Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
556/20.1GAMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA TROVÃO
Descritores: NULIDADE
INSUFICIÊNCIA DA INSTRUÇÃO
FALTA DE DEBATE INSTRUTÓRIO
FALTA DE INQUÉRITO
Nº do Documento: RP20230503556/20.1GAMAI.P1
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Na fase de instrução, o conhecimento de nulidades deve verificar-se depois do debate instrutório (onde se realiza o contraditório pleno) e na decisão instrutória.
II – Configura nulidade (sanável) por insuficiência da instrução o conhecimento de nulidades sem a realização do debate instrutório. III – No caso vertente, verifica-se nulidade insanável por falta de inquérito, por não terem sido realizadas quaisquer diligências relativas a um dos crimes a que se reportam factos referidos na queixa apresentada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 556/210.1GAMAI.P1
Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 3


Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
Por despacho de 07/11/2022, o Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 3, após ter declarado aberta a instrução (em 27/10/2022) requerida pelo arguido/assistente AA, mas sem que tivesse realizado o debate instrutório, decidiu declarar inválido o despacho de encerramento do inquérito quanto aos factos denunciados pelo arguido/assistente AA, de que foi vítima o seu filho menor de 11 anos de idade, BB, por entender, o Sr. JIC, estar verificada a nulidade da insuficiência de inquérito prevista no art. 120º nºs 1 e 2 d) do CPP invocada no RAI (pelo facto de o titular da ação penal ter configurado os factos denunciados([1]), como integradores do crime semipúblico de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º nº 4 do Cód. Penal, perpetrado pelo denunciado/arguido CC e entender ser necessária a apresentação de queixa) com a consequente remessa dos autos ao Ministério Público, após trânsito em julgado, para que se proceda à sanação da declarada nulidade, com a notificação dos representantes legais do menor para, querendo, apresentarem queixa relativamente aos factos em causa e, posterior e oportunamente, proferir novo despacho de encerramento do inquérito.
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Inconformado, o Ministério Público em 15/11/2022, interpôs recurso de tal despacho, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1. O objeto do recurso incide exclusivamente sobre matéria de Direito, circunscrita à questão da determinação e saber se existe a nulidade, por insuficiência de inquérito, do artº 120º, nºs 1 e 2, al. d), do Código de Processo Penal, arguida por AA no RAI e julgada como procedente pelo M. JIC, no despacho proferido, datado de 07-11-2022, de fls. 227 a 228, por falta de cumprimento pelo MP, em sede de inquérito, do disposto no nº 2 do artº 247º do mesmo Código;
2. Assim, a questão que previamente cumpre apreciar é se o auto de “denúncia” de AA, de fls. 4 a 7, apresentada em 14-06-2020, por factos ocorridos, em 14-06-2020, quando ai se refere, para além de outros que: “(…) tendo o Sr. CC pegado um tubo de plástico das águas que se encontrava junto ao muro e atirou-o contra o denunciante, que atingiu o seu filho “BB”, menor, no braço do lado esquerdo (…)”, o qual foi confirmado no seu interrogatório, na qualidade de arguido, em 13-10-2020, a fls. 41 a 42, onde consta que continua a desejar procedimento criminal contra o denunciado CC, por todos os factos por si denunciados, se dai se pode inferir que também deseja procedimento criminal, em representação do seu filho, bem como se a notificação que lhe foi feita e por si assinada, a fls. 8, se cumpre os requisitos do nº 2 da referida disposição legal;
3. É inquestionável que o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artº 148º, nº 4 do Código Penal, depende de queixa do ofendido, ou seja, do “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (cfr. artigos 212º, nº 3, e 113º, nº 1, ambos do Código Penal).
4. Além disso, é também certo que, como preceituado no artigo 49º, nº 1, do C. P. Penal, “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”;
5. A queixa é a declaração de vontade, manifestada pelo titular do direito respetivo, de que seja instaurado um processo por facto suscetível de integrar um crime e é condição objetiva de procedibilidade e não está sujeita a forma especial e, por isso, não obedece a requisitos específicos, impondo-se apenas que a exposição-comunicação traduza, ainda que implicitamente, a vontade de que se verifique procedimento criminal por um determinado crime;
6. Por outro lado, tendo em conta que a notificação de fls. 8, cumpre os requisitos do nº 2 da referida disposição legal, por não terem sido omitidos pelo MP, em fase de inquérito, nessa parte, atos legalmente obrigatórios, deverá ser revogado aquele despacho ou ser substituído por outro;
7. Subsidiariamente e compulsados os autos, verifica-se que da própria posição assumida pelo Ministério Público, no despacho de arquivamento, de fls. 143, ao referir não ter sido apresentada queixa pelo denunciante AA, em representação do seu filho menor, contra o denunciado CC, pela prática do referido crime, já que foram arquivados, nos termos do disposto no artº 277º, nº 1 do CPP, tendo em conta o supra referido, não corresponde à verdade;
8. Pelo que cabe, agora, apreciar se o referido despacho de arquivamento, nessa parte, se padece de qualquer nulidade;
9. Ora, no artº 119º CPP encontram-se elencadas as nulidades insanáveis e no artº 120º as nulidades dependentes de arguição e sabendo-se, como se sabe, que as nulidades são de enumeração taxativa, a efetiva invocação de nulidade só poderia ser eficaz no processado, se devidamente identificada;
10. Resta-nos, portanto, o conhecimento oficioso da matéria, limitado às nulidades insanáveis;
11. No caso, ocorre que não foi efetuado qualquer acto de inquérito relativamente ao referido denunciado CC, a quem e aos factos que lhe foram imputados, por AA, relativamente ao seu filho menor, dado que o MP, erroneamente, se pronunciou nos autos pelo despacho de arquivamento, por falta de queixa;
12. O artigo 119º do CPP prevê, como fundamento de nulidade insanável, quer a falta de promoção do processo, quer a falta de inquérito (alíneas b) e d)) e é o que ocorre, nessa parte, nos autos; 13. A falta de promoção do processo pelo MP tem que ver com a falta de execução de actos necessários e adequados ao exercício da sua função processual, tais como a falta de dedução de acusação em casos de crimes públicos ou semipúblicos (vide assento do STJ 1/2000), falta de promoção do julgamento em processo sumário, abreviado ou sumaríssimo;
14. A nulidade de falta de inquérito reporta-se, por outro lado, aos casos em que, não obstante queixa ou participação, ou seja, a prática de acto que legitima a intervenção do MP, ele omite a prática de actos próprios dessa fase;
15. O MP, não obstante, ter procedido a tramitação do processo quanto aos factos imputados ao arguido CC não executou, por si ou por outrem, qualquer acto próprio de inquérito relativamente a este denunciado que, considerando o âmbito da queixa apresentada, contemple na totalidade os factos aí deduzidos;
16. Destarte, verifica-se que existe, não a nulidade por insuficiência de inquérito do artº 120º, nºs 1 e 2, al. d) do CPP, arguida pelo AA no RAI e julgada procedente pelo M. JIC, no despacho recorrido, mas sim as nulidades insanáveis do artº 119º, al. b) e d) do mesmo código, por falta de promoção e de inquérito, nesse segmento, do MP, por existir queixa válida contra o denunciado CC, que cabe apreciar, por ser de conhecimento oficioso, o que se promove e
17. Em face desta nulidade fica prejudicada a apreciação da admissibilidade do pedido de instrução.
Pelo exposto, julgamos que o despacho deve ser revogado ou corrigido e ser substituído por outro, que contemple a nossa proposta e, em consequência, devem os autos ser remetidos ao MP para suprimento da nulidade insanável, ora, invocada.
Porém, se outro for o entendimento de Vossas Excelências, por certo farão JUSTIÇA “.
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Os demais sujeitos processuais não responderam ao recurso.
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Nesta Relação, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto, em 03/07/2023, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso com as seguintes ressalvas:

“O recurso do Ministério Público na primeira instância merece a nossa concordância na parte em que considera que dos termos em que foram participados os factos pelo AA, constantes de fls. 5
a 7 do Apenso A, se retira seguramente a sua manifestação de vontade de procedimento criminal tanto quanto aos factos que o visaram, como quanto aos que envolveram o seu filho menor BB.
Daí que se considere, consequentemente, como no recurso, que não havia que informar o ofendido sobre o regime do direito de queixa e as suas consequências processuais, bem como sobre o regime jurídico do apoio judiciário, até porque, quanto a esta última parte, já o mesmo estava informado conforme consta de fls. 8 do referido Apenso A.
Também se acompanha o recurso na conclusão de que a ausência de quaisquer diligências inquérito relativamente a esta parcela do objecto do processo, facilmente constatável pela análise do processado, integra a nulidade insanável de falta de inquérito pois, como assinala João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, anotação ao artigo 119.º, páginas 1240, §45, “A mera autuação como inquérito , sem que tenham sido praticados quaisquer atos de investigação (ausência material de inquérito ) não será, todavia, em regra, suficiente [acs. RP, 9.05.2007 (Maria Elisa Marques), CJ, 2007, 3, 206; RL, 2.02.2011 (João Lee Ferreira), CJ, 2011, 1, p. 157; RC, 16.03.2011 (Alice Santos)]”.
Mas já não integra, a nosso ver, a nulidade de falta de promoção processual, prevista na alínea b), do artigo 119.º do Código de Processo Penal, a qual “esgota-se nesta hipótese paradigmática –prossecução processual sem prévia acusação do MP (…) ou, sendo caso disso, do assistente” João Conde Correia, ob. cit., pags. 1233, §24.
A nulidade torna inválido o acto em que se verificou, bem como os que dele dependerem e aquela puder afectar –artigo 122.º n.º1 do Código de Processo Penal.
Esse acto é o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, mas apenas na parte aqui relevante [a respeitante ao arquivamento por falta de queixa atinente aos factos que visaram o menor BB] – artigo 122.º n.º2 do Código de Processo Penal; tudo o mais, nomeadamente a instrução relativamente às partes restantes, não é de modo algum contaminado por esta nulidade, pelo que pode e deve ser aproveitado –artigo 122º nº3 do Código de Processo Penal “.
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Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, sem ter havido resposta ao parecer.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no art. 412º do CPP, o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões extraídas da alegação do recorrente na respetiva motivação.

Consequentemente, são as seguintes as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão:

- saber se está verificada a nulidade insanável da falta de promoção do processo prevista no art. 119º b) do CPP, por não ter o MºPº promovido o processo na parte dos factos que envolveram o menor BB, suscetíveis de integrar a prática de crime público pelo denunciado;
- saber se ocorre a nulidade insanável da falta de inquérito prevista no art. 119º d) do CPP por não terem sido realizados quaisquer atos de inquérito quanto aos factos que envolveram o menor BB;
- saber se está verificada a nulidade sanável do inquérito, por insuficiência, prevista no art. 120º nºs 1 e 2 d) do CPP, por falta de cumprimento pelo MºPº, em sede de inquérito, do disposto no nº 2 do art. 247º do CPP.
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É o seguinte o teor do despacho recorrido:
Das nulidades arguidas no Requerimento de Abertura de Instrução
Ainda que se preveja no art. 308.º n.º 3 do Código de Processo Penal que a decisão das nulidades integre a decisão de pronúncia ou não pronúncia, julga-se conveniente decidir desde já tais questões, por forma a evitar a prática de atos inúteis.
No requerimento de abertura de instrução, arguiu o arguido/assistente AA as nulidades de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, falta de inquérito, insuficiência de inquérito e omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade (cfr. arts. 119.º, als. b) e d) e 120.º n.ºs 1 e 2, al. d) do Código de Processo Penal). Alegou, em síntese, que o Ministério Público deveria ter promovido a investigação do alegado crime praticado pelo arguido CC contra BB, uma vez que este se trataria de um crime público (ofensa à integridade física qualificada), não dependendo de queixa. Prosseguiu alegando que, por influência dessa falta de promoção, o Ministério Público não realizou atos de inquérito obrigatórios por lei. Subsidiariamente, arguiu a insuficiência do inquérito por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e, adicionalmente, ter havido a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade.

Notificado para se pronunciar, o digno Magistrado do Ministério Público promoveu que se julgassem improcedentes as arguidas nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

No despacho de encerramento do inquérito, concluiu o Ministério Público que os factos denunciados relativos ao menor BB eram suscetíveis de configurar, abstratamente, a prática, pelo arguido/assistente CC , de um crime de ofensa à integridade física por negligência, cuja promoção do procedimento criminal depende de queixa (cfr. art. 148.º n.º 4 do Código Penal).
Insurge-se o arguido/assistente AA quanto a tal configuração jurídica, argumentando que, sendo o ofendido neto do arguido e menor de idade, forçoso seria concluir que se estaria perante factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, cujo procedimento criminal não depende de queixa.
De tal premissa, extrai o arguido/assistente AA a conclusão de que, ao não promover o procedimento criminal e não realizar mais diligências investigatórias quanto a tais factos, o Ministério Público cometeu as nulidades supra referidas.
Do exposto retira-se que o busílis da divergência entre os referidos sujeitos processuais consiste na qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido/assistente CC e relativos ao seu neto BB.
Ora, tal matéria está, na fase do inquérito, na total disponibilidade do Ministério Público, cumprindo-lhe enquadrar a factualidade de que há notícia nos respetivos tipos de ilícitos criminais e promover a ação penal, em conformidade.
Tendo o Ministério Público configurado os factos em causa como um crime semi-público, não havia que promover o procedimento criminal quanto ao mesmo, uma vez que não havia sido apresentado queixa, nos termos do art. 48.º e 49.º do Código de Processo Penal). Assim, não se verifica a arguida nulidade de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119.º, al. b) do Código de Processo Penal.
Também não se verifica a arguida falta de inquérito, na medida em que tal nulidade se refere à omissão total de inquérito, conforme pacificamente entendido na doutrina e jurisprudência, e a verdade é que os factos em causa, estando umbilicalmente ligados aos demais que constituem objeto do processo, foram necessariamente investigados.
Não procede, pois, a arguição da nulidade insanável por falta de inquérito, prevista no art. 119.º, al. d) do Código de Processo Penal.

A insuficiência do inquérito consiste na omissão de atos legalmente obrigatórios nessa fase processual, por exemplo, a constituição de arguido (cfr. arts. 58.º e 59.º do Código de Processo Penal).
No caso, alega o arguido/assistente AA que, entendendo o Ministério Público que a acusação pelo crime em causa carecia de queixa, deveria ter comunicado ao ofendido (neste caso, aos seus representantes legais) tal situação, por forma a que este pudesse exercer o seu direito.
Ora, dispõe o art. 247.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal que:
«1 - O Ministério Público informa o ofendido da notícia do crime, sempre que tenha razões para crer que ele não a conhece.
2- Em todo o caso, o Ministério Público informa o ofendido sobre o regime do direito de queixa e as suas consequências processuais, bem como sobre o regime jurídico do apoio judiciário».
A formulação do n.º 2 do citado preceito, nomeadamente a utilização da expressão «em todo o caso», inculca a ideia de tal consubstanciar um ato obrigatório.
Note-se que tal informação é imprescindível para que o ofendido possa saber o que necessita de fazer para que o crime noticiado seja investigado e para perceber as consequências da sua ação ou omissão.
O incumprimento deste dever de informação pelo Ministério Público coloca inclusivamente em causa o direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no art. 20.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, v. anotação de Tiago Caiado Milheiro ao art. 247.º, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, p. 758).
Ora, tendo o Ministério Público arquivado o procedimento criminal quanto aos referidos factos por inexistência de queixa sem informar o ofendido (rectius, os seus representantes legais) que teria de a apresentar se pretendesse a prossecução do procedimento criminal relativamente aos mesmos, omitiu a prática de um ato legalmente obrigatório na fase de inquérito.
Sempre se poderia argumentar que, à data de prolação do despacho de arquivamento/acusação, já havia decorrido o prazo de apresentação de queixa (cfr. art. 115.º n.º 1 do Código Penal). Contudo, tal argumentação não pode proceder, senão vejamos.
A tutela dos direitos do ofendido, titular do direito de queixa, depende, necessariamente, da sua cabal informação quanto aos mesmos.

Conforme argumenta Tiago Caiado Milheiro (obra citada), «dificilmente seria concebível a sua tutela se o ofendido, por desconhecimento, deixasse precludir a instauração do processo criminal. Se não tiver comunicado, e tiver decorrido o prazo legal para formular a queixa, ou se constituir como assistente, de molde a conferir efetividade à informação, deverá estabelecer-se um prazo de 10 dias para o efeito. Ou seja, este direito à informação será um dever acessório, mas que deverá estar presente.
Uma irregularidade, cuja reparação tem que implicar a possibilidade de praticar o ato a que se reportava tal informação.»
Assim, conclui-se que o Ministério Público, ao proceder ao arquivamento do procedimento criminal quanto aos factos relativos ao menor BB e imputados ao arguido/assistente CC, sem previamente informar o ofendido (neste caso os seus representantes legais) do regime relativo do direito de queixa e as suas consequências processuais, omitiu a prática de um ato legalmente obrigatório (cfr. art. 247.º n.º 2 do Código de Processo Penal).
Pelo exposto, julga-se procedente a arguida nulidade de insuficiência do inquérito, nos termos do disposto no art. 120.º n.ºs 1 e 2, al. d) do Código de Processo Penal.
Conforme dita o art. 122.º do Código de Processo Penal, tal nulidade implica a invalidade do despacho de encerramento do inquérito.
Em consequência, após trânsito em julgado da presente decisão, determina-se a remessa dos autos ao Ministério Público, para que proceda à sanação da declarada nulidade, notificando os representantes legais do menor BB para, querendo, apresentarem queixa relativamente aos factos em causa e, posterior e oportunamente, proferir novo despacho de encerramento do inquérito.
Notifique.
Após a determinada remessa, dê baixa.
Sem custas “.
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Para o conhecimento do recurso, relevam ainda as seguintes ocorrências processuais:
1) em 14/06/2020, pelas 17.37 horas, junto do posto territorial da GNR da Maia, CC participou criminalmente contra o seu filho AA porque nesse dia, pelas 15.30 horas, quando se encontrava num terreno junto da sua residência e se deslocava para a sua habitação, foi interpelado pelo denunciado que lhe disse: “ Não tens nada que entrar na minha casa (casa em construção), seu filho da puta, és um gatuno, és um ladrão, se te apanhar lá dentro vais ver o que te acontece!”; ambos envolveram-se numa discussão, tendo o denunciado AA agredido o denunciante com um murro na face do lado esquerdo e, em consequência, partido o aparelho de audição que se encontrava no interior do ouvido. (…). Declarou pretender procedimento criminal contra o agressor;
2) Esta participação criminal foi registada como NUIPC nº 556/20.1GAMAI;
3) no mesmo dia 14/06/2020, pelas 22.16 horas, junto do posto territorial da GNR da Maia, AA participou criminalmente contra o seu pai, CC, porque nesse dia, pelas 15.30 horas, quando chegou junto da sua residência, verificou que na via pública, se deslocava o seu pai (CC), tendo interpelado o mesmo porque havia ele entrado na sua residência com visitas, tendo de imediato o Sr. CC insultado o denunciante de “Boi”; tendo novamente o denunciante advertido que o mesmo não podia entrar na sua residência, o Sr. CC pegou num tubo de plástico das águas que se encontrava junto ao muro e atirou-o contra o denunciante, atingindo o seu filho BB no braço do lado esquerdo, não aleijando o menor; posto isto, o Sr. CC pegou em gravilha do chão e atirou contra o denunciante cerca de quatro/cinco vezes, tendo o denunciante empurrado o mesmo, acabando com a discussão. No meio da discussão, o denunciado disse ao denunciante que lhe iria dar um tiro. O denunciante tem conhecimento que o denunciado tem uma arma em casa de calibre 9 mm, que embora nunca a visse nem sabe onde se encontra, lhe foi confirmada a sua posse por familiares. O denunciante teme que o mesmo venha a concretizar as ameaças proferidas;
4) esta participação criminal foi registada como NUIPC nº 557/20.0GAMAI;
5) em 07/08/2020, o magistrado do MºPº em serviço de turno ordenou a abertura de inquérito;
6) a fls. 8 deste NUIPC nº 557/20.0GAMAI, o denunciante foi notificado nos termos previstos no art. 75º e segs. do CPP e informado de que, carecendo de meios económicos, poderá requerer apoio judiciário em qualquer serviço de atendimento público da Segurança Social, fazendo seguidamente juntar aos autos documento comprovativo da apresentação do requerimento;
7) Por despacho proferido em 09/09/2020, o MºPº ordenou a apensação do NUIPC nº 557/20.0GAMAI aos presentes autos (NUIPC nº 556//20.1GAMAI);
8) No dia 13/10/2020, AA foi constituído e interrogado na qualidade de arguido, tendo declarado, entre o mais, “Que por todos os factos por si participados, continua a desejar procedimento criminal e judicial contra o denunciado CC “(cfr. fls. 42);
9) realizada a investigação, a fls. 142 a 150, o MºPº em 06/10/2021 declarou encerrado o inquérito, proferindo, entre o mais:
a) despacho de arquivamento nos termos do art. 277º nº 1 do CPP por inadmissibilidade legal do procedimento por falta de apresentação de queixa, quanto à denúncia apresentada no processo apenso (NUIPC nº 557/20.0GAMAI) por AA contra a seu pai CC, quanto aos factos que envolveram o menor BB, por ter qualificado juridicamente tais factos como integradores de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º do Cód. Penal, de natureza semi-pública (arts. 148º nº 4 e 113º nº 1 do Cód. Penal, 49º nº 1 do CPP) e ainda por se desconhecer a identificação completa do ofendido; e
b) proferiu despacho de acusação contra os arguidos AA e CC, imputando-lhes a prática de factos suscetíveis de integrar, pelo primeiro arguido, um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143º e 145º nºs 1 a) e 2, em conjugação com o art. 132º nº 2 a) do Cód. Penal e, pelo segundo arguido, um crime de ameaça agravada p. e p. pelo art. 155º nº 1 a) por referência ao art. 153º nº 1, ambos do Cód. Penal;
10) discordando do decidido, a fls. 177 a 210, o arguido AA requereu a sua constituição como assistente e a abertura da instrução, ora impugnando os factos que lhe vêm imputados na acusação, ora impugnando o despacho de arquivamento, entendendo que os factos que denunciou de que foi vítima o seu filho menor de 11 anos de idade, BB, integram um crime de natureza pública, de ofensa à integridade física qualificada praticado com dolo eventual, p. e p. pelos arts. 143º nº 1 e 145º nº 2 por referência ao art. 132º nº 2 a) e c) todos do Cód. Penal, não carecendo, por isso, o MºPº de apresentação de queixa para promover o procedimento e realizar diligências de investigação quanto a tais factos, invocando, em consequência de nada ter sido feito pelo MºPº, as nulidades insanáveis de falta de promoção do processo prevista no art. 119º b) do CPP e da falta de inquérito prevista no art. 119º d) do mesmo Código, sendo esta última por não terem sido realizados atos de inquérito obrigatórios por lei, ou, pelo menos, a nulidade processual de insuficiência de inquérito prevista no art. 120º nºs 1 e 2 d) do CPP, que tornam nulo o despacho de arquivamento concernente às agressões ao menor, com as consequências previstas no art. 122º do CPP, com a devolução dos autos à fase do inquérito;
11) No RAI, o arguido/assistente requereu diversas diligências instrutórias, entre as quais, a inquirição de 3 testemunhas;
12) por despacho proferido em 20/05/2022, o denunciante AA foi admitido a intervir na qualidade de assistente;
13) a fls. 167 e 168, consta cópia do C.C. do menor BB, nascido em .../.../2008, filho de AA e de DD;
14) Em 27/10/2022 (fls. 225), o Sr. JIC admitiu o RAI do arguido/assistente, declarando aberta a fase processual da instrução;
15) no mesmo despacho, o Sr. JIC decidiu ainda o seguinte:
“Antes do mais, cumpre dar oportunidade ao Ministério Público para, querendo e no prazo de 10 (dez) dias, se pronunciar sobre as nulidades arguidas pelo arguido/assistente.
Abra vista.
Oportunamente, o Tribunal pronunciar-se-á sobre as diligências probatórias requeridas e demais que se reputem necessárias.
Notifique, nos termos do disposto no art. 287º nº 5 do Código de Processo Penal, dando conhecimento ao arguido/assistente CC do teor do RAI “;
16) em 02/11/2022, o MºPº promoveu o indeferimento da nulidade do inquérito por insuficiência prevista no art. 120º nº 2 d) do CPP por entender que não foi omitida a prática de qualquer ato legalmente considerado como obrigatório, não se pronunciando quanto às demais nulidades processuais insanáveis invocadas no RAI;
17) em 07/11/2022, foi proferido o despacho recorrido;
18) o MºPº foi notificado deste despacho em 08/11/2022;
19) os assistentes/arguidos CC e AA consideram-se notificados de tal despacho em 13/11/2022.
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Análise do mérito do recurso
1ª questão: da nulidade insanável da falta de promoção do processo prevista no art. 119º b) do CPP, por não ter o MºPº promovido o processo quanto aos factos que envolveram o menor BB, suscetíveis de integrar a prática de crime público.
No caso presente, o assistente AA invoca no RAI, entre outras, a nulidade processual insanável da falta de promoção do processo prevista no art. 119º b) do CPP, na parte em que impugna o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo MºPº nos termos do art. 277º nº 1 do mesmo Código, quanto aos factos por si denunciados que envolveram o seu filho menor de 11 anos de idade, BB, por entender que integram a prática (pelo arguido CC) do crime público cometido com dolo eventual, de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145º nºs 1 e 2 por referência ao art. 132º nº 2 alíneas a) e c) ambos do Cód. Penal.
Por sua vez, o Sr. JIC, tendo admitido o RAI do arguido/assistente AA e, em consequência, declarado aberta a fase processual da instrução, todavia, sem que tivesse proferido uma qualquer decisão sobre as diligências instrutórias sugeridas no RAI (indeferindo todas ou algumas ou admitindo todas ou parte delas ou ordenando oficiosamente – arts. 288º nº 1 e 289º nº 1, primeira parte, do CPP - outras que entendesse pertinentes para os fins previstos no art. 286º nº 1 do CPP) e sem que tivesse realizado o debate instrutório, ordenou a notificação de apenas o Mº Pº, para se pronunciar sobre a(s) invocada(s) nulidade(s) (sem que tivesse concedido a mesma oportunidade ao arguido CC – cfr. art. 32º nº 5 da CRP) e, em 07/11/2022, proferiu o despacho recorrido julgando procedente apenas a nulidade de insuficiência de inquérito prevista no art. 120º nºs 1 e 2 d) do CPP pelo facto de “o Ministério Público, ao proceder ao arquivamento do procedimento criminal quanto aos factos relativos ao menor BB e imputados ao arguido/assistente CC, sem previamente informar o ofendido (neste caso os seus representantes legais) do regime relativo do direito de queixa e as suas consequências processuais, omitiu a prática de um ato legalmente obrigatório (cfr. art. 247º nº 2 do Código de Processo Penal) (…), que, em seu entender, “implica a invalidade do despacho de encerramento do inquérito “, ordenando, após trânsito, “a remessa dos autos ao Ministério Público, para que proceda à sanação da declarada nulidade, notificando os representantes legais do menor BB para, querendo, apresentarem queixa relativamente aos factos em causa e, posterior e oportunamente, proferir novo despacho de encerramento do inquérito “.
Está assim em causa, de acordo com as conclusões do recurso, decidir no presente acórdão do acerto ou desacerto da decisão recorrida.
Cremos que contudo, uma questão, prévia, se coloca, que é a de saber se a decisão recorrida foi proferida no momento processualmente adequado de acordo com a sequência dos atos processuais regulados no CPP de que se compõe a fase da instrução, desde o seu início, conteúdo e encerramento, que ocorre depois de encerrado o debate instrutório, com a prolação de um despacho de pronúncia ou não pronúncia (art. 308º do CPP), sem embargo de ao JIC, na instrução, competir o exercício das demais funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento (art. 17º do CPP), de acordo com o princípio da legalidade do processo previsto no art. 2º do CPP.
O processo penal, na definição de Figueiredo Dias, consiste na “sequência de atos juridicamente preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respetivas consequências jurídicas e a sua justa aplicação “([2]).
O processo penal comum é composto por 5 fases distintas: o inquérito (obrigatório); a instrução (facultativa), o julgamento, o recurso e a fase da execução (das penas e medidas de segurança).
E o legislador regula a marcha de cada uma das referidas cinco fases processuais, os prazos de duração máxima das fases preliminares do processo (inquérito e instrução), sobre as respetivas finalidades, sobre qual a autoridade judiciária que a elas preside e, dentro de cada uma, os momentos em que deve ser proferida a decisão.
De modo que, no que respeita à invocada nulidade insanável da falta de promoção do processo (e também a da falta de inquérito previstas no art. 119º alíneas b) e d) do CPP), quando se diz no proémio do art. 119º que “devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento”, significa que o devem ser pela autoridade judiciária que dirige a respetiva fase processual em que se encontra o procedimento e, desde que o sejam enquanto permanecer a relação processual (ou seja, podem ser invocadas também na fase do recurso), portanto, antes do trânsito em julgado da sentença final condenatória (ou absolutória), momento a partir do qual se tornam sanáveis, consolidando-se na ordem jurídica os efeitos precários que o ato processual penal inválido tenha produzido, que não mais podem ser alterados (na medida em que o caso julgado impede a anulação posterior do processo), sem prejuízo de apenas poderem ser destruídos na sequência de eventual recurso extraordinário de revisão de sentença. Poderão ainda ocorrer nulidades insanáveis na fase de execução da pena ou medida de segurança, mas enquanto vício novo verificado nesta nova e última fase processual, enquanto a decisão não se tornar definitiva([3]).
Melhor esclarecendo, a(s) nulidade(s) insanável(eis) em questão não pode(m) ser conhecida(s) pelo JIC durante a fase do inquérito, que é presidida pelo MºPº, na medida o legislador regulou os atos pontualmente a praticar pelo JIC durante o inquérito nos arts. 268º e 269º do CPP (atos a praticar pelo JIC; atos a ordenar ou a autorizar pelo JIC; e atos de controlo pelo JIC, de atos praticados por outros sujeitos ou participantes processuais que contendam diretamente com direitos fundamentais, por ex., arts. 86º nº 3 e 252º-A nºs 2 e 3 do CPP([4])), onde não vem contemplada a competência para conhecer dessa(s) nulidade(s); também não pode(m) ser conhecida(s) pelo JIC depois de encerrado o inquérito e antes de aberta a instrução que tiver sido requerida, por não deter o JIC fora do âmbito da instrução competência para fiscalizar a atuação do MºPº na fase investigatória, fase autónoma e presidida por esta autoridade judiciária, sob pena de violação dos princípios da legalidade do processo (art. 2º do CPP) e da estrutura acusatória (art. 32º nº 5 da CRP). Como se disse, só pode(m) ser conhecida(s) na fase da instrução, após a sua abertura e, ainda assim, depois de realizado o debate instrutório, no momento do saneamento preliminar da decisão instrutória, uma vez que nos termos do nº 3 do art. 308º do CPP, “No despacho referido no nº 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer “.
Quer dizer, como é próprio de um processo de estrutura acusatória, no inquérito, a intervenção do JIC é sempre provocada, geralmente, através de promoção do MºPº, titular da ação penal e subordinada a um princípio do pedido([5]).

Como se decidiu no Ac. da R.E. de 22/01/2021([6]), “Os princípios da legalidade e da estrutura acusatória, previstos pelo artigo 32 nº 5 da CRP, proíbem o Juiz de Instrução, antes de aberta a instrução, de declarar a omissão de pronúncia de factos cuja investigação cabe ao MP, bem como declarar a existência de nulidade insanável decorrida na fase investigatória do processo. A este propósito cabe, ainda, acrescentar poderem as nulidades insanáveis, a que se refere o artigo 119º do CPP, ser declaradas em qualquer momento do procedimento, exigindo-se, todavia, a avaliação da prévia competência de quem pratica os atos, pressupondo só ter competência para declarar a nulidade de atos praticados durante a investigação (como é o caso da omissão de atos que deveriam ter sido investigados), o órgão com competência para a determinar. O princípio constitucional do processo penal de estrutura basicamente acusatória, significa, no plano material, a distinção entre acusação, instrução e julgamento. Proibindo-se, assim, acumulações orgânicas a montante do procedimento no seu todo, ou seja, no caso, quando o Juiz de Instrução possa ser também o órgão que avalie a legalidade da atuação do órgão acusatório, o qual durante o inquérito é, necessariamente, o MP“.
No caso presente, o conhecimento da(s) nulidade(s) teve lugar na fase da instrução, (já declara aberta), pelo que o JIC, é a autoridade judiciária competente para as declarar.
Todavia, fê-lo em momento prematuro, com atropelo das normas processuais que regulam as subfases em que se desenrola a fase da instrução (não tendo realizado o debate instrutório) e sem respeito pelo princípio do contraditório já que não deu previamente ao arguido a oportunidade de sobre ela(s) se pronunciar antes de decidir (art. 32º nº 5 da CRP).
A fase processual da instrução foi concebida como uma fase de controlo judicial da atuação do MºPº, que pode ser desencadeada pelo arguido relativamente a factos pelos quais o MºPº ou o assistente deduziram acusação (art. 287º nº 1 a) do CPP), quer pelo assistente relativamente a factos pelos quais o MºPº não tenha deduzido acusação (art. 287º nº 1 b) do CPP ).

A fase da instrução comporta diversos momentos normativamente regulados: o da sua abertura; o da prática de atos instrutórios (sugeridos no RAI ou oficiosamente ordenados ou nenhuns); o do debate instrutório, com ou sem a produção adicional de prova; do encerramento da instrução com a prolação da decisão instrutória e, nos casos em que é admissível, o do recurso da mesma (cfr. art. 407º nº 2 i) do CPP).
O juiz de instrução investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta as indicações que devem constar do requerimento para abertura da instrução, referidas no nº 2 do artigo 287º do CPP (art. 288º nº 4 do CPP), praticando os atos necessários à realização das finalidades previstas no art. 286º nº 1 pela ordem que reputar mais conveniente para o apuramento da verdade (artigo 291º nº 1, primeiro segmento, do CPP). E indefere, por despacho irrecorrível, os atos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis (art. 291º nº 1, segundo segmento do CPP).
«Assinale-se, contudo, que a instrução pode confinar-se apenas ao debate instrutório (este sempre obrigatório) e à decisão final. Assim sucederá quando o J.I.C. tenha indeferido as diligências de instrução requeridas e entenda não ter que oficiosamente ordenar a realização de outras»([7]).
A instrução é, pois, formada pelo conjunto de atos de instrução que o juiz entenda levar a cabo e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado (art. 289º nº 1 do CPP).
O art. 301º nº 2 obriga o juiz a assegurar a contraditoriedade na produção da prova; por fim, a sequência prevista para o debate no art. 302º consagra esse mesmo contraditório. O contraditório pleno só é possível na oralidade, imediação e continuidade.
O debate é que realiza esse contraditório pleno, certo que se quis que a instrução não deixasse de ter nunca o debate([8]).

O debate instrutório para além de obrigatório, é o culminar de toda a fase preparatória do processo penal, tendo como objetivo último, a decisão de submeter ou não, o arguido a julgamento, sendo certo que não é mais do que essa a finalidade que preside ao inquérito e à feitura dos atos de instrução. (…). O debate instrutório será assim o ponto para que converge o vetor da posição assumida pelo MºPº no fim do inquérito, com o vetor da pretensão do requerente da instrução.
No saneamento preliminar a ter lugar na decisão instrutória (art. 308º nº 3 do CPP), deve o JIC começar por conhecer das nulidades, das questões prévias (são todas aquelas que obstem ao conhecimento do mérito, ou seja, que obstem a que o juiz pronuncie ou não pronuncie o arguido([9])) e das questões incidentais (outras que não têm a ver com aquelas([10])).
As nulidades a que a norma se refere podem ser as que foram suscitadas no requerimento para abertura de instrução ou as que poderão ter ocorrido no decurso da instrução, porque o nº 3 do art. 308º não distingue.
A falta de realização de debate instrutório dá origem à nulidade da instrução por insuficiência, dependente de arguição, portanto sanável, prevista no art. 120º nº 2 do CPP, onde se estabelece que “Constituem nulidades dependentes de arguição, (…), d) “A insuficiência (…) da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios (…) “.
Os atos legalmente obrigatórios na fase da instrução são, entre outros, o interrogatório do arguido se este o solicitar e já não de todas as vezes que o solicitar; a audição da vítima mesmo que não se tenha constituído assistente, se esta o solicitar (art. 292º nº 2 do CPP) e o debate instrutório (art. 289º nº 1 do CPP).
A nulidade por insuficiência de instrução, com fundamento na falta de realização do debate instrutório pode ser invocada no prazo geral de 10 dias (art. 105º nº 1 do CPP) a contar da data em que os sujeitos processuais afetados (art. 289º nº 1 do CPP) foram notificados do despacho (recorrido) que decidiu sobre a(s) nulidade(s) invocada(s) e do qual se deduz que a instrução não irá prosseguir e já não no prazo previsto no art. 120º nº 3 c) do CPP, ou seja, «até ao encerramento do debate instrutório», precisamente porque ele não teve lugar.

No caso presente ocorreu a dita nulidade da falta de debate instrutório, porque o Sr. JIC pôs fim à instrução sem ter realizado o debate instrutório.
O assistente e o arguido consideram-se notificados do despacho recorrido em 13/11/2022 (referências 441993024 e 4419933394 e art. 113º nº 5 do CPP) e o MºPº em 08/11/2022 (referência 441992694), mas não vieram invocá-la perante o Sr. Juiz a quo no prazo suprarreferido.
Consequentemente, a nulidade verificada considera-se sanada.
Em virtude disso, cumpre então conhecer das nulidades invocadas no RAI.
O Sr. JIC entendeu que não ocorre a nulidade insanável da falta de promoção do processo prevista no art. 119º b) do CPP, porque o MºPº no inquérito, configurou os factos de que o menor BB foi vítima como integradores de crime semipúblico e, por não ter existido queixa quanto a eles, não havia que promover o procedimento criminal quanto aos mesmos.
Porém, carece o Sr. JIC de razão nesta parte.
Independentemente do acerto ou desacerto da qualificação jurídica de tais factos operada pelo Mº Pº, o certo é que mesmo que se entenda que preenchem a autoria de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º nº 1 do Cód. Penal, de natureza semi-pública (nº 4 do art. 148º), cometido contra o menor, à data com idade inferior a 16 anos, o certo é que, o seu representante legal (aqui arguido/assistente AA) apresentou queixa quanto a esses factos (cfr. art. 113º nº 4 do Cód. Penal) ocorridos no dia 14/06/2020 dentro do prazo previsto no nº 1 do art. 115º do mesmo Código, ao ter declarado (no seu interrogatório como arguido de fls. 42, realizado em 13/10/2020) “Que por todos os factos por si participados, continua a desejar procedimento criminal e judicial contra o denunciado CC “.
De acordo com o disposto no art. 49º do CPP, “1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. (…). 3 - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais “.

A queixa é a notícia de um crime semipúblico ou particular e a expressão de vontade do titular do direito respetivo, no prazo previsto na lei, para que se proceda criminalmente contra o agente do facto que se descreve, que constitua crime, e não está sujeita a formalidades especiais (art. 246º do CPP); como se escreveu no Ac. da R.E. de 20/11/2012([11]) “pode ser verbalmente transmitida e não exige qualquer sacrossanta formulação, apenas a existência de uma qualquer referência, simples que seja, de expressão de vontade de agir processualmente. O actual Código de Processo Penal atribui à queixa uma função volitiva e à denúncia a função de corporizar a “notícia do crime”,(…) podendo ambas estar muitas vezes corporizadas num único ato”.
No caso dos autos, quanto aos factos de que foram vítimas o arguido/assistente AA e o seu filho menor BB, a denúncia e a queixa constam de atos diferentes: a denúncia, com o relato de todos os factos imputados ao denunciado CC ocorreu em 14/06/2020 pelas 22.16, efetuada verbalmente por AA no posto territorial da GNR da Maia; a queixa, enquanto manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para perseguição criminal do denunciado quanto a todos os factos descritos naquela denúncia (quanto aos factos que o visaram e quanto aos que envolveram o seu filho menor BB), ocorreu em 13/10/2020 perante o mesmo OPC, por ocasião do interrogatório do denunciante AA na qualidade de arguido. É o que se retira da declaração supratranscrita prestada por AA.
Consequentemente e como bem observa o Sr. PGA, não havia que informar o ofendido (legalmente representado pelo seu progenitor AA, por ser menor de 16 anos) sobre o regime do direito de queixa e as suas consequências processuais, bem como sobre o regime jurídico do apoio judiciário, até porque, quanto a esta última parte, já o mesmo encontrava-se informado conforme consta de fls. 8 do NUIPC apenso nº 557/20.0GAMAI.
Logo, o MºPº estava legitimado para, quanto a eles, promover o correspondente procedimento nos termos do disposto no art. 49º do CPP e encetar as diligências investigatórias necessárias para averiguar a existência do crime, determinar o(s) seu(s) agente(s) e a responsabilidade dele(s) e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262º nº 1 do CPP).

A nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo MºPº prevista no art. 119º b) do CPP pressupõe a intervenção constitutiva do MºPº, que é o órgão do Estado que detém o monopólio do exercício da ação penal (arts. 219º da CRP e 48º do CPP) que a tem que exercer como aquelas normas determinam, nomeadamente, ordenando a abertura de inquérito([12]) logo que adquira notícia de um crime público (art. 53º nº 2 do CPP) ou de um crime semipúblico (pressupondo a sua legitimidade, art. 49º do CPP), exceto nas situações em que seja evidente que os factos participados não constituem crime (art. 262º nº 2 a contrariu sensu, do CPP([13])), ou, como se escreveu no Ac. da R.L. de 16/06/2015([14]), quando ocorre “a falta de execução de atos necessários e adequados ao exercício da sua função processual, tais como a falta de dedução de acusação em casos de crimes públicos ou semipúblicos, falta de promoção do julgamento em processo sumário, abreviado ou sumaríssimo. O que está em causa não é a omissão de inquérito, tout court, mas a falta de prática de atos, da competência exclusiva do MP, indispensáveis à concreta administração da justiça, naquele preciso processo”.
No caso presente, esta nulidade insanável não se verifica porque o MºPº ao tomar conhecimento do expediente enviado em 06/08/2020 pelo OPC contendo os factos comunicados pelo denunciante AA em 14/06/2020, determinou a abertura de inquérito em 07/08/2020, realizou atos de investigação apenas quanto aos factos que visaram o arguido/assistente AA, não o tendo feito quanto aos factos que visaram o menor BB e, nesta parte, pronunciou-se sobre tais factos ao decidir pelo arquivamento, erroneamente, com fundamento em (suposta) falta de queixa.
Assim, tendo existido atos de abertura e de encerramento do inquérito quanto aos factos referentes ao menor, improcede, esta invocada nulidade.
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2ª questão: a nulidade insanável da falta de inquérito prevista no art. 119º d) do CPP por não terem sido realizados quaisquer atos de inquérito quanto aos factos que envolveram o menor BB.
O recorrente Mº Pº alega que no caso destes autos ocorre a nulidade insanável da falta de inquérito prevista no art. 119º d) do CPP, porque não obstante a queixa ou participação, ou seja, o ato que legitima a intervenção do MºPº, ele omite a prática de quaisquer atos próprios dessa fase, o que se verificou pois o titular da ação penal, procedeu à tramitação do processo quanto aos factos imputados ao arguido CC, mas não executou, por si ou por outrem, qualquer ato próprio de inquérito relativamente a este denunciado que, de acordo com o teor da queixa, contemple a totalidade dos factos aí relatados.
O Sr. Juiz a quo, enveredou por diferente entendimento, decidindo que a invocada nulidade se refere à omissão total de inquérito e que os factos referentes ao menor BB encontram-se umbilicalmente ligados aos demais que constituem o objeto do processo, que foram efetivamente investigados, julgando improcedente a nulidade assacada pelo Mº Pº.
Cabe apreciar.
Adiantando, entendemos que a razão se encontra do lado do recorrente.
É certo que a nulidade da falta de inquérito exige a falta absoluta de atos de inquérito e tal é o que acontece quanto aos factos denunciados que envolvem o menor BB, relativamente aos quais a magistrada MºPº que presidiu ao inquérito não encetou quaisquer atos de desenvolvimento (investigação) e recolha de provas necessárias à fundamentação do despacho de encerramento (art. 262º nº 1 do CPP), quedando-se, inexplicavelmente, por aguardar pela apresentação de queixa do representante legal do ofendido que já constava dos autos desde 13/10/2020.
Conforme se escreveu no Ac. da R.L. de 09/09/2020([15]), “A nulidade de falta de inquérito, (…) nulidade insanável, reporta-se, (…), aos casos em que não obstante queixa ou participação, ou seja, a prática de ato que legitima a intervenção do MP, ele omita a prática de quaisquer atos próprios dessa fase. O que caracteriza esta nulidade é a completa omissão de atos de inquérito “.
É o quanto se passa no caso presente; ordenada que foi a abertura de inquérito, o MºPº nada ordenou, nada realizou até ao despacho que o encerrou.
Encontra-se, pois, verificada a nulidade insanável da falta de inquérito prevista no art. 119º d) do CPP, sendo indiferente à sua verificação a circunstância de a magistrada do MºPº que presidiu à fase do inquérito ter encetado diligências com vista à averiguação e recolha de provas sobre os factos de que foi vítima o ofendido AA, “o que reforça a necessidade de apreciar toda a factualidade pertinente àquela concreta ocorrência material” – dado que os factos de que alegadamente foi vítima o menor BB estão incindivelmente ligados aos factos de que foi vítima o ofendido AA - no âmbito do mesmo processo.
Esta nulidade não se confunde com a nulidade do inquérito por mera insuficiência prevista no art. 120º nº 2 d) do CPP (invocada no RAI no arguido/assistente mas sem identificar o ato obrigatório omitido) vício menos grave e sanável, que apenas acontece quando não tenham sido praticados atos legalmente obrigatórios, como é o caso da falta de interrogatório como arguido (no inquérito) de pessoa determinada contra quem o mesmo ocorre, sendo possível a notificação, quando haja fundada suspeita da prática de crime – art. 272º nº 1 do CPP.
A nulidade insanável verificada, arrasta consigo os atos de inquérito realizados quanto aos factos comunicados por AA que o visaram diretamente, bem como o despacho de encerramento do inquérito e o RAI subsequente.
Não pode, por isso, manter-se o despacho recorrido, procedendo parcialmente o recurso interposto.
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide em conceder parcial provimento ao recurso do MºPº e, em consequência, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que declare verificada a nulidade insanável da falta de inquérito prevista no art. 119º d) do CPP quanto aos factos de que se queixou atempadamente AA na qualidade de representante legal do seu filho menor BB, declare nulo o despacho de encerramento do inquérito e, consequentemente, ordene a remessa dos autos ao MºPº para a respetiva sanação e ulterior tramitação que se mostre adequada.

Porto, 03/05/2023 *
Lígia Trovão
Pedro M. Menezes
Donas Botto

*["retificado conforme o decidido por acórdão de 24/05/2023"]
_________________
[1] (…) tendo o Sr. CC pegado um tubo de plástico das águas que se encontrava junto ao muro e atirou-o contra o denunciante, que atingiu o seu filho “BB”, menor, no braço do lado esquerdo (…)”.
[2] Cfr. G. Marques da Silva in “Direito Processual Penal Português”, I, 2ª Edição, pág. 16.
[3] Cfr. João Conde Correia in “Comentário Judiciário do CPP, Tomo I, pág. 1228.
[4] Cfr. Figueiredo Das e Nuno Brandão, in “Direito Processual Penal, Os sujeitos Processuais”, Gestlegal, pág. 24.
[5] Cfr. Figueiredo Das e Nuno Brandão, in ob. cit., pág. 29.
[6] Cfr. proc. nº 180/19.1GDSRP-A.E1, relatado por Beatriz Marques Borges, acedido in www.dgsi.pt
[7] Cfr. M. Leal-Henriques e Simas Santos, no CPP Anotado, II Volume, 2.ª edição, 2000, Editora Rei dos Livros, p. 178.
[8] Cfr. José Souto de Moura, in “O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal”, Livraria Almedina, Coimbra, págs. 127 a 130.
[9] Cfr. Maia Gonçalves, no CPP Anotado, 13ª edição, 2002, pág. 610.
[10] Cfr. M. Leal-Henriques e Simas Santos, in ob. cit. pág. 215.
[11] Cfr. proc. nº 1831/10.9TAPTM.E1, relatado por João Gomes de Sousa, acedido in www.dgsi.pt
[12] Cfr. Germano Marques da Silva no “Curso de Processo Penal”, II, pág. 76.
[13] Cfr. Ac. da R.C. de 06/11/2013 no proc. nº 310/12.4T3AND-A.C1, relatado por Maria Pilar de Oliveira, acedido in www.dgsi.pt e Germano Marques da Silva no “Curso de Processo Penal”, I, Verbo, pág. pág. 72.
[14] Cfr. proc. nº 45/18.4SYLSB.L1-3, relatado por Graça Santos Silva, acedido in www.dgsi.pt
[15] Cfr. proc. nº 45/18.4SYLSB.L1-3, relatado por Graça Santos Silva, acedido in www.dgsi.pt