Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2752/21.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ESTACIONAMENTO NA VIA PÚBLICA
PASSEIO
NOITE
ILUMINAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA DO CONDUTOR
PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO
Nº do Documento: RP202310122752/21.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 10/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ocorre por culpa exclusiva do respectivo condutor a colisão de um veículo contra a traseira de outro veículo que se encontrava parado em cima de um passeio e apenas com alguns centímetros a ocupar a faixa de rodagem, de noite, sem as luzes ligadas, numa recta, estando o tempo bom e o pavimento seco, e havendo no local postes de iluminação pública.
II - Atenta a configuração legal do instituto da responsabilidade civil, um terceiro não proprietário do veículo sinistrado não é titular de um direito de indemnização por ter sido privado do uso do veículo ainda que dele fizesse uso regular por consentimento do proprietário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:2752.21.5T8AVR.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ...54, e BB, contribuinte fiscal n.º ...43, ambas com residência em Oliveira do Bairro, instauraram acção judicial contra A..., S.A., agora B..., S.A., titular do número de matrícula e de pessoa colectiva ...31, com sede em Lisboa, pedindo a sua condenação a pagar à 1.ª autora a quantia de €3.607,59 e à 2.ª autora a quantia de €16.080,00, valores acrescidos de juros à taxa legal desde a citação.
Para fundamentar o seu pedido alegaram, em súmula, que no dia 07.08.2018, por volta das 22h00, quando o veículo JN pertencente à 1ª e conduzido pela 2ª autoras se encontrava estacionado na Rua ..., ..., Aveiro, no sentido da marcha, do lado direito, fora da via destinada ao trânsito, com as rodas do lado esquerdo do veículo junto ao prumo do traço contínuo, e sem causar qualquer constrangimento à circulação rodoviária, foi embatido por trás pelo veículo com a matrícula SD, propriedade de CC, conduzido pelo próprio e segurado pela ré, cujo condutor circulava à velocidade excessiva e imprudente de cerca de 100km/h, de forma desatenta e descuidada, conduzindo enquanto manuseava o telemóvel.
Acrescentaram que em consequência da colisão o veículo JN sofreu danos cuja reparação custa €3.607,59, a 2ª autora ficou privada do uso do aludido veículo devendo ser ressarcida de tal privação no montante de €11.080,00, a 2ª autora sofreu graves lesões corporais em resultado das quais sente ainda hoje dores no ombro esquerdo, no pescoço e no braço esquerdo, devendo ser ressarcida pelos danos morais em montante não inferior a €5.000,00.
A ré foi citada e contestou, arguindo a excepção da prescrição e impugnando os factos alegados na petição inicial, defendendo por isso a improcedência da acção.
Para o efeito, alegou que o acidente ocorreu de noite, em local com os postes de iluminação pública apagados, estando veículo JN, de cor escura, estacionado com cerca de metade em cima do passeio do lado direito e outra metade, com os rodados esquerdos a ocupar parte da hemi-faixa de rodagem direita, por onde circulava o veículo SD, sem quaisquer luzes de iluminação, faróis, de sinalização, intermitentes/piscas ou qualquer triângulo colocado na via para assinalar a sua presença, estando totalmente às escuras. Já o veículo SD circulava pela via pública, pela hemi-faixa de rodagem direita, confiando na inexistência de qualquer obstáculo na via, tendo sido surpreendido pela presença do veículo JN a interromper-lhe a linha de marcha, do qual ainda tentou desviar-se para a respectiva esquerda sem, no entanto, lograr evitar embater com a sua frente direita na traseira esquerda do veículo JN.
Quanto aos danos materiais alegou que o veículo JN era de 1991 e não valia, antes do acidente, mais de €2000, valendo os salvados não mais de €500, o que determina a perda total, sendo que em face da carta da ré datada de 28.08.2018 a declinar a responsabilidade no acidente, as autoras já poderiam ter reparado o veículo, constituindo um manifesto abuso do direito pretender uma indemnização pela privação do uso do veículo ao fim de mais de três anos.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente, e a ré condenada a pagar à 1ª autora €1.082,27, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação da ré até integral pagamento.
Do assim decidido, as autoras interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Na sentença ora recorrida, há erro de julgamento quanto à matéria de facto.
2. A prova produzida em audiência e que se mostra gravada, aponta no sentido de deverem ser integrados na matéria de facto assente outros factos que, tendo sido alegados e sendo relevantes para a boa decisão da causa, resultaram também provados em audiência, nomeadamente a partir das declarações de parte da 2.ª autora e de documentos juntos com a petição inicial.
3. Atentas as declarações de parte da 2.ª autora entre os minutos 00:04:06 e 00:07:57 e, ainda, entre os minutos 00:09:50 e 00:11:00 da gravação áudio do sistema habilus, tudo acima transcrito, conjugadas com as fotos integradas no documento n.º 4 da petição inicial, particularmente as fotos 1 e 6, o ponto 7 deve ser reformulado e passar a ter a seguinte redacção:
7. No sentido da marcha, o veículo JN encontrava-se estacionado, do lado direito, junto a uma localidade habitacional e no passeio que servia a mesma como espaço ou zona de estacionamento, sendo que as rodas do lado esquerdo do veículo estavam no prumo do traço contínuo, ocupando o referido veículo alguns centímetros da faixa de rodagem, não causando qualquer constrangimento à circulação rodoviária.
4. Atentas as declarações 2.ª autora entre os minutos 00:29:11 e 00:35:06, e os minutos 00:37:04 e 00:38:08 da gravação áudio do sistema habilus, tudo acima transcrito, conjugadas com os documentos n.º 10 e 11 da petição inicial, deve ser aditado, na medida em que foi matéria alegada na petição inicial, o seguinte ponto à matéria de facto provada:
22. Devido ao choque sofrido na traseira do veículo JN, em consequência do acidente, resultaram dores corporais intensas e prolongadas à 2.ª autora, nomeadamente, dores de cabeça, dormência e inflamação das articulações dos braços e das pernas e dificuldade em caminhar.
5. Ficou provado, contrariamente ao alegado pela ré no artigo 13.º da contestação, que o local do acidente estava iluminado, estando os postes de iluminação pública ligados, conforme declarações da 2.ª autora, não contrariadas por qualquer outro elemento probatório, entre os minutos 00:06:07 e 00:06:40 da gravação áudio do sistema habilus, devendo ser aditado um ponto 6-A com o seguinte teor:
6-A. O local do acidente estava iluminado, estando os postes de iluminação pública ligados.
6. Foi alegado (artigo 3.º da petição inicial) e resultou provado através do documento n.º 2 da p.i. que à data dos factos, a 2.ª autora detinha a guarda da 1.ª autora, que era menor de idade, devendo, por isso, ser integrado na matéria assente, um novo ponto, com o número 23 e com o seguinte teor:
23. À data dos factos, a 2.ª autora detinha a guarda da 1.ª autora, que era menor de idade.
7. Há também erro de julgamento na matéria de direito, quer quanto à questão da responsabilidade, que quanto aos danos.
8. Em primeiro lugar, não se compreende a referência, na sentença, à alínea b) do artigo 50.º n.º 1 do Código da Estrada, uma vez que o âmbito da proibição normativa especificamente em causa nada tem que ver com a concreta situação dos autos, isto é, não há qualquer estacionamento em “segunda-fila”!...
9. Além disso, no caso concreto, o passeio em causa é, manifestamente, como ficou provado (ponto 7), uma zona de estacionamento permitido, bastando, nunca é demais sublinhá-lo, olhar atentamente para as fotografias juntas como documento n.º 4, em particular a 1.ª dessas fotografias onde é bem visível, a dado passo, o rebaixamento do lancil para permitir o acesso de veículo ao passeio e respectivo estacionamento.
10. A 2.ª autora estacionou o seu veículo numa zona do passeio reservado a estacionamento de veículos, onde, portanto, o estacionamento é permitido (ponto 7 da matéria assente), donde, a 2.ª autora não violou, pois, a norma do artigo 49.º, n.º 1 alínea f) do Código da Estrada.
11. Não se exigia à 2 ª autora que tivesse o cuidado e a diligência acrescida de pelo menos, sinalizar a sua manobra, accionando os sinais luminosos do veículo JN, nomeadamente, as luzes de perigo (“quatro piscas”), dado que, por um lado, a 2.ª autora não estava, aquando do embate, a realizar qualquer “manobra” e, por outro, tinha o veículo totalmente parado fora da faixa de rodagem, com o motor desligado e sem provocar qualquer obstrução à circulação dos demais veículos.
12. Não havia efectivamente qualquer manobra em curso nem qualquer outro perigo que justificasse cautelas redobradas por banda da 2.ª autora, nomeadamente ligar os “4 piscas”.
13. A factualidade provada mostra que a 2.ª autora, foi, aliás, particularmente cautelosa, uma vez que para falar ao telemóvel com a irmã (vide as declarações da 2.ª autora acima transcritas) saiu da via de rodagem, imobilizou o seu veículo, estacionando-o numa zona de estacionamento permitido, e num local amplo, iluminado, com boa visibilidade (dado ser uma recta), não causando qualquer constrangimento à circulação dos demais veículos.
14. Não há, assim, qualquer conduta ilícita por banda da 2.ª autora que pudesse determinar a imputação de qualquer responsabilidade através da aplicação do instituto da concorrência de culpas.
15. A responsabilidade pelo acidente recai inteiramente no condutor do veículo SD, que circulava, de noite, num arruamento iluminado de comunicação terrestre, que se desenhava em traçado recto, afecto ao trânsito público, com duas vias de trânsito, uma afecta a cada sentido de marcha, onde as condições meteorológicas registavam bom tempo, o pavimento encontrava-se seco e limpo e não existiam obras que obstruíssem a circulação – uma vez que não regulou a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, pudesse, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
16. Além disso, atendendo às características da via - o local onde ocorreu a colisão trata-se de um arruamento de comunicação terrestre, caracterizado por uma recta, afecta ao trânsito público, com duas vias de trânsito, uma afecta a cada sentido de marcha e estava iluminado, estando os postes de iluminação pública ligados, (pontos 6 e 6-A da matéria assente) -, o local onde o JN estava estacionado – o JN encontrava-se estacionado, do lado direito, junto a uma localidade habitacional e no passeio que servia a mesma , sendo que as rodas do lado esquerdo do veículo estavam no prumo do traço contínuo, ocupando o referido veículo alguns centímetros da faixa de rodagem, não causando qualquer constrangimento à circulação rodoviária (ponto 7 da matéria assente) - e os pontos onde o veículo JN foi embatido pelo SD - o veículo com a matrícula SD embateu na parte traseira esquerda e central do veículo JN (ponto 10 da matéria assente) - é forçosa a conclusão de que o SD teve de embater no JN em cima do passeio, onde, sublinhe-se, o estacionamento é permitido.
17. O JN nunca poderia ter sido embatido na faixa de rodagem, dado que, conforme ficou provado, as rodas do lado esquerdo do veículo estavam no prumo do traço contínuo (delimitador da via face à berma), ocupando o referido veículo (apenas) alguns centímetros da faixa de rodagem, não causando qualquer constrangimento à circulação rodoviária
18. Por tanto, por qualquer razão não concretamente provada, mas fruto de clara distracção por banda do condutor do SD, talvez causada por uso indevido do telemóvel, conforme resulta das declarações da 2.ª autora, mas que não foi possível provar, o veículo SD saiu da sua via de rodagem, e embateu no veículo JN que estava estacionado numa zona onde estacionamento é permitido, tendo o SD embatido o JN na respectiva zona traseira central, além da lateral esquerda traseira.
19. É inteira a responsabilidade pelo acidente por banda do condutor do SD, que claramente conduzia, naquele momento, desatento, por qualquer razão que não foi possível provar, violando também o disposto no artigo 11.º, n.º 2 do Código da Estrada (os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança).
20. Se, por mera hipótese teórica, se considerar que a condutora do JN estacionou o veículo numa zona onde tal imobilização não é permitida, o que apenas por cautela e alto dever de patrocínio se considera, a verdade é que, tal circunstância, por si só, nunca poderia determinar a imputação de qualquer grau de responsabilidade à 2.ª autora no acidente, dado ter sido o condutor do SD quem bateu por trás, num veículo que estava praticamente todo fora da faixa de rodagem, tendo o embate ocorrido na zona central do JN.
21. Havendo, assim, erro de julgamento, a sentença, deve ser alterada nesta parte e substituída por outra decisão que conclua pela responsabilidade total do condutor do SD no sinistro em causa nestes autos.
22. Também quanto aos danos há manifesto erro de julgamento, uma vez que ficou demonstrada a responsabilidade total do condutor do SD e, tendo ficado provado que o veículo JN sofreu danos materiais, nomeadamente: Reforço pára-choques tre; Suporte de travessa tre; Para choques traseiros 1; Porta mala (inclui monograma e revestimento); Travessa para Choques traseiro; Painel TR completo; Suporte inf; Farol tre; Farolim da mala; Legenda VIAPRE; Legenda mala; Pintura (para choque, porta mala, painel, suporte inf., preparação de material) – ponto 14 da matéria assente – que o valor da reparação do veículo JN corresponde à quantia de 3.607,59 € (três mil seiscentos e sete euros e cinquenta e nove cêntimos) ponto 15 da matéria assente e que a Ré é seguradora do veículo motorizado com a matrícula ..-SD-.. (doravante, apenas SD), através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...04, assumindo, nessa condição, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros emergentes da sua circulação – ponto 3 da matéria provada, deve a decisão recorrida, também nesta parte, ser revogada e substituída por outra que conclua pela condenação da ré no pagamento à 1.ª autora da quantia de 3.607,59 € (três mil seiscentos e sete euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros à taxa legal contados desde a citação, como peticionado.
23. Há ainda erro de julgamento quanto ao dano de privação do uso do veículo pois ficou provado que a 2.ª autora era, à data do acidente, não só a condutora como também a legítima possuidora do veículo JN – facto provado n.º 2: a 2.ª autora era, à data do acidente, a condutora e legítima possuidora, do veículo JN; que a 2.ª autora dependia do veículo JN para uso pessoal, nomeadamente, para transportes diários e viagens longas, de Portugal para o estrangeiro (ponto 20 da matéria assente); que a 2.ª autora realizava em média dois mil quilómetros por mês com o referido veículo (ponto 21 da matéria assente); e que à data dos factos, a 2.ª autora detinha a guarda da 1.ª autora, que era menor de idade (ponto 23 da matéria assente revista).
24. É claro e inequívoco o direito da 2.ª autora a ser ressarcida pela privação do uso do veículo JN, direito que, como é reconhecido, não é exclusivo do proprietário, sendo também reconhecido a sujeito de direito que tenham outra qualidade relativamente à coisa, entre eles o possuidor, como é o caso da 2.ª autora.
25. A decisão recorrida deve também nesta parte ser corrigida, condenando-se a ré a indemnizar a 2.ª autora pelo dano de privação do uso.
26. Tendo ficado provado, em 18 e 19 da matéria assente, que em consequência do acidente, a 2.ª autora teve de manter o veículo imobilizado por não estar o mesmo em condições de circular na via pública e que não foi facultado à 2.ª autora qualquer veículo de substituição pela imobilização do veículo sinistrado, entende-se se equitativa a condenação da ré em quantia diária não inferior a 10 euros, contados desde a data do acidente até à data em que o veículo seja efectivamente reparado, valor a que acrescem juros à taxa de 4%, contados deste a citação até efectivo e integral pagamento, tudo conforme peticionado, devendo a decisão recorrida ser alterada em conformidade.
27. Por último, entende-se, outrossim, haver erro de julgamento quando aos danos físicos decorrentes do acidente uma vez que, como atrás já defendido, ficou provado que devido ao choque sofrido na traseira do veículo JN, em consequência do acidente, resultaram dores corporais intensas e prolongadas à 2.ª autora, nomeadamente, dores de cabeça, dormência e inflamação das articulações dos braços e das pernas e dificuldade em caminhar (ponto 23 da matéria assente alterada).
28. Donde, mostrando-se provada a existência de danos físicos sofrido e, por isso, indemnizáveis, deverá a ré ser condenada a indemnizar a 2.ª autora em valor a ser equitativamente fixado pelo douto Tribunal ad quem, mas em quantia nunca inferior a 5.000,00, acrescida de juros à taxa legal, conforme peticionado.
29. A sentença, por ilegal, nomeadamente em manifesta violação dos artigos 483.º, 496.º, 562.º, 563.º, 566.º e 570.º, todos do Código Civil, que deveriam ter sido interpretados e aplicados de forma diversa, deve ser revogada e substituída por outra que condene a Ré em todos os pedidos formulados pelas AA.
Sem prescindir, por cautela e alto dever de patrocínio importa ainda concluir o que segue.
30. Para o caso de se entender – o que apenas se admite como hipótese e por cautela – pela existência de concorrência de culpas, nunca poderá a solução passar por uma repartição da culpa nos moldes formulados pelo Tribunal a quo.
31. Face à factualidade provada – mesma na versão do próprio Tribunal a quo - a haver concorrência de culpas, o grau de culpa do condutor do SD é superlativamente maior do que a culpa da 2.ª autora, que a ter existido é reduzidíssima – o que apenas por hipótese se considera.
32. Atendendo às características da via - o local onde ocorreu a colisão trata-se de um arruamento de comunicação terrestre, caracterizado por uma recta, afecta ao trânsito público, com duas vias de trânsito, uma afecta a cada sentido de marcha e estava iluminado, estando os postes de iluminação pública ligados, (pontos 6 e 6-A da matéria assente) -, o local onde o JN estava estacionado – o JN encontrava-se estacionado, do lado direito, junto a uma localidade habitacional e no passeio que servia a mesma , sendo que as rodas do lado esquerdo do veículo estavam no prumo do traço contínuo, ocupando o referido veículo alguns centímetros da faixa de rodagem, não causando qualquer constrangimento à circulação rodoviária (ponto 7 da matéria assente) - e os pontos onde o veículo JN foi embatido pelo SD - o veículo com a matrícula SD embateu na parte traseira esquerda e central do veículo JN (ponto 10 da matéria assente) – impõe-se a conclusão de que o SD teve de embater no JN em cima do passeio, onde, sublinhe-se, o estacionamento é permitido.
33. O condutor do SD, por conduzir distraído e não adequar a velocidade nos termos exigidos por lei, contribuiu decisivamente para a produção do acidente, tendo embatido por detrás num veículo que estava imobilizado do lado direito da via, em cima do passeio numa zona de estacionamento.
34. Nesta hipótese, a haver concorrência de culpa, a culpa do condutor do SD deverá ser fixada em 95% e a da 2.ª Autora em 5%, com todas as consequências daí decorrentes em termos indemnizatórios.
35. Sublinhe-se, finalmente, que às mesmas conclusões se deve chegar, quanto a todos os pontos suscitados no presente recurso, no caso de o Tribunal ad quem entender – o que apenas por hipótese teórica se considera – que não deve ser alterada a decisão sobre matéria de facto.
36. Isto porque, mesmo sem tal alteração, a matéria fixada pelo Tribunal recorrido não consente solução que não a condenação integral da ré nos pedidos formulados pelas autoras.
37. A presente apelação deverá, pois, ser julgada totalmente procedente e, em consequência revogada a sentença recorrida, devendo a mesma ser substituída por decisão que condene integralmente a ré nos pedidos formulados pelas autoras.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
ii. A quem é imputável a culpa na produção do sinistro e, se houver concorrência de culpas, como distribuir a medida da culpa pelos dois condutores.
iii. Se a condutora do veículo sinistrado não proprietária deste é titular do direito de indemnização pela privação do uso do veículo.
iv. Se as dores sofridas pela condutora do veículo justificam a tutela do direito.

III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente impugnou a decisão sobre a matéria de facto, reclamando o acrescento ao ponto 7 de dois novos factos, bem como a adição de três novos pontos da matéria de facto à matéria julgada provada.
Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta à apreciação da mesma.
No tocante ao ponto 7, a recorrente defende que deve ainda ser julgado provado que espaço onde o veículo JN estava estacionado é um «espaço ou zona de estacionamento» e que apesar de se encontrar com as rodas do lado esquerdo a ocupar alguns centímetros da faixa de rodagem, «não causava qualquer constrangimento à circulação rodoviária».
O meio de prova do primeiro dos factos em questão é constituído pelas fotografias juntas aos autos (confirmáveis através da consulta do Google Maps), as quais mostram as características do local em apreço, sendo certo que depoimento algum pode acrescentar o que quer que seja ao que as fotografias mostram.
O que se observa nas fotografias é que no espaço da Rua ..., ..., Aveiro, onde está situada a casa de habitação com o n.º de polícia ..., o passeio baixa e o seu pavimento bem como o lancil que o separa da faixa de rodagem passam a estar ao nível desta.
Essa situação repete-se nos demais locais da rua onde existem casas de habitação com garagens e outras entradas e saídas a deitar para a rua, sendo que nos locais onde a estrada é marginada por terrenos e não por construções, o passeio e o respectivo lancil estão situados alguns centímetros acima do nível do piso destinado à circulação.
Na nossa interpretação as fotografias não revelam a existência no local de qualquer espaço destinado a estacionamento de veículos, revelam sim a existência de um passeio para peões, configurado de modo a, no local onde é necessário o acesso de pessoas e veículos às casas de habitação, permitir que esse acesso se faça sem os veículos necessitarem de subir o lancil para transpor o passeio destinado aos peões.
Neste ponto concreto, o que sucede é que a distância entre o lancil e o muro da casa é maior do que em muitos dos espaços das redondezas (onde não há casas ou é menor o recuo destas em relação à estrada) razão pela qual o espaço do passeio (situado ao nível do piso da estrada) é igualmente maior, permitindo parar um veículo automóvel numa posição mais distante em relação ao eixo da via, porventura mesmo, dependendo da largura do veículo, colocá-lo totalmente fora da faixa de rodagem.
Com fundamento nessa interpretação visual das fotografias, bem andou o Juiz a quo ao não julgar provado que nos encontrássemos perante um espaço destinado ao estacionamento de veículos. Independentemente da utilização que dele é ou pode ser feita, trata-se de um espaço não dotado de qualquer sinal de trânsito que o qualifique para estacionamento, destinado à circulação de peões (passeio) e que ao longo da sua extensão foi construído em regra mais elevado em relação à estrada para segurança dos peões e pontualmente ao nível da estrada para entrada e saída de veículos d os edifícios ali situados para a via pública e vice-versa. O facto em questão não pode, por isso, ser julgado provado.
O segundo aspecto referido pela recorrente para integrar o ponto 7 (“sem causar constrangimento para a circulação”) consiste mais que num facto, numa interpretação que a recorrente pretende que se faça.
Aceitando a recorrente que o veículo que conduzia estava parado a ocupar «alguns centímetros da faixa de rodagem» (segmento do ponto 7 cuja decisão não impugna), não se vê como pode pretender que, não obstante isso, ele «não causava qualquer constrangimento à circulação rodoviária». A nosso ver, tudo quanto ocupa a faixa de rodagem contende, limita e condiciona a utilização desta!
Acresce que a autora não alegou sequer a largura da faixa de rodagem no local, impedindo qualquer raciocínio com base no espaço livre de que os veículos que circulassem na mesma hemi-faixa disporiam para ultrapassar o veículo da autora sem necessidade de ocupar qualquer parte da hemi-faixa destinada ao sentido oposto.
Refira-se que mesmo que o veículo conduzido pelo outro condutor tivesse uma largura de cerca de 2 metros (o que é normal e por isso provável) e que nas fotografias a hemi-faixa de rodagem pareça ter pouco mais que três metros de largura (observação a olho nu, note-se, mas que corresponde a uma largura normal e por isso igualmente provável), o afastamento de qualquer interferência do veículo imobilizado na circulação nessa hemi-faixa de rodagem dependia sempre da quantidade de centímetros que o veículo imobilizado ocupava da faixa de rodagem. Havendo indeterminação desse dado é impossível julgar provado o que a recorrente pretende, razão pela qual também nesse aspecto nos parece bem decidido o ponto 7 da matéria de facto.
A recorrente pretende de seguida que se adite à matéria de facto provada o seguinte facto: «Devido ao choque sofrido na traseira do veículo JN, em consequência do acidente, resultaram dores corporais intensas e prolongadas à 2.ª autora, nomeadamente, dores de cabeça, dormência e inflamação das articulações dos braços e das pernas e dificuldade em caminhar».
O Mmo. Juiz a quo diz e muito bem que para demonstração deste facto a autora devia ter junto documentos médicos ou hospitalares que comprovassem as lesões ou consequências físicas e a necessidade de tratamento das mesmas, não sendo suficiente para o efeito as declarações prestadas pela mesma uma vez que é a própria a mencionar a preexistência de problemas de saúde, a toma de medicamentos e o uso de auxílios ortopédicos.
Referindo a autora que inclusivamente recorreu a dois hospitais para ser observada e tratada às manifestações dolorosas que apareceram após o acidente, no mínimo era-lhe exigido que apresentasse o relatório dessa observação pelos serviços médicos desses hospitais, meios de prova de que certamente dispunha ou que podia obter.
Como quer que seja, isso não invalida o óbvio. Uma vez que a autora se encontrava no interior do veículo parado quando este foi embatido por trás por outro veículo, é forçoso concluir que o embate provocou a projecção brusca do corpo da autora para a frente e depois para trás (o chamado golpe do coelho) e que esse movimento súbito, inesperado, impreparado e violento provocou certamente dores à autora.
Para determinar se essas dores foram intensas e prolongadas e geraram as sequelas referidas pela autora, era necessário apurar, por exemplo, se a autora tinha o cinto de segurança colocado ou não, as patologias físicas de que ela já sofria, a velocidade a que circularia o veículo que embateu. A falta destes elementos e dos meios de prova documental acima referidos impede que se julgue provado mais que o seguinte que aqui agora se julga provado:
23. Por causa do embate na traseira do veículo JN e subsequente oscilação deste, a 2.ª autora sofreu dores.
A seguir vem impugnado o decidido em relação à existência de iluminação pública no local, mais especificamente se os postes de iluminação pública estavam ligados.
A recorrente lavra, contudo, num equívoco, rectius, na tentativa vã de tirar proveito de um facto que nem sequer alegou.
Com efeito, na petição inicial a autora não se referiu à existência de iluminação pública no local e/ou ao funcionamento da existente, foi a ré na contestação que alegou que «o local tinha os postes de iluminação pública apagados». Foi este facto negativo (as luzes não estavam a funcionar) que foi alegado e que acabou julgado não provado por ausência de prova, decisão que, aliás, a recorrente não impugna. A recorrente pretende sim que se julgue provado o facto positivo inverso (as luzes estavam a funcionar), o qual, como referimos, não foi sequer alegado.
É certo que a natureza de facto instrumental ou meramente complementar permita que esse facto, não obstante não tenha sido alegado, pudesse integrar a fundamentação de facto da sentença. Porém, a verdade é que a prova produzida sobre essa matéria encerra controvérsia quanto à sua verificação (a recorrente cita o meio de prova que indicia esse facto – as suas próprias declarações – mas não se dá sequer ao trabalho de analisar e refutar os meios de prova produzidos que indiciam o oposto – a participação e o depoimento de DD –), o que impede este tribunal de formular uma convicção positiva sobre tal facto, razão pela qual se decide não o aditar à matéria de facto julgada provada.
Por fim, pretende a recorrente que seja aditada à matéria de facto provada o seguinte: «à data dos factos, a 2.ª autora detinha a guarda da 1.ª autora, que era menor de idade». Para prova do mesmo indica o documento n.º 2 junto com a petição inicial.
Sucede que o documento 2 é a «declaração amigável» do acidente, a qual é naturalmente inábil para demonstrar a idade de uma pessoa, ainda por cima uma pessoa que nem sequer subscreve tal documento particular. A recorrente queria, por certo, referir-se ao documento 3 que é uma certidão judicial de um processo de divórcio.
Todavia, ainda que se aceite que a referida certidão é válida (não estão juntas a totalidade das folhas, pelo que o valor de documento autêntico foi destruído) e inclui as duas últimas folhas do documento (que não apresentam a numeração sequencial iniciada na primeira página da certidão), a verdade é que das mesmas apenas se pode retirar que a autora AA era menor … em Dezembro de 2002, não resulta nem a idade que ela tinha, nem que ainda fosse menor de idade em … Agosto de 2018, data dos factos (quase 16 anos depois!).
De novo aqui a autora não foi cuidadosa em carrear para os autos os meios de prova indispensáveis para demonstração dos factos de que se pretende aproveitar, sendo que no caso, se tratava da respectiva certidão do assento de nascimento.
Refira-se, aliás, que parece muito pouco provável que o facto em questão seja verdadeiro. Como a autora não pode deixar de saber, o documento único automóvel do veículo tem data de 23 de Julho de 2018, sendo muitíssimo provável que o veículo tivesse sido importado para Portugal e aqui legalizado em nome da autora por esta já ser maior de idade ou, pela negativa, muitíssimo improvável que isso tivesse sido realizado em nome de uma menor. Se não foi assim cabia à autora demonstrar com zelo e empenho mínimos.
Tal facto não será, por isso, aditado à matéria de facto provada.

IV. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1) A 1.ª autora era, à data do acidente, a proprietária do veículo da marca Toyota, modelo ..., com a matrícula ..-JN-.. (doravante apenas JN).
2) A 2.ª autora era, à data do acidente, a condutora e legítima possuidora, do veículo JN.
3) A ré é seguradora do veículo motorizado com a matrícula ..-SD-.. (doravante, apenas SD), através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...04, assumindo, nessa condição, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros emergentes da sua circulação.
4) No dia 7 de Agosto de 2018, aproximadamente às 22h00m e já de noite, na Rua ..., concelho ..., distrito de Aveiro, Portugal, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o veículo JN e o veículo SD.
5) No momento do acidente, o veículo JN era conduzido pela 2ª autora, mãe da 1.ª autora e o veículo SD, segurado na ré, propriedade de CC, na altura do sinistro, era conduzido pelo próprio.
6) O local onde ocorreu a colisão trata-se de um arruamento de comunicação terrestre, caracterizado por uma recta, afecta ao trânsito público, com duas vias de trânsito, uma afecta a cada sentido de marcha.
7) No sentido da marcha, o veículo JN encontrava-se estacionado, do lado direito, junto a uma [unidade] habitacional e no passeio que servia a mesma, sendo que as rodas do lado esquerdo do veículo estavam no prumo do traço contínuo, ocupando o referido veículo alguns centímetros da faixa de rodagem.
8) O veículo JN encontrava-se estacionado sem quaisquer luzes de iluminação, faróis, ou de sinalização, sinais intermitentes/piscas, bem como sem qualquer triângulo colocado na via para assinalar a sua presença.
9) O veículo com a matrícula SD, circulava pela via pública, pela hemi-faixa de rodagem direita, no mesmo sentido de marcha que o veículo JN.
10) O veículo com a matrícula SD embateu na parte traseira esquerda e central do veículo JN.
11) A velocidade máxima permitida no local do acidente é de 50 Km/h.
12) À data do acidente, as condições meteorológicas registavam bom tempo, o pavimento encontrava-se seco, limpo e não existiam quaisquer obras que obstruíssem a circulação de ambos os condutores.
13) Interpelada a ré no sentido de se responsabilizar pelos danos ocorridos, a mesma declinou a responsabilidade.
14) O veículo JN sofreu danos materiais, nomeadamente: reforço pára-choques tre; suporte de travessa tre; pára-choques traseiros 1; porta mala (inclui monograma e revestimento); travessa pára-choques traseiro; painel TR completo; suporte inf; farol tre; farolim da mala; legenda VIAPRE; legenda mala; pintura (para choque, porta mala, painel, suporte inf., preparação de material).
15) O valor da reparação do veículo JN corresponde à quantia de 3.607,59€ (três mil seiscentos e sete euros e cinquenta e nove cêntimos).
16) O veículo JN foi matriculado no ano de 1991.
17) O veículo da 1.ª autora tinha, aproximadamente, 300.387 km (trezentos mil, trezentos e oitenta e sete quilómetros).
18) Em consequência do acidente, a 2.ª autora teve de manter o veículo imobilizado por não estar o mesmo em condições de circular na via pública.
19) Não foi facultado à 2.ª autora qualquer veículo de substituição pela imobilização do veículo sinistrado.
20) A 2.ª autora dependia do veículo JN para uso pessoal, nomeadamente para transportes diários e viagens longas, de Portugal para o estrangeiro.
21) A 2.ª autora realizava em média dois mil quilómetros por mês com o referido veículo.
22) Desde a data do acidente, as deslocações passaram a ser feitas noutro veículo, nomeadamente um Volkswagen, modelo ..., com a matrícula ..-JM-...
23. Por causa do embate na traseira do veículo JN e subsequente oscilação deste, a 2.ª autora sofreu dores.

V. Matéria de Direito:
A] Da responsabilidade pela produção do acidente
Na sentença recorrida entendeu-se que houve concorrência de culpas dos condutores dos dois veículos envolvidos no acidente, tendo-se distribuído a responsabilidade pelas respectivas consequências na proporção de 30% para o condutor do veículo segurado pela ré e de 70% para a 2ª autora.
A recorrente discorda deste entendimento, defendendo a responsabilidade total e exclusiva do condutor do veículo segurado pela ré, ou, na hipótese de se entender que existe uma situação de concorrência de culpas, que essa responsabilidade seja dividida em 95% para aquele condutor e apenas 5% para a autora condutora.
Vejamos:
Nos termos do artigo 483º do Código Civil “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Este preceito exige como pressuposto da obrigação de indemnizar a culpa do agente, sob a forma de dolo ou negligência (mera culpa). Segundo Antunes Varela, in Das obrigações em geral, vol. I, 5ª ed., pág. 514, agir com culpa é actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito, o que se verifica quando ele podia e devia ter agido de outro modo. Por outras palavras, a culpa exprime um juízo de reprovação ou de censura normativa da conduta do agente baseado quer em inconsideração, imperícia ou negligência, quer na inobservância de preceitos legais ou regulamentares.
No domínio dos acidentes de viação, a negligência traduz-se as mais das vezes na violação das regras de circulação, que revelam uma actuação desconforme ao dever-ser jurídico tão censurável quanto perigosa é a própria circulação rodoviária.
Por regra, em caso de verificação da infracção de uma norma regulamentar não é necessária a prova de que o agente previu ao menos a verificação do evento que essa infracção desencadeia, o que seria necessário para imputar o facto à vontade e assim legitimar a censura ético-jurídica da actuação. Nesse caso, por aplicação de juízos de regras de experiência que fundamentam as presunções naturais, deve considerar-se que o condutor infractor agiu com culpa, a menos que ele demonstre que a contravenção foi alheia à sua vontade.
No âmbito dos acidentes de viação, existem assim: i. situações de presunções de culpa que oneram o presumido culpado, por inversão do ónus da prova, sempre que este não logre afastar a sua culpa na produção do evento; ii. situações de culpa presumida (culpa presumida, que não a presunção de culpa) em que o condutor fica onerado por culpa efectiva sempre que, apesar das dificuldades de prova, o julgador atinja a convicção da culpa através de presunções naturais ou judiciais - a prova de primeira aparência -; iii. e situações em que o condutor é responsabilizado por risco, não se exigindo a culpa efectiva na produção dos danos, atento o perigo especial que anda associado a certos comportamentos ou veículos e o benefício para a sociedade que deles decorre.
Perante um acidente de viação existe negligência na condução quando ocorre uma infracção a uma regra de circulação rodoviária. Daí se extrai a culpa do condutor sob forma de negligência desde que pelo menos estejamos perante uma contravenção causal.
Como explica Américo Marcelino, in Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, pág. 117, citando a opinião de Gomes da Silva, que “uma transgressão é causal de certo evento quando este é daqueles que o legislador previu e quis evitar com a criação da norma incriminadora”. Por outras palavras, sempre que no processo causal do acidente em análise tiver relevo irrecusável o aspecto que a norma estradal desrespeitada pelo agente visa controlar estamos perante uma contravenção causal.
No caso, tendo o acidente ocorrido em 7 de Agosto de 2018, a regularidade da actuação rodoviária dos condutores envolvidos na colisão deve ser aferida pelo Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, na versão republicação em anexo à Lei 72/2013, de 3 de Setembro, regulamentação rodoviária que nessa data regia a circulação rodoviária.
O n.º 2 do artigo 11.º impõe aos condutores a obrigação de «durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança».
O n.º 1 do artigo 13.º, prescreve que «a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes».
O n.º 1 do artigo 17.º estabelece que «os veículos só podem circular nas bermas ou nos passeios desde que o acesso aos prédios o exija, salvo as excepções previstas em regulamento local».
O n.º 2 do artigo 18.º determina que o «condutor de um veículo em marcha deve manter distância lateral suficiente para evitar acidentes entre o seu veículo e os veículos que transitam na mesma faixa de rodagem, no mesmo sentido ou em sentido oposto».
O n.º 1 do artigo 24.º consagra o principio geral em matéria de velocidade instituindo que «o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente».
O n.º 4 do artigo 48.º estabelece que «dentro das localidades, a paragem e o estacionamento devem fazer-se nos locais especialmente destinados a esse efeito e pela forma indicada ou na faixa de rodagem, o mais próximo possível do respectivo limite direito, paralelamente a este e no sentido da marcha».
De acordo com a alínea a) do n.º 1 do artigo 50.º é «proibido o estacionamento: impedindo o trânsito de veículos ou obrigando à utilização da parte da faixa de rodagem destinada ao sentido contrário, conforme o trânsito se faça num ou em dois sentidos
Segundo o artigo 60.º, os veículos automóveis devem possuir e os condutores devem usar, entre outras, as seguintes luzes: a) luz de estrada (máximos), destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância não inferior a 100 m; b) luz de cruzamento (médios), destinada a iluminar a via para a frente do veículo numa distância até 30 m.
O artigo 61.º estabelece que «desde o anoitecer ao amanhecer» «os condutores devem utilizar as seguintes luzes: a) de presença, enquanto aguardam a abertura de passagem de nível e ainda durante a paragem ou o estacionamento, em locais cuja iluminação não permita o fácil reconhecimento do veículo à distância de 100 m; b) de cruzamento, em locais cuja iluminação permita ao condutor uma visibilidade não inferior a 100 m, no cruzamento com outros veículos, pessoas ou animais, quando o veículo transite a menos de 100 m daquele que o precede, na aproximação de passagem de nível fechada ou durante a paragem ou detenção da marcha do veículo; c) de estrada, nos restantes casos».
Sendo estas as disposições legais aplicáveis que definem as regras a observar pelos condutores, vejamos agora como ocorreu efectivamente o sinistro no caso.
- O sinistro ocorreu no dia 7 de Agosto, por volta das 22 horas, de noite.
- Estava bom tempo e o pavimento seco e limpo.
Þ Não existiam obras que obstruíssem a circulação em ambos os sentidos.
- O local é uma rua de uma localidade, onde a velocidade máxima permitida era de 50 km/hora.
- O local forma uma recta, com duas vias de trânsito, uma em cada sentido.
- O veículo da autora estava estacionado, do lado direito, junto a uma habitação, no passeio.
- Tinha as rodas do lado esquerdo sobre o prumo do traço contínuo.
- Ocupava alguns centímetros da faixa de rodagem.
- Este veículo encontrava-se sem qualquer luz ligada e sem o triângulo de sinalização colocado na via a assinalar a sua presença.
- O veículo segurado pela ré circulava pela via pública, pela hemi-faixa de rodagem direita, no mesmo sentido de marcha que o veículo da autora.
- No decurso dessa circulação embateu na parte traseira esquerda e central do veículo da autora.
Resulta desta descrição factual que o veículo segurado pela ré infringiu duas das regras rodoviárias atrás mencionadas.
Por um lado, uma vez que o veículo da autora estava quase totalmente fora da faixa de rodagem e apenas ocupava alguns centímetros desta faixa, circunstância que permitia que os veículos a circular no mesmo sentido o contornassem em segurança afastando-se somente mais alguns centímetros da berma ou passeio, temos de concluir que o condutor segurado pela ré circulou sem deixar em relação ao passeio e ao limite da estrada uma distância de segurança que lhe permitisse passar ao lado de peões, veículos ou outros obstáculos existentes no passeio ou na berma da estrada em condições de segurança para todos.
Por outro lado, uma vez que era uma recta e que não havia qualquer obstáculo à circulação que o impedisse de passar ao lado do veículo da autora e prosseguir a sua marcha em condições de total segurança, temos de concluir que aquele condutor circulava com excesso de velocidade pois não parou no espaço livre e visível à sua frente e foi embater contra o veículo da autora.
Anote-se que a ré alegou que no local os postes de iluminação pública estavam desligados, mas não logrou provar esse facto. Por conseguinte, da alegação da ré retira-se que existiam postes de iluminação pública, só não se sabe se, apesar de ser de noite e de eles estarem programados para funcionar nesse período de tempo, estavam a funcionar. Era a ré que para excluir a culpa do condutor por si segurado tinha de provar que eles não estavam a funcionar, o que não logrou provar.
De todo o modo, ainda que a iluminação pública não estivesse a funcionar, o condutor do veículo segurado pela ré tinha a obrigação de circular com as luzes ligadas, as quais lhe permitiriam ver o veículo da autora a, pelo menos, 100 metros de distância (o local é uma recta e o tempo estava bom), distância perfeitamente suficiente para, circulando a uma velocidade até 50 km/hora (a máxima permitida no local), se afastar da berma ou passeio o suficiente para contornar o veículo da autora e prosseguir a sua marcha sem embater contra este, o que não sucedeu. Daqui resulta que ou o respectivo condutor circulava com excesso de velocidade instantânea ou circulava sem atenção à estrada e aos elementos existentes nesta para poder circular em segurança, o que, em qualquer circulação, constituíam novas infracções rodoviárias.
Estas infracções foram, em qualquer dos casos, causais do sinistro, por serem, qualquer delas, infracções a regras que visam precisamente evitar acidentes como o que aqui ocorreu.
A regra do afastamento de segurança em relação a passeio e bermas visa precisamente a criação de condições de segurança para a realização das manobras de ultrapassagem, contorno ou transposição de pessoas e bens existentes ou a circular nesses espaços e evitar acidentes decorrentes da imprevisão desse dever de cuidado.
A regra da velocidade visa outrossim conter a velocidade dos veículos dentro de limites que face ao local para que estão fixadas e às características dos veículos que têm como destinatários representem margens de segurança adequadas e toleráveis para os riscos comuns e expectáveis que esses locais apresentam, sendo que no caso da circulação dentro das localidades esse riscos se prendem precisamente com o surgimento de pessoas (peões ou ciclistas) e veículos a movimentarem-se ou outros obstáculos inerentes à vida das pessoas numa localidade.
Ao colocar o veículo que conduzia na posição que este ocupava, a autora cometeu alguma infracção causal? A resposta é, cremos, negativa.
Como vimos, não havendo no local parque ou espaço destinado a estacionamento, a autora podia estacionar o veículo na própria faixa de rodagem desde que a posição do veículo não obrigasse os demais veículos a utilizar parte da faixa de rodagem destinada ao sentido contrário para o ultrapassar e/ou transpor. Como não se apurou (as partes não se deram ao trabalho de o alegar) a largura da faixa de rodagem nem a largura do veículo da autora e não está concretizado o número de centímetros (alguns) que este ocupava da faixa de rodagem, não podemos concluir que a autora estava a infringir a regra que rege o estacionamento do seu veículo.
É certo que o veículo estava estacionado no passeio, o que não podia suceder porque os passeios são espaços afectos especialmente à circulação dos peões. Todavia, a infracção à proibição de estacionamento do veículo no passeio não é, no caso, causal do acidente na medida em que a colisão se deu em plena faixa de rodagem e dessa infracção o que resultou foi a menor presença do veículo na faixa de rodagem. A infracção em causa só reduziu o espaço que o veículo ocupava na faixa de rodagem, ou seja, diminuiu o obstáculo que a presença deste na faixa de rodagem representava para os veículos que o quisessem ultrapassar ou transpor. Dito por outras palavras, nem a proibição do estacionamento nos passeios visa impedir a colisão de veículos na faixa de rodagem, nem, no caso, a violação dessa proibição incrementou o risco de colisão que se veio a verificar.
Por fim, também não é possível concluir que por o veículo ter sido estacionado sem qualquer luz ligada e sem o triângulo de emergência colocado, foi cometido uma infracção das regras relacionadas com a iluminação.
Na verdade, como vimos, o artigo 61.º do Código da Estrada só obriga que os veículos estacionados durante a noite sejam deixados com a luz de presença ligada quando se encontrem «em locais cuja iluminação não permita o fácil reconhecimento do veículo à distância de 100 metros». Ora, tratando-se de uma recta, havendo a obrigação de o outro veículo circular com as luzes ligadas e havendo iluminação pública no local, não é possível concluir pela verificação daquela condição (o que dependia de duas circunstâncias não demonstradas: ou que a recta não permitia uma visibilidade de pelo menos 100 metros atento o sentido do veículo segurado pela ré, ou que a iluminação pública não estava a funcionar).
Nesse sentido, podemos agora concluir que ao contrário do entendido na decisão recorrida, no caso o acidente se deveu a culpa total e exclusiva do condutor do veículo segurado pela ré, razão pela qual recai sobre esta, face ao contrato de seguro de responsabilidade civil tendo por objecto a circulação desse veículo, a obrigação de ressarcimento da totalidade dos danos sofridos pelas autoras em consequência do acidente.
B] Dos danos materiais:
O montante da indemnização dos danos materiais sofridos pelo veículo, determinado segundo a teoria da diferença e da reparação por equivalente, corresponde ao montante orçamentado para a reparação dos estragos causados no veículo, ou seja, 3.607,59€.
A ré tinha defendido que o valor da indemnização devia passar pelo conceito de «perda total» do veículo, mas não logrou fazer a prova dos factos necessários à aplicação desse conceito, v.g. o valor venal do veículo antes do acidente.
Acresce que a recorrida não requereu a ampliação do objecto do recurso a essa questão, conforme seria necessário para que esta Relação pudesse reapreciar a decisão da 1.ª instância de calcular a indemnização segundo o custo da reparação.
C] Do dano da privação do uso:
Na petição inicial foi pedida a condenação da ré a pagar a indemnização pelo chamado dano da privação do uso do veículo sinistrado, com fundamento em que por causa dos estragos que lhe foram causados o veículo ficou impedido de circular e a ré nem forneceu veículo de substituição nem se dispôs a suportar o custo da reparação do veículo, o qual se encontra por reparar e sem poder ser usado.
Sucede que este pedido foi formulado não pela 1.ª autora, a proprietária do veículo sinistrado, mas sim pela 2.ª autora, a mãe daquela e utilizadora regular do veículo.
A 1.ª instância negou a esta autora o direito de indemnização pela privação desse uso por ela não ser proprietária do veículo e não dispor sobre ele de um direito de uso oponível a terceiros.
A autora recorrente opõe a esse entendimento que o direito de indemnização não é exclusivo do proprietário do bem danificado e que enquanto possuidora do veículo dispunha dele para o seu uso pessoal pelo que é titular desse direito de indemnização.
Vejamos:
Está provado a esse respeito que:
- Em consequência do acidente, o veículo ficou imobilizado, sem condições para circular.
- A ré não facultou veículo de substituição.
- A 1.º autora era a proprietária do veículo.
- A 2.ª autora era, à data do acidente, a “condutora e legítima possuidora” do veículo.
- A 2.ª autora “utilizava diariamente” o veículo para uso pessoal, realizando em média 2.000 km. por mês com ele.
- Desde a data do acidente, essas deslocações passaram a ser feitas com outro veículo.
Anota-se que a questão que as partes colocam não é propriamente a da ressarcibilidade do dano da privação do uso, isto é, se o mesmo deve ou não ser indemnizado, mas antes a da titularidade do respectivo direito de indemnização, ou seja, se o titular do direito é apenas o proprietário ou pode igualmente ser um terceiro, mero utilizador do veículo.
Quanto à ressarcibilidade, entendemos que a mera privação do uso do veículo é já «uma agressão às faculdades de uso, disposição e disponibilidade do bem pertencente ao lesado e, como tal, uma lesão do respectivo direito de propriedade, consubstanciada numa privação ou limitação daquelas faculdades»[1]. Se em resultado dos danos sofridos pelo veículo, o seu proprietário fica privado daquelas faculdades, ele sofre um dano, isto é, uma afectação do seu património - em sentido amplo, constituído não apenas pelos bens que o compõem, como pelas utilidades que os bens proporcionam ao seu titular -.
O dano tem, por isso, natureza patrimonial, no sentido de que afecta directamente o património do lesado e não o corpo, a saúde ou o intelecto do lesado.
A sua repercussão pode ser (directamente) económica ou patrimonial, como quando o lesado se vê obrigado a suportar despesas para substituir o veículo sinistrado e continuar a poder deslocar-se como até aí fazia com aquele, caso em que o valor da indemnização corresponde à despesa acrescida que o lesado suportou nessa substituição (dano mediato ou indirecto).
Mas também pode ser apenas pessoal, como quando o lesado se priva das deslocações que de outro modo faria, recorre a outro veículo emprestado gratuitamente por familiares ou amigos ou mesmo seu ou recorre a transportes públicos para se deslocar com as limitações inerentes. Neste caso, a indemnização deve ser atribuída ainda que o lesado não haja suportado imediatamente um custo com a substituição, uma vez que apesar disso ele viu mesmo afectadas ilegitimamente as suas faculdades sobre o bem (dano imediato ou directo).
No entanto, da impossibilidade de utilização do veículo sinistrado não decorre sempre e necessariamente um dano. Para podermos afirmar o dano é indispensável que a impossibilidade gere, ainda que de forma presumida, a eliminação, redução ou constrangimento das utilidades que o uso do veículo proporciona, o que não sucede se, no caso concreto, essas utilidades acabam por ser asseguradas, ainda que por via sucedânea, mas sem qualquer custo, encargo, diminuição, desfavor ou condicionante.
No caso, estando demonstrado que as deslocações que eram feitas com o veículo sinistrado passaram a ser feitas com outro veículo, pode concluir-se que a utilidade do veículo sinistrado foi assegurada normalmente por outro veículo, do que não resultou nenhuma afectação relevante para o respectivo proprietário e/ou utilizador.
Provado isso, fica afastada a presunção de que se o proprietário/utilizador deixou de poder usar o veículo sinistrado deixou de poder usufruir das vantagens que retirava desse uso, suportando um dano. E nessa situação, para demonstrar que, não obstante, sempre sofreu um dano, cabia ao lesado alegar e provar que a utilização do outro veículo era feita em circunstâncias mais desfavoráveis: v.g. que este veículo era emprestado ou foi alugado a terceiro pelo que a sua utilização gerava um custo ou pelo menos a contracção de um favor que colocava o proprietário/utilizador em dívida; que o novo veículo tinha maiores custos de utilização; que havia limitações no uso do novo veículo ou este não satisfazia as utilidades do veículo sinistrado; que a utilização do novo veículo para fazer as deslocação que eram feitas com o sinistrado impedia que aquele fosse usado como até aí era feito.
Como essa alegação e prova não foi feita, podemos concluir que, no caso concreto, não estão demonstrados os pressupostos de facto do direito de indemnização pelo dano da privação do uso.
Independentemente disso, entendemos que a 2.ª autora também não seria nunca titular desse direito de indemnização pelas razões que procuraremos demonstrar de seguida, acompanhando de perto o que escrevemos in “A responsabilidade pelo pedido infundado ou pela apresentação indevida à insolvência”, Revista Electrónica de Direito, ano 2015, vol. 2, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, in http://www.cije.up.pt.
As autoras não demandam a ré por terem em relação a esta ou ao condutor do veículo segurado pela ré qualquer direito de crédito ou direito à prestação de origem contratual. O fundamento do pedido das autoras é o instituto da responsabilidade civil.
O nosso direito define o âmbito da responsabilidade civil no artigo 483.º do Código Civil, dividindo a ilicitude, sem a qual não há direito de indemnização, em duas modalidades básicas: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios.
Segundo entende a doutrina e considera a jurisprudência, com apoio no elemento histórico e de coerência sistemática, o direito de outrem que a norma tem em vista situa-se na categoria dos direitos subjectivos. Como quer que se defina o conceito de direito subjectivo, há-de reconhecer-se que o mesmo não se confunde com os meros interesses jurídicos nem com os direitos relativos ou de crédito cuja violação importa responsabilidade contratual.
Esta delimitação legal dos direitos cuja violação gera responsabilidade civil tem como consequência que a violação de um direito de crédito de uma pessoa não gera responsabilidade civil por parte do incumpridor, melhor dizendo, que o titular de um direito de crédito não pode exigir indemnização pelos danos gerados pela insatisfação do seu crédito de qualquer outra pessoa cuja actuação possa ter contribuído ou mesmo gerado esse incumprimento. Ele dispõe somente da possibilidade de responsabilizar o próprio devedor, em sede de responsabilidade contratual.
Com efeito, no domínio das relações negociais vigora o princípio da relatividade (artigo 406.º, nº 2, do Código Civil), por oposição aos direitos absolutos ou subjectivos que já são dotados de eficácia erga omnes. A natureza relativa das obrigações significa que os contratos apenas produzem efeitos entre as partes, que apenas o credor tem o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação e que o devedor só está vinculado a esse cumprimento perante o credor.
A consequência lógica da relatividade da obrigação é a de que o devedor só responde pelas consequências do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso da prestação causadas ao credor e só este lhe pode exigir a reparação das consequências danosas.
Quando limita a ilicitude aos casos de violação de um direito subjectivo ou à infracção de uma norma de protecção, a lei fixa balizas claras de delimitação da extensão da responsabilidade. A vida em sociedade seria, com efeito, intolerável e o seu desenvolvimento económico praticamente impossível se não fosse possível saber com antecipação e com um grau de rigor mínimo o âmbito de responsabilidade que determinada actividade pode desencadear ou implicar. Não é possível a responsabilidade delitual cobrir a totalidade das manifestações da vida em sociedade, sob pena de esta se tornar impossível, tais os riscos que qualquer acto poderia desencadear.
A delimitação das situações de ilicitude que gera responsabilidade delitual permite a qualquer um ter a noção da extensão da responsabilidade que lhe pode ser assacada: se a sua actuação viola direitos subjectivos de outrem, pode exigir-lhe responsabilidade o titular do direito subjectivo violado; se o seu comportamento ofende disposições legais de protecção, são os titulares da posição que justifica a protecção da lei e que viram os seus interesses afectados que lhe podem exigir responsabilidade.
A técnica usada para determinar os danos ressarcíveis é fruto, portanto, de uma lógica de segurança e certeza jurídicas e serve o objectivo de obstar a um “alargamento indeterminado da área do ilícito”[2] ou ao “surgimento de espirais de responsabilidade”[3] que adviriam da admissibilidade genérica da ressarcibilidade dos danos económicos puros, mesmo os sofridos por vítimas com que o agente não podia contar ou prever, mesmo os que atinjam interesses com falta de visibilidade ou aparência social.
A regra básica de distribuição dos riscos e que constitui um dos princípios básicos da responsabilidade traduz-se na máxima casum sensit dominus. A imputação delitual dos danos a outrem pressupõe a lesão de direitos subjectivos, de posições jurídicas que mereçam ser protegidas de qualquer agressão.
Não é legítimo subverter a opção do legislador de delimitação das situações dignas de tutela aquilina, adaptando o conceito de direito de outrem a situações concretas em que o dano não resulta da violação do direito subjectivo ou de disposição de protecção, só porque o dano resultou de uma actuação voluntária do agente.
O que não significa que a lei não reconheça justamente situações em que se justifica a ressarcibilidade de danos económicos puros, como sucede no caso do artigo 495.º do Código Civil relativamente a danos sofridos por terceiros em consequência da violação de direitos de personalidade. Significa somente que à face da lei essas são as excepções expressamente previstas[4].
Por isso nos casos de violações de direitos de crédito (em que a responsabilidade é contratual e perante a outra parte no contrato, o credor) ou nos casos de violação de outras posições jurídicas ou ainda nos casos de danos causados não ao titular do direito subjectivo violado, mas a terceiros, em regra está excluída a responsabilidade civil, ou seja, a obrigação de o agente indemnizar os danos suportados por terceiros.
É o exemplo do desportista profissional que sofre um acidente de viação e fica impedido de realizar a sua prestação desportiva para o clube com o qual tem contrato, caso em que o desportista pode exigir a indemnização dos danos sofridos no acidente mas o mesmo não pode fazer o clube relativamente aos danos que a falta do desportista lhe vai causar nas competições em que participa ou nos patrocínios que obtém por usar aquele desportista; o mesmo sucede com o pianista e com a empresa com a qual tem contratada a realização de um concerto, ainda que quer o clube no primeiro exemplo quer a empresa organizadora do espectáculo neste exemplo sofram claramente danos por ficarem privados da prestação do lesado.
Só não será assim se esses danos estiverem cobertos por uma previsão específica de responsabilidade (v.g. 495.º), se estiveram abrangidos pelo âmbito de tutela de uma disposição legal de protecção (ou seja, existir uma norma jurídica que proíba o comportamento gerador do dano com a intenção de conferir uma protecção ao menos também ao grupo qualificado de pessoas em que se compreende o lesado concreto) ou ainda, admitimos, se, em concreto, os danos tiverem sido causados dolosamente com ofensa dos bons costumes (reclamando, portanto, a tutela do abuso do direito ou do mínimo ético-jurídico).
Ora no caso, a 2.ª autora que reclama indemnização por ser ver privada da utilização do veículo sinistrado não era proprietária do veículo e não foi afectada pela actuação do agente em qualquer direito subjectivo próprio, logo não pode, com fundamento no instituto da responsabilidade civil, exigir qualquer indemnização pelos danos que indirectamente possa ter sofrido em resultado da actuação do agente.
Acresce que a 2.ª autora não era sequer (não o alegou) titular de qualquer posição contratual em virtude da qual tivesse o direito de crédito ao uso do veículo, pelo que também não pode invocar como fundamento da sua pretensão a violação (por terceiro) do direito à prestação, fundamento que, no entanto, como vimos, ainda assim seria insuficiente para a tornar titular de um direito de indemnização sobre o agente.
Por fim, o facto de se ter demonstrado que a 2.ª autora era «legítima possuidora» do veículo é no caso totalmente irrelevante, seja porque essa afirmação não surge como a alegação de uma situação de verdadeira «posse», mas de «mera detenção» (a 2.ª autora reconhece que o veículo pertence à autora sua filha e pretendeu, embora sem o provar, que actuava como sua representante por, à data, esta ser menor), seja porque a verdadeira posse não é um direito, é uma situação de facto que aspira a ser direito (através da usucapião), seja porque o que está em causa não seria a defesa da posse mas a defesa de uma concreta forma de utilização da coisa possuída (a imobilização do veículo danificado não é uma turbação ou perda da posse do possuidor).
Improcede assim esta questão do recurso.
D] Do dano não patrimonial: as dores:
Em resultado da modificação da decisão sobre a matéria de facto ficou provado que «por causa do embate na traseira do veículo JN e subsequente oscilação deste, a 2.ª autora sofreu dores».
É certo que não se provou a medida, extensão ou quantidade destas dores e que o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, só manda fixar indemnização pelos «danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
Todavia, trata-se de um conceito em aberto que deve ser concretizado caso a caso.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.03.2019, processo n.º 954/13. 7TBPMS.C1.S1, in em www.dgsi.pt, citado com oportunidade na decisão recorrida, o artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, «limita-se a fornecer um critério com alguma elasticidade, mas inspirado numa razão objectiva, sobre a qual há-de assentar o juízo de equidade. Nessa perspectiva, só são atendíveis os danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Ora, um dano grave não é um dano exorbitante ou excepcional, mas é aquele que sai da mediania, que ultrapassa as fronteiras da banalidade. É um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna exigível em termos de resignação. Para a dor moral ou psíquica é impossível estabelecer escalas peremptórias: dentro do critério da gravidade, seguir-se-ão os ensinamentos da experiência humana, em termos de efectividade e sentimento, segundo um prudente arbítrio de indemnização. Importa, neste âmbito, encontrar o adequado quantitativo em dinheiro, através do qual se alcança um prazer de neutralizar a dor sofrida».
Comentando o aludido preceito, afirma-se na obra Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações - Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Universidade Católica Editora, coordenação de Brandão Proença, página 359, que a jurisprudência considera “dano grave, merecedor da tutela do direito, é não apenas o dano «exorbitante ou excepcional», mas também aquele que sai da mediania, ultrapassando as fronteiras da banalidade (cfr., v.g., o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 04.03.2008 08ª164). A gravidade do dano afere-se, no entendimento da jurisprudência e da doutrina, segundo critérios objectivos – de acordo com um padrão de valorações ético-culturais aceite numa determinada comunidade, num certo momento histórico, e tendo em conta o circunstancialismo do caso – e não de harmonia com percepções subjectivas ou de uma particular sensibilidade do lesado (cfr., na jurisprudência, a título ilustrativo, o Ac. STJ 06.07.2011 e, na doutrina, em particular, Pires de Lima / Antunes Varela, 1987: 499). O recurso a um critério objectivo na apreciação da gravidade do dano justifica-se para negar as pretensões ressarcitórias por meros incómodos, contrariedades ou prejuízos insignificantes, que cabe a cada um suportar na vida em sociedade, evitando-se, deste modo, uma extensão ilimitada da responsabilidade. Não significa que deva ser excluída a indemnização do dano que só se revela grave por a vítima ser particularmente frágil ou vulnerável, atendendo às suas especiais características, como a doença ou a idade (…) Apelando aos critérios supra referidos, a jurisprudência tem considerado que os meros incómodos ou as simples contrariedades não são indemnizáveis (cfr., a título de exemplo, o Ac. STJ 29.10.2009), ao passo que os incómodos, contrariedades, angústias ou desgostos significativos serão, em contrapartida, susceptíveis de compensação (cfr., a título ilustrativo, o Ac. STJ 21.04.2010)”.
Neste pressuposto, afigura-se-nos dever ser levado em consideração que estamos perante uma colisão de um veículo em movimento num veículo imobilizado quase completamente fora da estrada cujo condutor se encontra no interior do veículo. Este movimento provoca o chamado “golpe do coelho” no qual a cabeça e o tronco são projectados de forma violenta e descontrolada primeiro para a frente na direcção ou mesmo contra o volante e depois de novo para trás contra o encosto de cabeça. Uma vez que o veículo sinistrado que, repete-se, se encontrava apenas alguns centímetros na faixa de rodagem sofreu danos cuja reparação excede os 3.600€, a colisão teve de ter algum impacto e violência, pelo que aquelas projecções do corpo do condutor tiveram de ser igualmente violentas. Nessa situação geram-se não apenas dores com significado, como dores que apenas se manifestam e intensificam à posteriori e condicionam muito os movimentos e a vida da pessoa, reclamando tratamento com analgésicos e anti-inflamatórios, quando não estão na origem de graves danos nas vertebras e respectivas estruturas nervosas.
Por tudo isso, pese embora a descrição lacónica da dor suportada pela 2.ª autora, afigura-se que a mesma consubstancia um dano não patrimonial que merece a tutela do direito, justificando-se, com base na equidade e na falta de elementos que permitam fixar quantia mais elevada, a atribuição de uma indemnização de 1.000€ (valor que aqui se fixa por referência à data do acidente e não de forma actualizada).


VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida, condenando a ré a pagar à autora AA a indemnização de 3.607,59€ (três mil, seiscentos e sete euros e cinquenta e nove cêntimos) e a pagar à autora BB a indemnização de 1.000€ (mil euros), valores em ambos os casos acrescidos de juros de mora contados à taxa legal desde a data da citação da ré até integral pagamento.

Custas da acção e do recurso por ambas as partes na proporção do decaimento.
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Porto, 12 de Outubro de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 775)
Isabel Rebelo Ferreira
António Carneiro da Silva



[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
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[1] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in Indemnização do Dano da Privação do Uso, pág. 30, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, vol. I, pág. 317.
[2] Sinde Monteiro, in Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 196.
[3] Carneiro da Frada in Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 245.
[4] Na nossa jurisprudência esta questão é tratada muitas vezes, falando-se então em danos reflexos, a propósito de casos em que na sequência dos danos causados à vitima de um acidente de viação há terceiros que sofrem danos patrimoniais ou morais dos quais pretendem ser indemnizados. Por exemplo: os pais que querem ser indemnizados pelo desgosto sofrido por o filho sinistrado ficar incapacitado; a empresa que quer ser indemnizada porque o seu gerente faleceu no acidente de viação e isso provocou diminuição da sua actividade e dos seus lucros; o cônjuge que quer ser indemnizado por ser ver privado de vida sexual na sequência da impotência ou disfunção sexual que resultou para o outro do acidente de viação. Embora muitas vezes com fundamento na afirmação da inexistência do nexo de causalidade entre o evento danoso e o dano de terceiro e não propriamente na análise do conceito de ilicitude inerente ao funcionamento da responsabilidade civil, a nossa jurisprudência tem maioritariamente – com excepções assinaláveis em que a justiça concreta do caso parece ter constituído em imperativo – recusado a indemnização a terceiros fora das situações previstas expressamente nos artigos 495.º e 496.º do Código Civil. Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.9.2009 João Camilo, ou, diferentemente, do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, os Acórdãos de 26-05-2009, Paulo Sá, e de 8.9.2009, Nuno Cameira, todos in www.dgsi.pt (no sentido destes últimos, Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil – Indemnização dos danos reflexos, Almedina, 2005).