Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1641/11.6TBPNF.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
DESISTÊNCIA DA EXPROPRIAÇÃO
ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201602291641/11.6TBPNF.P2
Data do Acordão: 02/29/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 619, FLS.124-132)
Área Temática: .
Sumário: I - É da competência dos tribunais administrativos – nos termos da al. g), do n.º 1, do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro) – o conhecimento de um pedido de indemnização por danos que o expropriado haja sofrido, por a entidade expropriante ter desistido da expropriação, após ter tomado posse administrativa das parcelas e de ter entrado em negociações com vista a chegar a acordo sobre o montante da indemnização devida pela expropriação, mas antes do processo ter entrado na fase litigiosa prevista no artigo 38.º e seguintes do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro).
II - A norma constate do n.º 3 do artigo 88.º do Código das Expropriações pressupõe, por razões de economia processual, que a desistência da entidade expropriante ocorre na fase litigiosa do processo, para a qual os tribunais comuns são competentes – nos termos do n.º 1 do artigo 38.º, do mesmo código – e nos quais o processo se encontra então pendente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 1641/11.6TBPNF do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este – Penafiel – Instância Local – Secção Cível – J1.
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Juiz relator – Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
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Sumário:
I - É da competência dos tribunais administrativos – nos termos da al. g), do n.º 1, do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro) – o conhecimento de um pedido de indemnização por danos que o expropriado haja sofrido, por a entidade expropriante ter desistido da expropriação, após ter tomado posse administrativa das parcelas e de ter entrado em negociações com vista a chegar a acordo sobre o montante da indemnização devida pela expropriação, mas antes do processo ter entrado na fase litigiosa prevista no artigo 38.º e seguintes do Código das Expropriações (aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro).
II - A norma constate do n.º 3 do artigo 88.º do Código das Expropriações pressupõe, por razões de economia processual, que a desistência da entidade expropriante ocorre na fase litigiosa do processo, para a qual os tribunais comuns são competentes – nos termos do n.º 1 do artigo 38.º, do mesmo código – e nos quais o processo se encontra então pendente.
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Recorrentes………………….Junta de Freguesia de B…; e
…………………………………Junta de Freguesia de C…, habilitadas a prosseguir com a acção no lugar do primitivo autor D…, residente que foi em Lugar de …, …, ….-… Marco de Canaveses.
Recorrida…………………......Infraestruturas de Portugal, S.A., identificada nos autos.
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I. Relatório
a) O primitivo autor instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, com o fim de obter uma indemnização por danos que referiu ter sofrido devido ao facto da entidade expropriante ter desistido da expropriação, após ter tomado posse administrativa das parcelas e de ter entrado em negociações consigo, com vista a chegarem a acordo sobre o montante da indemnização devida pela expropriação.
O tribunal considerou, porém, que não tinha competência material para conhecer do pedido, por se tratar de matéria da competência dos tribunais administrativos e, por isso, absolveu a ré da instância.
b) É desta decisão que recorrem as autoras habilitadas.
Concluíram as alegações deste modo:
«1º. O “thema dicidendum” é a fixação do tribunal competente, nos termos do nº 1 do art. 101º do C.P.C. para conhecer do pleito.
2º. As recorrentes consideram que a sentença recorrida julga erradamente, ao absolver a Ré – Rede Ferroviária Nacional, Refer, E.P. - da instância, por incompetência absoluta do tribunal comum para conhecer da presente ação.
3º. Consideram as apelantes que, para efeitos da determinação do tribunal competente, a douta sentença recorrida não apreciou, corretamente:
a. o pedido formulado na ação e a causa de pedir que lhe está subjacente;
b. Reportando o litígio a uma relação jurídico-administrativa, não atendeu à versão tal como foi apresentada pelo autor.
Então vejamos:
A- PEDIDO FORMULADO E A CAUSA DE PEDIR QUE LHE ESTÁ SUBJACENTE
4º. Para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à “ causa petendi” formulados pelo Autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante.
5º. Importa, assim, por interpretação da petição inicial, ver como o Autor conformou o seu pedido e como caracteriza os actos da Ré - REFER, E.P. - para se poder concluir acerca da jurisdição competente.
6º. A simples leitura da petição inicial revela que a causa de pedir da presente acção está estruturada a partir da invocada desistência da expropriação.
7º. E o pedido funda-se no artº 88º do Código das Expropriações que, no caso de desistência da expropriação, confere aos expropriados e a outros afetados com a mesma, o direito a serem indemnizados pelos prejuízos sofridos com o início do processo expropriativo, que não culminou com a investidura da propriedade dos bens a expropriar. E este processo inicia-se com a publicação do acto administrativo de declaração de utilidade pública no Diário da República. É que, a partir deste momento, o direito real do expropriado fica afectado no seu conteúdo, de tal modo que o não pode dispor nem usufruí-lo na sua plenitude, porque está em marcha um processo aquisitivo de forma forçada do direito real do expropriado, por parte da entidade beneficiária da expropriação.
8º. Tendo o Tribunal Comum competência para julgar o processo de expropriação na fase litigiosa, também será assim para apreciar os prejuízos resultantes da sua extinção, o que implica, no caso sub judice, conhecer da desistência do direito de expropriação, previsto e regulado no artigo 88º do CE/99.
9º. Assim, todos os outros actos conexos com o processo expropriativo, regulados no Código das Expropriações/99, podem e devem ser conhecidos pelo juiz do tribunal comum competente.
B - VERSÃO TAL COMO FOI APRESENTADA PELO REQUERENTE REPORTA O LITÍGIO A UMA RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA?
10º. No presente caso, estamos em sede de pedido de condenação em indemnização, deduzido contra pessoa pública.
11º. Seja o pedido sejam as partes não são indicadores suficientemente reveladores de competência.
12º. Para caber na jurisdição dos Tribunais Administrativos, não basta a invocação do carácter público das entidades. É, ainda, necessário que os factos, donde emerge o pedido, resultem duma pré-constituída relação jurídico-administrativa.
13º. A competência terá, por isso, de se aferir pelos termos da relação jurídico processual tal como foi apresentada em juízo.
14º. Ainda que a Ré - REFER, E.P. - seja ente público, haverá que apurar se o facto em que o Autor fundamenta o seu pedido, reveste ou não uma relação jurídico- administrativa.
15º. Tal como é referido na douta sentença recorrida, “a competência dos tribunais afere-se em função dos termos em que a acção é proposta, quer quanto aos elementos objectivos (natureza da providência solicitada, natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de que teria emergido o direito, etc.) quer quanto aos seus elementos subjectivos (identidade e natureza das partes). Isto é: a competência dos tribunais determina-se pelos termos do pedido tal como a apresenta o autor na demanda.” (sublinhado e bold nosso).
16º. Por tudo o que já foi exposto supra, em face da relação jurídico-processual, tal como apresentada em juízo - em que o A. se afirma dono de vários prédios, que a R expropriou, vindo dela desistir, antes da adjudicação da propriedade, causando-lhe danos pelo facto dos citados prédios terem estado sujeitos à expropriação, no decurso de cinco anos, contados desde a data da publicação no Diário da República da Declaração de utilidade Pública (Agosto de 2004) - flui que em causa está o conhecimento de questões que resultam da expropriação.
17º. Na verdade, a causa de pedir nesta acção está estruturada a partir da invocada expropriação e posterior desistência.
18º. Em face de todo o exposto, sendo o tribunal comum o competente para o processo de expropriação – cfr. art. 38.º, n.º 1, do CExp/99, também o será para determinar a indemnização prevista no art. 88.º, n.º 2, do CExp/99, a atribuir ao expropriado, resultante da sua desistência.
19º. Acontece que, através da ação dos autos, o Autor intentou obter a condenação da Ré, aqui recorrida, no pagamento de uma indemnização pelos danos sofridos no quadro de um processo expropriativo.
20º. Ora, o que se impõe salientar, para a determinação da jurisdição competente para a apreciação da ação, é que o Código das Expropriações vigente à data da propositura da acção, o Código aprovado pelo DL n.º 168/99, de 08 de Setembro, para além, nomeadamente, das regras materiais respeitantes ao direito indemnizatório, continha uma atribuição de conhecimento de todas as matérias de indemnização aos tribunais judiciais – por ex., no capítulo II - Expropriação litigiosa, os artigos 38.º, 41.º, n.º 2, 43.º, n.º 1, 45.º, n.º 2, 51.º, 54.º, n.º 6, 66.º, e, no capítulo sobre a reversão dos bens expropriados, os artigos 77.º, n.º 1, e) e 78.º.
21º. Casos há em que a entidade expropriante não chega a ser investida na propriedade dos bens a expropriar. Esta situação ocorre em duas circunstâncias, pelo menos – por desistência da expropriação por parte do expropriante (cfr. 88.º, Cód. 99), ou por caducidade (artigo 13.º, n.º 3, Cód. 99).
22º. O Código de Expropriações não indica expressamente uma tramitação específica para o pedido de indemnização fundado em qualquer dessas circunstâncias.
23º. No domínio do Código aprovado pelo DL 845/76, de 11 de Dezembro, o artigo 124.º remetia a indemnização pelos prejuízos sofridos, face a desistência, para o processo comum de expropriação, com as necessárias adaptações, e previa, também expressamente, em que consistia essa indemnização.
24º. Falece qualquer razão para considerar retirada aos tribunais judiciais a competência para a apreciação de um pedido de indemnização perante os danos decorrentes de uma situação de desapossamento de bens em razão de declaração de utilidade pública, da qual a entidade expropriante vem a desistir.
25º. É que, por um lado, como se disse, todo o procedimento indemnizatório dos expropriados ou outros interessados é cometido no Código das Expropriações aos tribunais judiciais. Por outro lado, a desistência não implica, sem mais, a inutilização dos atos anteriormente praticados respeitantes à determinação da indemnização.
26º. Nos termos expostos, vista a acção dos autos como deve ser vista, a desistência da expropriação é o elemento da causa de pedir em que se alicerça o pedido de condenação da Ré no pagamento de indemnização ao Autor.
27º. Na causa sub judice, como no processo expropriativo que esteve na sua origem, é indiferente a caracterização como jurídico-públicas ou jurídico privadas as relações estabelecidas entre entidade expropriante e expropriado.
28º. Deste modo, não pode deixar de se concluir que os tribunais administrativos são materialmente incompetentes para o conhecimento do caso em apreço.
29.º Por isso, deverá ser alterada a decisão que julgou a incompetência absoluta do tribunal comum, antes se devendo concluir ser competente o Tribunal da Comarca do Porto Este.
TERMOS EM QUE, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.Exas. deve ser concedido provimento ao presente recurso, e consequentemente ser revogada a douta sentença, sendo declarado que o Tribunal da Comarca do Porto Este é competente, em razão da matéria, para a apreciação da presente acção…»
c) A recorrida não contra-alegou.
II. Objecto do recurso
A questão colocada no recurso consiste em saber qual é o tribunal materialmente competente para conhecer de eventuais prejuízos sofridos pelos expropriados decorrentes do processo expropriativo, o tribunal comum ou o tribunal administrativo, sabendo-se que existiu desistência da expropriação após a vistoria «ad perpetuam rei memoriam» e posse administrativa das parcelas, por parte da expropriante, mas na fase amigável do processo expropriativo.
III. Fundamentação
a) Matéria de facto a considerar
1 - O primitivo autor era proprietário de dois prédios rústicos, o primeiro sito no Lugar de …, da freguesia de …, Concelho de Penafiel, e o outro sito no Lugar de …, da freguesia de …, Concelho de Marco de Canaveses.
2 - Por despacho de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Transportes, n.º 18 254/2004 (2.ª Série), publicado no Diário da República n.º 204, II Série, de 30/08/2004, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação de duas parcelas de terreno, a destacar dos supra referidos prédios - parcelas n.º … e … - com a área total de 5 718 m2 – 5 173 m2, relativa à parcela n.º … e 545 m2 relativa à parcela n.º … - necessária à execução do Projecto da Linha do Douro - Remodelação do Troço Caíde/Marco.
3 - A expropriante é a ré Rede Ferroviária Nacional, Refer, E.P.
4- A «vistoria ad perpetuam rei memoriam», em relação às referidas parcelas, teve lugar em 15 de Outubro de 2004 e a posse administrativa, em 10 de Maio de 2005.
5- Pela expropriação das duas parcelas de terreno, a Ré propôs ao Autor uma indemnização de EUR 22.075,33 (EUR 18.531,83 – para a parcela … - e EUR 3.543,50 – para a parcela n.º …).
6 - Por carta datada de 2 de Março de 2009, a Ré veio comunicar ao Autor, através da sua mandatária, a desistência da expropriação das referidas parcelas, invocando que «Nesta altura, porém, verifica-se ser possível desenvolver o referido projecto sem necessidade de afectar os prédios em causa, de onde seriam destacadas as parcelas em referência…».
c) Apreciação da questão objecto do recurso.
Afigura-se que o tribunal materialmente competente para conhecer da acção é o tribunal administrativo, pelas seguintes razões:
1 - Nos termos do n.º 3 do artigo 212.º da Constituição da República Portuguesa,
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Nas palavras de Gomes Canotilho/Vital Moreira, «Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente da administração), (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» [1].
No que respeita à definição legal da competência dos tribunais administrativos, o n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro) repete a mesma ideia, isto é,
«Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
E no seu artigo 4.º concretizam-se os casos de competência material, dispondo-se:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas».
Acerca da noção de relação jurídica de direito administrativo, MARCELLO CAETANO sustentou que «O que caracteriza as relações jurídico-administrativas é: o carácter colectivo dos interesses a que servem os instrumentos, a iniciativa dos órgãos encarregados da respectiva prossecução e sobretudo, como manifestação típica de autoridade, o privilégio da execução prévia dos direitos afirmados pela Administração» [2].
FREITAS DO AMARAL definiu-a como sendo «…aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» [3].
Por sua vez, o Tribunal de Conflitos, no seu acórdão de 8 de Dezembro de 2010, referiu-se a esta problemática nos seguintes termos:
«…o conceito de relação jurídica administrativa é decisivo para determinar a repartição de competências entre os tribunais Administrativos e os Tribunais Judiciais, na medida em que essa repartição se faz em função do litígio cuja resolução se pede emergir, ou não, de uma relação jurídica administrativa. Nesta conformidade, para se saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer da pretensão formulada pelo Autor – se o Judicial se o Administrativo – importará analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e qual foi o pedido formulado, pois será essa análise que nos indicará se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que se faça relativamente à viabilidade da pretensão, por se tratar de questão atinente ao seu mérito» [4].
Sobre o conceito de relação jurídica administrativa o mesmo tribunal, no seu acórdão de 25 de Novembro de 2010, considerou que, «Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido» [5].
Sintetizando o que fica exposto, para podermos reconhecer e afirmar que estamos face a uma relação jurídica administrativa temos de isolar dois elementos:
(I) Por um lado, um dos sujeitos há-se ser uma entidade pública ou se for privada deve actuar legalmente, no caso, como se fosse pública e, por outro, (II) os direitos e deveres que constituem a relação hão-de emergir de normas legais de direito administrativo.
No que respeita ao tipo de normas administrativas, a doutrina assinala três tipos de normas:
(a) Normas orgânicas, as quais, nas palavras de FREITAS DO AMARAL «…são normas que estabelecem as entidades públicas que fazem parte da Administração, e que determinam a sua estrutura e os seus órgãos; em suma, que definem a sua organização» [6].
(b) Normas funcionais, as quais, segundo o mesmo autor «…são as que regulam o modo de agir específico da Administração Pública, estabelecendo processos de funcionamento, métodos de trabalho, tramitação a seguir, formalidades a cumprir, etc.» [7].
(c) Normas relacionais, as quais, seguindo ainda o mesmo autor, «…são as que regulam as relações entre a Administração e os particulares no desempenho da actividade administrativa», tais como:
« – normas que conferem poderes de autoridade à Administração Publica;
– normas que submetem a Administração a deveres, sujeições ou limitações especiais, impostas por motivos de interesse público;
– normas que atribuem direitos subjectivos ou reconhecem interesses legítimos aos particulares face à Administração» [8].
No que respeita ao modo de actuação da Administração pública destaca-se a dicotomia entre gestão pública e gestão privada.
Continuando com FREITAS DO AMARAL, «…a Administração actua umas vezes segundo o direito público, desenvolvendo aí uma actividade administrativa pública – lançar e cobrara impostos, expropriar terrenos, conceder ou negar licenças e autorizações – e, outras vezes actua segundo o direito privado, exercendo então uma actividade administrativa privada – comprar, vender, doar, emprestar, arrendar» [9].
2 – Vejamos agora o tipo de relação jurídica que está subjacente ao pedido.
Como se referiu acima, existiu uma declaração de expropriação de terrenos pertencentes ao primitivo autor, houve posse administrativa dos terrenos e negociações para estabelecer consensualmente o montante indemnizatório, fase esta durante a qual a entidade expropriante veio desistir da expropriação.
Estamos, por conseguinte, no âmbito de relações reguladas pelo Código das Expropriações aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro.
Verifica-se, face ao disposto no artigo 1.º deste Código, onde se dispõe que «Os bens imóveis e os direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública compreendida nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização nos termos do presente Código», que as relações atinentes às expropriações por utilidade pública têm natureza administrativa, pois destinam-se a promover finalidades de utilidade pública e são promovidas ou pelo Governo ou pelas autarquias locais, como resulta do disposto no artigo 14.º (Competência para a declaração de utilidade pública) do mesmo Código.
Por conseguinte, no que respeita ao caso dos autos, nesta primeira abordagem, verifica-se que a causa de pedir da acção se funda em relações de direito administrativo, pelo que o tribunal competente para conhecer do pedido será o tribunal administrativo.
3 – Vejamos se existe alguma norma legal que impeça a conclusão a que acabou de se chegar.
As recorrentes sustentam a competência dos tribunais comuns na norma constante do artigo 88.º (Desistência da expropriação) do Código das expropriações.
Esta norma tem este teor:
«1 - Nas expropriações por utilidade pública é lícito à entidade expropriante desistir total ou parcialmente da expropriação enquanto não for investido na propriedade dos bens a expropriar.
2 - No caso de desistência, o expropriado e demais interessados são indemnizados nos termos gerais de direito, considerando-se, para o efeito, iniciada a expropriação a partir da publicação no Diário da República do acto declarativo da utilidade pública.
3 - Se a desistência da expropriação se verificar após a investidura da entidade expropriante na posse dos bens a expropriar, as partes podem converter, por acordo, o processo litigioso em processo de reversão, previsto nos artigos 74.º e seguintes, através de requerimento conjunto a apresentar em juízo.
4 - Sendo o acordo requerido admissível, o tribunal notifica a entidade que declarou a utilidade pública, para informar os autos se autoriza a reversão pretendida pelas partes, ordenando, em caso afirmativo, a sua conversão».
Argumentam que «8º. Tendo o Tribunal Comum competência para julgar o processo de expropriação na fase litigiosa, também será assim para apreciar os prejuízos resultantes da sua extinção, o que implica, no caso sub judice, conhecer da desistência do direito de expropriação, previsto e regulado no artigo 88º do CE/99.
9º. Assim, todos os outros actos conexos com o processo expropriativo, regulados no Código das Expropriações/99, podem e devem ser conhecidos pelo juiz do tribunal comum competente».
Afigura-se que não assiste razão às recorrentes pelos seguintes motivos:
(a) A natureza das relações jurídicas inerentes ao procedimento expropriativo por utilidade pública é administrativa e, por isso, em regra, os litígios emergentes de danos causados no âmbito destas relações são da competência dos tribunais administrativos, nos termos da al. g), do n.º 1, do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, onde se determina que «Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…) g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa».
(b) A competência dos tribunais comuns apenas constitui excepção a esta regra, nos termos que se encontram definidos no Código das Expropriações.
(c) A excepção prevista no Código das Expropriações, a qual atribui competência aos tribunais comuns, respeita apenas às relações estabelecidas na fase litigiosa do processo expropriativo, e vem estabelecida no artigo 38.º (Arbitragem) deste Código (Capítulo II - Expropriação litigiosa).
Este artigo tem a seguinte redacção:
«1 - Na falta de acordo sobre o valor da indemnização, é este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais comuns.
2 - O valor do processo, para efeitos de admissibilidade de recurso, nos termos do Código de Processo Civil, corresponde ao maior dos seguintes:
a) Decréscimo da indemnização pedida no recurso da entidade expropriante ou acréscimo global das indemnizações pedidas nos recursos do expropriado e dos demais interessados, a que se refere o número seguinte;
b) Diferença entre os valores de indemnização constantes do recurso da entidade expropriante e o valor global das indemnizações pedidas pelo expropriado e pelos demais interessados nos respectivos recursos, a que se refere o número seguinte.
3 - Da decisão arbitral cabe sempre recurso com efeito meramente devolutivo para o tribunal do lugar da situação dos bens ou da sua maior extensão».
Se não existisse esta norma, a fase litigiosa dos processos de expropriação correria nos tribunais administrativos.
Sendo assim, como o presente processo expropriativo não chegou a entrar na fase litigiosa, então não há norma que subtraia o presente processo, para conhecer de eventuais danos emergentes do processo expropriativo por utilidade pública, à competência dos tribunais administrativos.
A invocação do disposto no n.º 3 do artigo 88.º do Código das Expropriações por parte das recorrentes não ajuda a sua argumentação.
É que esta norma pressupõe que a desistência da entidade expropriante ocorre na fase litigiosa do processo, para a qual os tribunais comuns são competentes e onde o processo já se encontra a correr termos.
Por razões de economia processual justifica-se que os tribunais comuns conheçam desta questão no processo que aí se encontra pendente.
Com efeito, prevê-se neste n.º 3, que «Se a desistência da expropriação se verificar após a investidura da entidade expropriante na posse dos bens a expropriar, as partes podem converter, por acordo, o processo litigioso em processo de reversão, previsto nos artigos 74.º e seguintes, através de requerimento conjunto a apresentar em juízo».
Prevê-se neste n.º 3 a conversão, por acordo, do processo litigioso em processo de reversão.
Para tanto é necessário que exista um processo litigioso, pressuposto que o presente caso não satisfaz, pois, como se referiu acima, o processo não chegou a entrar nessa fase.
Além disso, teria de ter sido cumprido outro pressuposto, mas no próprio processo expropriativo, isto é, teria de ter existido aí um «acordo» entre as partes para a referida conversão.
Concluindo: as relações jurídicas geradas no âmbito do processo de expropriação são de natureza administrativa, mas a lei atribui competência aos tribunais comuns para conhecer delas quando o processo entra na fase litigiosa.
Se o processo não chega a entrar na fase litigiosa, as questões que cumpre resolver em juízo são da competência dos tribunais administrativos.
Improcede, por conseguinte, o recurso.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém a decisão recorrida.
Custas pelas recorrentes
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Porto, 29 de Fevereiro de 2016
Alberto Russo
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
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[1] Constituição da República Portuguesa Anotada. 3.ª edição, pág. 815.
[2] Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10.ª edição, 3.ª reimpressão. Almedina, 1984, pág. 45. De assinalar que o autor logo refere que nem todos os preceitos de direito administrativo estão dotados deste privilégio.
[3] Direito Administrativo, Vol. III, pág. 439/440 (Lições aos alunos do curso de Direito em 1988/89), Lisboa/1989.
[4] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 020/10.
[5] Em http://www.gdsi.pt, processo n.º 021/10.
[6] Curso de Direito Administrativo, Vol. I. Almedina, 1989, pág. 128.
[7] Ob. cit., pág. 130.
[8] Ob. cit., pág. 132 e 133. sobre este assunto, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, Vol. I, Lisboa, Editora Danúbio, Lda., 1982, pág. 54-55.
[9] Ob. cit., pág. 133-134