Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
341/15.2T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: ASSOCIAÇÃO
LIBERDADE DE AUTO-ORGANIZAÇÃO E AUTOGESTÃO
PODER DISCIPLINAR
NULIDADE E ANULABILIDADE DO PROCESSO DISCIPLINAR
CADUCIDADE DO DIREITO DE ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RP20161025341/15.2T8PVZ.P1
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 737, FLS 58-65) .
Área Temática: .
Sumário: I - A liberdade de auto-organização e de autogestão das associações, consubstanciadas na autonomia estatutária, não comporta a dependência dos seus estatutos de qualquer aprovação ou sanção administrativa, mas não prejudica a fixação normativa de regras de organização e gestão que não afetem substancialmente a liberdade de associação, nomeadamente dos requisitos mínimos de uma organização democrática
II - Não estando fixadas regras legais que limitem o poder disciplinar das associações e imponham normas procedimentais, não se anteveem razões para censurar um estatuto que delineia um código de disciplina próprio, gizado à luz dos deveres dos associados e dos fins prosseguidos pela associação.
III - O direito de audiência e defesa do autor em processo disciplinar que conduziu à sua expulsão da Associação não está coberto por um regime garantístico equivalente ao do processo criminal, mas tem de assegurar a audiência e a defesa do visado, comunicando-lhe o facto ou factos de que é acusado, e dando-se-lhe oportunidade de defesa.
IV - Porém, o direito do autor não é aqui constituído como um direito fundamental à livre associação, desde logo por estar em jogo uma associação de desenvolvimento de uma raça canídea, em que se protege a ordem e a regularidade do funcionamento de uma associação que prossegue interesses de natureza privatística e exclusiva dos seus associados. Donde não haja fundamento para que a omissão da audiência do autor no processo disciplinar seja cominada com a sanção da nulidade, mas tão-só da anulabilidade.
V - Sendo o vício atendível fautor da mera anulabilidade do ato, porque o tempo assume uma inegável influência sobre o exercício dos direitos, a impugnação deve fazer-se em prazo curto, pelo que se considera verificada a exceção de caducidade do direito do autor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 341/15.2T8PVZ
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Póvoa de Varzim, instância local, secção Cível, J1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B…, residente em …, ….-… …, TORRES VEDRAS, demandou, na presente ação de processo comum, a Associação “C…”, com sede na Rua …, …, …, ….-… PÓVOA DE VARZIM, pedindo:
a) A declaração da nulidade dos estatutos (incluindo disciplinares) da ré na parte em que não respeita o princípio da proibição do arbítrio, já que, em matéria disciplinar, não prevê num procedimento dessa natureza que haja uma fase da acusação, uma fase da instrução com audição do acusado, a fixação dos factos e, finalmente, se for caso disso, a aplicação da sanção;
b) Por via de tal nulidade, a nulidade da pena de expulsão que lhe foi aplicada, considerando-se que mantém a sua qualidade de associado da ré;
c) A sua condenação no pagamento da quantia de €960,00 referente aos rendimentos que deixou de auferir por ter sido impedido de participar na prova realizada no dia 20/21 de setembro de 2014 e aos rendimentos relativos às provas e exposições que se realizarem entre a data da propositura da ação até ao trânsito em julgado, acrescida dos juros respetivos (na mesma quantia por cada prova);
d) A sua condenação no pagamento na quantia de €10.000,00, correspondente à indemnização indicada em 77º., alínea b), nomeadamente por danos provocados à sua imagem;
e) A sua condenação no pagamento da quantia de 250,00 € por cada dia que a ré mantiver a decisão (ilícita) de expulsão do A. (a contar da data da citação para a ação);
f) A declaração de nulidade das decisões da ré que imponham condições de participação nas provas de cão de D…, por si organizadas, porque são violadoras direito à liberdade de associação e à prática da modalidade;
g) A sua condenação no pagamento das custas e procuradoria.
Para tanto e em síntese, alegou é criador e treinador de cães da raça “D…” e que, nessa qualidade, exerceu as suas funções e foi sócio fundador da Associação, sem fins lucrativos, “C…, na qual exerceu as funções de Presidente da mesa da Assembleia Geral durante o ano de 2009. Em 19 de junho de 2012, a direção da Associação comunicou-lhe a decisão de expulsão direta de sócio, aplicada no âmbito de processo disciplinar decorrido, o qual deu completa inobservância às regras mínimas de condução do procedimento disciplinar.

A ré contestou, invocando:
- exceção de caducidade, por entender que, desde a data de notificação ao réu da decisão proferida, tinha o mesmo 8 dias para se opor aquela decisão, conforme resulta do regulamento interno, e nada fez;
- a ilegitimidade passiva para a declaração de nulidade dos estatutos, porque teriam de estar na ação todos os sócios intervenientes na assembleia geral de aprovação dos mesmos;
- a inadequação do meio processual utilizado;
- o abuso do direito;
- a impugnação dos factos articulados pelo autor.

O autor, apresentando a sua resposta quanto à aduzida caducidade do seu direito, articulou que a notificação da decisão disciplinar não lhe deu a conhecer a faculdade de recorrer. Ademais, a evocação das nulidades é um direito/dever decorrentes de normas imperativas que contrariam o artigo 5.º do Código de Disciplina.

Realizada audiência, foi proferido despacho saneador que, reputando conter os autos elementos suficientes ao conhecimento da exceção de caducidade, dela conheceu, emitindo o seguinte dispositivo:
«Em face de tudo o que se acabou de expor, julga-se a presente excepção de caducidade procedente e, consequentemente, absolve-se a Ré do pedido efectuado nestes autos».

Inconformado, o autor interpôs recurso da decisão, admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

O recorrente formulou as seguintes conclusões alegatórias:
«a) Apesar de prevista nos estatutos da associação Recorrida a pena disciplinar de expulsão automática de associado, a inexistência de regulamento procedimental não obsta à efectivação de processo disciplinar;
b) Tal procedimento disciplinar deve, no entanto, assegurar ao associado arguido o princípio constitucional de audiência e defesa (artigo 32º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa);
c) Efectivamente, qualquer processo disciplinar deve respeitar o princípio da proibição do arbítrio que, em matéria disciplinar, justifica que num procedimento dessa natureza considere a existência de uma fase da acusação, uma fase da instrução com audição do acusado, a fixação dos factos e, finalmente, se for caso disso, a aplicação da sanção;
d) Os estatutos da associação podem especificar as condições de admissão, saída e exclusão dos associados (artigo 167º/2 do Código Civil) mas, sendo tal disposição facultativa, a inexistência de regulamento que fixe as regras procedimentais não obsta à instauração de processo disciplinar que deve, no entanto, respeitar os mencionados princípios;
e) No caso concreto dos autos, a recorrida tomou a decisão de expulsar o Recorrente, sem que lhe tenha dado a possibilidade de, confrontado com os factos de que era acusado, apresentar defesa;
f) O Tribunal a quo entendeu que o Recorrente poderia ter reagido conforme lhe era facultado pelo artigo 5.º do regulamento interno. No entanto, tal faculdade é permitida a jusante do problema, já que só em fase de recurso da decisão poderia o Recorrente reagir da decisão (sendo que os regulamentos são omissos no que concerne ao órgão de recurso);
g) procedimentos da associação Recorrida, sendo certo que deveria ter reagido conforme lhe era facultado pelo artigo 5.º do regulamento. Tais circunstâncias não obstam e impliquem que o acto nulo seja confirmado na ordem jurídica ou que convalesça;
h) No caso dos autos, o autor veio exercer um direito potestativo pretendendo prevalecer-se da invalidade de um acto que efectivamente conhecia (mas tal conhecimento não implica que concordasse com o referido acto);
i) Face ao exposto, verifica-se que a nulidade do regulamento disciplinar da Recorrida (no que concerne à inexistência do exercício do contraditório) e da pena de expulsão automática é absoluta (já que não é só o Recorrente que é tutelado, apesar de ser o principal prejudicado);
j) Pelo facto dos regulamentos serem nulos e, em consequência, a decisão de expulsão, foi arguida a nulidade na pendência, podendo esta ser inovada a todo o tempo e por qualquer interessado (no caso o Recorrente), nos termos do artigo 286.º do Código Civil;
k) O acto nulo não produz, assim, efeitos ab initio, sendo este o pedido que foi formulado ao Tribunal a quo, já que os actos em discussão são contrários à Lei (artigo 294.º do Código Civil);
l) A decisão recorrida violou o direito de defesa e de resposta do Recorrente (arguido no processo disciplinar em discussão nos presentes autos) e, bem assim, do artigo 32.º, número 10, da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 294.º e 286.º do Código Civil;
São pois termos em que se espera que o Tribunal ad quem, revogue a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que declarar-se a nulidade dos estatutos (incluindo disciplinares) da Recorrida na parte em que não respeita o princípio da proibição do arbítrio, já que, em matéria disciplinar, não prevê num procedimento dessa natureza que haja uma fase da acusação, uma fase da instrução com audição do acusado, a fixação dos factos e, finalmente, se for caso disso, a aplicação da sanção, e, em consequência, a nulidade da pena de expulsão que foi aplicada ao Recorrente (com os mesmos fundamentos), considerando-se que mantém a sua qualidade de associado (decidindo-se, de igual forma, as causas e consequências de tais nulidades conforme exposto na petição inicial) porque apenas assim se cumprirá a Lei, realizando-se o Direito e fazendo-se a desejada».

Não respondeu a recorrida.

II. Fixação do objeto do recurso
Face às conclusões da alegação recursiva (artigo 635º do Código de Processo Civil[1]), importa apenas apreciar se é operativo o prazo de caducidade de 8 dias regulamentarmente estabelecido para impugnar a decisão da sanção disciplinar de expulsão e se fica incólume a decisão disciplinar não impugnada em tempo.

III. Fundamentação de facto
Com relevo para a decisão da exceção de caducidade:
1. O autor é criador e treinador de cães da raça D….
2. Nessa qualidade exerceu as suas funções e foi sócio fundador da associação, sem fins lucrativos, “C…”, constituída por escritura de 09-07-2002 (fls. 11 a 14).
3. Nessa associação o autor exerceu as funções de Presidente da mesa da Assembleia Geral durante o ano de 2009.
4. São órgãos da Associação a Assembleia Geral, a Direção e o Conselho Fiscal- (fls. 11 a 14).
5. O Regulamento Interno da associação, conforme artigo 13º dos Estatutos, foi aprovado pela Assembleia Geral, na qual participou o autor, como associado fundador (fls. 14 a 26).
6. A ré é uma associação sem fins lucrativos que tem por objeto o desenvolvimento da raça de cão “D…”.
7. O autor foi sancionado por falta muito grave, derivada da falta de comunicação de ninhada e registada no CPC, por violação do §16 do Regulamento de Verificação, com “suspensão definitiva e exclusão da lista de sócios”.
8. Em 19 de junho de 2012, a Direção da associação emitiu ao autor a seguinte notificação: «A Direcção do C… decidiu instaurar contra V.Exa, na qualidade de sócio nº . do C…, processo disciplinar pela prática de falta muito graves, punida com a pena de suspensão definitiva e exclusão da lista de sócios, para tanto se comunicando a V. Exa. a deliberação da Direcção do C… da pena de expulsão directa de sócio do C…, bem como do parecer jurídico em que a mesma se baseou e da prova constante do processo disciplinar» (fls.26 verso).
9. O artigo 4º do Regulamento Interno da ré – Código de Disciplina – estabelece: «As sanções disciplinares serão aplicadas após acordo da Direcção com a prévia instauração do respectivo processo» (fls. 14 a 26).
10. O capítulo 5º, 5, do Código de Disciplina e Ética, estabelece que a falta de comunicação de ninhada, tendo a mesma sido registada no CPC, transporta «expulsão direta sem que para tal haja a necessidade de ser levantado o respetivo processo disciplinar pela Comissão de Disciplina e Ética formada para o efeito» (fls. 14 a 26).
11. O artigo 5º do Regulamento Interno dispõe que «[O sócio sancionado poderá recorrer da decisão no prazo de oito dias. Findo este prazo as sanções aplicadas serão executadas, dando conhecimento aos sócios e delegações.» (fls. 14 a 26).
12. O articulado de petição inicial entrou em juízo, via eletrónica, no dia 13 de março de 2015.

IV. Fundamentação de direito
1. Caducidade do direito de recorrer da decisão disciplinar
O artigo 195º do Código Civil (CC), regulando o regime das associações sem personalidade jurídica, contrapõe o regime previsto para as associações com personalidade jurídica, as pessoas coletivas que não tenham por fim o lucro económico dos associados (artigo 157º do CC). E a aquisição da personalidade jurídica faz-se por via notarial ou por outro meio legalmente admitido ou por via administrativa, como sucede com as fundações (artigo 158º CC)[2]. Assim, as associações com personalidade jurídica regem-se disposições de carácter geral a que aludem os artigos 157º a 166º e pelas normas específicas dos artigos 167º a 184º do CC. De facto, «[q]uando, a propósito das associações, a lei fala apenas nas que não tenham por fim o lucro económico dos associados, quer precisamente excluir as sociedades, para compreender apenas as associações de fim desinteressado ou altruístico (as associações de beneficência, por ex.), as associações de fim ideal, embora interessado ou egoístico, como sejam as academias literárias ou científicas, as associações desportivas, de recreio, etc., e ainda as associações de fim económico, mas não lucrativo (caso típico de certas cooperativas, das associações de socorros mútuos, das instituições particulares de previdência, etc.)»[3].
Sendo o ordenamento civilístico omisso quanto deveres dos associados, sua violação e correspondente sanção, regem as normas estatutárias aprovadas em assembleia geral, assim traduzindo a vontade da pessoa coletiva, manifestada pela maioria dos seus associados. É assim que, no caso, são os estatutos da Associação demandada que regem a matéria em causa.
Em processo disciplinar instaurado contra o autor, por deliberação da direção da associação ré, foi-lhe aplicada a sanção disciplinar de «suspensão definitiva e exclusão da lista de sócios». Visto o Regulamento Interno aprovado pela assembleia geral da associação demandada – Código de Disciplina – o artigo 5º estabelece que o «sócio sancionado poderá recorrer da decisão no prazo de oito dias. Findo este prazo as sanções aplicadas serão executadas, dando conhecimento aos sócios e delegações».
Não há dúvida que as normas regulamentares preveem um prazo de oito dias para impugnar o sancionamento disciplinar. Norma que, ao menos prima facie, permite ajuizar do acerto da sentença recorrida; tendo o autor sido notificado da aplicação da sanção disciplinar em 19-06-2012 e tendo a ação entrado em juízo apenas em 13-03-2015, há muito que se extinguiu o direito de impugnar judicialmente a decisão disciplinar (n.os 7 e 10 dos factos provados).
Opõe, no entanto, o autor que a notificação operada omitia o direito de recurso e o respetivo prazo, o que se encontra traduzido na realidade factual (n.º 8 dos fundamentos de facto). A norma relativa à caducidade do direito ao recurso tem em vista a proteção dos interesses de terceiros, no caso o terceiro visado pelo processo disciplinar. Para além do princípio geral de que a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas (artigo 6º do CC), a verdade é que o ato de notificação foi dirigido a quem tinha obrigação de saber as normas do estatuto, mormente quando está apurado que foi sócio fundador da associação demandada, participou na deliberação de aprovação dos estatutos e exerceu funções de presidente da mesa da Assembleia Geral. Ainda assim, é de todo anómalo que a impugnação judicial da decisão sancionatória seja feita decorridos quase três anos sobre a correlativa notificação. Mais surpreendente é a circunstância de o autor, recebendo a notificação do seu sancionamento disciplinar, não reagir, como faz agora, à violação dos procedimentos do sancionamento disciplinar, antes subscrevendo uma comunicação à Associação de que “não iria recorrer”.
Consabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) inclui no elenco dos direitos, liberdades e garantias pessoais o direito à livre constituição de associações (artigo 46º), não se crê que o entendimento expresso pela sentença recorrida viole o direito de associação do autor. O direito de associação é um direito complexo, que se analisa em vários direitos ou liberdades específicos, reconhecendo o n.º 1 o chamado direito positivo de associação, ou seja, o direito individual dos cidadãos a constituir livremente associações sem impedimentos e sem imposições do Estado, bem como o direito de se filiar em associação já constituída, e o n.º 2 a liberdade de associação, enquanto direito da própria associação a organizar-se e a prosseguir livremente a sua actividade[4]. Não obstante as associações prosseguirem livremente os seus fins (n.º 2, 1.ª parte), a significar que têm direito a gerir livremente a sua vida (autodeterminação), nas atividades externas, estão sujeitas a determinados requisitos gerais. Porém, a liberdade de auto-organização e de autogestão, consubstanciadas na autonomia estatutária, não comporta a dependência dos seus estatutos de qualquer aprovação ou sanção administrativa, como não podem ser impostos pelas autoridades, nem a designação dos seus órgãos diretivos podem depender de qualquer aprovação ou controlo administrativo e, muito menos, de imposição administrativa. Identicamente, a liberdade de gestão significa que os seus atos não podem ficar dependentes de aprovação. Ainda assim, a liberdade de auto-organização e de autogestão não prejudica a fixação normativa de regras de organização e gestão que não afetem substancialmente a liberdade de associação, nomeadamente os requisitos mínimos de uma organização democrática. É que a livre prossecução dos fins associativos é feita através da participação dos membros da associação na formação e na alteração das normas estatutárias e mediante a gestão por órgãos representativos dos associados, nos termos estatutariamente consagrados. Trata-se do reflexo do substrato pessoal próprio das associações[5].
Destarte, não estando fixadas regras legais que limitem o poder disciplinar das associações e imponham normas procedimentais, não se anteveem razões para censurar um estatuto que delineia um código de disciplina próprio, gizado à luz dos deveres dos associados e dos fins prosseguidos pela associação. Donde que nada atalhe a caducidade do direito de ação do associado disciplinarmente sancionado em prazo tão curto, apesar de não ter sido advertido dessa cominação que, além do mais, não podia ignorar.

2. Nulidade do regulamento disciplinar
O recorrente pugna pela declaração de nulidade do regulamento disciplinar da associação por ausência de previsão estatuária ou regulamentar dos procedimentos disciplinares e de aplicação da sanção pela assembleia geral, bem como por violação do direito de audiência e defesa, nulidade que pode ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do artigo 286º do CC.
Na verdade, os estatutos da ré e o regulamento interno dão nota de um vazio normativo quanto aos procedimentos disciplinares, apesar de os estatutos da associação poderem especificar as condições de admissão, saída e exclusão dos associados, conforme o estatuído no artigo 167º, 2, do CC. Este preceito não tem, todavia, um conteúdo imperativo e, sendo uma disposição facultativa, a inexistência regras regulamentares que fixem os procedimentos não impede a instauração de processo e sancionamento disciplinares. De todo o modo, aceita-se que, em matéria disciplinar, o associado não pode ser sancionado com base na violação de deveres que não estejam previstos em preceitos estatutários ou regulamentares, como não lhe pode ser aplicada sanção que não esteja prevista nos estatutos ou no regulamento[6]. No caso, o autor foi sancionado pela direção por falta muito grave e com a sanção mais grave “suspensão definitiva e exclusão da lista de sócios”. Em face do capítulo 5º, 5, do Código de Disciplina e Ética, a falta cometida implica a «expulsão direta sem que para tal haja a necessidade de ser levantado o respetivo processo disciplinar pela Comissão de Disciplina e Ética formada para o efeito», sem exibir qualquer norma regulamentar que defira a competência da aplicação dessa sanção à assembleia geral. Contudo, tal regra não contraria o artigo 172º do CC, que não elenca esse ato dentre os que são da competência necessária desse órgão da associação, antes consentindo que a sua prática seja diferida a outro órgão. Donde se não vislumbre qualquer ilegalidade na evocada circunstância do sancionamento disciplinar ter sido aplicado pela direção da Associação.
No tocante à apontada violação do direito de audiência e defesa do autor, é comummente defendido que, no âmbito do processo disciplinar, vigoram os direitos de audiência e defesa do arguido, à luz do acolhido pelo artigo 32º, 10, da CRP, que prescreve para quaisquer processos sancionatórios o asseguramento ao arguido dos direitos de audiência e defesa, os quais pretendem garantir, essencialmente, que ninguém seja condenado sem que lhe seja assegurado previamente o direito de se defender com eficácia. No entanto, as normas constitucionais de garantia do processo criminal não alargam o seu âmbito de aplicação a todo e qualquer processo sancionatório, incluindo aos procedimentos disciplinares, como unanimemente tem sido sufragado pela jurisprudência constitucional, ao enjeitar que o asseguramento dos direitos de audiência e defesa previstos, designadamente pelo artigo 32.º da CRP, não tem o significado de fazer atrair o regime do processo criminal para todos os demais ramos do direito sancionatório e, em particular, do processo disciplinar[7]. Sendo verdade que o processo penal português tem estrutura acusatória, para garantir o caráter isento, objetivo, imparcial e independente da decisão judicial, e que a CRP impõe que a entidade julgadora não tenha funções de investigação e de acusação da infração (artigo 32º, 5, da CRP), a jurisprudência constitucional assevera que a «(…) a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios)» pretendeu apenas assegurar, nesses tipos de processos, «os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3)»[8]. Por isso se entende que só poderá haver um juízo negativo de constitucionalidade quando a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra não supõe a prévia audição do arguido (direito de audição) e não lhe garante a defesa das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade[9].
Esse limitado alcance conferido à norma constitucional deriva, desde logo, do facto de, no âmbito da revisão constitucional de 1997, ter sido rejeitada uma proposta para consagrar «nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios» o asseguramento ao arguido de «todas as garantias do processo criminal»[10]. Acresce que, embora a densificação semântica da estrutura acusatória se faça através da articulação entre uma dimensão material (fases do processo) e uma dimensão orgânico subjetiva (entidades competentes), ela traduz a diferenciação entre as funções do juiz de instrução e do juiz julgador e entre ambos e o órgão acusador, de modo a que a estrutura acusatória constitucionalmente prevista para o processo penal não se esgota na simples «diferenciação material entre o órgão que instrui o processo e dá acusação». Vai mais além e torna pertinente o «reconhecimento da participação constitutiva dos sujeitos processuais na declaração do direito do caso concreto»[11].
Ainda assim, na condução do procedimento disciplinar, não podem deixar de ser observadas as regras mínimas de respeito pelo princípio constitucional da audiência e da defesa (artigo 32º, 10), o que equivale a dizer que a matéria disciplinar associativa não está coberta por um regime garantístico equivalente ao do processo criminal, mas tem de assegurar a audiência e a defesa do visado[12]. A propósito, refere Menezes Cordeiro que «as sanções disciplinares devem ser aplicadas dentro de certas regras, designadamente: antes de qualquer sanção, deverá ser comunicado ao visado o facto ou factos de que ele é acusado, dando-se oportunidade de se defender». Doutro modo, seria admitida «uma exclusão “ad nutum”», equivalente «à constituição de obrigações naturais sem base legal»[13].
Reconhecendo-se que assistia ao autor o direito de audiência sobre os factos imputados para, cabalmente, usar do seu direito de defesa no processo disciplinar que lhe foi instaurado, cujo âmbito não se reduz ao direito de pronúncia mas também ao direito de demonstrar a sua inocência ou uma verdade material diferente da atribuída, a omissão desse direito constitui causa de invalidade. Efetivamente, a propósito dessa questão em matéria de procedimento administrativo e de defesa dos direitos dos administrados, grande parte da doutrina vem defendendo que o direito de defesa e audiência em processo disciplinar da administração pública é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias e que a sua violação deve ter como consequência a nulidade do ato final[14]. Já o Supremo Tribunal Administrativo tem assumido uma posição mais moderada, sustentando que essa nulidade insuprível, na qualificação atribuída pelo direito disciplinar dos trabalhadores da administração pública por se tratar de um vício de procedimento, não é uma nulidade absoluta, mas sim uma nulidade relativa, e, portanto, geradora de mera anulabilidade. Vale por dizer que, embora estando em causa a omissão de uma formalidade essencial, como é um vício de procedimento, importa a anulabilidade do ato, a significar que, neste caso de insupribilidade, a consequência é a anulação do processo a partir do momento em que tal omissão ocorreu, obrigando a refazê-lo a partir daí, mas não implicando a nulidade do ato. Só assim não será quando os procedimentos disciplinares culminem com a aplicação de sanções de carácter expulsivo[15]. Essa jurisprudência, considerando que as sanções expulsivas atingem o cerne do direito fundamental à manutenção do emprego, pugna pela nulidade absoluta sempre que as mesmas estejam em causa. Não se crê, contudo, que esse entendimento possa ser transferido para o direito fundamental à livre associação, por se reconhecer a dificuldade em definir como fundamental este direito à livre associação quando está em jogo uma associação de desenvolvimento de uma raça canídea. Daí que se repute estar apenas em causa o conteúdo do direito de audiência do associado em processo disciplinar, isto é, a faculdade de o mesmo pronunciar sobre todos os factos imputados.
Como resulta evidente, desde logo pela aceitação da ré, foi o autor disciplinarmente sancionado sem lhe ser garantido o direito de audiência e defesa, omissão que pode ter comprometido um processo disciplinar justo e equitativo. Porém, não se pode deixar de entender que o direito constitucional de audiência e defesa tem, neste caso em que não está em jogo qualquer direito fundamental, uma natureza meramente instrumental, cuja omissão não acarreta a nulidade do ato sancionador, mas sim a sua mera anulabilidade. Entendimento sufragado pelo Tribunal Constitucional a propósito do direito de audiência em processo administrativo numa situação de direito à licença de utilização de um estabelecimento[16]. A esse respeito sufragou a jurisprudência do STA, afirmando que a falta de audiência do interessado, leia-se aqui arguido, gera, em princípio, mera anulabilidade, pois o direito de ser ouvido não é um direito fundamental, mas um direito instrumental, sendo «incompreensível que se lhe atribua a dignidade de direito fundamental – e, muito menos, que se considere que a sua preterição ofende "o conteúdo essencial de um direito fundamental (…) em termos de que tal gravidade justifique o seu sancionamento com a nulidade do acto conclusivo do respectivo procedimento – quando o direito substantivo em causa no procedimento não merece, ele próprio, a qualificação de direito fundamental».
Crê-se ser similar a situação em apreço; o direito substantivo em causa – o direito à participação numa associação de desenvolvimento de uma raça canídea – não reveste as características de direito fundamental e, por isso, a omissão de uma formalidade necessária à defesa de um conteúdo material que não contende com qualquer direito fundamental, não traduz um vício que inquina o ato de nulidade, mas tão-só de anulabilidade. Essa audiência tem uma dimensão do princípio da participação, mas a sua omissão só implica a nulidade do ato final nos casos em que a violação do direito de participação assume uma dimensão qualificada, configurando-se como uma garantia fundamental quando estão em jogo direitos fundamentais. Não obstante, reconhecer ao direito de participação, sob a forma de direito de audição, uma natureza especial que demanda que a sua violação seja sancionada com o estigma da nulidade própria da afetação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, como será o caso do direito de audiência e de defesa nos procedimentos contraordenacionais e disciplinares, refere-se a situações de realização do interesse público e dos direitos fundamentais, como um postulado da dignidade da pessoa humana ou por um direito fundamental material em que ela se concretize[17]. Medida em que, quando se dirige ao procedimento disciplinar tem em vista a matéria de processo disciplinar do regime dos trabalhadores da administração pública, que protege valores de obediência e disciplina, em face de certas pessoas que estão ligadas a um especial dever perante outras, no quadro de um serviço público. O direito disciplinar está, então, ligado às específicas necessidades e interesses do serviço público, tutelando o vínculo específico de lealdade, diligência e eficácia no desempenho de funções no âmbito de um serviço administrativo.
Aqui estão apenas em causa exigências de ordem e de regularidade do funcionamento da associação, que prossegue interesses de natureza privatística e exclusiva dos seus associados. Donde não haja fundamento para que a omissão da audiência do autor no processo disciplinar seja cominada com a sanção da nulidade, mas tão só da anulabilidade. Sendo o vício atendível fautor da mera anulabilidade do ato, porque o tempo assume uma inegável influência sobre o exercício dos direitos, a impugnação deve fazer-se em prazo curto, pelo que se considera verificada a exceção de caducidade, assim acompanhando a decisão recorrida.
Quanto à invocada nulidade dos estatutos, ela nunca poderia operar nesta sede. Por um lado, a existir nulidade ela reportar-se-ia ao Regulamento Interno, em concreto ao Código de Disciplina, que omite a vinculatividade da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar. Por outo lado, a nulidade de uma cláusula dos estatutos não implica necessariamente a nulidade de todo o pacto associativo, salvo se o vício afetar de forma essencial a constituição ou o funcionamento da associação. Não se crê, nem o autor o alega, que a compleição do Código de Disciplina afete a associação por forma que esta não possa sobreviver ou funcionar perante a permanência. De todo o modo, ainda que os estatutos contivessem uma qualquer norma revestida de nulidade, recorrendo ao princípio do aproveitamento do negócio jurídico (artigo 292º CC), a nulidade parcial não determinaria a invalidade do todo o negócio, salvo se se demonstrasse que este não teria sido concluído sem a parte viciada. Porém, sempre os associados, voluntariamente, poderiam proceder à alteração dos estatutos prevenindo, dessa forma, a parte viciada.

Decaindo na apelação, suporta o autor as respetivas custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie (artigo 527º, 1, do CPC).

V. Dispositivo
Na defluência do relatado, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo do autor.
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Porto, 25 de outubro de 2016.
Maria Cecília Agante
José Carvalho
Rodrigues Pires
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[1] Aprovado pela lei 41/2013, de 26 de junho, doravante designado “CPC”.
[2] Redação anterior à introduzida pelo decreto-lei 24/2012, de 29 de julho.
[3] Pires de Lima e Antunes, Varela, Código Civil, Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, págs. 161 e 162.
[4] Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3ª ed., pág. 476.
[5] J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República, Anotada, 1º volume, 2ª ed. pág. 264.
[6] In www.dgsi.pt: Ac. RL de 01-06-2006, processo 3039/2006-8.
[7] In www.tribunalconstitucional.pt: Ac. do TC n.º 33/2002, de 22-01-2002.
[8] In www.tribunalconstitucional.pt: Ac. do TC n.º 33/2002, de 22-01-2002.
[9] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363.
[10] In www.tribunalconstitucional.pt: Acs. do TC n.º 33/2002, de 22-01-2002; n.º 135/2009, de 18-03-2009; n.º 345/2015, de 23-06-2015.
[11] José de Faria Costa, Um olhar cruzado entre a Constituição e o processo penal, in “Justiça nos Dois Lados do Atlântico”, FLAD, novembro de 1997, pág. 191; Figueiredo Dias, A Nova Constituição da República e o Processo Penal, in ROA, 1976, pág. 9; Figueiredo Dias, Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português, in RPCC, 18, 2008, pág. 368.
[12] In www.dsgi.pt: Ac. RL de 01-06-2006, processo 3039/2006-8.
[13] Tratado de Direito Civil Português, I Parte Geral, Tomo III, pág. 673.
[14] Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, I, Coimbra, pág. 547; Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, pág. 334; Rui Machete, A garantia contenciosa para obter o reconhecimento de um Direito ou Interesse legalmente protegido, in “Nos dez anos de Constituição”, pág. 244; Jorge Miranda, Sérvulo Correia, Marcelo Rebelo de Sousa, Gomes Canotilho e João Caupers, todos citados por Pedro Machete, in A Audiência dos Interessados no Procedimento Administrativo, UCL, pág. 309.
[15] In www.dgsi.pt: Acs. do STA de 13-02-2007, processo nº 47555; 12-05-2010, processo 0116/09; 22-016-2010, processo 01091/08; 14-01-2016, processo 01546/14.
[16] www.tribunalconstitucional.pt: Ac. n.º 594/2008, de 10-12-2008.
[17] José Carlos Vieira de Andrade, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, 1991, pág. 197; in www.tribunalconstitucional.pt: acórdão nº 273/2016, 04-05-2016.