto, para além do seu tipo base no artigo 296.º, tinha apenas uma única previsão de punibilidade como crime qualificado no artigo 297.º, muito embora houvesse ainda a agravação até um terço dos limites mínimos e máximos se o furto da coisa fosse pertença do sector púbico ou cooperativo previsto no artigo 299.º.
Umas das circunstâncias qualificativas, a que estava contemplada no artigo 297.º, n.º 2, al. d), punia “quem furtar coisa móvel: Penetrando em edificação, habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outros espaços fechados, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas, ou tendo-se aí introduzido furtivamente ou escondido com intenção de furtar”.
Por sua vez, as noções legais de arrombamento e escalamento vinham dadas pelo subsequente artigo 298.º, expressando-se no seu n.º 1 que “É arrombamento o rompimento, fractura ou destruição no todo ou em parte, de qualquer construção, que servir a fechar ou a impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou lugar fechado dela dependente, ou de móveis destinados a guardar quaisquer objectos”, enquanto no seu n.º2 seria “escalamento a introdução em casa ou lugar fechado, dela dependente, por telhados, portas, janelas, paredes ou por qualquer construção que sirva para fechar ou impedir a entrada ou passagem e, bem assim, por abertura subterrânea não destinada à entrada”.
O Código Penal de 1982 teve assim o propósito genérico de aglutinar os diversos crimes de furto do Código Penal de 1886, traçados debaixo da concepção legal positivista da previsão pormenorizada de todas as condutas criminosas e da sua punibilidade.
No que concerne à circunstância qualificativa de introdução em edifício ou em habitação, passavam a estar associados a estes os estabelecimentos comerciais e industriais ou “outros espaços fechados”.
A controvérsia estava na determinação deste último conceito normativo, mas partindo do desvalor que significava a prática de um furto mediante a violação do domicílio ou da inviolabilidade de outros espaços aí referenciados, seria de confinar “outros espaços fechados” àqueles que estavam dependentes dos edifícios, habitações ou estabelecimentos anteriormente referenciados.
No entanto, as noções legais de arrombamento e escalamento foram alteradas com a Reforma de 1995, tendo ainda sido deslocadas para o artigo 202.º do Código Penal.
Assim, passou-se a considerar arrombamento “o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente” (al. d) e escalamento “a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem” (al. e).
Como primeira nota, temos que a supressão na noção de arrombamento da expressão “de móveis destinados a guardar quaisquer objectos” restringiu a acção de arrombamento à entrada em casa ou em lugar fechado dela dependente.
O mesmo já sucedia com o escalamento, pois este sempre ocorria mediante “introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente”.
Daí que se tenha vindo a considerar que o conceito de “outros espaços fechados” tem de ser conjugado com a definição de arrombamento, pelo que aqueles “outros espaços fechados” correspondem aos lugares fechados dependentes das casas de habitação, de estabelecimento comercial ou industrial, seguindo-se um critério de acessoriedade segundo o qual “acessorium principale sequitor” [Ac. STJ de 1997/Jan./15, 1997/Out./01, 1998/Nov./11 e 1998/Dez./15].(8)
Foi neste sentido que se fixou o Ac. do STJ de 7/2000, 19 de Janeiro de 2000 [DR I-A, n.º 56, 07/Mar./2000], ao referir que “A expressão “espaço fechado” que consta da alínea e) do n.º 2 do artigo 204.º, do Código Penal [e também referida na alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito] tem, forçosamente, de ser entendida com o restrito sentido de lugar fechado dependente de uma casa, entendimento este reforçado pelo facto de o conceito definido na alínea d) do artigo 202.º do Código haver sido alvo, relativamente ao que se estipulava no n.º 1 do artigo 298.º do Código Penal de 1982, de uma redução no seu âmbito, por virtude da supressão do segmento «ou de outros móveis destinados a guardar quaisquer objectos”.
É essa também a conclusão de Joana Patrícia De Sousa Couto, in “A DEFINIÇÃO LEGAL DE ARROMBAMENTO E A INTERPRETAÇÃO DA AL. E) DO N.º 2 DO ARTIGO 204.º DO CÓDIGO PENAL - Dissertação de Mestrado em Direito na área de Direito Criminal, UCP (Maio de 2016), disponível na internet:
“Quanto ao conceito de “lugar fechado dela dependente”, tal traduz-se num lugar fechado dependente de uma casa que, para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “pode ser qualquer espaço circundante da casa, que a rodeia, não acessíveis ao público”, dando o exemplo das garagens, arrecadações ou até sótãos, no entanto, refere que estes espaços podem ser comuns ou privados, todavia têm que ser fechados.
E, como refere JOSÉ DE FARIA COSTA, trata-se de “um lugar que mais não é do que o recinto que dá acesso à casa”, todavia, defende que não precisa de ser vedado, dando o exemplo dos pátios, jardins ou terraços ligados à casa e com passagem para ela.
Também neste sentido, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2000 presenteia-nos com exemplos destes lugares fechados dependentes de casa, como é ocaso dos jardins murados e fechados anexos às casas.
E, não nos podemos esquecer que, como já referimos previamente, os estabelecimentos comercias e industriais estão englobados no conceito de casa, portanto são considerados casas, daí que quando falamos deste conceito de “lugar fechado dela dependente” estamos a referir-nos a um espaço dependente de casa ou de estabelecimento comercial ou industrial e isto porque, estes estabelecimentos, fazem parte do conceito de casa que já explorarmos. E é nesta linha que devem ser interpretados estes conceitos no nosso CP. Então, este é o sentido actual destes conceitos”.
O Prof. Faria da Costa refere também que só estaremos perante uma situação de arrombamento se e só se o dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada tiver a ver com uma casa ou com um lugar fechado dela dependente.
Como se conclui no Acórdão da RP de 11-07-2012 (Proc. n.º 774/11.3GAVNF.P1), in dgsi.pt: “o que verdadeiramente reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e o estabelecimento comercial ou industrial, conceitos que, para este efeito, incluem espaços fechados limítrofes, anexos ou a eles agregados. Há um reduto de mais-valias ligado ao espaço físico dedicado à habitação e ao estabelecimento comercial ou industrial e suas dependências contíguas e fechadas que o legislador entendeu ser merecedor de uma tutela acrescida do bem jurídico.”
Em suma, como refere a citada Autora, a págs. 32 da sua tese:
“a conclusão que retiramos é a de que a definição de arrombamento está intimamente ligada ao conceito de casa e, por isso, o arrombamento tem de se processar em relação a uma casa ou em relação a um espaço fechado dela dependente. E, de facto, compreende-se que um espaço fechado tenha necessariamente que estar dependente de uma casa no seu sentido lato porque, o que a norma visa, é fornecer uma tutela penal a estas realidades, portanto, será de facto, compreensível e aceitável que os espaços fechados dependentes de casa e que com elas estejam conexionados, tenham a mesma protecção”.
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Feita esta incursão necessariamente sintética pela Doutrina e pela Jurisprudência sobre o conceito de Arrombamento (e do crime de furto), importa reverter para o caso concreto.
Como acima consta deu-se como provado que:
“5. A 12 de Fevereiro de 2020, as instalações da Autora foram objecto de subtracção com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão por parte de desconhecidos.
8. Em face do sucedido em 5., desconhecidos amolgaram a respectiva porta, e entraram no interior da zona de estação de serviço e oficina, subtraindo os seguintes equipamentos/materiais e matérias consumíveis:
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Estes factos, quanto a nós, e atento o explanado (e o esclarecido quanto ao sentido que deve ser dado à factualidade considerada provada), são suficientes para enquadrar a situação na citada alínea a) “Furto praticado com arrombamento – das portas exteriores, telhado, janelas ou paredes, sobrado ou tecto do imóvel – escalamento ou chaves falsas”.
Na verdade, os autores do furto introduziram-se em lugar fechado dependente da estação de serviço e oficina (espaço circundante, vedado por portão, portão esse que arrombaram por estroncamento do respectivo canhão), entrando nas instalações da autora, contra a vontade desta e tendo furtado do interior dessas instalações os bens e objectos já acima descritos.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido em considerar que o sinistro ocorrido, tal como descrito na matéria de facto provada, se integrava no âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado entre a Autora e a Ré.
Assim, tendo-se provado que, por força do contrato de seguro referido a autora transferiu para a ré, entre outros, o risco de furto dos bens seguros que se encontrassem nas suas instalações; que no dia 12 de Fevereiro de 2020, as instalações da Autora foram objecto de subtracção com recurso a arrombamento por estroncamento de canhão por parte de desconhecidos, tendo delas sido subtraídos os bens indicados no ponto 8, tem a A,, em princípio, direito a ser indemnizada, atento o contrato de seguro referido nos autos, dos valores referidos (designadamente, como iremos ver, dos bens de que era proprietária).
A ré incorreu, assim, na obrigação de indemnizar a autora pelos danos emergentes do sinistro descrito na matéria de facto provada uma vez produzido o risco, indemnização esta à qual são aplicáveis as regras da responsabilidade civil contratual, quer no que se refere à verificação dos respectivos pressupostos, quer no que respeita ao quantum respondeatur, reconduzindo-se essa obrigação aos danos efectivamente sofridos em consequência da subtracção fraudulenta.
Mas é justamente, neste âmbito, que a recorrente coloca ainda uma última questão relativa à condenação de que foi alvo, relativa ao objecto furtado das instalações da Autora que não era da propriedade desta - subtracção do equipamento descrito na alínea t) do ponto 8º dos factos provados – uma vez que a Autora o detinha a titulo de comodatária.
Entendeu o tribunal recorrido que tal circunstancialismo jurídico não impedia o reconhecimento do direito da Autora ser indemnizada contratualmente, fundamentando que essa indemnização seria ainda assim devida “… porquanto a Autora, possuidora de tal equipamento, ao abrigo do contrato de comodato, quanto solicitado obrigou-se a restitui-lo à proprietária “L..., Lda”, e a não restituição atempada, dá direito a indemnização”.
Julga-se que, neste ponto, a recorrente tem razão.
Como referimos, neste âmbito há que aplicar as regras da responsabilidade civil contratual (arts. 798º e ss. do CC), quer no que se refere à verificação dos respectivos pressupostos, quer no que respeita ao quantum respondeatur, reconduzindo-se essa obrigação de indemnização aos danos efectivamente sofridos em consequência da subtracção fraudulenta (art. 562º e ss. do CC).
Ora, a verdade é que, quanto a este equipamento, que não integra a esfera patrimonial da recorrida, esta não chegou a alegar que a substração ocorrida lhe tenha causado qualquer prejuízo (por exemplo, na medida que lhe foi reclamada a devolução do equipamento e, sendo esta impossível, alegando – e provando - que lhe foi exigida a indemnização contratualmente prevista no contrato de comodato – que seria eventualmente a prevista na cláusula 4ª, al. K do contrato- “… nos casos em que não seja possível a devolução do equipamento, nomeadamente (…) por perda, a primeira outorgante (comodante) tem o direito de proceder à sua facturação ao segundo outorgante (comodatária) de acordo com os preços vigentes …” ).
Importa, aliás, salientar que tal possibilidade de responsabilização da Autora perante o Comodante, pela impossibilidade de restituição da coisa emprestada (em virtude do furto) poderá não ter acolhimento no art. 1136º do CC, onde se estabelece que no seu nº 1: “Quando a coisa emprestada perecer ou se deteriorar casualmente, o comodatário é responsável, se estava no seu poder tê-lo evitado, ainda que mediante o sacrifício de coisa própria de valor não superior”.
Como referem Joana Farrajota/Inês Ramalho na anotação a este preceito legal (in “CC anotado” (Coord. Ana Prata), Vol. I, págs. 1400 e 1401):
“Pode dar-se o caso de o comodatário não cumprir a obrigação de restituição da coisa (prevista na al. h) do art. 1135°), nos moldes em que foi emprestada em virtude de esta se ter perdido ou deteriorado. Parece-nos que este preceito prevê três cenários distintos de perda/deterioração potencialmente geradores de responsabilidade do comodatário.
Determina o n.º 1 que o comodatário só será responsabilizado por uma perda ou deterioração casual se estivesse na sua disponibilidade evitar esse efeito mesmo que para tal tivesse de sacrificar uma coisa que lhe pertencesse e de valor igual ou inferior. O caso fortuito por si só não afasta a responsabilidade do comodatário, ao contrário do que resultaria das regras gerais da responsabilidade. Apenas a impossibilidade de evitar a perda ou deterioração da coisa, seja pelo facto de não ter como fazê-lo, seja por não dispor de algo de valor igual ou inferior passível de ser sacrificado, o exonera de qualquer responsabilidade. Em regra, a responsabilidade do comodatário depende de culpa sua, presumindo-se esta nos termos do art. 799°, n.º 1, cabendo-lhe demonstrar que não teria podido evitar o resultado mesmo com sacrifício de coisa própria (v. Menezes Leitão, cit., p. 369).
Fora do escopo desta norma ficam perdas ou deteriorações que não possam ser consideradas casuais (maxime fortuitas), caso em que a responsabilidade corre por conta de quem as tenha causado”.
De qualquer forma, importa dizer que o facto do equipamento em causa não ser da propriedade da Autora não permitiria só por si afastar a legitimidade processual desta para reclamar indemnização conexionada com eventuais danos que tal subtracção do equipamento lhe tivesse provocado na sua esfera jurídica.
Mas, para tanto, tinha a Autora que ter alegado quais foram esses danos, não podendo os mesmos corresponder simplesmente ao valor do equipamento, pois que tal dano se produziu na esfera jurídica patrimonial do seu proprietário (comodante)[17].
Nesta conformidade, independentemente da propriedade do equipamento, a verdade é que, relativamente ao mesmo, a Autora não chegou a alegar os danos que tal subtracção provocou na sua esfera jurídica e, nessa medida, também não provou que tal subtracção do equipamento lhe tivesse causado danos que pudessem ser indemnizáveis no âmbito do contrato de seguro celebrado com a Ré.
Como é sabido, para que haja responsabilidade civil contratual (arts. 798º e ss.; cfr. também arts. 562º e ss. do CC), um dos pressupostos da sua afirmação é justamente a verificação da existência de danos.
Na verdade, tal como sucede na responsabilidade civil extracontratual, na responsabilidade contratual também se exige a verificação dos seguintes pressupostos: o facto voluntário, ilícito, a culpa (que aqui se presume – art.799º, nº 1 do CC), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano[18].
Ora, quanto ao facto aqui em discussão (subtracção do equipamento identificado na alínea t) do ponto 8º dos factos provados), a verdade é que não decorre da matéria de facto considerada provada que tenham sido produzidos danos na esfera patrimonial da Autora (como se referiu, por ausência de alegação da factualidade pertinente).
Pelo exposto, por faltar um dos pressupostos da responsabilidade civil contratual, o dano, tem a pretensão da Autora quanto a este equipamento que ser julgada improcedente.
Ultrapassada esta questão não se pode, no entanto, de deixar de confirmar a parte remanescente da sentença recorrida nos termos expostos.
Na verdade, como se viu, pode-se aqui manter na íntegra a fundamentação de direito que o Tribunal de Primeira Instância desenvolveu na sentença que proferiu, quanto ao enquadramento jurídico dos remanescentes equipamentos furtados das instalações da Autora.
Procede, pois, parcialmente o recurso, devendo a sentença ser revogada na parte em que condenou a Ré a pagar o valor do equipamento descrito na alínea t) do ponto 8º dos factos provados, havendo que deduzir ao valor da indemnização, relativa à parcela dos equipamentos, o valor do equipamento aludido (€ 9.206,94 - € 6.800,50 = 2.406, 44€) a que haverá que deduzir a franquia de 5 % contratualmente estabelecida.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:
- Parcialmente procedente o recurso, sendo a sentença revogada na parte em que condenou a Ré a pagar o valor do equipamento descrito na alínea t) do ponto 8º dos factos provados, com a consequência de se deduzir ao valor da indemnização, relativa à parcela dos equipamentos, o valor do equipamento aludido nos termos expostos.
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Custas pela Recorrente e pela recorrida na proporção dos respectivos decaimentos (artigo 527º, nº 1 do CPC).
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Notifique.
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Porto, 24/10/2022
(assinado digitalmente)
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
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[1] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pág. 139-140.
[2] Acs do STJ de 26.05.2015 de 29.10.2015, de 11.02.2016, de 03.03.2016, de 27.10.2016, de 15.02.2018 e de 6.6.2018 (relator: Ferreira Pinto), todos in dgsi.pt.
[3] Neste raciocínio, v. o ac. da RG de 14.11.2013 (relator: Estelita Mendonça), in dgsi.pt, onde se concluiu que: “(…) III - No escalamento há uma entrada que não é feita pelas vias normais (entradas das casas ou outros espaços); a entrada é sim feita por meio não convencional ou transpondo obstáculos normalmente destinados a impedir o acesso à casa. IV – O arrombamento consiste no rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de qualquer elemento ou mecanismo, que servir para fechar ou impedir a entrada, exterior ou interior, no local seguro ou lugar fechado dele dependente ou de móveis destinados a guardar quaisquer objectos. V - O lugar fechado dependente da casa pode ser qualquer espaço circundante, que a rodeia, não acessível ao público. São exemplos desses lugares as garagens, as arrecadações, os sótãos, quer sejam comuns quer privados, desde que sejam fechados, bem como os pátios ou os jardins murados… excluídos os veículos automóveis (Assento do S.T.J. n.º 7/2000)”.
[4] V. sobre este ponto, Margarida Lima Rego, in “O contrato e a apólice de seguro” (estudo integrado no livro “Temas de direito dos seguros”), págs. 27 e ss.;
[5] Paulo Mota Pinto, in “Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico”, pág. 208.
[6] Luís Carvalho Fernandes, in “Teoria Geral do Direito Civil, II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, pág. 416/417.
[7] Cfr., a este propósito, Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, pág. 213.
[8] V. A. Varela/ P. Lima, in CC anotado, vol. I, pág. 225 que defendem, como aqui também se defende, que o art. 238º do CC visa resolver um problema de interpretação; existem, no entanto, outras interpretações doutrinárias que assim não o entendem e que se mostram elencadas por Evaristo Mendes/Fernando Sá, no “Comentário ao CC anotado- parte geral”, págs. 546 e 547;
[9] O art. 11º da actual Lei do contrato de seguro (LCS) refere que “… o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral…”.
[10] V. o ac. da RG 2.7.2013 (relator: Filipe Caroço); cfr. José Vasques, in “Contrato de Seguro” pág. 350 e 355.
[11] In “Contrato de Seguro” pág. 348 e ss..
[12] In “Direito das Obrigações”, Vol. I, págs. 36 e 37.
[13] In “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, págs. 301 e 302
[14] (relator: Teles Menezes), in Dgsi.pt.
[15] In “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, págs. 304, incluindo a nota 895.
[16] Seguindo de perto o citado ac. da RG de 14.11.2013 (relator: Estelita Mendonça), in dgsi.pt.
[17] A alegação da Autora na petição inicial foi apenas a seguinte: “15) Com o evento criminoso de que foi vítima, a A. teve diversos e avultados danos patrimoniais, nomeadamente: (…) v) 1 COLORSPECTOFOTOMETRO, no valor de 6.800,50€ - cfr. aditamento ao auto de notícia e contrato de comodato que se juntam sob documentos n.ºs 20 e 21, respectivamente”.
[18] Como se refere no ac. da RP de 8.2.2021 (relator: Eugénia Cunha), in dgsi.pt: “Celebrado contrato de seguro entre as partes e alegada a verificação de risco coberto, aos Autores cabia a prova da sua verificação, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga (nº1, do art. 342º, do CC), competindo à seguradora o ónus da alegação e da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 do art. 342º do CC). Aos Autores incumbia fazer a prova dos factos constitutivos do direito á prestação por parte da R. – desde logo a prova dos factos que, atentas as cláusulas do contrato de seguro celebrado, determinariam o pagamento da indemnização pelos danos, ou seja, a prova do sinistro, dos danos e do nexo de causalidade entre o sinistro e esses danos”.