Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
288/15.2T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RP20160121288/15.2T8PVZ.P1
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 47, FLS.286-289)
Área Temática: .
Sumário: I - Uma providência cautelar de entrega judicial dos respectivos bens imóveis locados, após resolução do contrato de locação financeira pelo locador), mesmo quando complementada com o pedido de antecipação da decisão definitiva que lhe caberia numa acção de natureza declarativa, não pode ser subsumida no conceito de “acção de cobrança de dívidas” ou “com idêntica finalidade” da previsão legal do nº1 do art.º 17-E do CIRE.
II - Assim sendo isso, a instauração de um Processo Especial de Revitalização (PER), não deve determinar a suspensão da instância no antes referido procedimento cautelar de entrega judicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº288/15.2T8PVZ.P1
Tribunal recorrido: Comarca do porto
Póvoa de Varzim – Inst. Central – 2ª Secção Cível – J5
Relator: Carlos Portela (673)
Adjuntos: Des. Pedro Lima Costa
Des. Filipe Caroço

Acordam na 3ª Secção (2ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório:
A B… com sede na Rua …, nº… a … em Lisboa, veio ao abrigo do disposto no art.º21º do D.L. nº149/95 de 24 de Junho, intentar contra C…, Lda. com sede na Rua …, nº… em …, providência cautelar de entrega judicial, na qual pede o seguinte:
a) Que fosse decretada a providência cautelar, ordenando-se a imediata apreensão e entrega à requerente de todos os imóveis que melhor descreve nas várias alíneas do art.º2º do seu articulado inicial e que foram cedidos pela requerida à requerente através de um contrato de locação financeira entre ambas celebrado;
b) Que a providência fosse decretada sem a prévia audiência da requerida;
c) Que ao abrigo do disposto no art.º369º, nº1 do CPC, fosse dispensada a requerente do ónus de propor a acção principal e que assim seja proferida decisão definitiva que componha definitivamente o litígio.
A requerida foi citada para deduzir oposição o que fez requerendo que a providência cautelar fosse indeferida, não sendo apreendidos os imóveis locados e sendo a requerente dispensada do ónus de propor a acção principal.
Os autos prosseguiram os seus termos, tendo sido aprazada data para a realização da audiência de julgamento.
Após uma primeira suspensão da instância a requerimento das partes e perspectivando um acordo quanto ao objecto do litígio, foram inquiridas as testemunhas arroladas.
No entanto e logo no início de tal diligência, foi dado a conhecer pelo ilustre mandatário da requerida o facto de ter dado entrada no Tribunal de Comércio de Santo Tirso de um Processo Especial de Revitalização da requerida, processo que ali corre termos com o nº2828/15.8T8STS.
Perante tal alegação foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto à suspensão da instância à luz do art.º17º-E do CIRE.
Em face da mesma pronunciou-se favoravelmente a requerida e desfavoravelmente a requerente.
Foi então proferido despacho cujo conteúdo integral aqui passamos a transcrever.
Assim:
“Da eventual suspensão da instância:
Conscientes da diversidade de opiniões sobre a matéria de que aqui cuidamos, somos nos entanto tentados a tender para a solução que defende, e é largamente sustentada na jurisprudência dos nossos tribunais superiores (mormente da Relação de Lisboa), que, em face de um PER, a providência cautelar de entrega judicial de bem locado, com pedido de antecipação de juízo definitivo da causa, deve ser suspensa.
Com efeito, visando o processo especial de revitalização permitir ao devedor, que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização, diz-nos então o CIRE, no seu art. 17.º-E nº 1 do CIRE, que “obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade”.
Ora, este procedimento cautelar de entrega judicial - que apenas pode ser requerido pelo locador financeiro - exige a resolução por ele do contrato de locação financeira, ou a caducidade desse contrato, e exige, naturalmente, que o locatário ainda não tenha restituído a coisa ao locador. Decretada a entrega judicial do bem, pela decisão da providência, é efeito da mesma, e dever do requerido, locatário financeiro, entregar a coisa ao requerente, entrega que deve ser imediata, como o refere o art.21º/1 parte final do DL 149/95 de 24/6.
A ser assim, e logo à partida, ressalta a ideia de que essa entrega pode, naturalmente, inviabilizar um acordo de credores, dado que a mesma, por si só, pode inviabilizar a actividade da requerida, que poderá ficar sem espaço físico para a mesma desenvolver.
Estando o PER focado na recuperação das empresas, as negociações com os respectivos credores com vista a um acordo conducente à revitalização económica, poderão, logo de imediato, sair goradas, caso seja determinado o prosseguimento da providência de entrega e seu eventual deferimento. Tal possibilidade imporia desde logo uma situação de desequilíbrio que punha em causa a confiança com que os credores partiriam para as negociações, no âmbito do PER, fragilizando a possibilidade de um desfecho positivo.
Por isso mesmo entendemos que, na ponderação dos interesses conflituantes em causa, o disposto no art.º 17.º E n.º 1 do CIRE – em face dos princípios norteadores que estiveram na base de tal consagração legal - deve ser interpretado no sentido de determinar a suspensão da providência de entrega judicial, dada a entrega coerciva que a mesma envolve, com potencialidade para, logo ab initio, destruir qualquer hipótese de viabilidade do PER (ver no sentido do que aqui defendemos, os Acórdãos da Relação de Lisboa, disponíveis na dgsi, de que destacamos o de 21/11/2013 e 22/01/2015).
Nestes termos, e pelos fundamentos exposto, determina-se a suspensão do presente procedimento cautelar durante todo o tempo em que perdurem as negociações a decorrer no âmbito do PER (Proc. nº 2828/15.8t8STA – Instância Central - 1ª secção do Comércio - Santo Tirso (J1)) tal qual decorre do nº 1 do art. 17º E do CIRE.”
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Inconformada com o conteúdo deste despacho dele veio recorrer a requerente B…, apresentando desde logo e nos termos legalmente previstos as suas alegações.
A requerida contra alegou.
Foi proferido despacho que considerou o recurso tempestivo e legal e admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao seu conhecimento, cumpre apreciar e decidir o recurso em apreço.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Como se verifica dos autos, a presente acção foi proposta em 05.03.2015 e o despacho recorrido foi proferido em 02.10.2015.
Assim sendo e atento o que decorre do disposto nos artigos 5º, nº1 e 7º, nº1 da Lei nº41/2013 de 26 de Junho, ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais postas a vigorar por este último diploma legal.
Ora como é consabido, o objecto do presente recurso e sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela requerente/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do NCPC).
E é o seguinte o teor das mesmas:
1.Conforme está documentalmente demonstrado nos autos, as interpelações admonitórias foram feitas a apelada em 11/03/2014 e, por outro lado, a resolução do contrato de locação financeira foi-lhe comunicada em 13/05/2014, ou seja, em data muito anterior à da instauração do PER, a qual ocorreu em 07/092015.
2.O contrato de locação financeira celebrado entre a apelante e a apelada foi definitivamente destruído pelo exercício do direito potestativo à resolução por parte da apelante, com efeitos retroactivos, como se nunca tivesse existido.
3.Ora, com a operada resolução contratual, a apelada deixou de possuir qualquer título legítimo que lhe permita ocupar o imóvel em causa, sendo a respectiva ocupação ilegítima e abusiva.
4.Nem no pedido da providência cautelar, nem no incidente complementar de antecipação de juízo condenatório se inclui um pedido de condenação da requerida a pagar as rendas em dívida.
5.Um procedimento cautelar deste tipo (entrega imediata de bens locados, após resolução do contrato de locação financeira pelo locador), mesmo complementado com o pedido de antecipação da decisão definitiva que lhe caberia numa acção declarativa, não pode subsumir-se ao conceito de "acção de cobrança de dívidas" ou "com idêntica finalidade" previsto no nº l do art. 17-E do CIRE.
6.Pelo que a entrada em juízo de um PER da requerida não pode determinar a suspensão da presente providência cautelar, incluindo quanto à tramitação daquele pedido de antecipação de decisão. – cfr. Ac. Tribunal da Relação do Porto de 09-07-2014, proc.n.º834/14.9TBMTS-B.P1.
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Perante o acabado de expor, resulta claro que é a seguinte a única questão suscitada neste recurso:
A de saber se existem fundamentos para determinar a suspensão do presente procedimento cautelar durante o tempo em perdurem as negociações a decorrer no PER que corre os seus termos na 1ª secção do Tribunal de Comércio de Santo Tirso.
Com relevância para a apreciação desta questão e tendo por base a prova documental junta aos autos, importa considerar o seguinte:
Em 31 de Agosto de 2015, a requerida apresentou no competente Tribunal de Comércio de Santo Tirso um Processo Especial de Revitalização (PER), com vista a lograr obter acordo com os seus credores, que permita a sua revitalização e a continuação da sua actividade empresarial.
Tal processo corre termos pela 1ª secção do Comércio – Santo Tirso, sob o nº2828/15.8T8STA.
E é pois perante tal circunstancialismo que importa concluir se deveria ter sido (como foi) decretada de imediato a suspensão dos termos processuais desta presente providência cautelar onde entre o mais é requerida a imediata apreensão e subsequente entrega judicial dos imóveis melhor descritos no art.º4º do articulado inicial.
Ora como de forma manifesta resulta quer do conteúdo do despacho recorrido quer do teor das alegações da apelante, a questão a dirimir tem por base a letra do art.º 17º-E do CIRE, no qual se diz o seguinte:
“1 - A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade (…)”.
Em face de tal norma o que cabe pois apurar é se uma providência cautelar de entrega judicial como é a dos autos, é passível de subsunção no conceito de “acções para cobrança de dívidas contra o devedor” ou “acções em curso com idêntica finalidade” a que a mesma expressamente faz referência.
Resulta para nós evidente que as acções elencadas na previsão da norma citada são tanto as de natureza declarativa como as de natureza executiva.
No entanto e apesar das divergências jurisprudenciais que apesar de tudo continuam a ocorrer, a solução para a questão aqui em análise não resulta da mera aplicação ao caso da mesma conclusão.
Assim, é de admitir a suspensão de uma acção declarativa ou executiva que corre termos, desde que a mesma tenha por efeito imediato ou mediato a cobrança de dívidas contra a entidade requerente do PER.
Porém, no caso dos autos, nem por via da estrita procedência do pedido cautelar da presente providência (a entrega imediata de vários imóveis), nem por via da antecipação, nos autos cautelares, da decisão do pedido a formular na acção principal, que é simplesmente (porque nenhum outro pedido se mostra deduzido), a declaração definitiva do direito à entrega desses bens, se pode concluir estarmos perante uma cobrança de dívida ou de um expediente processual com efeito semelhante.
Na verdade e como aliás não se questionou no despacho recorrido, o pedido cautelar é totalmente coincidente com o definitivo, corresponde exclusivamente ao pedido de entrega judicial dos bens imóveis dos quais a requerida tem o gozo.
É igualmente verdade que tal gozo lhe advém, não da titularidade de um correspondente direito de propriedade sobre os mesmos, mas tão só de um direito contratual proveniente um contrato de locação financeira.
Como também se invoca perante o não pagamento das rendas vencidas, a requerente considerou o mesmo contrato como definitivamente incumprido e procedeu às respectiva resolução contratual do mesmo, pretendendo agora recuperar a integralidade do respectivo domínio, retirando à requerida o gozo que quanto a eles esta última desenvolvia.
Sendo de admitir que tal objectivo a proceder, possa ter repercussão na actividade económica da requerida, tal como a mesma é por esta descrita, o certo é que o mesmo não corresponde à cobrança de qualquer dívida, não consubstanciando nenhuma alteração da sua realidade financeira.
Ou seja, o resultado da presente providência cautelar, ainda que complementado com a antecipação de juízo da acção declarativa que lhe corresponderia, não se traduz num direito à cobrança de um capital em termos que determinem um aumento do passivo da requerida, como é próprio das acções declarativas de cobrança.
E mais, não conduz directamente à diminuição do seu património, já que nenhum dos bens em causa lhe pertencia, como resultaria por efeito de uma acção executiva.
Importa ainda salientar que nem no pedido que foi formulado nesta providência cautelar (onde seria até inadmissível) nem no incidente complementar de antecipação de juízo condenatório (cujo pedido como já vimos, coincide, com o anterior) a requerente inclui um pedido de condenação da requerida a pagar as rendas em dívida.
Ora só aqui, estaria sim em causa uma cobrança de dívida.
Mas não é isso que acontece nos presentes autos, onde apesar dos factos que a tal propósito se mostram alegados na petição inicial, nada se pede quanto a uma eventual condenação da requerida ao seu pagamento, o que só por si torna inviável o decretamento de tal obrigação, no âmbito do juízo condenatório cuja antecipação agora se requer.
Em suma, cabe concluir que o presente procedimento cautelar, respeitante ao contrato de locação financeira celebrado entre as partes, mesmo complementado com o pedido de antecipação da decisão definitiva que lhe caberia numa acção declarativa, não pode ser subsumido no conceito de “acção de cobrança de dívidas” ou “com idêntica finalidade”.
Assim e diversamente do que foi entendido no despacho recorrido, o nosso entendimento é o de que a presente acção não pode ser integrada na previsão legal do nº1 do art.º 17-E do CIRE.
Ou seja, a entrada em juízo de um Processo Especial de Revitalização (PER), respeitante à requerida aqui apelada não pode determinar a suspensão da presente providência cautelar.
Em face de tudo o que ficou dito, entendemos pois que merece provimento o recurso aqui interposto, impondo-se assim a revogação do despacho recorrido nos termos propostos pela requerente e ora apelante.
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Sumário (cf. o art.º663º, nº7 do NCPC):
1.Uma providência cautelar de entrega judicial dos respectivos bens imóveis locados, após resolução do contrato de locação financeira pelo locador), mesmo quando complementada com o pedido de antecipação da decisão definitiva que lhe caberia numa acção de natureza declarativa, não pode ser subsumida no conceito de “acção de cobrança de dívidas” ou “com idêntica finalidade” da previsão legal do nº1 do art.º 17-E do CIRE.
2.Assim sendo isso, a instauração de um Processo Especial de Revitalização (PER), não deve determinar a suspensão da instância no antes referido procedimento cautelar de entrega judicial.
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III. Decisão:
Pelo exposto e na procedência do presente recurso de apelação, revoga-se o despacho recorrido, substituindo-se o mesmo por outro que sem mais, ordena o normal prosseguimento dos termos processuais da providência cautelar em apreço.
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Custas do presente recurso a cargo da requerida/apelada (cf. o art.º527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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Notifique.

Porto, 21 de Janeiro de 2016
Carlos Portela
Pedro Lima Costa
Filipe Caroço