Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4254/19.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: RECURSO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
REGIME E MAIOR ACOMPANHADO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
SUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP202104294254/19.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não têm legitimidade para recorrer as pessoas que, não sendo parte na ação (ou sendo apenas partes acessórias) sofrem um prejuízo indireto ou reflexo e a quem a decisão seja suscetível de produzir um prejuízo eventual, longínquo e incerto, porquanto, apenas, têm legitimidade para recorrer os terceiros que sofram um prejuízo imediato, direto, atual e positivo com a decisão que pretendam impugnar.
II - Essencialmente, o regime do maior acompanhado introduziu no sistema jurídico português uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas até então tidas como portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente a a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior com limitações relevantes.
III - Tal como a substância do novo regime em análise, o art.º 141º do Código Civil consagra também para a legitimidade processual o primado da vontade do acompanhado: está em causa um benefício, de que ele pode ou não prevalecer-se.
IV - O tribunal não pode suprir a falta de autorização do beneficiário para a instauração da ação pelo seu filho se concluir que aquele, apesar de ter mais de 80 anos de idade, estava e está em condições de a dar livre e conscientemente, designadamente se está também em condições de gerir, de modo livre e consciente, o seu património, sem perturbação neuropsiquiátrica.
V - Pedido o suprimento da autorização do Requerido na própria ação e faltando a prova do respetivo fundamento, a instância deve ser julgada extinta por ilegitimidade do requerente (art.º 141º, nº 2, do Código Civil), não se conhecendo do mérito da causa.
VI - Uma mudança significativa de comportamento de um homem com mais de 80 anos, que casa de novo, com uma mulher cerca de 30 anos mais nova e passa a gastar a sua poupança acumulada ao longo de anos, sendo ele pessoa sã do ponto de vista neuropsiquiátrico, não traduz necessariamente um caso de prodigalidade relevante para efeitos de acompanhamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4254/19.0T8MTS.P1
– 3ª Secção (apelação) -
- Comarca do Porto -
Juízo Local Cível de Matosinhos- J 2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.[1]
B…, casado, residente na Rua …, …, …, …. - … Porto, instaurou ação especial de acompanhamento de maiores contra C…, casado, residente na Av. …, nº …, …, …. - … Matosinhos, e o MINISTÉRIO PÚBLICO, alegando essencialmente que o Requerido é seu pai e ainda pai de D…; que tem 83 anos de idade; que sua mãe, a primeira mulher do Requerido, sofreu de E.L.A., tendo sido contratada E… para cuidar dela; que a essa senhora eram conhecidos já três casamentos; que após a morte da sua mulher esta senhora se manteve em casa do Requerido para dele cuidar e tratar, uma vez que este comunicou à família que já não se sentia autónomo; que esta senhora passou a decidir tudo pelo Requerido; que o Requerido era católico, conservador e espartano nos gastos; que a referida E… converteu o mesmo a uma religião evangelista; que em 22.10.2018 o Requerido casou em segredo com E…; que após passar a viver com a sua atual mulher, o Requerido gastou todas as suas poupanças e passou a gastar todo o seu rendimento e a ter a conta bancária a descoberto; que passou a viajar; que vendeu os pertences que mais apreciava; que, para além da casa onde vive, em Matosinhos, o Requerido e a sua primeira mulher adquiriram um apartamento no Algarve, onde aquele passava grande parte do ano; que este apartamento está para venda e o contrato promessa em vias de ser assinado; que o Requerido sofre de demência e que está desorientado, esquecido e se perde nas deslocações.
Considerou justificar-se a tomada de medidas cautelares urgentes, prevenindo maiores prejuízos.
Por tudo, formulou o Requerente os seguintes pedidos, ipsis verbis:
«(…) deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, declarando-se a necessidade de acompanhamento de C…, decretando-se a sua incapacidade para a prática de actos de alienação e oneração de bens, móveis e imóveis e proibição de movimentação de saldos bancários.
Mais requer seja nomeado para acompanhante seu filho D… devendo, representar o beneficiário, em todos os seus negócios, e movimentar as contas bancárias, efetuar depósitos e levantamentos, assinar, fazer transferências, desmobilizar e movimentar aplicações financeiras, assinar correspondência, retirar das estações de correio cartas registadas, Mais requer a V. Exa. se digne deferir o suprimento e dispensa da autorização do beneficiário, face às circunstâncias e impossibilidade deste a conceder de forma livre e consciente.»
(…)
1. Atendendo ao supra alegado que aqui se dá por integralmente reproduzido e integrado, á demência resultante do TAC, e á eminência da celebração do contrato promessa relativo ao imóvel de Tavira pertencente ao Reqdo. Requer seja a imobiliária, infra identificada, notificada para suspender qualquer diligência de venda e/ou a assinatura de qualquer contrato de promessa de venda ou venda a celebrar pelo Reqdo. até que exista decisão nestes autos:
- Imobiliária G…, Centro Empresarial … – Estrada …, nº …., …. - … Porto
2. Mais requer seja provisoria e cautelarmente decretada a incapacidade do Reqdo. para onerar e/ou vender o seu património, e ainda sejam oficiados os Serviços Centrais dos Registos e Notariado de que o Reqdo. está impedido de vender qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo.».

O tribunal não deferiu as providências cautelares requeridas, por não existir prova da demência do Beneficiário.
Foi dada publicidade à ação.
O beneficiário foi regularmente citado na sua própria pessoa e apresentou contestação alegando que faz sozinho as suas deslocações diárias; que tem mobilidade física total; que trata do pagamento dos seus impostos; que faz passeios regulares a pé e de automóvel, inclusivamente para o Algarve; que convive normalmente com os seus conhecidos e recebe alguns em sua casa; que se mantém autónomo; que após a morte da sua primeira mulher procedeu às partilhas por óbito desta, tendo pago tornas ao Requerente e ficando com os apartamentos de Matosinhos e de Tavira para si; que o Requerente já lhe entrou em casa exigindo bens e valores, alegando serem pertences da sua mãe, tendo levado alguns bens; que posteriormente o Requerente lhe propôs a partilha de outros bens, o que recusou por a partilha dos bens comuns já ter sido realizada e os que ainda existiam serem seus bens próprios; que ajudou os filhos quando precisaram, que vendeu alguns bens que lhe pertenciam; que é ele quem decide os seus gastos e sua forma de vida; que decidiu vender o apartamento de Tavira porque só lá ia duas vezes por ano e as despesas que dava não o justificavam e poderia comprar outro apartamento mais pequeno e com menos despesas; que é independente, responsável e capaz de realizar, não apenas as tarefas quotidianas, como também gerir a sua vida; que tem uma capacidade fora de comum nas contas e escrita e se orienta perfeitamente no tempo e no espaço; que a redução das suas capacidades decorre do avanço da idade, estando, porém, lúcido e autónomo, mantendo-se capaz de se autodeterminar, não carecendo da aplicação de nenhuma medida de acompanhamento.
Juntou relatório psicológico e relatório psiquiátrico.
O Requerente respondeu à contestação.
Em 18.10.2019, procedeu-se a audição pessoal do Beneficiário.
Realizou-se perícia médica e foram inquiridas as testemunhas arroladas, em sucessivas sessões de inquirição.
O tribunal, por dúvidas manifestadas, determinou a realização de uma segunda perícia singular à pessoa do Requerido.
Face à venda do imóvel sito em Tavira pelo Requerido, o Requerente requereu a aplicação de várias medidas cautelares e o tribunal, após manifestação favorável do Ministério Público, por despacho de 15.7.2020, decidiu o seguinte:
«a) que o Beneficiário fique provisoriamente impedido de alienar, onerar, ou prometer alienar ou onerar bens imóveis, sem expressa autorização do tribunal para esse efeito;
b) que o Beneficiário fique provisoriamente impedido de movimentar, por quaisquer meios, a débito, as contas bancárias de que é titular ou contitular, designadamente a conta bancária com o nº ……… do H…, sem o acompanhamento do seu filho D…, devendo este assegurar-lhe a entrega mensal das quantias que venham a ser aí depositadas a título de reforma e o mais que se lhe afigurar necessário para a normal subsistência e organização de vida do Beneficiário, de acordo com o seu padrão social e, consequentemente ser desativados os cartões de débito e crédito do Beneficiário, e acessos às contas bancárias pela internet;
c) que o Beneficiário, no prazo de 10 dias, deposite à ordem destes autos o produto da venda da fração autónoma sita em Tavira, caso o mesmo se não encontre depositado em conta bancária sua.
(…)».
Então já havia falecido o Requerente, tendo passado a intervir posteriormente em sua substituição, a habilitada sua viúva, I….
Em 3.8.2020, o Requerido recorreu daquela decisão de 15.7.2020.
Em 11.9.2020, foi junto ao processo o segundo relatório pericial, de que reclamou a Requerente habilitada, pretendendo uma perícia colegial, o que foi rejeitado pelo tribunal por despacho de 15.10.2020, pelo qual se decidiu também o seguinte:
«(…)
Face a toda a prova já produzida, considera o tribunal, concordando com a douta promoção do Ministério Público, que se mostram afastados os pressupostos que determinaram a aplicação, pelo despacho de 15/07/2020, das medidas urgentes com vista a acautelar o património do Beneficiário para o caso de o mesmo não se encontrar em condições de o gerir.
Deste modo, determino o imediato levantamento dessas medidas cautelares.
Notifique e comunique ao filho do Beneficiário, D…, e ao H….
(…)».
Face a esta decisão, o Requerido considerou inútil o recurso que interpusera a 3.8.2020.
Foi depois proferida sentença, a 29.10.2020, relativa ao mérito da causa que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Face ao exposto, julgo o Requerente parte ilegítima para a propositura da presente ação e, em consequência, absolvo o Requerido da instância.
*
Fixo o valor da causa em €30.000,01.
Custas pelo Requerente.
Publicite a decisão por anúncios em sítio oficial – art. 893º, nº 2, do C.P.Civil.
Registe e notifique e decorridos que sejam 10 dias abra conclusão nos autos.».
Em 3.11.2020, foi interposto recurso por D…, filho do Requerido, impugnando a decisão que determinou o levantamento das medidas cautelares.
O Ministério Público e o Requerido responderam ao recurso da decisão interlocutória de 15.10.2020.

Da sentença, recorreu a Habilitada I… e D….
O tribunal, por despacho de 21.12.2020 declarou o recorrente parte ilegítima e rejeitou o seu recurso da decisão de 15.10.2020, tendo o mesmo apresentado reclamação desse indeferimento ao abrigo do art.º 643º do Código de Processo Civil (apenso B)

Ao recurso da sentença, responderam o Ministério Público e o Requerido habilitada.

No recurso da sentença, a habilitada I… e D… formularam as seguintes CONCLUSÕES:
«A. DO EFEITO DO RECURSO - A ação especial de acompanhamento trata-se de uma ação sobre o estado das pessoas pelo que a apelação da decisão proferida nos presentes autos tem efeito suspensivo, nos termos do art. 647.º, n.º 3, a) do CPC, o que se requer.
B. Sem prescindir, a execução da decisão de que se recorre causa prejuízo irremediável ao Recorrente (art. 647º, n.º 4 do CPC), na medida em que o Tribunal a quo, por ter indeferido o pedido de suprimento de consentimento do Beneficiário, julgou B… para ilegítima para a propositura da presente ação e, em consequência, absolveu o Requerido da instância. Se não for atribuído efeito suspensivo corre-se o risco de, quando for obtida decisão final, já não exista nada no património do Recorrido.
C. Como consta da PI, o alegado receio de dissipação do património do Beneficiário já se efetivou no decurso destes autos – em que alienou móveis, quadros de valor e uma casa no Algarve, para além de todas as poupanças (cerca de €70.000,00) do Beneficiário terem desaparecido e do Beneficiário ter deixado a conta a descoberto e gastou o produto da venda da casa do Algarve (mais de €122.000,00), quando mensalmente recebe avultada pensão de reforma!! O Beneficiário está ser manipulado pela sua atual mulher!!!
D. DA LEGITIMIDADE DO RECORRENTE D… - O Recorrente D… é filho do Recorrido/Beneficiário e irmão do Requerente B… que, com a presente ação de maior acompanhado, requereu o decretamento de medidas cautelares urgentes para o seu Pai.
E. O filho B… tentou impedir que o Pai dissipasse todo o seu património por força de uma eventual diminuição das suas capacidades cognitivas e volitivas e por entender que o Pai estava a ser manipulado pela sua atual mulher de 56 anos com quem casou em 2019 às escondidas!
F. Sucede que, o Requerente B… veio a falecer, em 28 de junho de 2020, na pendência da ação, conforme certidão já junta a fls_ dos autos. Em consequência, a sua cônjuge sobreviva, Sra. D.ª I…, requereu a sua habilitação nos autos, nos termos do preceituado no art. 351º do CPC, incidente que foi já julgado procedente.
G. No entanto, também o filho D… pode recorrer do despacho em crise atento o disposto no art. 631.º, n.º 2 do CPC por ser direta e efetivamente prejudicado pela decisão em causa como infra se explanará dado que o Pai casou em segredo, em poucos meses esvaziou as suas contas bancárias e vendeu um dos dois imóveis de que era proprietário quando sempre disse que nunca o faria!!! Se o Recorrido continuar a ser manipulado, em breve, venderá também o único bem que lhe resta – a casa morada de família onde habita em Matosinhos.
H. A decisão de que se recorre não acautela os interesses do Recorrido/Beneficiário e prejudica o aqui Recorrente o qual prevê com a extinção da instância que o Recorrido perca (todo) o produto de uma vida de trabalho!! Porque reitera-se, o Recorrido já gastou todos os seus depósitos a prazo, os saldos de todas as suas contas bancárias e vendeu um apartamento t2 por €122.000,00 muito abaixo de seu valor de mercado e não chegou sequer a receber esse dinheiro!! No ano de 2021 terá de pagar o imposto de mais valias desta venda e já não possui nenhum dinheiro para o efeito, e verá o seu único imóvel ou a sua reforma penhoradas pelas Finanças ou, se entretanto este imóvel for alienado também, ficará apenas com a sua reforma penhorada.
I. Se aos Pais é atribuída a missão de protegerem os seus filhos no início de vida, aos filhos é atribuída a missão de protegerem os seus Pais no fim de vida!
J. DA DECISÃO RECORRIDA – Com a presente apelação, pretende-se recorrer do indeferimento do suprimento do consentimento do Beneficiário, da matéria de facto dada como provada, da decisão de direito e do indeferimento do acompanhamento do maior requerido.
K. DO SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO: Na PI, o Requerente requereu o suprimento do consentimento do Beneficiário, seu Pai, para a propositura da presente acção especial, face à impossibilidade deste de o conceder de forma livre e consciente. O Tribunal a quo relegou tacitamente o conhecimento do pedido de suprimento para momento ulterior ao da produção da prova.
L. À data, havia já sido realizada uma primeira perícia em cujo relatório consta que o Beneficiário, “apresenta um défice cognitivo ligeiro” e que “este défice das funções executivas, embora não o prejudique ainda no exercício de direitos pessoais o afeta na capacidade de gestão capaz e racional do seu património”, e onde se conclui que o Beneficiário “embora capaz de exercer direitos pessoais se encontra afetado para efetuar negócios da vida corrente como seja comprar e vender património, pelo que lhe deve ser considerado a necessidade de acompanhamento com esta finalidade”.
M. Em 2018, o Beneficiário/Recorrido, com 83 anos de idade, viúvo da mãe dos seus filhos e sua companheira de toda a vida, veio a casar, em segredo, com a Sra. E… com pouco mais de 50 anos e cerca de trinta anos mais nova que o Recorrido.
N. Dos documentos bancários, que se encontram juntos a fls. 20 a 44, resultava já que o Recorrido, titular de uma elevada pensão de reforma, sem despesas nem encargos (recorda-se que o Recorrido tem casa paga e beneficia de SAMS para todas as despesas de saúde), gastou todo o dinheiro que tinha depositado na sua conta à ordem no H…, deixando-a com saldo negativo e gastou em dois anos todo o valor que tinha em DP (€70.000,00). Na pendência da presente ação o Recorrido/Beneficiário procedeu à venda de uma fração/moradia sita em Tavira, no Algarve, pelo alegado preço de €122.500,00, que já havia prometido vender em 16/08/2019, antes da propositura da ação.
O. Em 15/07/2020, o Tribunal a quo entendeu que se verificava sério risco de o Requerido continuar a vender os seus bens e a despender o seu dinheiro, de forma que à data da prolação da decisão nos autos já nada lhe restasse, e decretou medidas cautelares e urgentes de proteção do Beneficiário, com vista a assegurar que este não dissipasse o seu património, por força de eventual diminuição das suas capacidades cognitivas e volitivas.
P. Estranhamente, e não obstante ter valorado a prova testemunhal e dado como provados os factos que infra se identificarão, o Tribunal a quo decidiu que o Beneficiário se encontra no normal uso das suas capacidades, não sofre de qualquer défice cognitivo que o pudesse impossibilitar de dar o seu consentimento para a propositura da ação com vista ao seu acompanhamento e nem tão pouco se afigurava existir qualquer interesse atendível para suprir o consentimento do Beneficiário - com o devido respeito, bastariam os factos dados como provados na sentença sub iudice para ser admissível o suprimento judicial.
Q. Para o Tribunal a quo o Recorrido está capaz porque não sofre de demência nem de qualquer déficite cognitivo, no entanto, foi dado como provado, que o Recorrido evidencia comportamentos perdulários sofrendo de manipulação – pontos 11, 12, 13, 14, 16, 17, 19, 21, 22, 23, 30, 31, 32, 36, 37, 38 e 40 – por isso, porque o Recorrido pratica atos que demonstram necessidade de acompanhamento, devia ter sido concedido suprimento judicial.
R. Com a presente ação o Requerente Filho não pediu a declaração de demência do Pai – nem a declaração da sua incapacidade – mas sim a aplicação de medidas patrimoniais que o protejam. E existe fundado perigo para a administração e disposição de património do Beneficiário, aqui Recorrido, por isso devia ter sido dado suprimento e decretadas as medidas de acompanhamento requeridas.
Sem prescindir,
S. DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO INCORRETAMENTE JULGADOS - Os pontos 12 e 14 da matéria dada como provada estão em clara contradição com os pontos i) e g) da matéria não provada: se foi dado como provado que o Beneficiário afirmou que a E… é que sabia e passou a perguntar-lhe quase tudo, sendo esta quem decidia todas as rotinas e assuntos domésticos do Beneficiário então foi erradamente dado como não provado que o Beneficiário não contrariava em nada a E… e esta passou a decidir tudo pelo Beneficiário: o que ele tomava, o que ele vestia, onde ele ia, o que ia fazer, o que ia comer!!!!
T. Pelo que se impõe a eliminação dos pontos g) e i) da factualidade não assente por manifesta oposição com os factos dados como provados.
Ainda sem prescindir,
U. DA OMISSÃO DE PRONÚNCIA e FACTOS QUE IMPUNHAM UMA DECISÃO DIVERSA – O DECRETAMENTO DE MEDIDAS – Perante os factos dados como provados nos pontos 12, 13, 14, 16, 17, 19, 21, 22, 23, 25, 30, 31, 32, 36, 37, 38 e 40 da matéria assente impunha-se a conclusão de que o Recorrido carece de acompanhamento que o proteja contra a dissipação de todos os seus bens. Mas o Tribunal a quo não se pronunciou quanto à necessidade de acompanhamento do Recorrido para a gestão do seu património.
V. Com os presentes autos não se pretende indagar da necessidade de acompanhamento do Recorrido para uma simples ida ao café ou para a compra de um jornal, por exemplo. In casu, importa sim a apreciação e eventual declaração de incapacidade do Recorrido para gerir o seu património perante a dissipação quase total dos seus bens e poupanças nos últimos tempos. E quanto a isso o Tribunal a quo não se pronunciou!
W. A decisão recorrida é assim nula por omissão de pronúncia, nos termos previstos pelo artigo 615º, nº1, alínea d) do C.P.C.
Sem prescindir,
X. DOS CONCRETOS MEIOS PROBATÓRIOS QUE TAMBÉM IMPUNHAM DECISÃO DIVERSA: Resultou do depoimento da Testemunha Prof. Dr. J…, médico especialista em psiquiatria forense, membro do colégio de Psiquiatria Forense na Ordem dos Médicos e Perito judicial, gravação 20191206142446_15528147_2871548, que o facto do Recorrido ser aparentemente capaz de realizar as tarefas da vida diária, não determina que esteja capaz de reger sozinho o seu património.
Y. Com o devido respeito, a Mma. Juiz a quo apreciou erradamente os factos dados como provados. Na sentença recorrida confunde-se a parte com o todo!!
Z. A Mma. Juiz a quo manifestamente agarrada à questão da existência ou não de doença psiquiátrica e à (provada) autonomia do Recorrido para as atividades instrumentais da vida diária (uso de dinheiro, uso do Multibanco, pagamento de pequenas compras) e atividades básicas da vida diária (deambulação, higiene pessoal, banho, vestuário e alimentação), reconhece que o Recorrido é pessoa capaz de tratar dos assuntos correntes da sua vida, mas tal não significa que, de per si, o Recorrido esteja capaz para gerir de forma racional a sua pessoa e o seu património.
AA. Do parecer da primeira perícia realizada pelo Tribunal e do parecer do Prof. J… resulta que o beneficiário se encontra incapaz para reger a sua pessoa e o seu património, o que aliás determinou a aplicação, pelo Tribunal, de medidas cautelares!!!!! Mas que não é isso, ou não é só isso, que aqui está em causa! E da segunda perícia, devidamente impugnada e objeto de reclamação, resulta que o beneficiário não padece de doença psiquiátrica e que está autónomo apenas para atividades correntes.
BB. A Mma. Juiz a quo deu como provados os factos referidos em 6, 11 a 23, 29, 30 a 40, de onde resulta que o beneficiário mudou radicalmente a sua personalidade, os seus hábitos, e características, se tornou dependente de uma empregada doméstica com quem casou com mais de 80 anos, numa altura de grande fragilidade e de doença e que se tornou perdulário.
CC. Sem dúvida que a prodigalidade e a dependência do beneficiário da sua atual e jovem mulher estão provadas sub iudice, e são-lhe prejudiciais, atuais e com caracter de permanência.
DD. O Beneficiário já gastou e perdeu quase tudo – o que amealhou durante uma vida (70 mil euros) a herança que recebeu( 30 mil euros) a casa que vendeu (122.500 euros) sendo um Senhor que nada paga a titulo de despesas de saúde ( tem SAMS dado que foi funcionário bancário) e tem casa própria auferindo uma reforma de 1.200 euros líquidos!!!!!!
EE. A Mma. Juiz a quo deu como provados os factos constantes dos pontos 77 a 85 da matéria de facto provada mas não analisou a prova nem apreciou a capacidade ou incapacidade do Sr. C… em face das circunstâncias concretas que deu como provadas nos pontos 11, 12, 13, 14, 16, 17, 19, 21, 22, 23, 25, 30, 31, 32, 36, 37, 38 e 40 enunciados na sentença recorrida.
FF. Também não se compreende que o Tribunal a quo na decisão que proferiu não tenha tido em consideração a história de vida do Recorrido e, sobretudo, os traços de personalidade mais marcantes e que eram por todos conhecidos.
GG. O Recorrido pode estar capaz de fazer pagamentos de contas, compras de supermercado, tomar banho, exprimir a sua vontade, mas não estar, como não está, capaz de reger convenientemente o seu património e por isso carecer, como carece, que lhe sejam impostas medidas cautelares tendo em vista acautelar o seu fim de vida.
HH. Se o Recorrido, mesmo continuando a auferir mensalmente uma pensão de cerca de €1.200,00, esvaziou todas as suas contas bancárias, gastou cerca de €70.000,00 e, mais recentemente, vendeu parte do seu património não sendo capaz de dizer onde se encontra o produto desta venda (de €122.000,00), será uma pessoa capaz que não necessita de acompanhamento? Se estes comportamentos não são típicos de uma pessoa prodiga, então, não sabemos o que será…
II. Pelo que não devia ter sido dado como provado na factualidade assente que o Recorrido está capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais, quer sejam pessoais (Ponto 82 da matéria assente).
JJ. Acresce ainda, dos referidos depoimentos das testemunhas Prof J…, Dr. K…, L…, M… e D… resultou provado que o Beneficiário está incapaz de reger a sua pessoa e bens ou que carece da aplicação de uma medida que o proteja das suas dependências de terceiros.
KK. Mas, mesmo que assim não se entenda, o que não se concebe, a matéria de facto dada como provada, seria suficiente para, de forma manifesta, autorizar o suprimento e serem aplicadas medidas de acompanhamento ao Beneficiário.
LL. A Primeira Instância não tomou em consideração a história de vida do Recorrido e, sobretudo, os traços de personalidade mais marcantes e que eram por todos conhecidos.
MM. Pelo que apreciada e valorada a matéria de facto dada como provada, deve, com o devido respeito, ser revogada a sentença proferida no sentido de conhecimento da pretensão do Requerente.
Por último,
NN. A sentença recorrida não apreciou, não fez uma análise crítica dos resultados da TAC realizada ao Recorrido em 21.01.2019, onde o Recorrido apresentava já uma atrofia cortico-subcortical generalizada com leucoencefalopatia isquémica associada a múltiplas lesões isquémicas não recentes lenticulopcapsulares bilaterais. E, o Recorrido desde que completou 80 anos de idade começou a revelar os primeiros sinais de alheamento, desconcentração e desorientação (começou a esquecer-se, frequentemente, de acontecimentos e conversas; demorou 12h a efetuar o trajeto Algarve – Porto; deixou de comentar e de revelar uma atitute crítica sobre a atualidade social, política e cultural como era seu costume, remetendo-se sempre ao silêncio, mesmo quando questionado pelos filhos e nora) – cfr. depoimento prestado pela testemunha Dra. M…, aos minutos 25:27 a 26:05; 26:08 a 27:20; 22:39 a 23:00; 30:53 a 31:30 e 1:04 a 1:05 da gravação 20191206142421_15528147_2871548 e demais depoimentos supra refereidos.
OO. Erradamente, o Tribunal a quo não considerou a prova documental (extratos bancários), a prova testemunhal e a prova pericial que, de forma clara e rotunda, apontam no sentido de que o Recorrido necessita veemente de medidas cautelares com vista a que não dissipe (ainda mais) o seu património.
PP. O Recorrido caminha para uma situação em que não terá mais nenhum ativo para vender ou algum dinheiro para sobreviver… O Recorrido que sempre foi um homem poupado, austero mesmo nos seus gastos e que sempre privilegiou a poupança em detrimento de qualquer despesa!!
QQ. Em conclusão, mesmo que a Mma. Juiz a quo entendesse que o Beneficiário não se encontra demente e tal conclusão se alicerçasse na prova pericial, sempre existiria prova documental e testemunhal rotunda e absoluta nos autos que o Recorrido se tornou uma pessoa prodiga assim se justificando a aplicação de medidas que o protejam.» (sic)
Pretendem assim a revogação da sentença e a sua substituição por outra que decrete a necessidade de acompanhamento do recorrido para onerar e/ou vender o seu património.
*
O Ministério Público e o Requerido responderam autonomamente em contra-alegações, defendendo a confirmação do julgado.
O Requerido produziu as seguintes CONCLUSÕES:
«1- Pugnamos pela ILEGITIMIDADE dos recorrentes, em ambos os casos porque foram testemunhas no processo contra o beneficiário, e nos termos do preceituado no artigo 631.º do CPC dada FALTA DE PREJUIZO, nos termos do preceituado no artigo 631.º n.º 2 primeira parte do CPC, e,
2- DA NÃO VERIFICAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DE RECURSO E FALTA DE PREJUIZO IRREPARAVEL, face aos os meios probatórios concretizados, pela prova documental promovida e auto de audição do beneficiário, redigida a escrito, e foram cumpridos os requisitos dos artigos 141.º, 143.º do C.Civil , bem como em vida não provam a existência de prejuízo e após falecimento podem repudiar a herança do beneficiário.
3- O recorrente ( filho do beneficiário e irmão do requerente falecido neste processo) não teve intervenção principal no presente processo desde o seu inicio, após falecimento do requerente e não deduziu qualquer incidente para poder habilitar-se a posição de parte principal, bem como foi testemunha a quando da realização de audiência de julgamento;
4- PESSOAS DIRECTAMENTE E EFECTIVAMENTE prejudicadas pelo despacho, visariam quando muito que sejam afectadas na sua esfera patrimonial e/ou pessoal, e consta do processo, o beneficiário após o falecimento da mãe dos seus filhos procedeu a escritura de partilha de bens e numerário existente ( v. PI), pelo que não existe qualquer sonegação de bens ou prejuízo para alguém, bem como refutamos o efeito suspensivo do mesmo pela ocorrência de legitimidade na sua interposição e não ser enquadrável nas normas que permitem a sua atribuição.
5- No tocante à restante materia alegada em sede recurso, vejamos o historial do processo, com Douto Despacho que se transcreve parte é “CONCLUSÃO - 15-07-2020
*
I – B…, casado, residente na Rua …, …, …, …. - … Porto, instaurou a presente ação especial de acompanhamento de maior, contra seu pai, C…, residente na Av. …, …, …, …. - … Matosinhos.
Na pendência da ação o Requerente veio requerer:
a) que se ordene que o Requerido fique a título provisório e cautelar impedido de alienar imóveis sem a autorização prévia ou acompanhamento para a prática dos mesmos pelo seu filho D…; ou b) que se decrete que a alienação de qualquer imóvel depende da autorização judicial prévia e específica;
c) que se ordene que o Requerido só poderá movimentar o produto da venda e os saldos de todas as suas contas bancárias desde que acompanhado pelo referido filho ou impor o congelamento de todas as suas contas bancárias á exceção do valor da pensão de reforma.
d) que se ordene que sejam oficiadas as Conservatórias do Registo Predial de Tavira e de Matosinhos, para efetuarem um registo provisório de anulação da venda nos termos do disposto na alínea a), do nº 1, do art. 92º e da alínea b), do nº 1, do art. 3º, do C.Registo Predial.
O Beneficiário não se pronunciou quanto ao Requerido.
O Ministério Público promoveu que, face ao teor dos relatórios periciais se defira parcialmente o requerido, apenas no que toca a ordenar que o Requerido só poderá movimentar o produto da venda e os saldos de todas as suas contas bancárias desde que acompanhado pelo referido filho ou impor o congelamento de todas as suas contas bancárias à exceção do valor da pensão de reforma.
O tribunal notificou o Beneficiário para informar se já adquiriu outra casa, com o produto da venda do imóvel sito em … e, em caso negativo, que destino deu ao dinheiro que recebeu, ao que este veio informar que apresentou a várias imobiliárias do Distrito do Porto a sua intenção de aquisição de imóvel para arrendar, aguardando a apresentação de imóvel nas condições pretendidas e que o valor em causa se encontra na sua titularidade.
II - Cumpre decidir.
O art. 139º, nº 2 do C.Civil, prevê que, em qualquer altura do processo de acompanhamento de maior podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.
No caso em apreço, encontram-se a decorrer ainda diligências instrutórias, que permitam a prolação de decisão quanto à necessidade de aplicação ao Beneficiário de medida de acompanhamento, mais especificamente a realização de segunda perícia médica.
Todavia foi já realizada primeira perícia em cujo relatório consta que o Beneficiário, “apresenta um défice cognitivo ligeiro” e que “este défice das funções executivas, embora não o prejudique ainda no exercício de direitos pessoais o afeta na capacidade de gestão capaz e racional do seu património”.
E conclui-se que o Beneficiário “embora capaz de exercer direitos pessoais se encontra afetado para efetuar negócios da vida corrente como seja comprar e vender património, pelo que lhe deve ser considerado a necessidade de acompanhamento com esta finalidade”.
Conforme resulta do assento de nascimento do Beneficiário, junto a fls. 10, este tem 84 anos de idade.
Dos documentos bancários, que se encontram juntos a fls. 20 a 44, resulta que o beneficiário gastou todo o dinheiro que tinha depositado na sua conta à ordem no H…, deixando-a com saldo negativo.
Dos documentos juntos aos autos extrai-se ainda que o Beneficiário era à data da propositura da ação proprietário de dois imóveis: designadamente uma fração autónoma sita na freguesia de …, em Tavira, descrita na Conservatória do Registo Predial de Tavira sob o nº 314/19890818-D (cfr doc. junto a fls. 65) e uma fração autónoma sita na Avenida da Liberdade, em Matosinhos (cfr. doc. junto a fls.124 e ss), onde reside.
Na pendência da presente ação o Beneficiário procedeu à venda da referida fração sita em Tavira, pelo preço de €122.500,00, que já havia prometido vender em 16/08/2019, antes da propositura da ação.
Face à perícia realizada, mostra-se fortemente indiciado que o Beneficiário careça da aplicação de medida de acompanhamento, pelo menos no que respeita à administração dos seus bens.
Não obstante a urgência dos autos, certo é que não se encontram ainda reunidas as provas necessárias à prolação da decisão definitiva, encontrando-se a segunda perícia marcada apenas para 18/08/2020, atento o atraso decorrente da infeção epidemiológica por SARS-CoV2, sendo que após a sua realização terá ainda que se aguardar a apresentação do respetivo relatório, não sendo ainda previsível a data em que a sentença possa ser proferida.
Verifica-se, assim, o sério risco de o Requerido continuar a vender os seus bens e a despender o seu dinheiro, de forma que à data da prolação da decisão nestes autos já nada lhe reste que possa vir a ser acautelado com a medida a aplicar.
Consideram-se, assim, verificados os pressupostos legais para a aplicação de medidas cautelares e urgentes de proteção do Beneficiário, com vista a assegurar que este não dissipa o seu património, por força de eventual diminuição das suas capacidades cognitivas e volitivas.
Já a requerida comunicação às Conservatórias do Registo Predial para efetuarem registo provisório de anulação da venda do imóvel sito em Tavira carece de fundamento legal, sendo que não existe qualquer ação de anulação que possa vir a ser objeto de registo provisório por este tribunal, nos termos previstos no art. 3º, do C.Registo Predial.
III - Assim, determino:
a) que o Beneficiário fique provisoriamente impedido de alienar, onerar, ou prometer alienar ou onerar bens imóveis, sem expressa autorização do tribunal para esse efeito;
b) que o Beneficiário fique provisoriamente impedido de movimentar, por quaisquer meios, a débito, as contas bancárias de que é titular ou contitular, designadamente a conta bancária com o nº ………… do H…, sem o acompanhamento do seu filho D…, devendo este assegurar- lhe a entrega mensal das quantias que venham a ser aí depositadas a título de reforma e o mais que se lhe afigurar necessário para a normal subsistência e organização de vida do Beneficiário, de acordo com o seu padrão social e, consequentemente ser desativados os cartões de débito e crédito do Beneficiário, e acessos às contas bancárias pela internet;
c) que o Beneficiário, no prazo de 10 dias, deposite à ordem destes autos o produto da venda da fração autónoma sita em Tavira, caso o mesmo se não encontre depositado em conta bancária sua.
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Para tanto oficie, de imediato, o H…, para que dê imediato cumprimento à medida referida em II b); e comunique a presente decisão ao Banco de Portugal, para que a difunda pelas demais instituições bancárias.
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Notifique, sendo igualmente notificado da decisão, o filho do Requerido, D…. “ (negrito nosso)
6- Desde logo importa compulsar o processo porque se nos limitarmo-nos ao referido despacho a conclusão ali retirada é errónea e sem nexo de causalidade ou ligação temporal/fáctica.
7- Vejamos que o A. (filho B… do denunciante) deu entrada da presente acção no dia 03-09-2019, pedindo “Declarando-se a necessidade de acompanhamento de C…, decretando-se a sua incapacidade para a prática de actos de alienação e oneração de bens, móveis e imóveis e proibição de movimentação de saldos bancários.
Mais requer seja nomeado para acompanhante seu filho D… devendo, representar o beneficiário, em todos os seus negócios, e movimentar as contas bancárias, efetuar depósitos e levantamentos, assinar, fazer transferências, desmobilizar e movimentar aplicações financeiras, assinar correspondência, retirar das estações de correio cartas registadas, Mais requer a V. Exa. se digne deferir o suprimento e dispensa da autorização do beneficiário, face às circunstâncias e impossibilidade deste a conceder de forma livre e consciente.”
8- E ainda pede, uma MEDIDA CAUTELAR URGENTE, 1.Atendendo ao supra alegado que aqui se dá por integralmente reproduzido e integrado, á demência resultante do TAC, e á eminência da celebração do contrato promessa relativo ao imóvel de Tavira pertencente ao Reqdo.
Requer seja a imobiliária, infra identificada, notificada parasuspender qualquer diligência de venda e/ou a assinatura de qualquer contrato de promessa de venda ou venda a celebrar pelo Reqdo. até que exista decisão nestes autos:
- Imobiliária G…, Centro Empresarial … – Estrada …, nº …., …. - … Porto. Mais requer seja provisoria e cautelarmente decretada a incapacidade do Reqdo. para onerar e/ou vender o seu património, e ainda sejam oficiados os Serviços Centrais dos Registos e Notariado de que o Reqdo. está impedido de vender qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo.
9- Ainda junta documentos na PI e em concreto o doc sob o n.º 7 (fotografias da venda do apartamento en tavira, com valor, fotografias e mediadora mobiliária),
10- Mas por Douto Despacho, Ref 406856368 CONCLUSÃO - 04-09-2019 o Tribunal entendeu que “Por seu turbo, os elementos probatórios, de natureza documental que constam dos autos não permitem decretar, de imediato, nenhuma das providências requeridas. Contrariamente ao defendido pelo Requerente, não se encontra junto aos autos qualquer documento que permita ao tribunal concluir que o Requerido C… se encontra demente, sendo que o documento junto a fls. 55, único documento médico junto pelo Requerente não habilita o tribunal, que não tem conhecimentos médicos, a retirar uma tal conclusão.”
11- O A., veio requerer a junção aos autos de Parecer Psiquiátrico-Forense pelo Prof Doutor J…, referente ao Demandado C… em 17/09/2019, COM PARECER NÃO PRESENCIAL DE MEDICO PSIQUIATRA, mas sim baseado em testemunhos de noras e filhos e um TAC do mesmo de cerca e dois anos, e na pág 7 desse Relatorio, ponto 8. In fine, diz que ora se transcreve:”
Porque as alterações que uma TAC revela, embora possam ser muito indiciadoras de demência, não são sinonimo de demência. O diagnostico necessita de suporte clinico.”
12- Face a este Parecer junto pelo o A., foi dada vista ao MP, que por Vista - 20-09-2019 conclui “Fl.s 104 a 112 – Porquanto o documento junto, como declarado em “metodologia” não assentou em exame directo, o que se configura como impositivo, face ao alegado, o que se requer.
13- O ora recorrente apresenta a sua CONTESTAÇÃO no dia 23/09/2019 e junta em REQUERIMENTO EM 25/09/2019, com o Relatório Psiquiátrico, de 24 de Setembro de 2019, PRESENCIAL, pelo Dr. F…, Psiquiatra, sob o n.º 1, o Relatório Psicológico, de 23 de Setembro de 2019, PRESENCIAL, pela Dr.ª N…, sob o n.º 2 e Anexos da Informação Clinica e Desenho sob os n.ºs 3 e 4, que ATESTAM A SUA CAPACIDADE.
14- Foi solicitada ao INML, a realização, com a maior urgência, de exame pericial médico ao beneficiário, precisando se possível, a afeção de que sofre; as suas consequências; a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis, remetendo cópia dos autos, para melhor esclarecimento – art. 896º do C.P.Civil.
15- O beneficiário é notificado para comparecer no Tribunal e ser ouvido presencialmente em 18/10/2019, cujo auto foi redigido a escrito e constante dos autos que ora se transcreveu nas alegações, em que lhe é inquirido tudo o que padece de esclarecimento e alegado na PI do A. e outras questões normais para apreciar da sua consciência perante pessoas e realidade.
16- Foi elaborado o Relatório pelo IML apos consulta com o próprio e pedido de documentos do processo, mas dadas as dúvidas foi convocado o Perito para prestar declarações, o que se realizou em 28.01.2020, pelo Dr. K…, perito médico do INML do Porto, em que considera o beneficiário com capacidade pessoal mas não patrimonial mas sem qualquer elementos que permita concluir dessa forma.
17- E indica na sua inquirição que recebeu do Tribunal para apreciação, a PI e documentos anexos e relatórios juntos pelo beneficiário ( e não a CONTESTAÇÃO DESTE E documentos juntos).
18- NÃO SE CONSEGUE PERCEBER PORQUE RETIRAR CAPACIDADE NA PARTE PATRIMONIAL AO BENEFICIÁRIO E A ANALISE FICOU seriamente afectada com falta de elementos, dados os documentos que lhe foram enviados, quer subjectivamente quer com incoerências.
19- E O Tribunal decidiu em CONCLUSÃO - 28-02-2020 que, “ Face à contradição entre os exames psiquiátricos ao beneficiário realizados particularmente, quer a solicitação dos filhos do beneficiário, sem exame do mesmo, pelo Prof. Doutor J…, constante de fls. 105 dos autos, quer solicitado pelo próprio beneficiário, com exame do mesmo, pelo Dr. E…, constante de fls. 137, e uma vez que a perícia realizada pelo Dr. K… no INML, constante de fls. 232, com os esclarecimentos prestados em audiência, se não afigura suficientemente esclarecedora, considera o tribunal, necessária à boa decisão da causa a realização de segunda perícia médica, conforme doutamente promovido pelo Ministério Público.
Não se afigura, porém, necessária a realização de perícia colegial.
Assim sendo, determino a realização de segunda perícia, nos termos previstos no art. 487º, do C.P.Civil.
*
Solicite a secretaria ao Hospital O… a realização da segunda perícia, informando que, não obstante seja do conhecimento deste tribunal a geral recusa desse hospital de realização de perícias médicas em processo de acompanhamento de maior, houve perícia anterior realizada pelo INML, pelo Dr. K…, que o tribunal não considerou suficientemente esclarecedora, e que face às dúvidas, carece o tribunal da realização de uma nova perícia, a realizar por outro médico psiquiatra experiente e independente daquele instituto, com vista à boa decisão da causa, solicitando, para esse efeito a excecional colaboração daquele hospital.
Para melhor esclarecimento envie cópia da petição inicial e da contestação, sem os respetivos documentos de suporte, com exceção do assento de nascimento do Requerido e ainda da informação clínica do Hospital P…, constante de fls. 134; do relatório de TAC cerebral constante de fls. 55; do parecer realizado pelo Prof. Dr. J…, a pedido dos filhos do beneficiário, sem exame deste e mediante informação prestada pelos familiares que têm interesse no desfecho desta ação, no factos invocados por um deles para sustentar apresente ação e ainda do relatório psiquiátrico realizado pelo Dr. F… e do relatório psicológico realizado pela Dra N…, após exame do beneficiário, constantes de fls. 136 a 139.”
20- E veja-se que COLMATA a questão dos documentos enviados para esta Instituição para “quebrar” qualquer parcialidade ou manipulação de pensamento, e o A. veio apresentar um requerimento no dia 04-05-2020 a informar da venda do imóvel prometido vender pelo beneficiário, tendo sido promovido Douto Despacho a NOTIFICAR O BENEFICIÁRIO A 26.05.2020 para vir confirmar e este apresentou requerimento 02/06/2020 a dar resposta ao Tribunal.
21- Só que o Douto Despacho c/CONCLUSÃO - 23-06-2020, veio dizer que :” Uma vez que o Requerido não prestou a informação que lhe foi solicitada,” e com grande surpresa do beneficiário com esta conclusão, deu entrada de NOVO REQUERIMENTO A 29-06-2020 A COMUNICAR A RESPOSTA QUE DEU AO PROCESSO EM 02-06-2020 a justificar o pedido.
22- Se a resposta não fosse conclusiva ou esclarecedora o Tribunal deveria pedir isso mesmo ao abrigo do artigo 6 .º do CPC e não concluir: NÃO RESPONDEU.
23- Com o devido respeito se o Tribunal entendeu ab initio e ao longo do processo NÃO DECIDIR pela medida cautelar em causa ( foi a que foi pedida pelo A.) por não entender não reunir os meios de prova da incapacidade do beneficiário,
24- Afinal o Perito nomeado pelo tribunal do IML não trouxe qualquer segurança ao Tribunal para decidir (V. Despacho acima), e decide nomear outro ( será o 5.º embora o 4.º presencial) porque ficou na estaca “0”, mas agora serve para ancorar o despacho, e com transcrições do Relatorio que criaram a tal DUVIDA !
25- Mas TRIBUNAL quando recebe A PERICIA (NOVA) PELO HOSPITAL O… AO BENEFICIÁRIO cancela todas as medidas e decide.
27-MAS com douta sentença fundamentada em prova fundamental, para além de o Tribunal ter acesso e já que esteve a inquirir o beneficiário e veja-se a sua inquirição em que questionou inúmeras situações ao que este respondeu, nomeadamente vender a casa de Tavira para reinvestimento casa no Norte, os gastos que estavam nos extractos que se juntaram à PI etc, ou seja, FOI QUESTIONADA A PI NA SUA TOTALIDADE, e agora servem de ancora como se não tivesse tido resposta às duvidas, para limitar a sua vida nesta fase ?
28- E ainda que assim não fosse a proceder o recurso viola o vertido no artigo 143.º do C Civil, porque sabe que o beneficiário é casado e não justifica a nomeação do Filho ali id., sem mais, e sem inquirir se este teria condições para tal, porque deveria ser chamado o cônjuge para cumprimento da lei civil.
29- E nesta parte é manifesto a falta de fundamento legal e fundamento para a violação em causa.
30- A ser indeferida ilegitimidade dos recorrentes e deferido o recurso interposto, ficariam violados os princípios do contraditório pleno, igualdade, estabilidade da instancia, vertidos nos artigos 3.º, 4.º, 620.º e 621.º do CPC e 141.º, 143.º do C.Civil». (sic)
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O Ministério Público sintetizou assim as suas contra-alegações:
«1. A exceção prevista na norma do n.º 2 do art. 631.º do CPC remonta a tempos antigos, consagrada por influência da jurisprudência e doutrina, porquanto, até então, apenas as partes principais podiam recorrer. Permitiu-se, desse modo, que aquele que tivesse sido “prejudicado diretamente” pela decisão podia impugná-la mediante recurso. O prejuízo não podia, por um lado, ser “indireto ou reflexo” e, por outro, tinha de ser “atual e positivo”, não sendo “suficiente o prejuízo eventual, incerto e longínquo” , não se alcançando que os recorrentes se encontrem em tal situação.
2. O Beneficiário encontra-se no normal uso das suas capacidades, não sofrendo de qualquer défice cognitivo, doença psiquiátrica ou anomalia permanente da personalidade, que o pudessem impossibilitar de dar o seu consentimento para a propositura de uma ação com vista ao seu acompanhamento, caso assim o entendesse. Tão pouco se afigura existir qualquer interesse atendível para suprir o consentimento do Beneficiário, que este não concedeu quer ao Requerente, quer aos recorrentes.
3. Não se alcança qualquer contradição entre a matéria de facto dada como provada e a dada como não provada, pois uma não implica a outra.
4. Não se deferiu o pedido de suprimento de consentimento do Beneficiário para a propositura da presente ação, não se perscrutando qualquer necessidade de acompanhamento, em qualquer uma das suas formas, o que ficou claro da leitura da sentença.
5. Decorre do artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
6. Da prova testemunhal resultou pacífica a convicção de que o Requerido se encontra capaz de decidir da sua vida, quer em questões pessoais, quer patrimoniais, quer correntes, quer mais complexas.
7. Por tudo o exposto, concorda-se com a sentença de proferida pela Mma Juiz do Tribunal a quo a 23-10-2020.
Ambos os recorridos defendem a confirmação da sentença.
*
Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação da sentença, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil[2]).
As questões a decidir são as seguintes:

1. O efeito do recurso.
2. Legitimidade do recorrente D…;
3. Do suprimento da autorização do Beneficiário para a propositura da ação;
4. Erro na decisão proferida em matéria de facto;
5. Omissão de pronúncia;
6. O decretamento de medidas de acompanhamento.
*
III.
O tribunal deu como provados os seguintes factos[3]:
1 – O Beneficiário nasceu no dia 27/05/1936, na freguesia de …, concelho de Matosinhos, e é filho de Q… e de S….
2 – O Beneficiário casou-se catolicamente com T… em 06/04/1963.
3 – Este casamento foi dissolvido por óbito da mulher em 13/10/2007.
4 – O Beneficiário é pai do Requerente, B…, seus únicos filhos, ambos nascidos do casamento com T….
5 – A referida primeira mulher do beneficiário ficou doente, padecendo de E.L.A. – Esclerose Lateral Amiotrófica - doença que é incapacitante e progressiva.
6 – Foi então contratada E…, de nacionalidade brasileira, para cuidar da referida mulher do Beneficiário.
7 – À data do falecimento de T… trabalhavam na casa U…, como empregada doméstica, a dias, e E… com a função de cuidadora da doente.
8 – O beneficiário é pessoa muito conservadora.
9 – Em 2009 a D. E… foi readmitida em casa do Beneficiário para cuidar e tratar deste, tendo o mesmo referido à família que já não se sentia autónomo e que precisava de apoio diário.
10 – O Beneficiário dispensou os serviços da empregada U…, que tinha mais de 15 anos de casa.
11 – A partir de então E… passou a desempenhar sozinha as funções diárias de cuidadora do beneficiário e de sua empregada.
12 – Nos anos seguintes E… tornou-se imprescindível ao Beneficiário, passando a comportar-se como “a senhora da casa”, tendo passado a decidir o que tinha de se tratar na casa e mudado a decoração.
13 – Em data não concretamente apurada, o Beneficiário passou a viver com E… em casa daquele.
14 – O Beneficiário dizia que a E… é que sabia e passou a perguntar-lhe quase tudo, sendo esta quem decidia todas as rotinas e assuntos domésticos do Beneficiário.
15 – No início de 2017, foi diagnosticado ao Beneficiário doença grave de origem cancerígena, que o debilitou muito, física e psicologicamente.
16 – O Beneficiário era profundamente católico, de uma família tradicional; e na sua juventude fez parte da JIC (Juventude de Intervenção Católica) de Matosinhos.
17 – O Requerido passou a acompanhar E… ao culto evangélico que esta frequenta.
18 – Durante a fase mais aguda da doença, o Beneficiário deixou de poder sair de casa e de frequentar a casa do filho D…, onde se deslocava semanalmente.
19 – Porque inicialmente o Beneficiário não se sentia com forças para sair de casa, o filho D… passou a efetuar visitas no domicílio do pai, sendo que nas mesmas a D. E… permanecia sempre na sala, o que não permitia qualquer conversa do Beneficiário com o seu filho, nem com a sua família.
20 – A D. E… comentava com empregadas e vizinhas, a sua intenção de se casar com o Beneficiário.
21 – O Beneficiário sempre negou, perante os filhos e cunhados a intenção de se casar, dizendo expressamente que nunca o faria.
22 – Em 22/10/2018, o Beneficiário contraiu casamento com E…, sem convite, nem presença de nenhum familiar do Beneficiário, tendo este anunciado tal facto aos filhos na véspera ou antevéspera do acontecimento.
23 – Entretanto o Beneficiário já se havia afastado de toda a sua família, designadamente dos primos e cunhados mais próximos.
24 – O Beneficiário foi sempre uma pessoa contida e rigorosa com a forma como sempre ponderou todas as suas despesas e era para todos os que o rodeavam o ícone da poupança e da honestidade.
25 – Durante toda a sua vida o Beneficiário foi uma pessoa extremamente poupada, tendo sido educado de forma espartana e vivido espartanamente.
26 – Não fazia despesas em cinema, teatro, concertos, nem em refeições fora de casa.
27 – Raramente frequentava restaurantes e cafés,
28 – Nunca tinha efetuado grandes viagens, excetuando algumas idas a Espanha,
29 – Não comprava artigos de marcas caras.
30 – A partir do momento em que o Beneficiário passou a viver com E…, mudou radicalmente o seu comportamento relativamente às rotinas e ao modo como passou a usar o dinheiro.
31 – O Requerido gastou todas as suas poupanças, passando a levantar elevados montantes com muita frequência, e a gastar dinheiro na aquisição de roupas em centros comerciais, e em comida de restaurante.
32 – O que anteriormente não admitia na sua vida familiar.
33- Por força do seu casamento com E…, o Beneficiário deixou de auferir a pensão de sobrevivência da sua primeira mulher, que constituía uma parte substancial do seu rendimento mensal e passou a gastar todos os seus rendimentos.
34 – O Beneficiário aufere reforma no valor de €1.200,00 líquidos.
35 – Não tem, nem tinha, empréstimos, nem rendas a pagar.
36 – Desde 30/01/2017 a 22/07/2019 o Beneficiário gastou, da sua conta no H…, pelo menos €70.000,00.
37 – Tendo, nos meses anteriores à propositura da ação usado dinheiro a descoberto que o banco põe à sua disposição, o que nunca anteriormente tinha ocorrido, ficando regularmente com a conta a descoberto.
38 – Antes de viver com E…, o Beneficiário era muito controlado nos gastos, muito organizado nas contas e documentação associada e tinha elevados saldos bancários, sendo incapaz de gastar o que não tinha.
39 – O Beneficiário passou a frequentar o culto evangélico ao domingo à tarde, em horário em que era normalmente visitado pelo seu filho D….
40 – Em 2017 e 2018 o Beneficiário deslocou-se duas vezes ao Brasil, tendo ficado alojado em casa de familiares da sua atual mulher, no que despendeu aproximadamente €10.000,00.
41 – Foram as únicas viagens de avião que o Beneficiário efetuou em toda a sua vida, sendo que anteriormente sempre se havia recusado a fazer férias noutro local que não o Algarve.
42 – Em data não concretamente apurada o Beneficiário vendeu dois quadros que lhe foram dados pelo seu amigo de infância, V….
43 – O Beneficiário costumava deslocar-se ao volante do seu próprio automóvel, pelo menos duas vezes por ano a Tavira, no Algarve, frequência que aumentou a partir de 1992, ano em que com a sua primeira mulher adquiriu um apartamento em …, Tavira.
44 – O Beneficiário conhecia esse trajeto de cor, por o fazer com muita frequência.
45 – O montante auferido pelo Beneficiário e sua mulher, como remuneração do seu trabalho e heranças permitiram àqueles adquirir, quer o apartamento onde o Beneficiário reside, em Matosinhos, quer o apartamento do Algarve, sem recurso a qualquer financiamento bancário.
46 – O Beneficiário sempre teve uma grande paixão pelo Algarve e pela praia.
47 – Em Abril de 2020, já na pendência da ação, o beneficiário vendeu o apartamento que tinha em …, Tavira, por €122.500,00, e que já havia prometido vender em 16 de agosto de 2019, conforme documento junto a fls. 98, e 99, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
48 – O beneficiário fez TAC cerebral em 21/01/2019 que revela que o mesmo padece de atrofia cortico-subcortical generalizada com leucoencefalopatia isquémica associada, com múltiplas lesões isquémicas não recentes lenticulocapsulares bilaterais – cfr. doc. junto a fls. 55, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
49 – A filha, genro e netos de E… atualmente residem em permanência em casa do Beneficiário.
50 – O Beneficiário disse ao seu filho D… que pessoas que frequentava a sua casa dela levavam peças de decoração.
51 – O filho do Beneficiário, D…, desde que se apercebeu do elevado número de levantamentos de dinheiro da conta bancária daquele, feitos em ATM, que questiona o seu pai quanto a esses levantamentos, advertindo-o de que este comportamento o poderá levar à sua falência financeira, respondendo-lhe o Beneficiário que a situação está controlada.
52 – O Beneficiário mantém a sua mobilidade física total.
53 – O Beneficiário desloca-se em 4 ou 5 dias da semana sozinho ao quiosque perto da sua residência para comprar o jornal.
54 – O Beneficiário acede pessoal e diretamente, a um escritório de contabilidade, onde trata das questões relativas ao seu IRS e sua entrega, bem como aos pagamentos relativos a IUC, IMI e outros valores que como contribuinte tenha que regularizar.
55 – Aí conversa sobre assuntos dessa natureza do seu interesse, entrega a documentação pedida, coloca questões e procede aos pagamentos pedidos.
56 – O Beneficiário mantém os passeios a pé, na zona envolvente do seu apartamento, ou desloca-se no seu veículo automóvel para locais em que a distância não permite a deslocação pedonal, incluindo as referidas viagens para o algarve, até ter vendido o apartamento sito em Tavira.
57 – Para combater o cancro no pulmão, o Beneficiário foi submetido a dois ciclos de quimioterapia, que lhe causaram efeitos secundários como enjoos e vómitos, tendo passado a fazer radioterapia diariamente, que terminou em 24/05/2017o que já terminou na pendência da ação.
58 – O cancro trouxe ao Beneficiário, alguma dificuldade em falar, porque a sua voz expressa rouquidão e baixo volume, pelo arfar no peito, conseguindo porém, o Beneficiário manter perfeito diálogo com qualquer pessoa.
59 – O Beneficiário sempre esteve autónomo, sem prejuízo da sua idade de hábitos, sendo que sempre necessitou que lhe fossem confecionadas as refeições, porque nunca aprendeu a cozinhar; que fossem preparadas as suas roupas ara vestir; que fosse a roupa lavada e passada e que fosse limpa a casa, daí ter tido sempre o apoio de E…, empregada doméstica,
60 – Dado que no tempo dos seus pais era assim que funcionava, por se entender serem tais tarefas atribuídas às mulheres.
61 – O Beneficiário trata da sua higiene pessoal, faz a barba, toma banho e veste-se, sozinho e sem qualquer dificuldade.
62 – Pela estima e amizade que foi criada pelo apoio que lhe foi prestado por esta foi crescendo grande afeição, tendo o Beneficiário decidido casar com a mesma.
63 – Após o falecimento da sua primeira mulher, o Beneficiário foi interpelado pelo seu filho B…, para fazer a partilha ela morte daquela.
64 – Tendo sido realizada a habilitação com partilha dos imóveis existentes, em 20 de novembro de 2009, pelo Cartório Notarial, da Dra W…, em que foram adjudicados ao Beneficiário os dois imóveis – apartamentos de Matosinhos e de Tavira, tendo este procedido ao pagamento de tornas aos seus dois filho – cfr. doc. junto a fls. 124 a 127, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
65 – O filho B… já entrou em casa do Beneficiário, exigindo-lhe bens e valores, alegando serem pertencentes à sua mãe, em que levou jogos de lençóis da sua mãe, serviço de prata e bandejas em prata.
66 – Após a morte da primeira mulher do Beneficiário este separou as jóias pertencentes à mesma e promoveu reunião com os filhos e entregou-lhes estes bens.
67 – O Beneficiário reside na casa que foi a casa de morada de família juntamente com a falecida primeira mulher e filhos.
68 – O filho B… do Beneficiário, teve, depois de adulto pouca convivência com o seu pai.
69 – O Beneficiário auxiliou com dinheiro este filho.
70 - O Beneficiário decidiu vender o apartamento de Tavira após falar com o seu filho D….
71 – Foi o Beneficiário que procurou a mediadora imobiliária e falou sempre com o vendedor, Sr. X…, e decidiu preços e condições da referida venda.
72 – O Beneficiário conhece os algarismos e sabe efetuar cálculos aritméticos básicos e complexos.
73 - Conhece o dinheiro e o seu valor aquisitivo e executa trocos com facilidade.
74 – O Beneficiário está capaz de ler, escrever e de interpretar criticamente.
75 – Orienta-se perfeitamente no espaço e no tempo.
76 – Não se conhece ao Beneficiário qualquer defeito cognitivo, mostrando-se este capaz de formular raciocínios e pensamentos conceptuais.
77 – O Beneficiário não padece de doença psiquiátrica ou de anomalia permanente da personalidade.
78 – É normodotado ao nível da função intelectiva; tem nível sócio-cultural elevado; está perfeitamente capaz de juízo crítico, abstração e de bem se situar e determinar n âmbito normativo.
79 – Está capaz de bom discernimento e revelou elevada capacidade de resiliência face ao diagnóstico e tratamentos para o cancro do pulmão.
80 – Está autónomo para as atividades instrumentais da vida diária (uso de qualquer quantia em dinheiro, uso do Multibanco, pagamento de contas, compras, compromissos financeiros, contratuais e tributários e gestão de medicação.
81 – Está autónomo para as atividades básicas da vida diária (deambulação, higiene pessoal, banho, vestuário e alimentação.
82 – Está capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais, quer sejam pessoais.
83 – Está capaz de consentimento informado médico.
84 – Está capaz de delegar, passar procuração e testar.
85 – Está capaz de exercer o direito de voto.
*
O tribunal deu como não provada a seguinte matéria[4]:
a) E… é portadora do passaporte nº …….. e do NIF ……… e nasceu em …, no Brasil, em 27/06/1964.
b) E encontra-se identificada junto dos serviços da segurança social com o NISSPS ………….
c) E… veio para Portugal ainda casada com o primeiro marido brasileiro, e divorciou-se durante os primeiros tempos em Portugal, tendo contraído matrimónio com um cidadão português que, segundo referiu, era seu patrão.
d) O requerido estranhou e até torceu o nariz em tom de crítica.
e) Uns meses após o falecimento de T…, a D. E… iniciou o processo de divórcio do seu segundo marido.
f) Depois da morte de T… a D. E… manteve-se em casa do Beneficiário.
g) E… passou a decidir tudo pelo Beneficiário: o que ele tomava; o que ele vestia; onde ele ia; o que ia fazer e o que ia comer.
h) À data do diagnóstico da doença cancerígena o Beneficiário vivia sozinho desde o falecimento da sua mulher e E… passou a pernoitar com frequência na residência do mesmo, alegando que ele precisava dos seus cuidados.
i) O Beneficiário não a contrariava em nada.
j) Nesta altura o Beneficiário passou a demonstrar alheamento e desorientação, esquecendo-se com frequência de conversas e acontecimentos.
k) Estava a conversar e, de repente, esquecia-se do que estava a dizer, não se lembrava de situações recentes, do que tinha dito ou feito, chegando a confundir-se no caminho de e para a casa do filho, perdendo-se algumas vezes.
l) Nos últimos anos o Beneficiário vendeu livros valiosos da coleção de seu pai.
m) Nas últimas viagens a Tavira o Beneficiário tem-se constantemente perdido.
n) Quando casou com E…, o Beneficiário pediu aos filhos que preservassem sempre os apartamentos.
o) O Beneficiário sofre de demência.
p) O Beneficiário mantém os passeios a pé na praia.
q) O Beneficiário convive normalmente com os seus conhecidos e alguns frequentam a sua casa, nomeadamente o Sr. Agostinho, com quem mantem convívio muito frequente.
r) E… só foi contactada novamente para dar acompanhamento ao Beneficiário por força da doença de que este veio a sofrer, em janeiro de 2017.
s) O Beneficiário foi submetido a TAC em janeiro de 2019, por insistência de E… porque padecia de constante e suspeita sonolência, vindo a verificar-se que aquele estava a tomar Lorazepan – medicamento com efeito calmante e aconselhável para dormir – que lhe estava recomendado desde 2017 e lhe foi imediatamente retirado.
t) Para as sessões de radioterapia o Beneficiário solicitava a chamada de táxi, com o seu conhecido de longa data, Sr. Y….
u) Numa das idas ao Algarve o Algarve, quando já estava no Algarve, desviou da sua rota normal para ir mostrar a E… a cidade de Lagos e depois retomou a rota para o seu destino.
v) O Beneficiário foi interpelado pelo Requerente para partilhas no dia e que decorreu a missa de 7º dia pela morte da mãe deste.
w) O Requerente chegou a levar um quadro, de alguma dimensão que se encontrava numa das paredes do apartamento, da pintora Z….
x) Em finais de 2018, o Beneficiário recebeu uma chamada telefónica da advogada, Dra AB…, a propor nova partilha de outros bens, o que o Beneficiário recusou.
y) Os bens que existiam e não foram partilhados eram próprios do Beneficiário.
z) O pai do beneficiário era um advogado de renome, com cargo na Ordem dos Advogados e quem criou a biblioteca de Matosinhos, entre outros cargos, tendo um conjunto de livros valiosos e outros de algum valor.
aa) Quando o pai do Beneficiário faleceu e a sua mãe ainda estava viva, com o consentimento desta, vendeu alguns livros pertencentes ao pai e com o valor permitiu adquirir o imóvel, atual apartamento onde reside.
bb) Estes livros foram vendidos nas designadas alfarrabista, uns no Grémio, sito na … e outros na … - Porto.
cc) Quando faleceu a mãe do Beneficiário, e estava viva a primeira mulher deste e os filhos, o Beneficiário vendeu três quadros para realizar algum dinheiro.
dd) O Requerente nunca quis saber do pai, nem o visitava sem ser para cobrar ou pedir, tendo-o o Beneficiário sempre apoiado, quando esteve internado numa instituição na Rua …, no Porto, por problemas de toxicodependência, teve um primeiro casamento com uma senhora brasileira e tiveram problemas financeiros graves, com créditos malparados e incumprimento, tendo o pai patrocinado todas estas fases da vida deste filho sem nunca ter pedido devolução do dinheiro.
ee) o Beneficiário emprestou dinheiro ao seu filho D…, tendo este devolvido todo o valor pedido.
ff) O Beneficiário, sua primeira mulher e filhos, sempre viajaram muito por Portugal inteiro e Espanha, sendo hábito ir com a mulher, com muita frequência ao cinema, teatros e a outros encontros designados “chás”.
gg) O Beneficiário decidiu vender o apartamento de Tavira, porque só lá ia duas vezes a ano e não havia frequência no apartamento e as despesas não se justificavam para o manter, sendo que poderia comprar um mais pequeno e com menos despesas no Algarve ou outro local a decidir para férias.
hh) O Beneficiário procedeu à venda da sua quota parte em prédios sitos no … que detinha em regime de compropriedade, tendo recebido os respetivos preços.
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IV.
1. O efeito do recurso
A apreciação desta questão já foi efetuada na decisão que admitiu liminarmente o recurso, onde foi fixado o efeito pretendido.
*
2. Legitimidade do recorrente D…
Não sendo parte na causa, D… apresentou-se a recorrer da sentença juntamente com a habilitada do Requerente falecido, seu irmão, ambos filhos do Requerido.
Nas alegações do seu recurso discorreu sobre a sua legitimidade para o efeito, invocando também o disposto no art.º 631º, nº 2, do Código de Processo Civil.
No despacho pelo qual o tribunal a quo se pronunciou sobre a admissibilidade desta apelação (pág. 19[5]), entendeu-se que aquele recorrente é parte legítima nessa qualidade por força daquela mesma disposição legal.
Vêm, porém, o Ministério Público e o recorrido beneficiário, nas suas contra-alegações, invocar a ilegitimidade do recorrente D…, assim discordando do despacho (provisório – art.ºs 641º, nº 5 e 652º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil) que reconheceu a sua legitimidade para apelar.
Pois bem.
Dispõe o art.º 631º do Código de Processo Civil:
«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
2 - As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
3 - O recurso previsto na alínea g) do artigo 696.º pode ser interposto por qualquer terceiro que tenha sido prejudicado com a sentença, considerando-se como terceiro o incapaz que interveio no processo como parte, mas por intermédio de representante legal.»
Releva aqui especialmente o nº 2 do artigo, porquanto D… não é parte na causa.
A legitimidade do recorrente (seja ele parte principal, parte acessória ou terceiro direta e efetivamente prejudicado) é um pressuposto processual específico do recurso ou requisito de admissibilidade deste.[6]
A legitimidade para o recurso afere-se através do prejuízo que a decisão determina na esfera jurídica do recorrente. Podem recorrer (além das partes prejudicadas) pessoas que sejam direta e efetivamente prejudicadas pela decisão, ainda que não sejam partes na causa.
O prejuízo direto e efetivo é aquele que não seja apenas mediato nem apenas eventual.
Interpretando aquela norma do nº 2 do art.º 631º, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2015[7]: «A expressão “pessoa direta e efetivamente prejudicada pela decisão”, adotada pelo legislador, veio “consagrar expressamente a doutrina de que não basta um prejuízo directo para legitimar a interposição de recurso por quem não pode considerar-se parte principal vencida. Há casos que o prejuízo proveniente da decisão, embora seja directo (no sentido de que não é simplesmente mediato ou reflexo) é, todavia, eventual, longínquo, incerto, apenas provável ou possível. A nova redacção dada ao n° 2 significa que um prejuízo dessa natureza não basta para legitimar a posição do recorrente”.».
Assim, não têm legitimidade para recorrer as pessoas que, não sendo parte na ação (ou sendo apenas partes acessórias) sofrem um prejuízo indireto ou reflexo e a quem a decisão seja suscetível de produzir um prejuízo eventual, longínquo e incerto, porquanto, apenas, têm legitimidade para recorrer os terceiros que sofram um prejuízo atual e positivo com a decisão que pretendam impugnar. Não basta que seja eventual ou que dependa de circunstância futura que possa vir a surgir em consequência do julgado, sem afetação direta e imediata do recorrente. Já Alberto dos Reis assim entendia.[8]
O prejuízo tem de ser atual, real e jurídico, não pode ser meramente factual. Exige-se para assegurar o reconhecimento da legitimidade ad recursum do terceiro um “prejuízo que se repercuta, de forma nuclear, no património físico ou moral do recorrente, não se tratando de um prejuízo ou dano meramente colateral ou reflexo”[9].
Têm legitimidade os terceiros que sejam direta e efetivamente atingidos na sua esfera pessoal ou patrimonial pelos efeitos de qualquer decisão judicial.
Têm sido apontados como exemplo de legitimidade aquele que tenha sido notificado para entregar certo documento na sua posse ou a quem tenha sido aplicada multa por recusa de colaboração, o adquirente de coisa litigiosa que, no entanto, não tenha sido habilitado, nos termos do art.º 263º, nº 3, do Código de Processo Civil, o sócio abrangido pelo caso julgado formado na ação de anulação de deliberação sociais, nos termos do art.º 612º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, ou ainda, no processo de regulação das responsabilidades parentais, aquele que, não sendo progenitor, a quem o menor tenha sido confiado ou que, de facto, o tenha à sua guarda. Não assim o sócio de uma sociedade condenada numa ação, ainda que tal condenação se reflita nos dividendos que pode auferir em função da redução dos lucros da sociedade.[10]
Aqui chegados, estamos em condições de poder assinalar que a decisão sentenciada não se repercute diretamente na esfera jurídica do recorrente D…, nomeadamente no seu património. Quanto muito, estaremos perante a mera eventualidade de vir a ser chamado, no futuro, à obrigação de prestar alimentos a favor de seu pai, até à sua morte, mas apenas numa situação de necessidade do seu progenitor, nos termos dos art.ºs 2003º, nº 1, 2004º e 2009º, nº 1, al. b) e 2013º, nº 1, al.s a) e b), do Código Civil, ou ainda de poder ver reduzido o património hereditário do mesmo e o benefício patrimonial que lhe poderá advir no futuro a título de herança (art.ºs 2024º, 2027º, 2030º, 2031º, 2101º, 2133º, nº 1, al. a) e 2157º, do Código Civil) o que também não vai além de uma expetativa jurídica cuja concretização depende de diversas variantes, entre elas até a inexistência uma situação de incapacidade por indignidade (art.º 2034º do Código Civil) e a deserdação (art.º 2166º do Código Civil).
Os gastos que o Requerido vem realizando não têm acarretado para o recorrente qualquer prejuízo atual, efetivo ou real e imediato, pelo que não tem legitimidade para a interposição do recurso da sentença.
Por conseguinte e ao abrigo do citado art.º 631º, nº 2, do Código de Processo Civil, não se admite, por ilegitimidade, D… a intervir nos autos na qualidade de recorrente.
Considera-se apelante apenas a habilitada do falecido Requerente, I….
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3. Do suprimento da autorização do beneficiário para a propositura da ação
No requerimento inicial, o Requerente manifestou pretender o suprimento do consentimento do Requerido, seu pai e beneficiário do procedimento, para legitimar a propositura da ação, face à então invocada impossibilidade deste o conceder de forma livre e consciente (cf. artigos 54º, 63º e 70º).
Citado, o Requerido constituiu mandatário e contestou a ação, opondo-se ao suprimento do seu consentimento e à aplicação de qualquer medida de acompanhamento.
Por falta de elementos, o tribunal relegou tacitamente o conhecimento do pedido de suprimento para momento ulterior ao da produção dessa prova.
Na sentença, foi consignado o seguinte:
“(…)
Dos factos que se deram como provados resulta que o Beneficiário se encontra no normal uso das suas capacidades, não sofrendo de qualquer défice cognitivo, doença psiquiátrica ou anomalia permanente da personalidade, que o pudessem impossibilitar de dar o seu consentimento para a propositura de uma ação com vista ao seu acompanhamento, caso assim o entendesse. Tão pouco se afigura existir qualquer interesse atendível para suprir o consentimento do Beneficiário, que este não concedeu ao Requerente.
Deste modo não se defere o pedido de suprimento de consentimento do Beneficiário para a propositura da presente ação.
O art.º 141º, nº 1, do Código Civil, contém uma norma de legitimidade ativa relativa à instauração do processo especial de acompanhamento de maiores. Nos termos do respetivo nº 1, “o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público”.
De acordo com o nº 2, “o tribunal pode suprir a autorização do beneficiário quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.
O nº 3 permite que o pedido de suprimento pode ser cumulado com o pedido de acompanhamento.
O Código Civil evidencia aqui um desvio significativo ao conceito tradicional de legitimidade delineado pelo art.º 30º do Código de Processo Civil, assente na configuração da ação ou do incidente, conforme a alegação de factos.
Aqui, na falta de autorização do Beneficiário, a legitimidade indireta há de resultar do suprimento judicial da sua vontade, o que pressupõe a prova de determinados fundamentos.
Temos que distinguir a legitimidade para deduzir o pedido de suprimento da vontade do Requerido, da legitimidade para ação. Aquela resulta dos próprios termos da petição inicial, sendo Requerente, B…, filho do Requerido (um parente sucessível) que, invocando essa qualidade, logo pressupôs a falta de consentimento do Requerido para o respetivo e necessário acompanhamento, por invocação de demência do visado. Já a legitimidade para a ação pressupõe o suprimento do consentimento do visado; sem este, o filho do Requerido não pode despoletar o processo especial de acompanhamento previsto nos art.ºs 891º e seg.s do Código de Processo Civil. O Requerente só tem legitimidade para a ação de acompanhamento se o tribunal encontrar fundamento e deferir o suprimento da vontade do Requerido, enquanto facto legitimador da proteção do Requerido.
Considerando que o Requerente não tem legitimidade para propor a ação e não tendo suprido o consentimento do Requerido, o tribunal fez culminar a sentença com a sua absolvição da instância, por ilegitimidade, ao abrigo dos art.ºs 576º, nº 2 e 577º, al. e), do Código de Processo Civil.
Entende agora a recorrente que o Requerido evidencia comportamentos perdulários, sofre manipulação e pratica atos que demonstram necessidade de acompanhamento através da aplicação de medidas patrimoniais que o protejam da prodigalidade, ainda que não se encontre demente e incapaz.
Temos para nós que, tendo-se feito depender o suprimento do consentimento do Requerido e, consequentemente, o apuramento da legitimidade do Requerente, da estabilização de factos relativos aos fundamentos da ação - com cumulação do pedido de suprimento da autorização com o pedido de acompanhamento (art.º 141º, nº 3, do Código de Processo Civil) - de tal modo que se conheceu dessa questão apenas na sentença, é necessário atender à matéria de facto provada, mais concretamente àquela que traduza um conjunto de circunstâncias que, por si, seja reveladora de que o Requerido beneficiário não pode livre e conscientemente dar autorização para o procedimento de acompanhamento ou quando, para tal seja de considerar existir um fundamento atendível (art.º 141º, nº 2, atrás citado).
Acontece que a recorrente impugnou a decisão proferida em matéria de facto num aspeto essencial à verificação dos pressupostos do suprimento da autorização do Beneficiário, impugnação essa que, aliás, se esgota na invocação de uma contradição entre os pontos 12 e 14 dos factos dados como provados e as al.s i) e g) da matéria considerada não provada e na pretensão de que seja julgada não provada a matéria do ponto 82 da matéria assente: “Está capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais, quer sejam pessoais”.
Para o efeito invocou a recorrente os depoimentos das testemunhas Prof. J…, Dr. K…, L…, Dr.ª M… e D…, e manifestou ainda que, em face desta prova e do resultado da primeira perícia realizada no processo e do parecer do Prof. J…, deve ser dado como provado o facto contrário, ou seja, que “o Requerido está incapaz de reger a sua pessoa e bens ou que carece de aplicação de uma medida que o proteja das suas dependências de terceiros”.
Mesmo que não seja de entender assim, defende a recorrente que “a matéria de facto dada como provada é suficiente para, de forma manifesta, autorizar o suprimento e serem aplicadas medidas de acompanhamento ao Beneficiário”.
Decorre do exposto que só com a estabilização da matéria de facto provada e não provada poderemos, em segurança, decidir sobre a legitimidade ativa do Requerente, agora da pessoa habilitada no seu lugar, pelo que iremos conhecer previamente da 4ª questão do recurso.
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4. Erro na decisão proferida em matéria de facto
Estão reunidos os pressupostos da impugnação da decisão, cumprido que foi o respetivo ónus pela recorrente, nos ter mos do art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a, do Código de Processo Civil.
Com a contradição e a impugnação que invocou, a Requerente pretende que sejam eliminadas as al.s g) e i) da matéria não provada e que o ponto 82 dos factos dados como provados passe para a matéria não provada ou mesmo que seja dado como provado o facto contrário.
A prova que indicou é aquela que já identificámos na questão anterior, sendo que indicou e até transcreveu as passagens mais relevantes da gravação dos depoimentos.
Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes[11], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa, pois, reexaminar as provas indicadas pelas recorrentes e outras provas, maxime as indicadas pelos recorridos nas contra-alegações e as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Ex.mo Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efetivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento; antes corrigindo, por substituição, se necessário, a decisão em matéria de facto.
Ensina Vaz Serra[12] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e coerente da sua formação.
Vejamos então!
Comecemos por patentear as conclusões dos relatórios periciais cuja realização foi determinada pelo tribunal.
O primeiro relatório médico-legal consta de pág.s 1453 a 1459 e data de janeiro de 2020. Foi realizado pelo INML, Delegação do Norte. Foi analisado o estado mental do Requerido e houve consulta do relatório psicológico e do relatório psiquiátrico que o próprio Requerido havia juntado aos autos, além de outras informações clínicas e da entrevista clínica. Quanto à respetiva discussão, ficou registado que “o examinado apresenta um défice cognitivo ligeiro” e que “este défice das funções executivas, embora não o prejudique ainda no exercício de direitos pessoais o afecta na capacidade de gestão capaz e racional do seu património”. Acrescentou-se: “O examinado encontra-se em tratamento de doença neoplásica pulmonar com implicações na sua estabilidade psíquica e na tomada de decisão”.
O Ex.mo perito concluiu ali o seguinte:
Deste modo, sou de parecer que o examinando embora capaz de exercer direitos pessoais se encontra afectado para efectuar negócios da vida corrente como seja comprar e vender património pelo que lhe deve ser considerado a necessidade de acompanhamento com esta finalidade”.
O tribunal manifestou dúvidas quanto às conclusões deste relatório face ao que resultou da audição do Requerido e dos relatórios psicológico e psiquiátrico apresentados pelo Requerido e determinou a realização de uma segunda perícia. Fê-lo pelo despacho de 7.3.2020 (pág.s 1381), com o seguinte fundamento:
«Face à contradição entre os exames psiquiátricos ao beneficiário realizados particularmente, quer a solicitação dos filhos do beneficiário, sem exame do mesmo, pelo Prof. Doutor J… constante de fls. 105 dos autos, quer solicitado pelo próprio beneficiário, com exame do mesmo, pelo Dr. F…, constante de fls. 137, e uma vez que a perícia realizada pelo Dr. K… no INML, constante de fls. 232, com os esclarecimentos prestados em audiência, se não afigura suficientemente esclarecedora, considera o tribunal, necessária à boa decisão da causa a realização de segunda perícia médica, conforme doutamente promovido pelo Ministério Público.
Não se afigura, porém, necessária a realização de perícia colegial.
Assim sendo, determino a realização de segunda perícia, nos termos previstos no art. 487º, do C.P.Civil.»
*
Solicite a secretaria ao Hospital O… a realização da segunda perícia, informando que, não obstante seja do conhecimento deste tribunal a geral recusa desse hospital de realização de perícias médicas em processo de acompanhamento de maior, houve perícia anterior realizada pelo INML, pelo Dr. K…, que o tribunal não considerou suficientemente esclarecedora, e que face às dúvidas, carece o tribunal da realização de uma nova perícia, a realizar por outro médico psiquiatra experiente e independente daquele instituto, com vista à boa decisão da causa, solicitando, para esse efeito a excecional colaboração daquele hospital.
(…)».
A segunda perícia foi, assim, realizada em agosto de 2020, pela Unidade Funcional de Psiquiatria Forense, do Hospital O…, E.P.E. e contou com todos os registos clínicos anteriores, incluindo os elementos periciais até então produzidos. Foi entrevistado o Requerido, foram consultados os autos, designadamente os fundamentos da petição inicial, e foram produzidos exames auxiliares de diagnóstico.
A discussão tem o seguinte teor:
Da entrevista, do exame psicopatológico (exame direto) e exames complementares de diagnóstico, nada se apurou que permita fundamentar qualquer diagnóstico de doença psiquiátrica, défice cognitivo major ou anomalia permanente da personalidade, Normodotado ao nível da função intelectiva, nível sociocultural elevado, está perfeitamente capaz de juízo crítico, abstracção, e de bem se situar e determinar no âmbito normativo. Esta capaz de bom discernimento e revelou elevada capacidade de resiliência face ao diagnóstico e respectivos tratamentos para o cancro do pulmão que o afetou. Totalmente autónomo para as actividades instrumentais da vida diária (uso de dinheiro, compras telefone, multibanco, gestão financeira e tributária) e para as actividades básicas da vida diária (alimentação, vestuário, higiene pessoal, banho, deambulação).
Os exames complementares de diagnóstico por nós feetuados são totalmente concordantes com a avaliação psicológica da Dra. N…, Psicóloga Clínica (nos Autos), avaliação essa mais exaustiva, metodologicamente inquestionável, e que não há como contestar, pelo que escusamos, por desnecessário, a propor melhor avaliação neuro psicológica mais avançada.

Furtamo-nos a comentar o parecer psiquiátrico-forense do ilustre Prof. Doutor J… porque, enfermando da ausência de exame direto (como o próprio, e muito bem, refere no seu parecer) deve ser considerado, no âmbito pericial, irrelevante.

Tiraram-se ali, na 2ª perícia judicial, as seguintes conclusões:

1. O examinando C… não padece de doença psiquiátrica ou anomalia permanente da personalidade;
2. Está autónomo para as actividades instrumentais da vida diária (uso de qualquer quantia em dinheiro, uso de multibanco, pagamento de contas, compras, compromissos financeiros, contratuais, e tributários, gestão de medicação);
3. Está autónomo para as actividades básicas da vida diária (deambulação, higiene, pessoal, banho, vestuário e alimentação);
4. Está capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida, sobre assuntos coerentes da sua via, quer sejam patrimoniais quer sejam pessoais;
5. Está capaz de consentimento médico informado médico;
6. Está capaz de delegar, passar procuração e testar;
7. Está capaz de exercer o direito de voto;
8. Não se vislumbra, em nosso parecer e para o seu estado actual, qualquer medida de representação geral, especial ou de acompanhamento aplicável ao examinando.

Esta perícia considerou e acolheu como correta a perícia psicológica e neuro-psicológica elaborada em setembro de 2019 pela psicóloga clínica N… (junta a pág.s 1707 a 1710), na qual se concluiu o seguinte – na sequência da realização de testes específicos:
«A avaliação neuropsicológíca evidencia manutenção do funcionamento cognitivo geral e preservação de funcionalidade, indicativos de normalidade.
Os valores obtidos na prova Figura Complexa de Rey não foram valorizados, uma vez que ao longo do processo de avaliação houve a percepção de dificuldade em executar desenhos, sendo o próprio a dizer que “Nunca gostei de desenhar, e nunca fui muito bom nisso.”, além de a WAIS ter confirmado que a organização percetiva está com valores superiores.
Apresenta valores de Quoefíciente de Inteligência muito superiores ao esperado para a sua faixa etária, e não demonstra deterioração nem declínio cognitivo.
No que concerne ao solicitado para esta avaliação, percebeu-se que a memória de evocação espontânea, a perceção visual e a visuoconstrução está um pouco abaixo do que é esperado, no entanto a memória de trabalho, atenção focalizada e atenção alternada, bem como o cálculo, organização percetiva, compreensão verbal e a velocidade de processamento, encontram-se acima da média esperada para a sua faixa etária.»
Contou já com o citado relatório neuro-psicológico e uma entrevista o especialista em psiquiatria F… que subscreveu o relatório de 24.9.2019, apresentado pelo Requerido, resultando dali as seguintes conclusões:
«1 – O examinado, actualmente, não padece de qualquer patologia psiquiátrica e / ou neurológica, nem evidencia qualquer indício de declínio cognitivo e / ou início de processo demencial (lembramos que a tomografia computorizada cerebral é um mero exame auxiliar de diagnóstico, sendo que mais de 80% do diagnóstico de demência, de qualquer tipo, é suportado pela clínica, além disso, se a realizássemos, por hipótese absurda, o referido exame a todas as pessoas de 80-83 anos, mais de 90% dos exames apresentariam alterações similares às descritas no relatório do hospital P… e muito menos de 90% das pessoas dessa faixa etária, estão efectivamente demenciadas. As alterações descritas, isso sim, são reveladoras de um cérebro envelhecido);
2 – Possui um nível sócio-cultural elevado, mantendo-se fisicamente e intelectualmente ativo, mesmo perante a contingência da sua doença orgânica grave recente;
3 – Está capaz de exercer plenamente o seu livre arbítrio, e fazer uso do seu dever e direito de autodeterminação.»

O Prof. J… elaborou o seu parecer com base em meras informações que lhe foram prestadas por terceiros interessados e escassa documentação. Não observou/examinou diretamente o Requerido. Do seu depoimento prestado nos autos (gravação) resultam sobretudo considerações gerais aplicáveis a estados de demência e outras doenças psiquiátricas relativas a idosos. No que respeita ao Requerido, baseou-se em informação de desorientação no espaço, estados de confusão e perda de memória, etc. que não confirmou. Considerou aquelas informações como sendo compatíveis com as patologias psiquiátricas normalmente encontradas na idade do visado. Mas tais informações podem até não ser verdadeiras.
Na perspetiva da segunda perícia, o relatório do Sr. Prof. J… é irrelevante do ponto de vista pericial, desde logo porque não passou pelo exame direto do Requerido.
Compreende-se esta posição, já que dificilmente se concebe um diagnóstico médico e, em particular, um diagnóstico psiquiátrico sem, pelo menos, um exame médico especializado direto na pessoa do Beneficiário.
O Sr. Dr. K… é o médico psiquiatra que subscreveu o primeiro relatório de exame médico-legal forense. Explicou o relatório no seu depoimento, e voltou a apontar as lesões isquémicas como causa da sua afetação negocial. Mas reconheceu que o visado mantém uma memória estruturada.
O último relatório pericial provém de um hospital de referência em clínica psiquiátrica (Hospital O…) e de um médico especialista em psiquiatria, Dr. F…s, consultor de psiquiatria, assistente hospitalar graduado Sénior, subespecialista em Psiquiatria Forense pela Ordem dos Médicos.
Este especialista, para além dos exames que realizou, incluindo a observação direta do Beneficiário, contou com todos os demais exames e relatórios (todos anteriores), as diversas abordagens e as conclusões divergentes. Foi, por isso, colocado numa situação de poder compreender e ponderar os fundamentos daquelas conclusões, fazer a sua própria discussão e tirar as suas conclusões.
Ora, é este relatório que mais se aproxima dos exames psicológico e psiquiátrico oferecidos pelo beneficiário e que mais diverge de um relatório psiquiátrico cujo autor nem sequer observou o visado. Por outro lado, mesmo o primeiro relatório psiquiátrico forense, da autoria do Dr. AC…, aponta apenas para um défice cognitivo ligeiro. Dos esclarecimentos prestados por este Sr. perito parece resultar influência excessiva do valor dos apartamentos (sitos em Tavira e em Matosinhos) indicados pelo examinando, na conclusão de que carece de acompanhamento com finalidade negocial, mas sem uma efetiva confirmação da respetiva avaliação de mercado.
É assertiva a seguinte consideração deixada pelo tribunal na motivação da sentença:
«A primeira perícia, cujo relatório se encontra junto a fls. 231 a 232, completada pelos esclarecimentos orais do senhor perito, não convenceu o tribunal, não se afigurando ao tribunal convincentes os argumentos apresentados pelo senhor perito para concluir pela incapacidade do Beneficiário de gerir o seu património, afigurando-se precipitada e simplista a análise realizada, com base, não tanto no real estado cognitivo do Beneficiário e das suas efetivas capacidades e incapacidades, mas nas lesões reveladas pelo TAC cerebral e no facto de se ter afigurado ao senhor perito que o Beneficiário desconhecia o valor do seu património. Tais argumentos não convenceram o tribunal de que o Beneficiário sofre de qualquer défice cognitivo, que o incapacita e gerir o seu património, como concluiu a perícia, razão pela qual se determinou a realização de nova perícia.
Já a segunda perícia se afigurou tecnicamente mais sustentada, levando em conta exames complementares de diagnóstico, e sustentando as conclusões - aliás em sintonia com os exames psicológico e psiquiátrico anteriormente realizados ao beneficiário -, concluindo pela inexistência de qualquer défice cognitivo, doença psiquiátrica ou anomalia permanente da personalidade do Beneficiário, encontrando-se este totalmente autónomo e capaz, logrando convencer o tribunal.»
O próprio tribunal ouviu o Beneficiário e registou as suas declarações por escrito (ata de 18.10.2019). Lidas agora, resulta também para nós evidente a coerência do discurso e o relato de factos memorizados, antigos e recentes. Algumas falhas estão, ao menos aparentemente, dentro da normalidade.
As alterações de comportamento do Beneficiário verificadas pelas testemunhas M… (nora do Requerido e cônjuge do D…), D… (filho do Requerido) e L… (cunhada do Requerido), seja na sua vida pessoal, na intensificação do seu relacionamento com a E…, seja na forma como passou a usar o dinheiro e a dispor do seu património, não resultam necessariamente e não está provado que resultem - em função dos melhores resultados periciais e atendidos - de qualquer redução ou limitação do Beneficiário no livre e esclarecido exercício da sua vontade. Aliás, de um modo geral, as testemunhas têm constatado e descreveram a mudança de comportamento, mas não apontam explicação que ponha em causa o resultado pericial atendido.
Não há erro de julgamento na 1ª instância quanto à matéria submetida no recurso. O facto descrito sob o ponto 82 da sentença está provado e merece também agora confirmação segundo o nosso juízo crítico.
*
Tratemos agora da invocada contradição entre os pontos 12 e 14 dos factos provados, por um lado e as al.s g) e i) da matéria dada como não provada.
12 – Nos anos seguintes E… tornou-se imprescindível ao Beneficiário, passando a comportar-se como “a senhora da casa”, tendo passado a decidir o que tinha de se tratar na casa e mudado a decoração.

14 – O Beneficiário dizia que a E… é que sabia e passou a perguntar-lhe quase tudo, sendo esta quem decidia todas as rotinas e assuntos domésticos do Beneficiário.

g) E… passou a decidir tudo pelo Beneficiário: o que ele tomava; o que ele vestia; onde ele ia; o que ia fazer e o que ia comer
i) O Beneficiário não a contrariava em nada.
Vejamos.
Decidir o que é necessário tratar na casa e mudar a decoração não é o mesmo que decidir tudo (a E…) em vez do Beneficiário (ponto 12 e al. g)), designadamente decidir sempre o que ele deve vestir, onde é que ele deve ir ou vai, o que ele vai fazer e o que ele vai comer.
Porém, estando também provado que o Beneficiário dizia que a E… é que sabia e passou a perguntar-lhe quase tudo, “sendo esta quem decidia todas as rotinas e assuntos domésticos do Beneficiário” (ponto 14), não pode ser dado como não provado que a E… passou a decidir tudo em vez do Beneficiário, designadamente o que ele tomava, o que vestia e o que ia comer. Mas pode ser dado como não provado que a E… decidisse onde é que o Beneficiário ia e o que ia fazer, já que estes não são necessariamente assuntos domésticos.
A al. i) não é incompatível com a matéria dos pontos 12 e 14. Ela decidia e ele aceitava, sem a contrariar.

Assim é restringida a al.s g) à seguinte matéria:
g) A E… passou a decidir onde o Beneficiário ia e o que ia fazer;
A matéria da al. i) mantém-se não provada.
Assim estabilizada a decisão em matéria de facto, é tempo de continuarmos na análise da questão que constitui o ponto 3.
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3. Do suprimento da autorização do beneficiário para a propositura da ação (cont.)
Estão verificados os pressupostos do suprimento do consentimento do Requerido para a instauração da ação (art.º 141º, nº 2, do Código Civil)?
O tratamento da questão carece de uma nota prévia.
O regime do maior acompanhado foi introduzido pela Lei nº 49/2018, de 14 de agosto, em substituição do anterior regime dualista da interdição e da inabilitação, alterando, além do mais, as disposições legais dos art.ºs 131º e 138º e seg.s do Código Civil e os art.ºs 891º e seg.s do Código de Processo Civil.
O foco deixou de ser a salvaguarda do tráfego e segurança jurídicas e do património familiar da pessoa então considerada incapaz, face às limitações desta, para passar a ser fundamentalmente a própria pessoa e o respeito devido enquanto ser humano, sujeito de direitos e obrigações, com dignidade própria e direito à liberdade e autodeterminação.
O regime da interdição e da inabilitação deu lugar a uma figura maleável com conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, capacidades e possibilidades do concreto requerido.[13]
Como resulta do art.º 140º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, o regime do maior acompanhado tem como objetivo garantir o seu bem- estar, a recuperação, o pleno exercício dos seus direitos, bem como a observância dos deveres do sujeito maior de idade, concentrando-se na pessoa, nas suas especiais necessidades decorrentes das suas limitações.
Este novo regime jurídico introduziu no sistema jurídico português uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas até então tidas como portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior com limitações.[14]
São destinatários de acompanhamento os maiores impossibilitados, “por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres” (art.º 138º do Código Civil).
Nessa valoração são aplicáveis os princípios da subsidiariedade e do respeito pela autonomia da pessoa humana (art.ºs 141º, 143º e 147º do Código Civil), da necessidade (art.ºs 149º e 155º do Código Civil), do bem-estar e recuperação do sujeito (art.ºs 140º e 146º do mesmo código), os quais funcionam como os princípios basilares de todo o regime e, por esse motivo, devem orientar a aplicação e revisão das medidas a aplicar em cada situação.
A medida de acompanhamento não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através de deveres gerais de cooperação e de assistência que caibam em cada caso (nº 2 do citado art.º 140º).
As medidas de acompanhamento pressupõem a manutenção da capacidade de exercício de direitos por parte da pessoa que a elas recorre. Trata-se de medidas de apoio a pessoa com deficiência assentes na sua autodeterminação.
Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela Convenção da ONU de 30 de março de 2007, sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - Convenção de Nova York -, entrada em vigor na nossa ordem jurídica nacional, juntamente com o “Protocolo Adicional”, a 3 de maio de 2008) e pela nossa Magna Carta, e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão. Há, assim, uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos. Em vez da pergunta: “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica? ”, deve perguntar-se: “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”.
Um ponto muito importante que neste contexto importa sublinhar é o de que na atual formulação ampla que permite o recurso às medidas de acompanhamento cabem as pessoas idosas e/ou doentes.[15]
Ao contrário do sistema da total incapacidade da pessoa humana, própria do anterior instituto da interdição, parte-se do princípio de que todo o ser humano maior é capaz do exercício dos seus direitos, sejam pessoais ou patrimoniais, flexibiliza-se o sistema no sentido de se adaptar a ablação dessa capacidade à incapacidade própria da pessoa concreta, estabelece-se que essa ablação visa a satisfação dos interesses da própria pessoa com incapacidade e procura-se que esta, na medida do possível, isto é, na exata medida em que as suas capacidades e incapacidades o permitam fazer, participe na tomada das decisões relativamente à sua pessoa e/ou património e tenha a última palavra sobre esses assuntos, não sendo aquela, pura e simplesmente, “substituída”, mas sim tratada de acordo com o seu estatuto de pessoa humana, com dignidade própria e, por isso, sujeito de direitos e obrigações e com o direito à liberdade e autodeterminação. Por outro lado, limita-se a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente a garantir a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada, dentro dos circunstancialismos concretos, maxime, das suas capacidades e incapacidades[16].
Trata-se, nas referidas palavras de Pinto Monteiro, de “proteger sem incapacitar”, em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisões.[17]
A regra no atual regime é a de deixar o máximo de espaço possível à vontade e preferências efetivas do próprio maior acompanhado.[18]
Miguel Teixeira de Sousa, em texto que corresponde à apresentação realizada no CEJ, em 11.12.2018[19], refere: “Em suma (…), de um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana”.
A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art. 145/2 do CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
- uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art. 140/2 do CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.
Feita esta abordagem introdutória, facilitada nos fica a abordagem da questão concreta da legitimidade por suprimento da autorização do Beneficiário.
De acordo com o art.º 141º, nº 1, do Código Civil, o acompanhamento pode ser requerido:
- Pelo próprio beneficiário; a esta situação há que equiparar aquela em que o beneficiário tenha representante legal (nomeadamente, progenitores ou tutor) ou mandatário com poderes de representação (cf. art.º 156.º, n.º 1, CC) e em que o acompanhamento seja requerido por esse representante ou mandatário do beneficiário em nome deste;
- Pelo cônjuge ou unido de facto do beneficiário ou por qualquer parente sucessível do beneficiário, desde que esteja autorizado por este; estando em causa interesses pessoais do beneficiário e importando salvaguardar a liberdade pessoal desse beneficiário, compreende-se que seja este, sempre que esteja em condições de o fazer, a ter de autorizar a instauração do processo;
- Pelo Ministério Público, no exercício da sua função de representação dos incapazes (cf. art.º 3.º, n.º 1, al. a), EMP).
Explica Pinto Monteiro[20] que “(…)a autorização concedida pelo beneficiário ao cônjuge, ao unido de facto ou ao parente sucessível nada tem a ver com uma autorização para o representar na acção. O cônjuge, o unido de facto e o parente sucessível não vão actuar como representantes, mas antes como partes, isto é, como requerentes do processo de acompanhamento de maiores. A situação não é, assim de representação, mas de substituição processual voluntária: o beneficiário é a parte substituída e o cônjuge, o unido de facto ou o parente sucessível a parte substituta. Sendo junta ao processo a autorização do beneficiário, cabe ao tribunal a importante tarefa de verificar se esse beneficiário está em condições de a conceder ao seu cônjuge ou unido de facto ou ao seu parente. Trata-se de um importante controlo que o tribunal deve realizar de forma tão minuciosa quanto possível, dado que não se pode partir do princípio nem de que o autorizante está em condições de conceder a autorização, nem de que esse autorizante, estando em condições de o fazer, quis efectivamente conceder a autorização. Os poderes inquisitórios que são atribuídos ao tribunal em matéria de facto e de prova pela remissão constante o art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária podem ser aqui muito relevantes.”
Acrescenta ali aquele Ilustre Professor: “A autorização do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível pode ser suprida pelo próprio tribunal ao qual é requerida a medida de acompanhamento (art.º 141.º, n.º 2, CC; art.º 892.º, n.º 2). O suprimento da autorização deve ser concedido quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141.º, n.º 2, CC). Portanto, se o beneficiário não estiver em condições de dar a autorização ao seu cônjuge, unido de facto ou parente sucessível, qualquer destes pode requerer a medida de acompanhamento e requerer, ao mesmo tempo, o suprimento da autorização do beneficiário. Isto significa que cabe sempre ao tribunal controlar se se justifica suprir a falta de autorização do beneficiário. Repete-se aqui o que acima se disse sobre o controlo da concessão da autorização: também o suprimento da falta de autorização do eventual beneficiário deve ser cuidadosamente ponderado pelo tribunal, dado que não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização.
E escreve ainda aquele Professor no mesmo artigo que “o suprimento da falta de autorização do beneficiário assegura a legitimidade do cônjuge, do unido de facto ou do parente sucessível para estar em juízo e requerer a medida de acompanhamento. Se o suprimento não for concedido, esse cônjuge, unido de facto ou parente é igualmente parte ilegítima”.
Tal como a substância do novo regime em análise, o art.º 141º do Código Civil consagra também para a legitimidade processual o primado da vontade do acompanhado: está em causa um benefício, de que ele pode ou não prevalecer-se (como se refere no estudo que acompanha a alteração)[21].
Relativamente ao regime anterior, assiste-se a uma redução do leque das pessoas que podem instaurar a ação especial de acompanhamento de maior.
Quando o interessado não esteja em condições de, conscientemente, tomar decisão relativamente à concessão deste benefício, pode o tribunal suprir tal autorização.
Contudo, abre-se a porta a que o mesmo autorize o cônjuge, o unido de facto ou qualquer parente sucessível, a requerer tal benefício.
Para Nuno Luís Lopes Ribeiro, o quadro é o seguinte: “se estiver capaz de tomar a decisão, o interessado pode optar por não requerer o benefício de acompanhamento, por requerê-lo directamente ou por incumbir qualquer parente sucessível, o cônjuge ou o unido de facto, de o fazer; contudo, caso decida não requerer, sempre poderá o Ministério Público fazê-lo; caso decida não requerer, estando consciente para tanto, sempre poderá um daqueles interessados familiares ou o unido de facto, requerer ao Ministério Público que o faça. E o Ministério Público, repete-se, sempre o poderá requerer, contra a vontade expressa e consciente do interessado e, por maioria de razão, contra a vontade toldada e afectada do interessado, nos casos em que assim o esteja. Por fim, muitas situações em que não está em causa apenas a tomada consciente de decisão de autorização, ficarão de fora – basta lembrar o alcoolismo, a dependência de drogas e a prodigalidade.
Nessas situações (e em muitas outras), seria inviável tal suprimento, não se discutindo a conveniência da aplicação do benefício, mas não se podendo retirar à recusa do beneficiário o seu muito próprio fundamento.[22]
(…)”.
O Ministério Público mantém a sua legitimidade para propor o processo de acompanhamento, tal como no regime de interdição/inabilitação.
Já assim não sucede com os familiares do acompanhado, os quais, no processo de interdição/inabilitação, podiam propor a respetiva ação sem necessidade de autorização. O n.º 2 do artigo 141º permite o suprimento da autorização do beneficiário quando, “em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.
Existem situações em que, fruto da incapacidade do visado, este não disporá de capacidade e discernimento para prestar a sua autorização para a propositura da ação e para avaliar plenamente o significado e as consequências do seu ato de recusa e que, não obstante se conferir legitimidade ativa ao Ministério Público para propor a ação independentemente dessa autorização, esta válvula de segurança poderá ser insuficiente para salvaguardar cabalmente os interesses e direitos da pessoa com incapacidade.
Desta feita, se o visado não estiver em condições de dar a autorização para a propositura da ação, o cônjuge, unido de facto ou parente sucessível pode instaurar aquela, requerendo a medida de acompanhamento e solicitando, ao mesmo tempo ou previamente, o suprimento da autorização da pessoa visada.
Neste caso, o suprimento da autorização da pessoa visada deve ser concedido apenas quando aquela não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141º, n.º 2, do Código Civil)[23].
Já o dissemos, o tribunal deve ser rigoroso na análise dos pressupostos do suprimento da vontade do Beneficiário. Não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização. Esta medida de suprimento só é aceitável se, em face das circunstâncias, o Beneficiário não puder, livre e conscientemente, dar a sua autorização ou quando exista “um fundamento atendível”, não podendo este ser de inferior gravidade. É uma manifestação do primado da vontade do Beneficiado e uma manifestação do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do art.º 12º da Convenção.
Volvendo aos factos provados, em matéria de comportamento, estes demonstram que o Requerido alterou significativamente o seu modo de vida desde que, em 2009, passou a viver com E…. Com ela casou cerca de 9 anos mais tarde, em outubro de 2018. Vendeu bens de valor significativo do seu património, sendo viúvo na data do segundo casamento, perdeu a pensão de sobrevivência, passou a gastar mais dinheiro, designadamente em duas viagens ao país de origem do atual cônjuge, anulou a sua poupança acumula ao longo da vida e vendeu o apartamento de Tavira por €122.500,00. Desconhece-se o destino que deu ao produto da venda recente do apartamento de Tavira. No entanto, continua a auferir a sua pensão mensal de reforma de €1.200,00, uma garantia de subsistência.
Apesar de tudo, o Requerido faz a vida própria de casal com a sua mulher, tem uma mobilidade física normal, anda a pé, tem autonomia, trata dos assuntos relacionados com os seus impostos junto de gabinete de contabilidade, faz pagamentos e levantamentos, conduz o seu veículo e trata da sua higiene pessoal, faz a barba, toma banho e veste-se, sozinho e sem qualquer dificuldade. O segundo casamento resultou da estima e amizade que foi criada pelo apoio que lhe foi prestado pela E…, crescendo grande afeição, sendo do Beneficiário a decisão de casar com ela.
Já foi efetuada a partilha da herança deixada pela primeira mulher, mãe dos seus filhos, pelo que o Requerido está dispor do seu próprio património. Falou como seu filho D… antes de vender o apartamento de Tavira e até auxiliou com dinheiro o filho B….
Está também provado que:
O Beneficiário conhece os algarismos e sabe efetuar cálculos aritméticos básicos e complexos. Conhece o dinheiro e o seu valor aquisitivo e executa trocos com facilidade. Está capaz de ler, escrever e de interpretar criticamente. Orienta-se perfeitamente no espaço e no tempo. Não se conhece ao Beneficiário qualquer defeito cognitivo, mostrando-se este capaz de formular raciocínios e pensamentos conceptuais. Não padece de doença psiquiátrica ou de anomalia permanente da personalidade. É normodatado ao nível da função inteletiva; tem nível sóciocultural elevado; está perfeitamente capaz de juízo crítico, abstração e de bem se situar e determinar no âmbito normativo. Está capaz de bom discernimento e revelou elevada capacidade de resiliência face ao diagnóstico e tratamentos para o cancro do pulmão. Está autónomo para as atividades instrumentais da vida diária (uso de qualquer quantia em dinheiro, uso do Multibanco, pagamento agente de execução contas, compras, compromissos financeiros, contratuais e tributários e gestão de medicação. Está autónomo para as atividades básicas da vida diária (deambulação, higiene pessoal, banho, vestuário e alimentação) e está capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais, quer sejam pessoais. Está capaz de consentimento informado médico. Está capaz de delegar, passar procuração e testar. Está capaz de exercer o direito de voto.
Perante esta factualidade, não se nos oferecem dúvidas de que o Requerido podia e pode autorizar o cônjuge ou os filhos a deduzirem o pedido judicial de acompanhamento. Não tendo dado aquela autorização, o tribunal também não pode suprir essa falta, porquanto se evidencia que ele estava e está em condições de a dar livre e conscientemente.
Inexiste qualquer outro fundamento relevante que justifique o suprimento da sua vontade. O Requerido está em condições de gerir o seu património, sendo livre de o fazer segundo o critério da sua vontade esclarecida. Não se lhe conhece a contração de obrigações que não possam ser suportadas pela sua pensão de reforma mensal.
Aquela sua conduta nem sequer se poderia ancorar numa eventual demência recente, pois que já se vem manifestando desde o ano de 2009 com base na relação de afetividade que desenvolve com a sua companheira, esposa desde outubro de 2018.
Sempre se dirá que, a nível do direito comparado, quanto a comportamentos, o movimento tem sido no sentido da exclusão da prodigalidade como causa de limitação da capacidade jurídica; assim sucedeu, por exemplo, na Alemanha e em França.
Já nas situações de alcoolismo, toxicodependência e dependências de jogos de vídeo, adesão a seitas ilegais com práticas ilegais para o próprio ou na radicalização político-militar”, por exemplo, a causa do acompanhamento é a doença e não o comportamento.[24]
Por conseguinte, perante os factos provados nem sequer há fundamento para o suprimento da autorização do Requerido para a instauração da presente ação (art.º 141º, nº 2, do Código de Processo Civil); razão pela qual andou bem a 1ª instância ao julgar a instância extinta por ilegitimidade ativa do Requerente, seu filho.
A sentença merece confirmação.
*
Extinta a instância, fica prejudicado o conhecimento das questões da omissão de pronúncia e do decretamento de medidas de acompanhamento (5ª e 6ª questões), designadamente ao abrigo do art.º 278º, nº 3, do Código de Processo Civil, por extravasar o âmbito da apelação.
*
Quanto a custas, a isenção prevista na al. l do nº 1 do art.º 4º do Regulamento das Custas Processuais, na versão introduzida pelo art.º 13º da Lei nº 49/2018, de 14 de agosto, que passou a abranger o maior acompanhado, é uma isenção subjetiva ou pessoal - alicerçada no relevo do acesso ao direito e aos tribunais, visando superar as causas que o dificultam -, como é, aliás, a generalidade das previstas naquele nº 1, estando as isenções objetivas ou processuais consignadas no subsequente nº 2.
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
.........................................................
.........................................................
.........................................................
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em:
1. Rejeitar a apelação relativamente ao apelante D…, por ilegitimidade para recorrer;
2. Julgar a apelação da recorrente I… improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente D… relativamente à rejeição do seu recurso por ilegitimidade.
Custas da apelação pela única recorrente admitida, dado o seu decaimento total no recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
*
Comunique a decisão ao Apenso B (reclamação do despacho que indeferiu o recurso de decisão interlocutória interposto por D…).
*
Porto, 29 de abril de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
___________________________
[1] Por bem elaborado, segue-se de perto (com alguns desvios) o relatório da decisão recorrida relativamente à primeira parte do presente.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Por transcrição.
[4] Por transcrição.
[5] Reportamo-nos aqui e daqui em diante à paginação do histórico eletrónico do processo.
[6] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, 2009, pág. 78.
[7] Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. III, pág. 94.
[8] Código de Processo Civil anotado, Vol. V, Coimbra 1984, pág. 272.
[9] Citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça por referência ao Acórdão do Tribunal Constitucional n° 829/96, de 26.6.1996, DR II, de 5-3-1998, 2845 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2011, proc. 767/06.2TVYVNG.P1.S1, in www. dgsi.pt.
[10] A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág.s 67 e 68, citando vários autores, designadamente Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, pág. 506, defendendo que legitimidade resulta do facto de serem abrangidos pela eficácia do caso julgado que sobre a decisão se formar.
[11] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[12] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[13] Acórdão da Relação de Lisboa de 21.1.2020, proc. 3570/18.3T8FNC.L1-7, in www.dgsi.pt.
[14] Acórdão da Relação de Coimbra de 10.12.2019, proc. 7779/18.1T8CBR.C1, in www.dgsi.pt.
[15] Neste sentido, António Pinto Monteiro, O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, Fevereiro de 2019 - 1. Das incapacidades ao maior acompanhado - Breve apresentação da Lei n.º 49/2018, http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf].
[16] Referido acórdão de 10.12.2019, citando o acórdão da mesma Relação de 4.6.2019, proc. nº 577/18.4 CTB.C1 e o acórdão da Relação de Guimarães de 12.9.2019, proc. 228/17.4T8PTL.G1, também disponíveis in www.dgsi.pt.
[17] Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve Apresentação da Lei nº 49/2018, in Cadernos do CEJ – O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, pág. 31.
[18] 1609/18.1T8ALM.L1-8, in www.dgsi.pt.
[19] No âmbito da ação de formação O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado - O regime do acompanhamento de maiores: alguns aspectos processuais, a pág. 51.
[20] Na referida publicação do CEJ.
[21] Nuno Luís Lopes Ribeiro, O Maior Acompanhado – Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, publicado no citado e.book.
[22] O negrito é nosso.
[23] Acórdão da Relação de Guimarães de 12.9.2019, proc. 228/17.4T8PTL.G1, in www.dgsi.pt. Também Ana Luísa Santos Pinto, O Regime Processual do Acompanhamento do Maior, Julgar, nº 41, maio-agosto de 2020, pág.s 150 e 151,
[24] Desembargador Joaquim Correia Gomes, Os Direitos Humanos e o Maior (Des)Acompanhado, causas e Medidas de Capacitação, Jugar, nº 41, maio-agosto de 2020, pág.s 70 e 71.